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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.40 no.99 São Paulo jul./dez. 2020
III. MEMÓRIA
A ação pedagógica de Itard na educação de Victor, o "selvagem de Aveyron": contribuição à história da psicologia34
Itard's pedagogical action in the education of Victor, the "savage of Aveyron": contribution to the history of psychology
La acción pedagógica de Itard en la educación de Victor, el "salvaje de Aveyron": contribución a la historia de la psicología
Aliciene Fusca Machado CordeiroI, Mitsuko Aparecida Makino AntunesII
IDoutora em Educação: Psicologia da Educação. Universidade da Região de Joinville Univille - Rua Paulo Malschitzki, 10 - Zona Industrial Norte - Joinville/SC. E-mail: aliciene_machado@hotmail.com. ORCID: 0000-0001-6778-5285
IIDoutora em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes, São Paulo - SP, 05014-901. E-mail: miantunes@pucsp.br. ORCID: 0000-0003-2793-7410
RESUMO
No início do século XIX, Jean Marc-Gaspard Itard realizou intervenções pedagógicas com um menino encontrado nos bosques do sul da França. Dessas experiências foram redigidos dois relatórios. Tomando-os como base, o objetivo deste artigo é relatar uma pesquisa histórica, de base documental, que discute as contribuições de Itard para a compreensão das relações entre educação, aprendizagem e desenvolvimento na constituição do ser humano como ser histórico e cultural. Buscou-se articular três diferentes níveis de análise: o nível interno, que se refere aos conceitos, pressupostos e métodos, relacionados à obra de Itard; a base epistêmico-metodológica adotada pelo autor e a articulação entre seu trabalho e a realidade histórico-social em que viveu. Por meio de sua obra é possível refletir, entre outras questões, sobre a fragilidade e a importância do vínculo entre educando e educador, as concepções do educador que determinam sua prática pedagógica e como a comunicação se faz presente nos processos educativos.
Palavras-chave: história dos saberes psicológicos; práticas pedagógicas; aprendizagem; desenvolvimento; Jean Marc- Gaspard Itard.
ABSTRACT
At the beginning of the 19th century, Jean Marc-Gaspard Itard carried out pedagogical interventions with a boy found in the woods of southern France. From these experiences, two reports were written. Taking them as a basis, the objective of this article is to report a historical research, based on documents, which discusses Itard's contributions to the understanding of the relationships between education, learning and development in the constitution of the human being as a historical and cultural being. The aim was to articulate three different levels of analysis: the internal level, which refers to the concepts, assumptions and methods, related to Itard's work; the epistemic-methodological basis adopted by the author and the articulation between his work and the historical-social reality in which he lived. Through his work it is possible to reflect, among other issues, on the fragility and the importance of the bond between the student and the educator, the educator's conceptions that determine his pedagogical practice and how communication is present in the educational processes.
Keywords: history of psychological knowledge; pedagogical practices; learning; development; Jean Marc-Gaspard Itard.
RESUMEN
En el inicio de siglo XIX, Jean Marc-Gaspard Itard realizó intervenciones pedagógicas con un chico encontrado en los bosques del sur de Francia. A partir de estas experiencias fueron escritos dos informes. Tomandolos como base, el objetivo de este artículo es relatar una investigación histórica, de base documental que discute las contribuciones de Itard para la comprensión de las relaciones entre educación, aprendizaje y desarrollo en la construcción del ser humano como ser histórico y cultural. Se buscó articular tres diferentes niveles de análisis: el nivel interno, que se refiere a los conceptos, presupuestos y métodos, relacionados a la obra de Itard; la base epistémica-metodológica adoptada por el autor y la articulación entre su trabajo y la realidad histórica-social en la que vivió. A través de su obra se puede reflexionar, entre otras cuestiones, sobre la fragilidad y la importancia del vínculo entre educando y educador, las concepciones del educador que determinan su práctica pedagógica y cómo la comunicación se hace presente en los procesos educativos
Palabrasclave: historia de los saberes psicológicos; prácticas pedagógicas; aprendizaje; desarrollo; Jean Marc-Gaspard Itard.
Introdução
O trabalho de Jean Marc-Gaspard Itard com um menino encontrado nos bosques do sul da França no final do século XVIII, posteriormente nomeado por ele de Victor, seria por si só tema de pesquisa e interesse para diversas áreas, como psicologia, educação, medicina, antropologia e história. Entende-se que conhecer as ideias e práticas relatadas por Itard pode levar a relevantes reflexões, principalmente no que se refere à educação como fator primordial para a aprendizagem e para o desenvolvimento humano. Itard, de fato, não elaborou nenhum sistema teórico que contemplasse conceitos como desenvolvimento, educação e afetividade. Seus conhecimentos derivaram, nesse caso, de uma prática reflexiva, que buscava todo o tempo manter a difícil tensão entre teoria e prática. Dos relatórios elaborados após seu trabalho com Victor podemos refletir sobre a constituição do ser humano como um ser histórico-sócio-cultural. A partir de seu trabalho com Victor, Itard faz considerações importantes sobre formas de intervir e pensar sobre a diversidade das características humanas, principalmente no que se refere à educação. Itard oferece um outro caminho àqueles que se colocam no debate entre o inato e o adquirido. Segundo ele, é pela ação educativa que o ser humano se constitui e é pela educação que ele pode se libertar de suas necessidades mais básicas e da fatalidade da natureza. Redimensionando a questão das diferenças individuais, Itard abandonou a concepção classificatória hegemônica que se formava em sua época e colocou para a medicina o desafio de ser a grande parceira da educação. De acordo com ele, seria função da medicina buscar meios de abrandar ou exaltar a "sensibilidade nervosa", bem como conhecer o desenvolvimento de cada um dos sentidos, com o objetivo de se tornar um instrumento poderoso de "desenvolvimento físico e moral". Assim, em vez de classificar, Itard buscou compreender; em vez de excluir, optou por educar. Considerando as idiossincrasias e esquivando-se dos padrões comparativos, mais de uma vez, em seus relatórios, Itard destaca que Victor só poderia ser comparado a si mesmo se se quisesse avaliar sua aprendizagem e desenvolvimento; condenou aqueles que após rápida observação o rotularam como "idiota". Partindo da hipótese de que o isolamento havia sido a causa da condição em que Victor se encontrava, valorizou as formas de transformar essa condição que, naquele momento, o colocava, na terminologia atual, em situação de exclusão social. As intervenções realizadas no princípio do século XIX envolvendo o "selvagem do Aveyron" ficaram imortalizadas nas palavras de Itard. Após nove meses de trabalho, foi redigido o primeiro relatório, intitulado Da educação de um homem selvagem ou primeiros desenvolvimentos físicos e morais do jovem Selvagem do Aveyron (1801/2000). Nesse primeiro texto, Itard relata como Victor foi capturado, seu itinerário antes de chegar a Paris, a avaliação feita por um dos mais renomados médicos da época (Philippe Pinel) e a total descrença, por parte da comunidade científica, na possibilidade de Victor ser educado. Ainda nesse mesmo texto, descreve sua convicção na educação do garoto, explicitando seu referencial teórico, descrevendo seu programa de ensino e relatando as aprendizagens e desenvolvimento de Victor. O tom entusiástico do primeiro relatório desaparece na escrita do segundo relatório. O Relatório feito a Sua Excelência o Ministro do Interior sobre os novos desenvolvimentos e o estado atual do Selvagem do Aveyron (1806/2000) começa quase como um pedido de desculpas pelo que o leitor encontrará naquelas páginas. Atribuindo a si mesmo muitos dos fracassos das ações pedagógicas com Victor e recomendando que seja lembrado o estado em que o garoto chegou a Paris, solicita àquele que o lê que compare Victor apenas consigo mesmo. Contudo, o segundo relatório é tão rico em conteúdo quanto o primeiro, demonstrando o rigor com que Itard avaliou sua experiência e a apreciação enfática que considera mais o processo do que os resultados relativos à aprendizagem e ao desenvolvimento de Victor. É importante ressaltar que não há dados para afirmar que Victor tenha nascido com algum tipo de deficiência; contudo, quando foi encontrado apresentava-se como uma criança "muda", não surda, criada, provavelmente, longe de toda a sociedade humana, na qual também estavam afetadas as funções psicológicas superiores. Adepto das ideias filosóficas de Condillac, Itard acreditava na educação como principal fator de desenvolvimento humano. Partindo do princípio de que tudo o que o homem sabe veio de sua aprendizagem, Itard acreditou que a educação poderia propiciar a Victor o convívio social. A convicção filosófica de Itard permitiu que ele se dedicasse a esse empreendimento educativo com Victor, afrontando a teoria das ideias inatas e contrariando importantes intelectuais de sua época, como Sicard e Pinel que, ao avaliarem Victor após sua chegada a Paris, desacreditaram-no em sua educabilidade, pressupondo uma "idiotia congênita".
Método
O objetivo central desta pesquisa é refletir sobre as relações entre educação, aprendizagem e desenvolvimento na constituição do humano como ser histórico social e cultural, a partir dos relatórios de Jean Marc-Gaspard Itard. Outros objetivos, específicos, derivam do objetivo geral e da obra estudada, tais como discutir as relações entre as concepções do educador e sua prática pedagógica, as relações professor-aluno e a importância cultural atribuída à linguagem oral. Esta pesquisa fundamenta-se, no âmbito da historiografia da psicologia, na abordagem social (Antunes, 1998, p.365), que entende que "a compreensão histórica dessa área de conhecimento [a psicologia] implica captá-la no bojo das relações que estabelece com o todo do qual faz parte, na dinâmica do movimento realizado no f luxo do tempo"; deve- se, pois, considerar que "a psicologia pode ser vista, por esse prisma, como portadora de conteúdos que correspondem a representações do fenômeno psicológico, alicerçados em determinadas concepções de homem e de mundo que são, por sua vez, basilares para os métodos por meio dos quais tais conteúdos são elaborados" (Antunes, 1998, p.365). Nessa perspectiva metodológica, afirma-se que é necessário considerar a realidade da qual a psicologia (ou os saberes psicológicos) faz parte, seus problemas, demandas, necessidades, assim como os recursos teóricos, epistemológicos, metodológicos e técnicos disponíveis, além do zeitgheiste os embates entre as diferentes concepções que circulam naquele espaço-tempo. Caracterizando-se como uma pesquisa histórica, de base bibliográfico- documental, os relatórios de Itard sobre seu trabalho com Victor serão o ponto de partida e a ancoragem deste trabalho. Entretanto, outros textos, de Itard, de seus contemporâneos e de estudiosos sobre sua obra na atualidade foram utilizados para se obter uma melhor compreensão de suas ideias e práticas. A partir de um enfoque metodológico que reconhece o ser humano como sujeito social, histórico e cultural, procurou-se ler a obra de Itard como totalidade multideterminada, entendendo que ele foi um homem de sua época, com grande comprometimento científico, conformado na base epistemológica sensualista, e que suas ideias e práticas foram determinadas social, política, econômica e culturalmente. Desta forma, buscou-se articular três diferentes, não mutuamente exclusivos, níveis de análise que, segundo Antunes (1998), são: interno; de fundamentação filosófica; de totalidade. O nível interno refere-se aos conceitos, pressupostos, método, práticas, enfim aqueles aspectos que são intrínsecos à obra de Itard. Esses elementos adquiriram uma determinada conformação a partir da base epistêmico- metodológica adotada pelo autor estudado: "Assim, o primeiro nível de análise não se esgota em si mesmo, mas se complementa e se radica nesse segundo plano analítico" (Antunes, 1998, p. 115). Um terceiro nível de análise teve como objetivo compreender a articulação entre a obra de Itard e a sociedade parisiense conformadas na virada do século XVIII para o século XIX, considerando as relações produzidas nesse tempo-espaço específico e as forças que as determinaram. A articulação entre os níveis de análise acima explicitados e as categorias que emergiram da leitura sistemática do material propiciou "o retorno a uma síntese mais complexa do que a síntese precária da qual se partiu" (Antunes, 1998, p. 372). Pode-se dizer, em síntese, que essa concepção significa, "(...) para o estado atual da historiografia da psicologia, [a explicitação das] bases metodológicas que permitem avaliar com maior concretude as relações de determinação entre esta área de conhecimento e o movimento global da sociedade em que ela se insere, em determinado momento histórico" (Antunes, 1998, p. 374). Mais precisamente, pode-se afirmar que essa perspectiva permite compreender os desafios que determinadas situações impuseram para o conhecimento de uma determinada época, as respostas que foram buscadas, o modo de se produzi-las e as práticas delas decorrentes.
O homem torna-se humano nas e pelas relações com outros homens: o início da educação de Victor
Com base principalmente nas ideias de Condillac, filósofo sensualista, Itard estabeleceu cinco metas para seu programa pedagógico, todas elas envolvendo a sensação e a percepção como vias para trabalhar os aspectos cognitivos e afetivos de Victor. Para elaborar seu plano de trabalho, Itard foi incansável em suas observações até determinar quais passos seguiria com Victor. Segundo Lane (1986), ele determinou os componentes mais importantes das dificuldades de Victor sensorial, motivacional, verbal e os classificou em áreas que iria tratar por meio de uma determinada ordem, começando pela atividade sensorial e seguindo até a linguagem e o pensamento abstrato. Ao chegar em Paris, Victor gostava de "dormir, correr, não fazer nada e correr pelos campos."; Itard e a Senhora Guérin37 procuravam satisfazê-lo em seus gostos; para conhecê-los, Itard observava-o. No interior do quarto via '(...) Victor [se] balançando com uma monotonia cansativa, dirigir constantemente seus olhos para a vidraça e passeá-los tristemente no vazio do ar exterior" (Itard, 1801/2000, p. 138). Mas se soprava um vento mais forte ou o sol saía de trás das nuvens, o garoto dava ruidosas gargalhadas. Quando um dia amanheceu nevando, Victor saiu do quarto vestido pela metade e soltava gritos agudos, comendo a neve com uma avidez espantosa. Com esses comportamentos inesperados, ações repentinas e impulsivas, diferentes daquelas socialmente esperadas, Itard não demonstrava nenhum tipo de julgamento naquele momento inicial. Ele estava conhecendo Victor e sua forma de se relacionar com o mundo. Mediante tais comportamentos, classificá-lo seria fácil, mas não era esta a meta de Itard. Conhecendo mais os hábitos de Victor, Itard assume o objetivo de tornar seus dias mais proveitosos para sua instrução. Foi assim que Itard elaborou sua primeira meta, "interessá-lo pela vida social, tornando-a mais amena do que aquela que ele então levava, e sobretudo mais análoga à vida que acabava de deixar". Dentro dessa concepção, Itard constrói um período de transição para Victor, no qual ele passaria de uma vida errante nos bosques para uma vida em sociedade. Procurou não exigir nesse momento algo que seu aluno não fosse capaz de fazer. Ambos estavam se conhecendo; era o momento de construir vínculos. Se, na primeira meta, a base epistemológica adotada por Itard não se faz tão evidente, o mesmo não se pode dizer da segunda meta: "despertar a sensibilidade nervosa com os mais enérgicos estimulantes e algumas vezes com as vivas afeições da alma". Itard julgava que a sensibilidade de Victor era fraca na maior parte dos sentidos e colocou em seu plano dispor "os sentidos para receber impressões mais vivas", com o objetivo de "preparar o espírito para a atenção" (Itard, 1801/2000, p. 139). Ele baseava seus procedimentos nas concepções de Condillac, para o qual as operações psíquicas são sensações transformadas e a atenção deveria ser uma das primeiras faculdades a serem trabalhadas, já que seria necessária para o desenvolvimento posterior de outras operações mais complexas, como imaginação, memória e pensamento. Afirma Condillac (1746/1999, p. 46) que "a atenção que concedemos a uma percepção que nos afeta atualmente nos recorda seu signo; este a outros, com os quais tem alguma relação; estes últimos evocam as ideias a que estão ligadas, estas voltam a trazer outros signos e outras ideias, e assim sucessivamente." Nesse início da convivência com Victor, Itard observou que o garoto tinha uma tolerância diferenciada ao frio e ao calor; ficava horas acocorado no solo úmido, seminu, sob chuva e vento frio; também era capaz de pegar carvão em brasa na mão. Mesmo que Itard enchesse a cavidade exterior de seu nariz com tabaco, ele não espirrava. O que mais espantava Itard era que nunca, mesmo em situações adversas, tinha visto Victor chorando. A audição também era direcionada para os mínimos ruídos provocados por suas comidas preferidas, mas insensível a explosões de armas de fogo. Com o objetivo de "despertar a sensibilidade nervosa", em que pese a maneira como isso seria hoje interpretado, utilizou os mais "enérgicos estimulantes" como, por exemplo, administrar banhos com água em temperatura "altíssima", com duração de duas ou três horas ao dia. No final de algum tempo, Victor mostrava-se sensível à ação do frio. As "afeições da alma" também foram utilizadas como "estimulantes" para "despertar a sensibilidade nervosa". De acordo com Condillac (1754/1993), o par prazer/dor constitui o único princípio que determina todas as operações da alma, além de poder elevá-la gradualmente a todos os conhecimentos de que é capaz. Dessa forma, o par prazer/dor seria a base para o desenvolvimento do ser humano, pois sem ele não se tem necessidades; sem as necessidades não se buscam novas experiências; sem experiências não há conhecimentos. Assim, a partir do momento em que o sujeito começa a ter sensações ele já está submetido ao par prazer/dor e, quanto mais se conhece, mais necessidades se tem. Tais necessidades levam, em última instância, ao desenvolvimento tanto das "faculdades intelectuais", como das "faculdades afetivas". Partilhando dessa visão, Itard detecta duas "afeições" suscetíveis em Victor para potencializar sua educação e desenvolver sua inteligência: a alegria e a cólera. Esta última, Itard só a provocava a intervalos distantes
"(...) para que seu acesso ficasse mais violento e sempre com uma aparência bem evidente de justiça. Notava, então, algumas vezes que, no auge de seu arrebatamento, sua inteligência parecia adquirir uma espécie de extensão que lhe fornecia, para tirá-lo do aperto, algum expediente engenhoso." (Itard, 1801/2000, p. 143).
Percebe-se aqui o entendimento da relação entre cognição e afeto. Itard acreditava que ambos estavam interligados, o tempo todo, conjecturando que determinados arroubos emotivos deixassem Victor momentaneamente mais "inteligente", pensando melhor sobre formas de lidar com situações-problema. Depois de três meses, Itard atinge sua segunda meta, obtendo uma "excitação geral de todas as forças sensitivas". Relata o desenvolvimento do tato, do olfato e do paladar. Victor, entre outras coisas, demonstrava prazer em passar as mãos sobre o veludo e era incapaz de retirar as batatas da água fervente com as mãos; espirrava à menor irritação causada nas narinas e não mais corria como no começo. Entretanto, os bons resultados em relação ao desenvolvimento da sensibilidade "não se estenderam a todos os órgãos. Os da vista e do ouvido não participaram; decerto porque esses dois sentidos, muito menos simples do que os outros, necessitavam de uma educação particular e mais longa" (Itard, 1801/2000, p. 146). Embora durante todo seu trabalho com Victor, Itard tenha dado grande importância à linguagem falada, no princípio Itard não faz referência a diálogos com o garoto, nem de sua parte, nem por parte da Senhora Guérin. Não que ele não usasse a fala nas atividades iniciais com Victor, mas ela não aparece expressamente nos relatórios como meio intencionalmente utilizado para a ação educativa. Deter-nos-emos um pouco mais na análise dos fatores que levaram Itard a postergar a introdução da mediação verbal. Ele acreditava, como Condillac, que a linguagem oral é fundamental para a aquisição dos conhecimentos teóricos, isto é, para ir além dos conhecimentos práticos que, guiados pelo hábito, só poderiam produzir poucos conhecimentos, além de serem bastante limitados. Entretanto, considerava que
(...) leis as mais complicadas, condições as mais numerosas presidem o exercício da palavra falada, devido a que não seja somente uma função, mas uma arte da imitação. Do que se segue que o homem tenha necessidade da troca com seus semelhantes para que lhe comuniquem esta arte, com a participação de um outro órgão, do órgão da audição, para fazê-lo ouvir as primeiras lições, da faculdade de imitar para facilitar-lhe as repetições, e do grau de inteligência dado a sua espécie para fazê-lo compreender e proporcionar-lhe os materiais, que são as ideias. (Itard, 1828/2004, p. 580)
Itard diria ainda que "um grande vício da educação é crer que ela deva ser a mesma para todos os indivíduos. Ela deveria ser tão variável como é o espírito humano nas suas modificações e à época de seu desenvolvimento" (Itard, 1802/2004, p. 466). Depreende-se de todas essas colocações que Itard introduziria a linguagem falada quando Victor estivesse preparado para ela. Para o momento era suficiente que Victor fosse "moldado" por meio das sensações e das operações mais elementares. A terceira meta que Itard propôs-se a atingir na educação de Victor foi "ampliar a esfera de suas ideias dando-lhes necessidades novas e multiplicando suas relações com os seres que o circundam". Não foi sem pesar que Itard declarou: "Se os progressos desse menino para a civilização, se meus sucessos para os desenvolvimentos de sua inteligência foram até o presente tão lentos e tão difíceis, devo atribuir a culpa disso sobretudo aos inumeráveis obstáculos que encontrei para cumprir essa terceira meta" (Itard, 1801/2000, p. 147). Uma das estratégias para atingir essa meta era utilizar jogos, brinquedos e brincadeiras. Itard conta que apresentou vários brinquedos a Victor, inclusive ficando horas inteiras a demonstrar seu uso, mas esses não lhes cativavam a atenção; em verdade, se lhe apresentasse a ocasião, destruía-os ou os escondia. O único jogo com o qual Itard obteve sucesso foi o jogo com copinhos. Itard escondia debaixo de um copo de prata uma castanha e convidava Victor, por sinais, a procurar a castanha. Aos poucos, Itard complexificava o jogo: trocava os copos de lugar, depois realizava essa troca de forma mais rápida e Victor sempre conseguia achá-las. Itard lamenta não ter conseguido interessá-lo por outro tipo de diversão: "Estou mais do que certo que se o tivesse podido, teria tirado grande sucesso delas; e essa é uma ideia para cujo entendimento deve-se lembrar da poderosa influência que tiveram nos primeiros desenvolvimentos do pensamento os jogos da infância." (Itard, 1801/2000, p. 148). Tal concepção antecipa-se a muitas teorias do desenvolvimento e da aprendizagem que afirmam a importância da brincadeira para o desenvolvimento da criança. Contudo, Itard não consegue elaborar hipóteses para a falta de interesse de Victor. Nossa hipótese é de que o interesse pelo jogo de copinhos não era somente pelo apelo às "necessidades digestivas". Relatos realizados logo após a captura de Victor (Bonaterre, 1800/2004) descreviam Victor guardando sobras de comida como suprimento. Assim, parece que esse jogo tinha muito mais sentido para ele, que já estava habituado a esconder e procurar, do que um outro jogo. Além disso, parece que o jogo de copinhos proporcionava uma interação muito maior entre Victor e Itard, no qual eles ficavam frente a frente, enquanto um escondia, outro achava. Itard modificava o jogo, desafiava Victor e ele se superava. Aos poucos foram descobertas outras atividades que davam prazer a Victor, como sair de carruagem e passear nos jardins. Lentamente, Victor foi "tomando gosto" por aquela nova forma de existência. Também desenvolveu grande afeição por sua governanta. Itard dizia que a amizade que Victor tinha por ele era mais fraca, e assim deveria ser. Outra contestação que Itard se via compelido a responder era: se Victor não é surdo, por que não fala? Elaborou assim a quarta meta: "(...) levá-lo ao uso da fala, determinado o exercício da imitação pela lei imperiosa da necessidade." Itard entendia que a fala era uma espécie de música, à qual, mesmo ouvidos bem constituídos, podiam ser insensíveis, o que tornaria o indivíduo inapto para imitar, nem que fosse uma só palavra. Mas este não era o caso de Victor; observando-o, percebeu que quando pessoas que estavam perto dele diziam sua exclamação preferida Oh!38 Victor não ficava alheio, virava sua cabeça em direção a elas. Para desenvolver a fala, Itard propõe-se a ativar a laringe "(...) com a isca dos objetos necessários às suas necessidades". Planejando uma situação que pudesse levar Victor a imitá-lo e ao mesmo tempo tirar proveito de uma necessidade que era obter água "eau"39 Itard tentou de várias formas fazer Victor perceber que, se pronunciasse essa palavra, ele receberia aquilo que queria. Mas teve suas primeiras tentativas frustradas. Começou, então, a trabalhar com a palavra "lait"40; depois de quatro dias, Victor conseguiu pronunciar, a seu modo, essa palavra. Entretanto, Itard interpretou essa fala não como um signo da necessidade de Victor, mas como uma exclamação de alegria.
Se a palavra tivesse saído de sua boca antes da concessão da coisa desejada, estaria dentro das expectativas, ou seja, o verdadeiro uso da fala fora apreendido por Victor; estabelecia-se um ponto de comunicação entre ele e mim, e os progressos mais rápidos decorreriam desse primeiro sucesso. (Itard, 1801/2000, p. 159)
Itard não conseguiu o que pretendia com Victor, abandonando o método e deixando "(...) o órgão da voz à influência da imitação". Victor fez alguns progressos espontâneos e repetia com frequência o monossílabo "lhi" e sempre com maior frequência quando Julie41, a filha da Senhora Guérin, estava em casa. Quando estava alegre, Victor usava uma expressão que aprendeu com a Senhora Guérin, "oh Dieu!". Outro aspecto importante a se considerar na dificuldade do desenvolvimento da fala é que da mesma forma que se expressava por meio de uma "linguagem com pantomimas", Victor a compreendia.
Itard, porém, entendia que, para Victor desenvolver suas operações mentais completamente, ele deveria fazer uso da linguagem oral. Essas ideias eram concernentes às desenvolvidas por Condillac (1746/1999), que entendia que a linguagem oral, composta por signos convencionais, seria mais que um meio de comunicação, seria um fenômeno decisivo na reorganização das faculdades mentais. Itard, frustrado em seus objetivos, acreditava que seria necessário multiplicar as necessidades de Victor para que ele começasse a usar novos signos e ascender à fala. Entretanto, cabe ressaltar que as pessoas que conviviam com Victor acostumaram-se a comunicar- se com ele por meio de gestos. Apesar das dificuldades em desenvolver a linguagem oral em Victor, Itard entendia que todas as faculdades que deviam servir para a instrução de seu aluno já estavam desenvolvidas. Iniciou, assim, a implantação da sua quinta e última meta: "(...) exercitar durante algum tempo, a partir dos objetos de suas necessidades físicas, as mais simples operações da mente e determinar em seguida sua aplicação aos objetos de instrução". O princípio dessa meta dar-se-ia com a utilização do método desenvolvido por Sicard (1798/1984), que havia sido aplicado na educação de Massieu, um jovem surdo, de família humilde, que aprendeu a escrever francês em um ano. Itard começou a instrução de Victor da mesma forma que Sicard iniciou a de Massieu. Ele desenhou sobre uma prancha negra a figura de três objetos: uma chave, uma tesoura e um martelo. Assegurando-se de que o garoto estava atento, colocava os objetos em cima da figura; quando achou que Victor tinha estabelecido a relação figura-objeto começou a apontar com o dedo as figuras dos objetos que deviam ser buscados. As reações de Victor diferiam muito das de Massieu, pois Victor não trazia nenhum objeto ou trazia os três de uma só vez. Assim, o mestre, observando que o menino gostava de deixar tudo organizado, utilizou-se dessa informação para uma nova tentativa de instruir Victor e "exercitar a sua atenção". Pendurou com um prego cada um dos objetos embaixo do desenho e os deixou lá por algum tempo; depois os objetos foram retirados e dados a Victor, e ele os recolocou imediatamente no lugar. Mas Itard percebeu que Victor estava se utilizando mais da memória do que do "discernimento". Para lidar com essa situação, Itard complexificou a atividade, forçando Victor recorrer à comparação do desenho com o objeto para poder reordená-los. O resultado deixou Itard muito esperançoso para seguir com o método aplicado a Massieu. O segundo passo do método de Sicard era colocar o nome ["signos alfabéticos"] do objeto junto deste, em vez de colocar o desenho. Contudo, Victor, mesmo com uma prolongada exposição do objeto sob o nome escrito, não os identificou. Assim, Itard abandonou o método de Sicard, buscando encontrar outro "mais análogo ainda às faculdades entorpecidas de nosso selvagem, um método no qual cada dificuldade vencida o elevasse ao nível da dificuldade por vencer" (Itard, 1801/2000, p. 168). Ele adotou o seguinte procedimento:
(...) colei numa prancha de dois pés quadrados três pedaços de papel, de forma bem distinta e de cor bem contrastante. Era um plano circular e vermelho, um outro triangular e azul, o terceiro de figura quadrada e cor negra. Três pedaços de cartolina, igualmente coloridos e figurados, foram, por meio de um buraco que tinham furado no meio e de pregos dispostos para isso na prancha, foram, disse eu aplicados e deixados durante alguns dias em cima de seus respectivos modelos. Tendo-os tirado depois e apresentado a Victor, foram recolocados sem dificuldade. (Itard, 1801/2000, p. 168)
Itard fez variações desse exercício, apresentando todas essas figuras com a mesma cor, depois todas as figuras iguais com cores diferentes; ampliou a variedade de figuras e a variedade de cores, colocou figuras e cores com diferenciações pouco marcantes. Com a intensificação e a complexificação dos exercícios, Itard viu reaparecer em Victor "(...) os movimentos de impaciência e de fúria que irrompiam tão violentamente no começo de sua permanência em Paris, quando, sobretudo, encontrava-se fechado em seu quarto" (Itard, 1801/ 2000, p. 169). Com o passar dos dias, os movimentos de cólera tornaram-se mais frequentes e violentos, chegando Victor até a ter convulsões. Itard tomou uma decisão; antes que Victor se tornasse um "infeliz epiléptico", usaria um "procedimento perturbador", inspirado em uma técnica utilizada por um médico holandês. Assim, quando novamente Victor teve um ataque violento de raiva, Itard procedeu da seguinte maneira: abriu com violência a janela do quarto de Victor, situado no quarto andar, e aparentando estar furioso, agarrou-o fortemente pelo quadril, expondo-o na janela. Após alguns segundos, Itard o puxou para dentro e Victor, demonstrando claros sinais de amedrontamento, foi conduzido aos quadros, tendo que apanhar todas as suas cartolinas e recolocá-las no lugar; "Em seguida foi lançar-se na cama, onde chorou abundantemente." (Itard, 1801/ 2000, p. 171). Essa foi a primeira vez que Itard viu Victor chorar. A partir desse dia, sua expressão de descontentamento nunca mais foi tão intensa e violenta. Castigos, obrigações, horários... Victor foi submetido à disciplina de Itard. Mas a que preço? Educar Victor passou a ser sinônimo de sofrimento, de ambas as partes. Itard nunca se mostrou confortável com a adoção de um papel punitivo. Tentou outras formas de interação, quis introduzir a brincadeira, os contatos sociais mais amplos, mas tudo era indiferente para Victor. Levaria talvez mais tempo do que Itard e a sociedade esperavam para que Victor se integrasse a essa cultura tão nova para ele. O que poderia se esperar de um garoto que, tendo vivido por tantos anos em um ambiente tão diferente, sobrevivido por seus próprios meios, corrido livremente, tivesse que ficar horas a fio comparando pedaços de papel? Quão frustrante foi para Itard colocar toda sua iniciativa metodológica à disposição de seu aluno e ter em troca choros e convulsões? Essa situação nos remete a pensar em muitas circunstâncias que afetam profundamente alunos e professores ainda hoje e cuja solução, aparentemente tão simples, parece não ser percebida. Definitivamente, Itard enredava-se em sua própria trama teórico-metodológica. Considerando-se imobilizado, não conseguia se desvencilhar daquilo que imaginou ser o melhor para seu aluno. Mas ainda não seria o momento em que Itard desistiria da educação de Victor; ele avançou na instrução de seu aluno. Mandou imprimir em pedaços grossos de cartolina vinte e quatro letras do alfabeto. Em uma prancha mandou talhar um número igual de compartimentos, nos quais inseriu, sem colar, os pedaços de cartolina, a fim de que pudessem mudá-los de lugar quando necessário. Construiu-se de metal, e nas mesmas dimensões, um número igual de caracteres. Estes eram destinados a ser comparados pelo aluno com as letras impressas e classificados em seus compartimentos correspondentes (Itard, 1801/ 2000). Ao propor exercícios com as letras do alfabeto, o objetivo era preparar Victor para a escrita, ou seja, aquela que seria a forma de expressar as necessidades que não eram comunicadas pela fala. Assim, em uma manhã, quando Victor esperava seu leite, Itard escreve a palavra LAIT, colocando as quatro letras sobre uma prancha. A Senhora Guérin, já avisada do procedimento, deu uma xícara cheia de leite para Itard, que repetiu o mesmo procedimento com Victor. Ele rapidamente recolocou as letras em ordem inversa (TIAL). Itard indicava as correções, apontando o lugar correto de cada letra: "(...) quando essas mudanças reproduziram o signo da coisa, não o fiz mais esperar" (Itard, 1801/2000, p. 174). Após oito dias veio a prova da compreensão de Victor sobre a relação entre a disposição alfabética e uma de suas necessidades. Victor, ao sair, pegou por conta própria as quatro letras em questão e as colocou no bolso. Chegando ao seu destino, dispôs esses caracteres sobre a mesa, formando a palavra "lait", numa clara alusão a este alimento. Após nove meses de trabalho com Victor, Itard conclui:
(...) o menino, conhecido pelo nome de selvagem do Aveyron, é dotado do livre exercício de todos os seus sentidos; que dá provas contínuas de atenção, de reminiscência, de memória; que pode comparar, discernir e julgar, aplicar enfim todas as faculdades de seu entendimento a objetos relativos à sua instrução (...) se concluirá daí que sua educação é possível, se é que já não está garantida por esses primeiros sucessos. (Itard, 1801/2000, p. 174, grifo do autor)
O sucesso do aluno aquém das expectativas do professor: de quem é a responsabilidade?
No início de seu segundo relatório, escrito cinco anos após o primeiro, Itard revela seu pessimismo: "(...) eu teria envolvido num profundo silêncio e condenado a um eterno esquecimento trabalhos, cujo resultado oferece bem menos a história dos progressos do aluno do que a dos insucessos do professor" (Itard, 1806/2000, p. 183). Itard parecia sentir-se derrotado; após anos de trabalho diário com Victor, foi vítima de sua concepção de ser humano. Em sua concepção, o aluno seria como uma tábula rasa, a folha em branco, a pedra bruta, e o professor o escritor, escultor, modelador. Justificam-se seus sentimentos. No segundo relatório, para mostrar o desenvolvimento de Victor, subdivide seu relato: desenvolvimento das funções dos sentidos, desenvolvimento das funções intelectuais e desenvolvimento das faculdades afetivas. Considerando que muitas das atividades relatadas nesse documento já haviam aparecido no primeiro relatório, serão destacadas duas passagens consideradas mais evidentes das dificuldades encontradas por Itard, exemplificando os motivos que o fizeram desistir de sua experiência pedagógica com Victor. Itard, com base nos trabalhos de Locke e de Condillac, trabalhou separadamente os sentidos de Victor, com intenção de desenvolver as faculdades dos sentidos. Ao trabalhar com a audição, que para ele era o sentido que mais favoreceria o desenvolvimento das faculdades intelectuais, isolou esse sentido, privando Victor da visão, colocando uma venda em seus olhos. Iniciando os exercícios com sons fortes e bem distintos, seu objetivo não era só fazê-lo "ouvir os sons", mas também "escutá- los". Quando Condillac fez a distinção entre ver e olhar, disse: "(...) não formamos ideias tão logo vemos; formamo-las apenas quando olhamos com ordem e método" (Condillac, 1754/1993, p. 173). Infere-se que a diferença entre ouvir e escutar também seja que "escutar" um som requer "análise". Nessa perspectiva, Itard criou um exercício que consistia em estimular Victor a reproduzir um som igual ao que ele havia emitido anteriormente. Os sons utilizados no princípio eram bem distintos o som de um sino e de um tambor , mas aos poucos foram sendo apresentados sons menos díspares, mais complexos e aproximados. Em seguida, passou-se à percepção dos sons de um instrumento de sopro, sons que, em sua opinião, eram mais análogos aos sons da voz. Por último, introduziu o som de sua voz, considerado o último grau da escala para tornar Victor sensível à audição da fala.
(...) punha meu aluno à minha frente, de olhos vendados, de mãos fechadas e mandava-o estender um dedo todas as vezes que eu emitia um som. Esse meio de prova foi logo compreendido; mal o som havia impressionado o ouvido e o dedo se levantava com uma espécie de impetuosidade, e em geral até com demonstração de alegria, que não permitiam duvidar do gosto que o aluno fazia nessas esquisitas aulas. (Itard, 1806/2000, p. 188)
Itard achava estranho que seu aluno gostasse dessas "aulas esquisitas". Realmente, Victor parecia apreciar essas aulas; entretanto, supõe-se que fosse porque estivesse aprendendo a escutar o som da voz humana, não pelo menos da forma mecânica proposta por Itard, mas muito mais pelo contato e companhia do mestre, por conseguir compreender o que estava sendo solicitado e poder fazê-lo. Itard queria que, além de ouvir o som da voz, Victor discriminasse as modificações e variedades de tons "que compõem a música da fala." O exercício para atingir esse fim foi a comparação das vogais. Estabeleceu que para a emissão de cada vogal um dedo específico deveria ser levantado. Victor teve dificuldades iniciais, mas ao cabo de algum tempo foi capaz de diferenciá-las. Foi então que as demonstrações de alegria de Victor reapareceram. Diz Itard: "Naqueles momentos, todos os sons eram confundidos, e os dedos indistintamente levantados, em geral até todos ao mesmo tempo, com uma impetuosidade desordenada e gargalhadas realmente irritantes." (Itard, 1806/2000, p. 190). Para conter sua expressividade, a venda foi retirada. Por sua vez, Victor começou a se distrair com os mínimos acontecimentos em torno dele e pouco adiantava o semblante severo e até um pouco ameaçador de Itard. O professor resolveu recolocar a venda e as gargalhadas recomeçaram. Itard buscou outra forma de corrigir Victor e, cada vez que ele errava, Itard batia com uma baqueta de tambor em seu dedo. Victor entendeu que essa era uma brincadeira. Itard tornou-se mais severo.
Fui compreendido e não foi sem uma mescla de dor e de prazer que vi na fisionomia entristecida daquele rapaz o quanto o sentimento de injúria prevalecia sobre a dor da batida. Lágrimas saíram de sob a sua venda; apressei-me em tirá-la; mas, seja embaraço ou temor, seja preocupação profunda dos sentidos interiores, embora desvencilhado daquela venda, ele persistiu em manter os olhos fechados. Não posso descrever a expressão dolorosa, conferida à sua fisionomia por suas duas pálpebras assim aproximadas, através das quais escapavam de tempos em tempos algumas lágrimas. (Itard, 1806/2000, p. 190)
Victor, que não chorava mesmo tendo passado por situações em que havia sido pressionado pela curiosidade alheia, importunado, agora chorava mantendo os olhos fechados. Não se pode presumir o que os olhos cerrados de Victor significavam para ele, mas essa cena denuncia o desgaste de Itard devido às respostas lentas e imprecisas de Victor. Por outro lado, Victor, que via prazer e divertimento nesses momentos com Itard, algo que não acontecia nos exercícios com as letras, começou a ficar temeroso: "(...) um sentimento de temor tomou o lugar daquela alegria louca (...) quando eu emitia um sinal tinha que esperar durante mais de um quarto de hora o sinal combinado" (Itard, 1806/ 2000, p. 191). O medo e a insegurança começavam a corroer a relação de confiança construída pacientemente. Ao mais leve barulho, o menino espavorido tratava de recolher o dedo e escolher outro para levantar com a mesma lentidão. Mesmo depois de algum tempo, se Itard voltasse a tentar esse tipo de exercício, logo tinha de abandoná-lo. Contudo, Itard considerou que a série de experiências realizadas com o sentido da audição não foi totalmente inútil. Atribuía a ela, e não à convivência de Victor com ele, entender algumas palavras de uma sílaba só e distinguir as entonações da linguagem, que exprimem reprimenda, amizade, desprezo, mesmo que elas não viessem acompanhadas de pistas fisionômicas ou gestuais. Mas o trabalho com os sentidos era somente a parte inicial do projeto pedagógico de Itard; o segundo momento, a construção de um sistema de representação da realidade por meio da palavra, seria muito mais relevante, mas impossível de ser atingido sem o primeiro. Segundo Itard, a "representação dos signos" não era parte do campo dos sentidos externos; era preciso recorrer ao desenvolvimento da faculdade da mente. Considerando a fala o "principal motor da educação", resolveu investir no "sentido da visão". Para atingir seu objetivo, tinha de "exercitar os olhos para apreender os mecanismos da articulação dos sons, e a voz para repeti-los, mediante uma aplicação acertada de todas as forças reunidas da atenção e da imitação" (Itard, 1806/2000, p. 215). Itard teve que estudar a melhor forma de mostrar como se articulavam os sons pelos movimentos dos músculos da face; e, durante mais de um ano,
"(...) lá estão o professor e o aluno em frente um do outro, cada um careteando mais que o outro, ou seja, imprimindo aos músculos dos olhos, da testa, da boca, do maxilar, movimentos de toda espécie; concentrando pouco a pouco suas experiências nos músculos dos lábios e, após ter insistido muito tempo no estudo dos movimentos dessa parte carnuda do órgão da fala, submetendo enfim a língua aos mesmos exercícios, porém muito mais diversificados e continuados por muito mais tempo." (1806/2000, p. 215)
Com esses exercícios mecânicos, Itard não conseguiu atingir os resultados esperados. Victor emitiu nada mais do que alguns monossílabos, ora graves, ora agudos. Depois de prolongar-se por mais algum tempo em seu investimento e, não tendo obtido aquilo que esperava, a fala, diz ele: "abandonei meu aluno a um mutismo incurável".
O legado de Jean Marc-Gaspar Itard: rupturas, avanços e esquecimento
Partindo da hipótese de que o isolamento havia sido a causa da condição em que Victor se encontrava, Itard iniciou um projeto pedagógico que valorizou formas de transformar essa condição que, naquele momento, o colocava em situação de desvantagem social. A relação estabelecida entre Itard e Victor foi intensa. Dispor de um referencial teórico- metodológico para analisar e pautar sua prática permitiu-lhe apresentar algumas ideias que permanecem ainda hoje e outras que carregam limitações próprias da época em que viveu. Assim, condizente com sua abordagem empirista- sensualista, Itard entendia que ao professor caberia a difícil tarefa de organizar os ambientes de aprendizagem, proporcionar atividades favorecedoras de desenvolvimento, não só cognitivo, mas afetivo e comportamental, ideias que permanecem ainda hoje. Entretanto, Itard, limitado ao seu referencial teórico, tinha dificuldade de f lexibilizar algumas vivências junto a Victor e interpretá-las de forma a superar o arcabouço teórico dado, sobretudo, pelas ideias de Condillac. Itard valorizou muito a fala, pois era difundida a ideia de que a linguagem oral era essencial para desenvolver os processos psicológicos superiores, o que não deixa de ser uma concepção aceita ainda hoje, apesar da abertura para outras formas de comunicação.
Considerações finais
Podemos dizer que Itard foi um homem de ciência, incansável em sua crença na educação, certamente abalado pelo desfecho de sua história com Victor. Ao abandonar a educação de Victor, triunfaram outras concepções sobre os cuidados que deveriam ser dispensados às crianças "alienadas". O legado de Itard foi esquecido ou parcialmente reduzido à discussão das práticas pedagógicas como técnicas de ensino. Perde-se, assim, o que ele tem de precioso e que nos convida a reler sua obra: o entendimento de que o homem é um ser de relações, para o qual a educação é fundamental para sua constituição como ser social, histórico e cultural. Abordando com rigor a fragilidade e a importância do elo que se forma entre educando e educador no processo de ensino-aprendizagem e desenvolvi- mento, Itard nos remete à reflexão sobre as mudanças necessárias nos processos de avaliação do processo de aprendizagem, das relações professor-aluno, das considerações da afetividade daquele que ensina e daquele que aprende, entre tantas outras provocações que já foram anunciadas há mais de dois séculos, mas que parecem tardar para se tornarem realidade.
Referências
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34 Artigo nesta publicação atualizado e com pequenas modificações, foi originalmente publicado na Revista Memorandum. Ver: Cordeiro, A.F.M. & Antunes, (2010). A ação pedagógica de Itard na educação de Victor, o "selvagem de Aveyron": contribuição à história da psicologia. Memorandum, n. 18, pp. 37-49. O Boletim agradece à Memorandum pela autorização para reproduzir este material.
37 A Senhora Guérin foi contratada a pedido de Itard para lhe auxiliar nos cuidados com Victor, mais especificamente higiene, alimentação, lazer etc.
38 Em francês se pronuncia "ô".
39 A pronúncia em francês para eau é "ô".
40 A palavra lait em francês significa leite e pronuncia-se "lé".
41 É interessante observar que, em francês, Julie se pronuncia "Julhii", dando a entender que Victor pronunciava somente a última sílaba do nome da filha da senhora Guérin.