Boletim - Academia Paulista de Psicologia
ISSN 1415-711X
I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO
Teoria da mente em crianças escolares: revisão sistemática da literatura
Theory of mind in schoolchildren: a systematic review of the literature
Teoría de la mente en niños escolares: revisión sistemática de la literatura
Renata de Lourdes Miguel da SilvaI,24; Marisa Cosenza RodriguesII
IPsicóloga e doutoranda em Psicologia. Universidade Federal de Juiz de Fora - Cidade Universitária - Bairro Martelos - CEP 36036-330. E-mail: renata.miguel@yahoo.com.br. ORCID: 0000-0002-5601-0334
IIProfessora Titular da UFJF (MG) - Graduação e Pós-Graduação em Psicologia. Tutora do PET-Psicologia UFJF. Universidade Federal de Juiz de Fora - Cidade Universitária - Bairro Martelos - CEP 36036-330. E-mail: rodriguesma@terra.com.br. ORCID: 0000-0001-6711-3198
RESUMO
A teoria da mente é a capacidade de compreender estados mentais e de predizer o comportamento, sendo fundamental para as interações sociais. Desenvolve-se predominantemente na infância, mas aperfeiçoa-se ao longo da vida. Este estudo apresenta uma revisão sistemática de investigações sobre teoria da mente em escolares. Realizou- se buscas nas bases LILACS, PsycInfo, Scopus e no Banco de Teses da Capes. Foram identificados e analisados 30 estudos cuja população participante era exclusivamente composta por escolares (6 a 11 anos). Os resultados indicam a predominância de estudos transversais realizados, em sua maioria, nos continentes americano e europeu. Foram identificados 14 instrumentos de avaliação da teoria da mente na amostra analisada. A produção na área tem se desenvolvido de forma significativa, especialmente nos últimos quatro anos. Há diferentes vertentes para novas pesquisas, indicando que a área tende a continuar em crescimento com importantes contribuições teórico-práticas no âmbito do desenvolvimento infantil.
Palavras-chave: cognição social; revisão sistemática; infância; Teoria da mente.
ABSTRACT
Theory of mind is the ability to understand mental states and to predict behavior, being fundamental for social interactions. It develops predominantly in childhood, but improves throughout life. This study presents a systematic review of investigations about theory of mind in schoolchildren. Searches were carried out on the databases of LILACS, PsycInfo, Scopus and on the CAPES Theses Bank. 30 studies were identified and analyzed, the participants of which were solely schoolchildren (6 to 11 years old). The results indicate the predominance of interdisciplinary studies carried out, mostly, in the continents of America and Europe. 14 instruments that evaluated theory of mind were identified in the sample analyzed. Production in the area has developed significantly, especially in the last four years. There are different trends for new research, indicating that the area tends to continue growing with important theoretical-practical contributions in the sphere of child development.
Keywords: social cognition; systematic review; childhood; Theory of mind.
RESUMEN
La teoría de la mente consiste en la capacidad de comprender estados mentales predecir comportamientos, siendo fundamental para las interacciones sociales. Se desarrolla principalmente en la infancia, aunque se va perfeccionando a lo largo de la vida. Este estudio presenta una revisión sistemática de las investigaciones acerca de la teoría de la mente en niños escolares. Se realizaron búsquedas en las diferentes bases de datos: LILACS, PsycInfo, Scopus y en el Banco de Tesis de Capes. Fueron identificados y analizados 30 estudios cuya población participante era exclusivamente compuesta por escolares (de 6 a 11 años). Los resultados indican el predominio de estudios transversales realizados, la mayor parte de estos, en los continentes americano y europeo. Se identificaron 14 instrumentos de evaluación de la teoría de la mente en la muestra analizada. La producción científica en esta área se ha desarrollado de forma significativa, en especial en los últimos cuatro años. Hay diferentes vertientes para nuevas investigaciones, indicando que estos estudios están creciendo en número y configurándose como importantes contribuciones teóricas y prácticas en el ámbito del desarrollo infantil.
Palabras clave: cognición social; revisión sistemática; infancia; Teoría de la mente.
Introdução
A teoria da mente (Theory of Mind ToM) é a capacidade de compreender estados mentais (i.e., crenças, desejos, intenções e emoções) próprios e alheios (Wellman, 2014). Tal aquisição, segundo Souza e Velludo (2016), oferece uma base sólida para que a pessoa possa explicar e prever o próprio comportamento, e o de outras pessoas, a partir de inferências sobre os seus estados mentais. Trata-se de um campo de investigação recente e que ganhou destaque nas pesquisas com crianças pré-escolares. O desenvolvimento da teoria da mente, enquanto área de estudos, levou à elaboração de diferentes instrumentos de avaliação, ampliação da faixa etária investigada e estudo das diferenças individuais em populações típicas e atípicas (como autistas e surdos), conforme mencionado por Wellman (2017), que teceu considerações sobre o panorama histórico das pesquisas em teoria da mente. Destaca-se que o interesse em investigar a ToM em escolares, adolescentes e adultos (Souza & Velludo, 2016) é recente. Historicamente, é possível identificar iniciativas importantes sobre o desenvolvimento da ToM em crianças escolares já no final dos anos 90, quando Baron-Cohen, O'Riordan, Stone, Jones e Plaisted (1999) salientaram que a compreensão da gafe se desenvolve entre os 7 e 11 anos, ao focalizarem estados mentais mais sofisticados. Posteriormente, Pons, Harris e Rosnay (2004) demonstraram que a partir dos 7 anos a maioria das crianças tem importantes avanços na compreensão emocional, distinguindo emoções reais e aparentes, identificando emoções mistas e ampliando sua regulação emocional. Hughes (2011) destaca que o desenvolvimento da ToM em escolares é caracterizado não só pela compreensão de estados mentais mais refinados, mas também pela capacidade de entender as diferenças destes quanto ao ponto de vista.
Assim, nesta faixa etária a criança compreende que duas pessoas podem fazer interpretações diferentes de uma mesma situação e ambas serem legítimas. Souza e Villa (2013), focalizando a inter- face entre ToM e linguagem nos anos escolares, salientam que após 7 anos de idade desenvolvem-se aspectos mais sofisticados da teoria da mente, tais como a compreensão da ironia e da metáfora. Nessa perspectiva, Wellman (2016) ressalta que o entendimento do sarcasmo e da ironia constituem aspectos relevantes para as crianças em idade escolar, especialmente por subsidiar a compreensão social do cotidiano, já que a atribuição a esses estados mentais é frequente nas interações sociais.
Portanto, o desenvolvimento da ToM ao longo dos anos escolares é caracterizado pelo refinamento desta capacidade, por via da compreensão de estados mentais mais sofisticados que oferecem à criança subsídios importantes para interagir socialmente. Nesta direção destaca-se o papel relevante das interações sociais no desenvolvimento da ToM em crianças mais velhas. O'Reilly, Peterson e Wellman (2014) observam que as experiências sociais e conversacionais vivenciadas e fomentadas na infância continuam a ter um papel central para o desenvolvimento da teoria da mente não só na terceira infância, mas também no decorrer da adolescência e da idade adulta.
No que concerne ao desenvolvimento sociocognitivo na idade escolar, destaca-se, por exemplo, a inserção infantil na escolarização formal, que amplia a complexidade e importância das relações entre pares, impactando a compreensão das mentes (Hughes, 2016). Tendo em vista esse impacto, o estudo da ToM em crianças em idade escolar (6 a 11 anos), foco do presente estudo, ganha relevância no âmbito dos estudos que investigam o desenvolvimento nesse domínio sociocognitivo.
No que se refere à avaliação da ToM em escolares, Martins, Barreto e Castiajo (2014) advogam que devem ser utilizadas tarefas de crença falsa mais complexas, sendo solicitadas à criança justificativas para os estados mentais atribuídos. Assim, busca-se ainda aferir habilidades sociocognitivas mais aprimoradas, exigindo-se da criança o raciocínio em torno de situações sociais. Torna-se importante ressaltar que existem instrumentos dedicados à avaliação de estados mentais mais sofisticados, como ironia e metáfora que são aferidos, por exemplo, no " Teste das histórias estranhas" (StrangeStories Test), elaborado por Happé (1994). Uma outra possibilidade seria a avaliação da compreensão de gafe, mensurada pelo Teste FauxPas, elaborado por Baron-Cohen et al. (1999). Já é possível identificar uma vertente de pesquisas que abrange a construção e/ou busca de evidências de validade de instrumentos para a avaliação da teoria da mente em crianças mais velhas e adolescentes (e.g., Devine & Hughes, 2013, 2016; Liddle & Nettle, 2006).
A expansão da área desencadeou também uma ampliação conceitual, derivando-se, por exemplo, dois subcomponentes da teoria da mente: o cognitivo e o afetivo. Conforme discutido por Shamay-Tsoory e Aharon-Peretz (2007), a ToM cognitiva abrange a inferência de crenças e intenções, enquanto a ToM afetiva compreende a identificação e o entendimento das emoções. Os autores complementam que a avaliação desses subcomponentes recebe destaque especial em investigações com populações específicas. Os autistas, por exemplo, apresentam melhores resultados na avaliação da teoria da mente afetiva do que na ToM cognitiva. Pacientes com lesões cerebrais, por sua vez, conseguem melhores resultados na ToM cognitiva. Essa delimitação conceitual assume relevância na medida em que fomenta novas possibilidades de investigação, optando-se, por exemplo, por avaliar apenas um subcomponente da ToM ou ainda verificar se existem diferenças entre grupos típicos e atípicos, de diferentes níveis socioeconômicos ou culturais, considerando os domínios cognitivo e afetivo da teoria da mente.
O crescimento das investigações sobre a ToM abrange também o interesse por parte dos estudiosos de compreender as possíveis relações entre essa habilidade sociocognitiva e aspectos importantes do desenvolvimento humano.
Pode-se mencionar, por exemplo, estudos nas interfaces entre teoria da mente e linguagem (e.g., Pelegrini, 2015; Tompkins, 2015) e teoria da mente e desenvolvimento social (e.g., Ball, Smetana, & Sturge-Apple, 2017; Ribas & Rodrigues, 2016). Ainda nessa direção, Hughes (2011) destaca que o aprimoramento da teoria da mente tem sido investigado a partir de duas perspectivas. A primeira considera o desenvolvimento da linguagem e das funções executivas (FE), isto é, o conjunto de habilidades cognitivas que possibilitam o controle dos comportamentos, cognições e emoções (Dias & Seabra, 2013), aspectos intrinsecamente relacionados à melhoria das crianças na avaliação da ToM.
A segunda apontada por Hughes fundamenta-se nos aspectos socioculturais, defendendo que as experiências sociais, como as conversações com familiares e pares, impactam o desenvolvimento sociocognitivo. Hughes (2011) sinaliza também que as investigações com crianças escolares receberam menor atenção de pesquisa, especialmente no que se refere às crianças com desenvolvimento típico. A autora complementa ainda que a avaliação das habilidades sociocognitivas mais sofisticadas em escolares desenvolveu-se de maneira significativa a partir da criação de instrumentos para avaliar grupos clínicos, tais como autistas.
Apesar de ser menos expressivo o quantitativo de investigações, já é possível verificar vertentes de estudos contemplando as interfaces entre teoria da mente e diferentes habilidades também nas pesquisas com crianças em idade escolar, tais como a relação entre teoria da mente e funções executivas (e.g., Austin, Groope, & Elsner, 2014; Bock, Gallaway, & Hund, 2015) e teoria da mente e linguagem (e.g., Grazzani & Ornaghi, 2012; Spanoudis, 2016). Constata-se também a presença de pesquisas abarcando aspectos relacionados à escolarização formal, tais como a compreensão leitora (e.g., Bianco & Lecce, 2016) e a consciência metalinguística (e.g., Spataro, Rossi-Arnaud, & Longobardi, 2017). Os estudos com crianças escolares abrangem inclusive a articulação teórico-prática, já sendo encontradas pesquisas com intervenção (e.g., Lecce, Bianco, Devine, Hughes, & Barnejee, 2014).
Constata-se o esforço dos pesquisadores na ampliação da teoria da mente enquanto área de investigação. Uma possível motivação para este crescimento seria a importância dessa capacidade sociocognitiva para as interações sociais no dia a dia. Conforme exposto, uma das possibilidades consiste na ampliação da faixa etária pesquisada. Nesta direção, o presente artigo objetivou, a partir de uma revisão sistemática da literatura, oferecer um pano- rama das pesquisas empíricas focalizando crianças em idade escolar (6 a 11 anos) que utilizaram instrumentos para avaliar a ToM. Buscou-se verificar períodos e locais de realização dos estudos, o desenho metodológico, as variáveis mensuradas além da ToM e os instrumentos utilizados na aferição desta capacidade sociocognitiva. Almeja-se que a presente revisão ofereça conhecimento sistematizado acerca dos estudos envolvendo a compreensão da ToM nas crianças que estão cursando o ensino fundamental. Nesse sentido, justifica-se o presente estudo pois não foi encontrada, até o momento, uma revisão sistemática dessa natureza. Destaca-se que a literatura já tem demonstrado o interesse pelo desenvolvimento da ToM ao longo do curso de vida, porém o corpo de conhecimento mais sistematizado ainda se restringe, em sua maioria, aos anos pré-escolares. Uma das questões que motiva o presente estudo é apurar se há interesse dos pesquisadores da área em ampliar o conhecimento na área da ToM para além dessa etapa evolutiva e quais seriam suas especificidades.
Método
Esta revisão sistemática da literatura adotou procedimentos de busca, seleção e análise de artigos, dissertações, teses e livros indexados nas bases de dados selecionadas, a saber: (a) American Psychological Association (PscyInfo), (b) Literatura Latino- Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LI- LACS) e (c) Scopus. Os termos de busca foram theoryof mind ou understanding of mind e middle childhood ou schoolchildren. Considerando que no Brasil estudos na área com crianças em idade escolar são ainda mais recentes, foi realizada uma busca no banco de teses da Capes, a partir do descritor "Teoria da mente" no campo título e leitura do resumo das dissertações e teses obtidas para seleção das que atendam aos critérios de inclusão do presente estudo. Optou-se por utilizar o Start (State of the art through Systematic Review) como ferramenta de apoio para catalogação, seleção e análise dos artigos, dissertações e teses. Incluiu-se na presente revisão:
(1) estudos empíricos publicados até agosto de 2018, quando foi finalizada a busca, contendo no campo título ou nas palavras chaves os termos delimitados para a captação das pesquisas. Foram excluídos trabalhos duplicados. Como critérios de exclusão adotou-se ainda:
(1) artigos, dissertações e teses publicados em idioma diferente do inglês, português ou espanhol;
(2) estudo não ter sido realizado exclusivamente com crianças em idade escolar (6 a 11 anos de idade) e,
(3) a avaliação dos participantes não ter incluído pelo menos um instrumento para mensuração da teoria da mente. Após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, a partir da concordância entre dois juízes, definiu-se a amostra de estudos alvo.
A análise e discussão dos estudos focalizou os seguintes aspectos: local e data de publicação, desenho do estudo, variáveis avaliadas, instrumentos utilizados para aferir a teoria da mente e resultados obtidos nas pesquisas. Os juízes realizaram uma leitura horizontal dos estudos visando encontrar diferenças e similaridades quanto aos aspectos anteriormente descritos.
Conforme pode ser observado na Tabela 1, a amostra é composta por pesquisas publicadas a partir de 2003, sendo observada uma ampliação das publicações nos últimos quatro anos. Dos 30 trabalhos analisados, 14 foram publicados nesse período. No que se refere ao local de publicação, os estudos foram realizados em oito diferentes países. Verifica-se uma predominância de estudos nos continentes europeu, com 16 estudos, seguido do americano com 13 pesquisas e uma investigação na Ásia. Foram encontrados 7 estudos nacionais, sendo importante mencionar que as pesquisas brasileiras foram obtidas a partir da busca no banco de teses da Capes. Não foram encontrados artigos brasileiros nas bases analisadas. A Tabela 1 fornece também informações sobre o desenho dos estudos que compõem a amostra, tendo sido verificado que 83,33% (n=25) das pesquisas analisadas são de natureza transversal.
A Tabela 1 evidencia as variáveis aferidas nos estudos analisados. Além da teoria da mente, que foi avaliada em todos os estudos, verificou-se a presença de 19 variáveis mensuradas. Vocabulário foi avaliado em 10 estudos. Memória de trabalho aferida em oito estudos. A compreensão leitora foi mensurada em seis pesquisas. Agressividade e linguagem referente aos estados mentais foram aferidas em 3 estudos cada. Aspectos mais específicos, tais como ansiedade, autoconceito, e habilidade matemática foram contemplados em um estudo somente.
Por fim, a Tabela 1 apresenta de maneira sucinta alguns resultados das pesquisas analisadas. O desempenho em ToM foi mensurado em populações clínicas (p. ex. TEA, TDAH e crianças com comportamento agressivo), perante pesquisas com intervenção e em estudos orientados para o desenvolvimento desta capacidade na infância, bem como suas associações com outras variáveis importantes para o desenvolvimento infantil.
Finalmente, visando mapear os instrumentos que foram utilizados nos estudos da presente revisão, apresenta-se, na Tabela 2, uma descrição sucinta de tais medidas.
Identifica-se, a partir da segunda tabela, 14 possibilidades de avaliação da teoria da mente. Dois instrumentos foram amplamente utilizados: o Strange Stories (n=10) e as tarefas de avaliação da teoria da mente de primeira e segunda ordens (n=7). Salienta-se que dentre as medidas analisadas, 11 foram aplicadas em somente um estudo. Em relação à quantidade de instrumentos utilizados na aferição da teoria da mente, 23 pesquisas optaram por utilizar apenas uma forma de medida e seis combinaram duas medidas. Em um estudo, foram utilizadas três diferentes medidas para mensurar a ToM nas crianças escolares.
Discussão
A presente revisão indica que as investigações sobre a teoria da mente na idade escolar encontram- se em crescimento, especialmente nos últimos quatro anos. Observa-se que, já no final dos anos 1990, pesquisadores como Baron-Cohen et al. (1999) interessaram-se em investigar a compreensão do desenvolvimento da ToM em escolares. No entanto, a análise das pesquisas mostra estudos espaçados. A amostra do presente trabalho, em contrapartida, conta com 15 pesquisas realizadas após 2015. Assim, o estado da arte é notoriamente consistente no que diz respeito à ToM de crianças entre 7 e 11 anos.
Ainda no que tange ao panorama dos estudos, é importante salientar que os resultados obtidos concentram informações acerca de crianças americanas e europeias. Tendo em vista a importância dos aspectos socioculturais para o desenvolvimento da ToM, conforme sinalizado por Hughes (2011), recomenda-se que tenhamos a ampliação das informações sobre crianças dos demais continentes. Todavia, ao considerar que a área ganhou expressividade somente a partir dos anos 2000, pode-se afirmar que um corpo de pesquisa robusto tem se formado.
No que se refere ao panorama nacional da amostra obtida, vale destacar que foram identificadas sete pesquisas com crianças brasileiras. Considerando que o primeiro estudo sobre teoria da mente no Brasil é da década de 1990 (Dias, 1993), o resultado obtido do cenário nacional é animador. Constata-se que a tendência em ampliar a faixa etária de interesse em pesquisas sobre ToM é observada também em nossa realidade.
No que tange às variáveis mensuradas nas investigações analisadas nesta revisão, observa-se que aspectos comumente investigados na idade pré- escolar têm sido alvo de investigações com crianças escolares. Inserem-se nesse âmbito pesquisas abrangendo o funcionamento executivo (e.g., Aus- tin et al., 2014; Bock et al., 2015) e a linguagem (e.g., Grazzani & Ornaghi, 2012; Spanoudis, 2016). Foram encontradas também investigações contemplando aspectos relacionados à escolarização, tais como a compreensão leitora (e.g., Bianco & Lecce, 2016) e a consciência metalinguística (e.g., Spataro et al., 2017). Assim, pode-se mencionar que os pesquisadores têm se dedicado à compreensão de aspectos já conhecidos no âmbito da pré-escola, o que permite compreender diferenças e similaridades no desenvolvimento da ToM ao longo de toda a infância. Vale dizer, também, que pesquisar variáveis específicas da idade escolar é relevante, pois permite compreender como a capacidade de atribuir estados mentais se relaciona com a escolarização.
No que diz respeito à análise dos resultados das pesquisas que compõem a presente revisão, pode- se identificar diferentes linhas de investigação. Um corpo de pesquisas considerável evidencia um menor desempenho em ToM para alguns grupos específicos: (1) crianças com TEA, como apontado nas pesquisas de Ronald (2006) e To et al. (2016); (2) escolares com comportamento agressivo, como indicado em Austin et al. (2017), Holl et al., (2018) e Ribas (2011); e, (3) crianças com TDAH, como encontrado nas pesquisas de Golin (2016) e Feigenbaum (2017).
As pesquisas realizadas por Liddle e Netle (2006) e Silva (2012) mostram associações positivas entre ToM e competência social. Tais resultados são coerentes com as colocações de Souza e Velludo (2016), que destacam que a ToM oferece uma base sólida para a explicação e predição do comportamento alheio. Esta capacidade favorece as interações sociais e viabilizam uma inserção socialmente competente do indivíduo no meio.
Obteve-se ainda o efeito positivo de intervenções com foco na ToM (Bianco & Lecce, 2016; Lecce & Bianco, 2018; Lecce et al., 2014). O papel das experiências sociais e conversacionais para o desenvolvimento da ToM, destacado por O'Reilly et al. (2014), ganha ênfase nos estudos de intervenção, ao passo que os treinamentos contribuem nessa direção.
Ainda em relação aos resultados, verifica-se o efeito preditor da memória de trabalho para o desenvolvimento da ToM, achado encontrado nas pesquisas de Austin et al. (2014), Lecce et al. (2017) e Lecce e Bianco (2018). Verifica-se que a interface ToM e funções executivas têm se destacado e que na idade escolar o componente memória de trabalho se mostra mais relevante.
Por fim, a análise dos resultados das pesquisas mostra avaliação da teoria da mente ao longo da idade escolar. De acordo com os achados de Bosacki (2013), Hulme (2003), Liddle e Netle (2006) e Marchetti et al. (2014), crianças em etapas mais avançadas da escolarização apresentam uma capacidade mais sofisticada para atribuição de estados mentais.
No que respeita aos instrumentos de avaliação da ToM utilizados nas pesquisas obteve-se um resultado favorável para a continuidade do crescimento das publicações: a possibilidade de avaliar a teoria da mente em escolares a partir de diversas medidas, permitindo inclusive a combinação de dois ou mais instrumentos. Conforme explicitado por Shamay-Tsoory e Aharon-Peretz (2007), há a possibilidade de avaliar subcomponentes da ToM. A presente amostra é composta por estudos que utilizaram de forma predominante instrumentos voltados para o subcomponente cognitivo, como o Strange Stories Test e as tarefas de crença falsa. Contudo, os resultados indicam também a presença de instrumentos que contemplam o subcomponente afetivo, como o Teste de Compreensão das emoções. Há ainda instrumentos como o Cartoon Task, que contempla os dois subcomponentes. Ainda sobre os instrumentos de avaliação da teoria da mente na idade escolar, verifica-se uma similaridade com as pesquisas em pré-escolares na medida em que são utilizadas, de maneira recorrente, a apresentação de histórias com personagens de maneira lúdica, seguindo de indagações nas quais a criança é avaliada em um ou mais componentes da teoria da mente. Um aspecto que se diferencia de forma significativa das pesquisas com crianças menores é o fato de que a avaliação em escolares apresenta escopo mais ampliado. Pré-escolares geralmente são avaliados quanto à compreensão de crenças, desejos e emoções, estados mentais cuja compreensão ocorre nos primeiros anos de vida ( Wellman, 2014). Crianças em idade escolar respondem a questões que abrangem a compreensão das emoções e crenças, mas também são avaliadas quanto a aspectos mais refinados, como a compreensão de gafe, sarcasmo e persuasão, o que é coerente com a afirmação de Martins et al. (2014) de que a avaliação nessa faixa etária é marcada por uma maior complexidade das histórias apresentadas e pela aplicação de instrumentos mais qualificados, que requerem um raciocínio acerca das situações sociais, exigindo um nível de metarrepresentação mais robusto.
Considerações finais
Nesse estudo verificou-se que a pesquisa na área de teoria da mente com escolares encontra-se em crescimento, constatando-se um interesse dos estudiosos da área em ampliar o conhecimento do desenvolvimento da ToM para além dos anos pré- escolares. Os resultados obtidos evidenciaram diferentes focos de interesse no estudo da teoria da mente nos anos escolares.
Ressalta-se que os resultados desta investigação devem ser considerados com cautela, devido às limitações do método adotado. A amostra obtida foi restringida pela exclusão de pesquisas nas quais os participantes não eram, em sua totalidade, crianças com idade entre 6 e 11 anos; critério adotado para melhor atendimento dos objetivos anteriormente explicitados.
No que se refere às perspectivas para trabalhos futuros nessa área de investigação, diversas são as possibilidades. Como mostra esta revisão, ainda é limitado o quantitativo de pesquisas, se comparado ao contingente de estudos com pré-escolares. Assim, novas pesquisas mostram-se necessárias, tendo em vista uma melhor compreensão do desenvolvimento da ToM em escolares, seja por via da pesquisa básica ou aplicada. Pode-se pensar também na realização de estudos transculturais com crianças em idade escolar, tendo em vista que o papel dos aspectos socioculturais é um aspecto relevante no desenvolvimento da ToM.
Conclui-se que o desenvolvimento da ToM em escolares constitui interesse de vários pesquisadores. Almeja-se que a continuidade dos trabalhos traga contribuições teórico-práticas relevantes para o desenvolvimento sociocognitivo nesta faixa etária.
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Recebido: 18.10.2019
Corrigido: 16.09.2020
Aprovado: 22.10.2020
24 Este artigo é parte integrante da minha tese de doutorado sob a orientação da Profª Marisa Cosenza Rodrigues.