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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.39 no.97 São Paulo jul./dez. 2019
I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO
Cuidados Paliativos na Atenção Primária à Saúde: perspectiva dos profissionais de saúde
Palliative care in primary health care: the perspective of health professionals
Cuidados paliativos en atención primaria de salud: perspectiva de los profesionales de la salud
Viviane de Almeida CôboI; Amaury Lelis Dal FabbroII; Ana Carolina Serafim Prata ParreiraIII; Fernanda PardiIV
IViviane de Almeida Côbo - Doutoranda Enfermagem Psiquiátrica Escola de Enfermagem de Ribeirão Prêto da Universidade de São Paulo EERP USP, Mestra em Ciências da Saúde pelo Programa de Saúde da Comunidade do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto da Universidade de São Paulo FMRP - USP. Psicóloga graduada em 2007 pela Universidade Federal de Uberlândia. viviane.cobo@hotmail.com. Endereço: Avenida Santa Beatriz da Silva, 1750, Bloco B apto 601, Bairro Santa Maria, Uberaba - MG Brasil, CEP: 38050-106.. https://orcid.org/0000-0003-3631-7969
IIAmaury Lilis Dal Fabbro - Professor Doutor Associado do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. E-mail pauloadfabbro@fmrp.usp.br. ORCID - 0000-0002-0824-4603
IIIAna Carolina S.P. Parreira - Graduada em Psicologia pela Universidade de Uberaba (UNIUBE). e-mail anacarolinaspparreira@gmail.com. ORCID - 0000-0002-9089-9093
IVFernanda Pardi - Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: fernandapardi7@gmail.com. ORCID - 0000-0003-2867-3592
RESUMO
Pensando sobre Cuidados Paliativos (CP), Atenção Primária à Saúde (APS) e Integralidade, a APS parece ser um cenário adequado para a realização dos CP. Sendo assim, o objetivo foi identificar como são compreendidos e realizados os CP na APS. Foram entrevistados 13 profissionais, a análise empregada foi Estatística Descritiva e Análise de Conteúdo. Como resultados e conclusão verificou-se que os profissionais possuem conceitos gerais e empíricos de CP e mais específicos de APS. A "formação empírica" vem da prática que visa qualidade de vida e cuidados humanizados, não tendo formação e discussão sobre CP na APS. Há a demanda e a sensibilização sobre CP na APS, apesar de não serem realizados plenamente, falta capacitação e estrutura, sendo esses cuidados uma possibilidade. A APS é feita por profissionais identificados com seus princípios e diretrizes, direcionada por sua demanda, sendo que há uma cultura que impõe uma visão imediatista sobre a saúde.
Palavras-chave: cuidados paliativos, psicologia da saúde, formação dos profissionais de saúde
ABSTRACT
With reference to Palliative Care (PC), Primary Health Care (PHC) and Integrality, PHC seems to be an appropriate scenario for PC. Therefore, the objective was to identify how PC is understood and performed in PHC. Thirteen professionals were interviewed, the analysis employed was Descriptive Statistics and Content Analysis. As results and conclusion it was found that professionals have general and empirical concepts of PC and more specific ones of PHC. The "empirical training" comes from the practice that aims at quality of life and humanized care, without having training and discussion about PC in PHC. There is demand and awareness about PC in PHC, although not fully realized, there is lack of qualification and structure, and such care is a possibility. PHC is made by professionals identified with its principles and guidelines, directed by its demand, and there is a culture that imposes an immediate view on health.
Keywords: palliative care, health psychology, health professionals training.
RESUMEN
Pensando en los cuidados paliativos (CP), la atención primaria de salud (APS) y la integridad, la APS parece ser un escenario apropiado para realizar CP. Por lo tanto, el objetivo de este trabajo fue identificar cómo se entienden y se realizan los CP en la APS. Trece profesionales fueron entrevistados, el análisis empleado fue Estadística descriptiva y Análisis de contenido. Como resultados y conclusión se encontró que los profesionales tienen conceptos generales y empíricos sobre los CP y más específicos de la APS. La "formación empírica" proviene de la práctica, que apunta a la calidad de vida y la atención humanizada, sin tener capacitación y discusión sobre CP en APS. Existe la demanda y la conciencia acerca de los CP en la APS, aunque no está totalmente realizada, carecen de capacitación y estructura, siendo esta modalidad de atención una posibilidad. La APS es ejecutada por profesionales identificados con sus principios y pautas, orientada por su demanda, existiendo una cultura que impone una visión inmediata de la salud.
Palabras clave: cuidados paliativos, psicología de la salud, capacitación de profesionales de la salud.
Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS) emergiu a partir da Constituição Federal de 1988, com a ampla proposta de cuidar da saúde dos cidadãos brasileiros. O SUS organiza-se pelas redes de atenção primária à saúde, articuladas com outros níveis assistenciais, formando uma Rede de Atenção à Saúde (RAS).
Para que esta seja efetiva, deve se integrar e proporcionar um cuidado integral e continuado (Mendes, 2007). A Atenção Primária à Saúde (APS) é o primeiro nível da RAS, sua porta de entrada, e caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde individuais e coletivas, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipe, dirigidas às populações de territórios bem delimitados.
Utiliza tecnologias de elevadas complexidades e baixas densidades, que devem resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância em seu território. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social. Deve considerar o sujeito em sua singularidade, na sua complexidade, e visar à integralidade, buscando uma inserção sociocultural, promoção de saúde, prevenção e tratamento de doença além da redução de danos ou sofrimentos que possam prejudicar a qualidade de vida (Política Nacional de Atenção Básica, 2006). A estratégia prioritária de organização da APS é a Saúde da Família, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde, que se organiza pela Estratégia de Saúde da Família (ESF). Segundo a Política Nacional de Atenção Básica (2006), os fundamentos da atenção primária, importantes para a relação com cuidados paliativos, são: 1) possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade e resolutivos, caracterizados como a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, com território adscrito de forma a permitir o planejamento e a programação descentralizada, e em consonância com o princípio da equidade; 2) efetivar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração de ações programáticas e demanda espontânea.
Há também: 3) a articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde, tratamento e reabilitação, visando o trabalho de forma interdisciplinar e em equipe, e coordenação do cuidado na rede de serviços; 4) desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população adscrita garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado. A rede de atenção primária a saúde deve, portanto, ser ator nos cuidados paliativos, proporcionando suporte, apoio e proteção ao doente, seus familiares e cuidadores. Além de proporcionar à sua equipe fontes de conhecimento desse tema como, por exemplo, na educação continuada.
A Portaria nº 874 do Ministério da Saúde, de 16 de maio de 2013 institui a Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como objetivo a redução da mortalidade e da incapacidade, causadas por doenças crônicas e ainda, a possibilidade de diminuir a incidência dessas, bem como contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos usuários com essas enfermidades, por meio de ações de promoção, prevenção, detecção precoce, tratamento oportuno e cuidados paliativos. Com tal Portaria se prevê os cuidados paliativos inseridos na rede de saúde, fazendo com que sejam uma necessidade frente à demanda de doentes crônicos, cada vez mais crescente na sociedade brasileira.
O perfil sociodemográfico do Brasil tem demonstrado um aumento da expectativa de vida e da população idosa, o que traz como consequência o aparecimento de doenças crônicas na população segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2009). O processo progressivo de envelhecimento da população nas próximas duas décadas foi uma das principais conclusões do estudo de Indicadores Sociodemográficos Prospectivos para o Brasil 1991- 2030 (2006). A maior expectativa de vida e consequentemente maior proporção de idosos na população vêm implicando um rápido processo de envelhecimento e demandando novos focos de atenção para a saúde pública voltada para esse segmento (IBGE, 2013).
Diante desse quadro, o desafio colocado para as políticas públicas, quanto ao envelhecimento da população, compreende um aumento do fornecimento de serviços e de benefícios, que possibilitem uma vida longa e de qualidade, com saúde e dignidade (IBGE, 2013), o que pode ser visto dentro da perspectiva de Cuidados Paliativos (CP).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) (2010) recentemente redefiniu os cuidados paliativos (CP) como:
[...] abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares, em face de uma doença terminal, através da prevenção e do alívio do sofrimento por meio da identificação precoce, avaliação rigorosa e tratamento da dor e de outros problemas, físicos, psicossociais e espirituais.
Os CP constituem, portanto, um campo interdisciplinar de cuidados totais, ativos e integrais, dispensados aos pacientes com doenças avançadas em fase terminal e aos seus familiares. E foi organizando-se na prática e na teoria no final dos anos 1960 (Floriani & Scharamm, 2007). No Brasil, essa abordagem de cuidados começou a ser inserida nos serviços nos finais dos anos 1990, o que confirma tratar-se de uma prática bastante recente (Palmeira, Scorsolini-Comin & Peres, 2011).
Os CP visam a oferecer um modo de morrer que acolha o paciente, seu cuidador e sua família, dando-lhes apoio para enfrentar esse momento de suas vidas, estendendo-o à fase de luto (Floriani & Scharamm, 2007). Sendo assim, não há espaço melhor para se discutir e colocar em prática os cuidados paliativos que a APS, já que esta se propõe a ser e estar próxima ao paciente e sua família, e a manter relações estreitas com estes.
Por outro lado, a formação dos profissionais em saúde deve ser ampliada em seus conteúdos, de tal forma que extrapole os cuidados meramente técnicos e biologistas. Para se trabalhar em rede de saúde e no SUS, os profissionais de saúde devem considerar as necessidades globais das pessoas, as quais são parte de uma família, estão em uma comunidade carecem de serviços de qualidade e integrais com base na confiança. Os profissionais de saúde devem saber comunicar-se com todos, tornando os pacientes donos e responsáveis por sua saúde. Devem saber decidir quais tecnologias usar com base em custo, efetividade e ética, e liderar pela confiança recebida da comunidade, gerenciando os recursos para atender as necessidades de saúde da comunidade (Mendes, 2007). Além disso, é preciso formar profissionais capazes de enfrentar a morte e o morrer conscientes, podendo interpretá-los como parte integrante e indissociável da vida e não como sua antítese (Silva & Ruiz, 2003).
Em contraponto, a formação atual dos profissionais de saúde privilegia a atuação focada na prestação de serviço de clínica individual, não destacando a complexidade da rede de saúde brasileira e suas repercussões, sendo tal formação fragmentada e voltada à especialização. É necessário valorizar uma formação que vise à integração das disciplinas, que oferte disciplinas de ciências sociais nos estágios iniciais da graduação, para permitir aos alunos verem além dos pacientes individuais, e criar sistemas de educação permanente ao longo de toda a vida profissional (Mendes, 2007).
Por fim, é necessário destacar que, para a realização dos cuidados paliativos em sua totalidade, ou qualquer cuidado em saúde humanizado e integral, são necessárias reflexões acadêmicas e práticas, em todos os âmbitos e formações da saúde que valorizem também os conhecimentos em relações humanas e não só os conhecimentos técnicos científicos.
Método
Tratou-se de estudo descritivo e exploratório, cujo objetivo era descrever como os profissionais de saúde percebem e realizam os CP na APS. A pesquisa foi desenvolvida em cinco Unidades de Atenção Primária em Saúde (APS), no período de setembro a dezembro de 2013, pertencentes à Rede de Atenção à Saúde.
Participantes
A população estudada era composta por todos os profissionais que tinham curso superior na área de saúde, que compunham a Estratégia de Saúde da Família dos cinco Núcleos de Saúde participantes do estudo. A amostra se compôs de equipe mínima de ESF, já que as unidades de saúde citadas só possuíam esse tipo de equipe, totalizando 13 profissionais (seis enfermeiros, seis médicos e um odontólogo). Optou-se pelo recorte do nível de formação para equiparar as possibilidades de respostas.
Instrumentos
Os instrumentos se constituíram de questionário com questões fechadas e abertas, aplicados aos profissionais de saúde, visando a identificar o nível de conhecimento sobre cuidados paliativos, sobre os pacientes que estão nessa fase de doença e como atuam em relação aos mesmos. Portanto, as variáveis foram: conhecimento e percepção dos profissionais sobre CP; conhecimento e percepção sobre APS; e conhecimento e percepção sobre CP na APS. Na entrevista ficou explicitada a percepção do profissional sobre os CP, APS e a interseção da abordagem dos CP nesse nível de atenção à saúde. Os questionários e entrevistas foram elaborados respeitando uma lógica interna na representação dos objetivos e na estrutura de aplicação, tabulação e interpretação (Manzato & Santos, 2012).
Procedimentos
Coleta de dados
A coleta de dados foi realizada no período de setembro a dezembro de 2013 simultaneamente em todas as unidades. Houve um pré-teste com adequação.
Análise de dados
Optou-se por um método misto, que pode ser também chamado de "triangulação", no qual as variáveis quantitativas foram analisadas para caracterizar a amostra e o cuidado prestado na APS dentro da abordagem de CP, e as variáveis resultantes do método qualitativo caracterizaram o conhecimento e percepção dos profissionais de saúde da APS sobre os CP, a APS e a intersecção dessa abordagem com esse contexto.
Todas as entrevistas foram transcritas (na íntegra e literalmente) e os dados coletados (levantamento e questionários) foram descritos. Em seguida, foram tabulados seguindo ferramentas da estatística descritiva. Sobre material transcrito, foi feita a análise qualitativa pelo método Análise de Conteúdo (Bardin, 1979). Â Após a análise qualitativa, os dados foram cotejados para verificar associações e apresentados para posterior formulação de hipóteses e conclusões.
Considerações Éticas
Esta pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, com parecer número 359.911 e data de relatoria 13/08/2013, e houve autorização para realizar a pesquisa nos Núcleos de Saúde através de liberação de pesquisa nº 015/2013.
Todos os convidados, que participaram do estudo, foram incluídos na pesquisa e entrevistados após leitura e assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todos os participantes assinaram o TCLE, foram esclarecidos quanto ao objetivo e aos procedimentos do estudo, a importância das atividades desenvolvidas, bem como quanto aos possíveis desfechos. Além disso, foi mencionado que a participação ocorreria por livre e espontânea vontade, sem retribuição por isso, com possibilidade de desistência em qualquer momento e assegurado o anonimato.
Resultados
Foram entrevistados 13 profissionais de saúde (seis enfermeiras, seis médicos e um odontólogo) de equipes de ESF. Todos os profissionais cursaram pós-graduação, e são, predominantemente, do sexo feminino, com idade média de 37 anos; 62% estão casados e o tempo médio de estudos é de 22,7 anos. A titulação mais avançada é o Doutorado concluído por 23%, mestrado concluído por 15% e os demais 62% cursaram algum tipo de especialização.
O tempo médio de trabalho na área da saúde é de 11,6 anos. Quanto ao tempo de término da graduação, em média, observou-se 13,3 anos. Há uma relativa aproximação entre o tempo de formação e o tempo que trabalha na APS, caracterizando a escolha do profissional em permanecer na APS, sugerindo um processo de identificação com esse contexto.
Conhecimento em Cuidados Paliativos
Todos os entrevistados já ouviram, em algum curso ou treinamento, alguma informação sobre CP. Julgaram implícitos ao conceito de Cuidados Paliativos, os preceitos de integralidade e de multidisciplinariedade, e o conceito de maior relevância, o de qualidade de vida.
Nenhum dos entrevistados possuía formação específica em Cuidados Paliativos, ou citaram alguma formação na graduação como disciplinas ou estágios. Toda a teoria adquirida foi por intermédio de palestras, eventos ou estudos individuais frente a alguma dificuldade ou desafio de trabalho.
Percepção sobre cuidados paliativos
Para aferir a percepção dos profissionais em relação a premissas relacionadas aos Cuidados paliativos, foi construída uma escala do tipo Likert de 5 alternativas. Reafirmou-se a qualidade de vida como conceito para CP na visão dos profissionais, além disso, foi associada a percepção de cuidado humanizado ao mesmo conceito.
Experiência profissional em Cuidados Paliativos
Apenas um médico e uma enfermeira não assistem (em sua visão) pacientes indicados para Cuidados Paliativos. Constata-se que há demanda na APS por CP, e que é exigido dos profissionais o conhecimento dessa abordagem.
Cuidados paliativos realizados
Dos entrevistados, 77% já realizaram CP na atenção primária em algum momento de sua experiência profissional. Quanto ao acompanhamento da família no luto, todos os respondentes já o fizeram.
Percebeu-se que, mesmo de forma empírica, e não denominando os cuidados prestados como CP, estes acontecem na APS, e quando questionados, os profissionais reconhecem a prática. Outro ponto importante observado, foi a falta de coerência entre teoria e prática. Na prática dos profissionais existe uma visão reduzida de CP, que nem sempre coincide com a teoria, mesmo sendo esta mais elaborada por eles na fala.
Percepção sobre Atenção Primária à Saúde (APS), Conhecimento sobre CP e APS, Percepção sobre CP e APS.
A maioria dos profissionais de saúde julga a APS eficiente. Poucos entrevistados afirmaram conhecer alguma política de saúde que englobe a APS e CP. E todos os entrevistados consideram importante realizar CP na APS.
São poucas as políticas públicas que englobam os CP, modalidade ainda incipiente no Brasil, e a APS e os dados são congruentes com essa realidade.
Análise de Conteúdo: entrevista com os profissionais
A análise de conteúdo realizada permitiu verificar, para cada categoria, os conteúdos mais frequentes ou modais que, de certa forma, representam os conhecimentos, percepções e opiniões dos profissionais de saúde sobre APS e CP. Esses dados contribuem com grande sentido para a análise da realidade, tanto da APS, quanto para CP, contribuindo para a reflexão sobre políticas públicas.
Em relação à categoria cuidados paliativos, subcategorias e conteúdos pode-se dizer que reafirmam o conceito de CP ligados à integralidade, à qualidade de vida e ao cuidado humanizado. Acrescenta a questão da morte como parte do conceito de CP. E, ainda, insere empecilhos para a sua plena realização, como a gestão e a dificuldade pessoal de lidar com a morte e o processo de morrer. Quanto à categoria Atenção Primária à Saúde suas subcategorias e conteúdos vê-se claramente o maior domínio de conceitos sobre APS, com definições objetivas e teóricas. Há também a recorrente citação das políticas públicas, ligando estas à APS.
Ainda, fizeram uma ligação entre a APS e o vínculo com o paciente, e considerando isso como um facilitador para o trabalho do profissional em saúde. Da mesma forma, a categoria CP na APS suas subcategorias e conteúdos sugerem que, para a realização plena dos CP, deve haver maior estruturação da APS, tal qual englobe maior apoio da Gestão, mais capacitações para todos os atores envolvidos (família, paciente, cuidadores, profissionais e gestores) e um estudo da demanda em relação à organização de tempo frente ao volume de trabalho e os recursos humanos disponíveis.
Também reafirma os cuidados multiprofissionais como parte dos CP, e o vínculo presente entre profissional, família e paciente, como facilitadores para efetivação dos CP na APS. Por fim, quanto à categoria Formação e Experiência em Cuidados Paliativos, subcategorias e conteúdo para a maioria, suas formações não proporcionaram subsídios necessários para trabalhar com CP; dois entrevistados consideraram que tiveram uma boa formação para trabalhar em CP e somente um disse que sua formação foi parcialmente satisfatória quanto a isso. Quatro entrevistados contaram alguma experiência de CP já vivenciada. Tais afirmações representam que não há formação acadêmica para exercer, especificadamente, CP e que tais conhecimentos foram construídos de forma empírica e na prática.
A maioria dos entrevistados associou CP a serviços prestados aos doentes em estado terminal e à APS, o serviço prestado junto à comunidade próxima. Os entrevistados sugeriram que o vínculo com a família é o ponto favorável de CP na APS. E também consideram que lidar com a morte é o mais difícil, pois há uma proximidade com a família. Como mais fáceis, foram citados a parte técnica, o cuidado humanizado, o apoio espiritual. Interessante destacar que alguns não elegeram nenhuma ação fácil nos CP. Com relação à APS, é afirmado que é a porta de entrada no sistema de saúde. Por esse motivo, se não for bem conduzido pode sobrecarregar o sistema de saúde como um todo. E os CP trazem dignidade e respeito aos pacientes, promovem a qualidade de vida e agregam uma equipe no lugar de um profissional.
Durante as entrevistas, surgiram outras demandas, que apareceram fora do contexto da pesquisa, tais como a baixa remuneração dos profissionais de saúde, os problemas na gestão dos serviços em saúde, os profissionais que trabalham na APS muitas vezes não têm identificação com a ideologia da APS, e um profissional ouviu falar de hospice (termo da origem dos CP).
Observações e impressões acerca das entrevistas:
1. Há o desconhecimento teórico e de políticas públicas pelos profissionais.
2. Algumas profissões demonstram maior conhecimento teórico que outras, os profissionais médicos demonstraram maior dificuldade em responder coerentemente as questões, sendo muito ligados às técnicas próprias de sua profissão e não a cuidados específicos, integrais e amplos como os propostos pelos CP.
3. Os núcleos de saúde onde foi realizada a pesquisa são favorecidos por terem contato e formação contínua com a faculdade.
Discussão
Os profissionais da amostra estudada possuem uma vasta experiência em APS e pequena em CP tanto teoricamente quanto na prática. É sabido que existe uma lacuna na formação de profissionais de saúde em relação ao tema CP, e isso tem sido um obstáculo para o cuidado ao paciente e a sua família que vivencia sua terminalidade (Boemer, 2009). Vários estudos apontam para a importância de ocorrer alterações na formação de todos os profissionais de saúde que proporcione amplo conhecimento teórico e prático em CP independentemente do local ou nível de atenção ocupado por esses profissionais (Costa, Poles & Silva 2016; Pineli, Krasilcic, Suzuki, & Maciel, 2016).
Todos os profissionais possuíam especialização e isso explica o fato da boa articulação dentro da APS. E ainda, profissionais mantiveram em seu discurso uma forte identificação com esse nível de atenção, mostrando muitas vezes paixão e bom conhecimento nessa área. Esses dados condizem com a literatura, pois de acordo com a Política Nacional de atenção Básica (2006) a participação na educação permanente dos profissionais da APS é de atribuição a todos profissionais da saúde e é de responsabilidade conjunta das SMS e das SES, nos estados, e da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Dentre os profissionais, pouco conhecimento formal (conhecimento adquirido por cursos, certificações ou titulações) em CP foi observado. Os conhecimentos foram construídos por percepções, vivências e complementações à formação técnica de cada profissional. Tal fato refere a uma carência de conhecimento formal dos profissionais sobre CP, o que pode implicar diretamente na oferta de qualidade de serviços nesta abordagem (Saito & Zoboli, 2015). Os conhecimentos relatados pelos profissionais foram criados de forma ativa, produzidos embasados em teorias técnicas, no cotidiano de suas práticas, suas relações, nas demandas de seus territórios, e em suas buscas para suprir a necessidade de cuidados na APS. Não vieram de formações e práticas específicas, pois foram construídos de suas relações profissionais em um processo interno e fortemente ligados com sua formação em APS, dando significados e sentidos aos CP e seus desdobramentos.
Foram ouvidos dos profissionais, a importância, o sentimento, as sensações, as opiniões e as ideias sobre CP, que caracterizaram seu conhecimento. E carregados por muitos sentimentos, como refletido pela inserção da temática morte e a dificuldade de lidar com esta, no conceito de CP, o que foi sugestivo de reflexões também pessoais. Para Silva & Ruiz (2003, p. 20), o fato do profissional em saúde, "ao informar alguém da morte de parentes e amigos em situações quaisquer, confronta-se de modo inevitável com as suas próprias convicções, anseios e significação da morte".
A parte da formação em APS que influenciou a conceptualização de CP são as definições de integralidade e humanização, diretrizes e fundamentos fortes da APS, que eles citaram como componentes dos CP, o que não deixa de ser uma realidade. A qualidade de vida também foi um dos temas encontrados na análise de conteúdo quando perguntados sobre a definição de CP, temática recorrente nas discussões sobre a APS. Os achados da pesquisa vêm de encontro com Mendes (2015), já citado, quando este enfatiza que os cuidados paliativos respeitam a hierarquização da assistência em todos os níveis de atenção à saúde, nos âmbitos do SUS, e faz com que se garanta, de uma maneira mais elaborada, a integralidade, equidade e universalidade à saúde do cidadão.
Outro componente da definição foi o cuidado dirigido ao paciente sem possibilidade terapêutica curativa (ideia ligada a um prognóstico pobre), que se relaciona com a temática morte, favorecendo o sentimento do profissional em saúde em sua conceptualização de CP. Nesse contexto, os profissionais entenderam o cuidado como ampliado, integral (bio-psico-social-espiritual) e multiprofissional, além de incluir a família. O que se pode entender em Mendes (2015, p.885) que esse cuidado é na grande maioria das vezes cuidados intensivos de conforto e gestão do fim da vida, ou seja, "afirmam a vida e tratam a morte como um processo normal, e não implicam apressar ou adiar a morte".
Os profissionais de saúde citaram com maior frequência na definição de cuidados acerca do físico, psíquico e social, não salientando o cuidado espiritual. O que também foi encontrado quando os entrevistados foram questionados sobre qual seria o conceito dentro da abordagem dos CP com maior grau de importância, a qualidade de vida foi apontada como o mais importante e o cuidado espiritual o menos importante. O que dá margem para novos estudos sobre essa temática. Quando perguntados sobre os cuidados já realizados na abordagem CP, 92% dos respondentes citaram o médico e o enfermeiro, enquanto que fisioterapeutas, psicólogos e assistentes sociais foram lembrados por apenas 23%. O que demonstra que o modelo biomédico e individualista ainda é prática presente na assistência, e que ainda tem um caminho a ser trilhado para uma maior coesão de profissionais nas equipes interdisciplinares.
De acordo com Mendes (2015) o significado de cuidado vai muito além do que foi eliciado pelos profissionais, os CP se concretiza por meio de prevenção e alivio do sofrimento, identificação precoce, avaliação correta e tratamento das dores, autonomia, atendimento das necessidades, relacionadas ou não a outros problemas associados à ameaça a vida dos pacientes e dos familiares. E é neste ponto que se observam convergências. No discurso dos mesmos: os profissionais, apesar de não terem formação específica, são sensibilizados ao tema, focando na qualidade de vida e entendendo o eixo dos CP como aqueles cuidados direcionados ao paciente e à sua família sem medidas curativas.
As visitas e a atenção da equipe de saúde dispensada ao paciente e sua família fazem um papel importante na qualidade de vida do paciente, sem a necessidade de empregar recursos mais complexos para o controle de sintomas físicos (Góngora et al., 2016). Â Para os entrevistados houve unanimidade de concordância com a frase "Se não for possível curar, sempre é possível cuidar". Já as afirmativas "Quando não há cura para o paciente não há trabalho para o profissional de saúde" e "Melhorar a qualidade de vida do paciente resume-se em curá-lo" são as que foram discordadas plenamente pelos entrevistados. Aqui, reafirma-se a visão de qualidade de vida e humanização. Tal proposição encontra sentido quando, ao relatarem suas dificuldades e facilidades, a integralidade, a humanização e o vínculo são citados com frequência como facilidades. Para realizar os CP, quando perguntado aos profissionais sobre as dificuldades encontradas, relatam que as mais difíceis são: como falar para a família e ser entendida por ela que o paciente está em CP, portanto, sem medidas curativas, viver os últimos dias com qualidade de vida, preparar a família para o luto, falar de morte. Acontece a dificuldade, por lidar com a morte do outro que, de certa maneira, também é lidar com a sua própria morte. Assim como discorrido anteriormente: lidar com a morte no cotidiano pode levar a reflexões de si e do seu contexto pessoal, levando ao sofrimento psíquico. Na formação graduada, ensinam-se técnicas de saúde, e não como se relacionar e acolher quem necessita.
De acordo com Kübler-Ross (1989), ao mesmo tempo em que se ensina ciência e tecnologia, deveria ser ensinado, também, o inter-relacionamento pessoal. Com a condição de ter a morte como companheira, levando a várias reflexões diárias, é preciso formar profissionais capazes de enfrentar a morte e o morrer conscientes, podendo interpretá-los como parte integrante e indissociável da vida e não como sua antítese (Silva & Ruiz, 2003). Já que lidar com as limitações, a doença e a morte eminente do outro é tomar consciência da sua própria finitude e fragilidade. Tal afirmativa encontra ecos em como a formação dos profissionais em saúde é estruturada. Â Não houve relato de alguma disciplina ou formação específica dentro das graduações que fossem direcionadas aos CP ou à temática morte. Uma formação sem preparo para o fracasso (representado pela morte) leva a limitações e dificuldades por parte dos profissionais de saúde como a barreira pessoal em relação a trabalhar com morte e o sofrimento dos pacientes, familiares, e por fim de si mesmo. As graduações em saúde têm em seus currículos meios de curar (principalmente a medicina) e não de cuidar, paradigma que vem sendo muito discutido no meio acadêmico. Pois, emergem aos profissionais dificuldades de cuidar sem perspectiva de curar, relacionadas à questão da finitude e da morte sempre presentes.
Outra dificuldade é a questão do tempo e do número alto de demandas da APS em contraste com reduzido número de recursos humanos, que traz a dificuldade de tempo para realizar o CP em sua plenitude. Sendo que a APS é, em sua essência, feita por tecnologias leves que focam suas ações no recurso humano. Assim como a dificuldade na realização de integralidade e humanização também citada pelos profissionais, pois existem barreiras que impendem a comunicação e até mesmo os encaminhamentos dentro da rede.
Na literatura já se discute sobre esses problemas, Mendes (2007) cita várias dificuldades dos profissionais em exercer seus trabalhos baseados nos princípios e diretrizes da APS, consequentemente no CP, por exemplo, a fragmentação dos sistemas de saúde que muitas vezes tem falhas sérias na comunicação, medidas ineficazes em promoção e prevenção de saúde e assim o foco do atendimento é mais voltado para o atendimento de "cura", rompem o princípio da continuidade da atenção, tendem a incentivar financeiramente os pontos de atenção à saúde de maior densidade tecnológica, criam incentivos para a indução da demanda pela oferta, e apresentam problemas de qualidade. E isso nos leva a crer que muitas vezes não existe um problema de falta de recursos humanos, mas sim fragmentações na rede de saúde que funcione e que treine corretamente os profissionais para atuarem com maior eficácia dentro do sistema. Muitos profissionais percebem os CP como um cuidado complexo e não pontuam nada de facilidade, mas entre os que relataram atividades mais fáceis de serem realizadas em CP, destacam-se os cuidados técnicos de cada área de formação. Quanto à experiência dos profissionais, 77% já realizaram cuidados paliativos na APS e todos já acompanhou, em algum momento, uma família em luto. Apenas um médico e uma enfermeira não possuíam pacientes para serem indicados aos cuidados paliativos. Quanto à questão das políticas públicas em CP prevaleceu um desconhecimento por parte dos profissionais. Houve algumas citações sobre a mudança do perfil demográfico da população brasileira que demanda novas políticas públicas que deveriam incluir CP, já que estes vêm de encontro a esse perfil, que afirma uma população mais cronicamente doente e envelhecida. Não há, na realidade brasileira, políticas públicas para inclusão de CP na APS apesar da OMS propor a ampliação do acesso a serviços de CP (Marcucci, Perilla, Brun, & Cabrera, 2016). Além disso, houve quem afirmasse que os CP estão de acordo com o propósito de oferecer um cuidado que ajude as políticas públicas, pois usa, em sua maioria, tecnologias leves, melhora da assistência, otimização de recursos e preza pela integralidade do cuidado.
Conclusão
Pode se constatar pelo estudo que os profissionais entrevistados não possuíam formação específica em CP, possuíam uma "formação empírica" vinda da prática que ainda privilegia os cuidados físicos, mas que visa à qualidade de vida, cuidados humanizados e à integralidade. Conceituaram e relataram suas percepções sobre CP construindo estes a partir de suas vivências profissionais e do que pensam e sabem sobre saúde de seu contexto. Há dificuldades dos profissionais em questão de realizar os cuidados paliativos, como empecilhos à integralidade, dificuldade de enfrentar e comunicar perante a temática morte; e há facilidades como cuidados humanizados e que visem à qualidade de vida. O termo CP e sua prática, ainda é um assunto que precisa ser difundido entre os profissionais de saúde (Alves, Andrade, Melo, Cavalcante, Angelim, 2015).
Esta conclusão colabora com o estudo de Saito & Â Zoboli(2015), que traz como problemas a serem enfrentados para a consolidação dos CP na APS, a falta de recursos, o desconhecimento sobre CP dos atores envolvidos, a falta de boa habilidade de comunicação, dificuldade de estabelecer limites nas relações de cuidado devido ao vínculo próximo (o que por vezes pode significar benefício também, dependendo do manejo do profissional de saúde), a sobrecarga de trabalho vinda da diversidade e alto número de demanda, e a falta de apoio dos serviços de referência. Tudo isso causam buracos burocráticos onde os pacientes se perdem entre os níveis primário, secundário e terciário. A APS exige mais dos profissionais, no sentido para além da capacidade técnica, já que estes precisam se identificar com uma proposta de trabalho que demanda capacidade de comunicação, criatividade, iniciativa e vocação para trabalhos comunitários e em grupo (Ronzani & Silva, 2008). E os entrevistados foram capazes de elucidar essas exigências e suas repercussões em sua prática, dizendo da importância do cuidar além da técnica. Constatou-se, assim, que a maioria dos profissionais se identifica com os ideais de trabalho da APS, sendo que reafirmam tais ideais em suas práticas cotidianas visando aos cuidados integrais e humanizados.
Para os profissionais, a APS define-se em suas práticas como cuidado continuado, ser gestora do cuidado em saúde, ser realizada junto à comunidade e/ou família, ter vínculo com as famílias e pacientes, fazer promoção de saúde e prevenção das doenças; e proporcionar um cuidado longitudinal. E suas definições frente à rede de saúde como a porta de entrada do sistema de saúde, sendo o primeiro nível de atenção; tem alta resolubilidade dos problemas em saúde; atende a população de uma área adstrita (um território); olha o indivíduo como um todo; proporciona um cuidado integral e usa tecnologias leves. Porém, a maioria dos entrevistados acha a APS "parcialmente bem estruturada" e, para tanto, argumentaram que não há estrutura física suficiente, de recursos humanos e de material; citaram também que não há suporte de gestão ou de estrutura, e que esta, como é configurada na rede, não ajuda, na transição de nível, a prestar um cuidado continuado. Julga, em sua maior parte, a APS importante para as políticas públicas, justificando isso pelo fato da mesma ser a porta de entrada e gestora do cuidado, fazendo o mesmo fluir. Tais definições e conceituações, feitas pelos profissionais sobre APS, representam a importância da uma boa gestão e estruturação sem fragmentações da rede de saúde e uma preparação adequada desses profissionais, para trabalharem na rede e na APS.
Todos os entrevistados consideram necessário realizar CP na APS, sendo que a maioria acha possível fazer tais cuidados na APS por sua baixa densidade tecnológica, mas que há empecilhos para tal, como a alta demanda e a falta de capacitação. Para Souza et. al (2015), a característica de atenção domiciliar oferecida pela APS casa com a possibilidade das pessoas optarem por morrer em domicílio junto aos seus familiares, e faz surgir a necessidade dessa abordagem de cuidado nesse nível de atenção à saúde.
Durante a entrevista, muitos profissionais relataram a baixa remuneração na APS frente a outros níveis de saúde, houve quem falasse de uma maior valorização social do profissional que trabalha em setores secundários ou terciários, como se quem trabalhasse em atenção primária fosse menos qualificado; o que não é uma realidade, já que se exige alta qualificação para trabalhar em tecnologias leves como a da APS.
Um sistema de saúde que propõe em seus princípios a integralidade não pode refletir em sua sociedade um pensamento que classifique cuidados como menos ou mais valorizados. A integralidade requer continuidade do cuidado, que só acontece na busca contínua de comunicação entre os níveis de saúde, e não há como isso ocorrer, se não houver relações de respeito e valorização entre os profissionais e pacientes de todos os níveis.
Com este estudo exploratório, foi possível identificar que os profissionais de saúde que atuam na APS conceituam e definem CP por sua prática em outros contextos, que em sua maioria não possuem formação específica em CP. Os mesmos profissionais são bem preparados para APS e trabalham nesse nível por identificação com a demanda de trabalho. Deslumbram facilmente a intersecção entre CP e APS, sugerindo a necessidade de maior capacitação e melhor gestão, institucional e de tempo, frente a tantas demandas, para consolidar e implementar essa prática de cuidado nesse nível de saúde. Mendes e Vasconcellos (2015) corroboram com essa questão reafirmando que os princípios do SUS convergem para que se propague os CP na APS. Constatou-se que existe a demanda por esse cuidado na APS e que há a possibilidade de executá-los em sua íntegra. Os principais papéis realizados pela APS seriam, então, de gerir o cuidado, organizá-lo dentro da rede de atenção à saúde, estar próximo ao paciente e usufruir desse privilégio de ter vínculo com o paciente para efetivar os CP na abordagem psicossocial. O estudo de Paz et al. (2016) constatou a alta demanda por CP na APS.
Profissionais que trabalham na APS é que a definem e seus cuidados prestados, pois trabalham predominantemente com tecnologias leves, o que significa trabalhar mais com as relações e menos com o uso de equipamentos, sendo os profissionais de saúde como principais ferramentas da APS. Estes precisam ser firmemente comprometidos com os ideais da APS, não só focados no diagnóstico, cura e reabilitação, mas também na promoção de saúde, prevenção de doenças, na família e no indivíduo, no contexto e na comunidade.
Esse nível de atenção à saúde é direcionado por sua demanda, a qual emerge da comunidade adstrita ao seu território. Tal demanda converge para os CP, pois, cada vez mais, há um aumento dos doentes crônicos no país. Os cuidados paliativos acontecem na APS, nas entrelinhas, não como ator principal, mas como necessário para a integralidade, a humanização e a totalidade, propostas pelo SUS e APS.
Os CP são uma realidade e necessidade da sociedade, e não há formação a todos, nem ao menos é discutida na formação primária de uma graduação. Os profissionais ainda hoje focam seus cuidados no físico, mesmo com a mudança de paradigma na sociedade onde o bem estar vai além do físico, e encontra-se com o psíquico, o social e o espiritual. Não há a preocupação com a formação dos profissionais para CP em geral, tampouco para aqueles que trabalham na APS, pois no País ainda se vê o cuidados paliativos a nível terciário (Souza et al, 2015). Os profissionais cuidam na APS com a sua identificação e dedicação à profissão e ao local onde está, o que lembra uma frase do teórico Jung (1939): "Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.". Exige-se de um profissional de cuidado paliativo uma performance humanizada, integral e de resignação, e profundo entendimento frente à morte como uma continuação natural da vida, um profissional que não se perca em meio à obstinação terapêutica e que tenha um olhar amplo ao contexto do doente, ao mesmo tempo que permita ver além da doença, a família e a história do indivíduo que é cuidado. Construir com o paciente um cuidado direcionado à sua qualidade de vida e nada mais, um olhar que respeite sua história e suas escolhas, e que permita construir uma relação saudável e de confiança. Relação que permita o bem estar de todos os atores envolvidos.
Fazer os CP na APS é um desafio, a ser alcançado, e que nem ao menos ainda foi vislumbrado. Ainda é pequena a discussão sobre essa intersecção específica, apesar de se ter a demanda. Surgem várias iniciativas para implementar e consolidar a abordagem de CP, entretanto, ainda há um longo caminho para concretizar esses cuidados, que perpassa o difícil acesso à RAS Rede de Atenção à Saúde, as falhas nas diretrizes e má gestão das políticas públicas de saúde, algumas deficiências na formação dos profissionais, a falta de informação e de cobrança por parte da comunidade (paciente e familiares).
Um dos limites deste estudo se refere ao fato de ainda serem escassos os estudos que lidam com essa intersecção de APS e CP, sendo estes diretrizes e abordagens relativamente novas. A APS, ainda, forma-se como um nível de saúde de sucesso, enfrentando desafios como a cultura pelo modelo de cura propagado pela comunidade (pilar da APS), e é um desafio acoplar uma abordagem como os CP, que requer dedicação e tempo para ouvir e estar com o enfermo. Tal questão também é um limite do estudo, já que explora a inserção de uma abordagem em um contexto já sobrecarregado.
Ocorre hoje, em nossa sociedade, uma transição demográfica e epidemiológica, que tem proporcionado alterações nos quadros de morbimortalidade da população, caracterizando um aumento significativo na incidência e provocando o surgimento de doenças crônicas em faixas etárias cada vez mais jovens e, concomitante, o aumento da expectativa de vida. Frente a essa realidade, é de extrema importância que haja estudos como este que explorem a abordagem dos CP e sua inserção na rede de saúde brasileira.
Além disso, este estudo visou a levantar um retrato da realidade da APS e como esta pode abranger também CP, sendo uma base para estudos mais aprofundados, e que se desperte o interesse por estudar esses dois conceitos na prática, já que impactam em cuidados melhores a uma população existente e crescente.
Referências
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Recebido: 01.10.2018 / Corrigido: 13.05.2019 / Aprovado: 29.05.2019