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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. v.10 n.19 São Paulo dez. 2005
ARTIGOS
Mãe social: profissão? função materna?1
Social mother: profession? motherhood role?
Paula Cristina Nogueira*I; Liana Fortunato Costa**II
*Universidade Paulista - UNIP/DF
**Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília
RESUMO
Este artigo pretende aprofundar reflexões acerca da realidade das crianças que se encontram em situação de abrigamento, buscando compreender a função do cuidador nesse contexto. A pesquisa foi desenvolvida em uma instituição que recebe e acolhe crianças de zero a três anos de idade. Essa instituição funciona de acordo com o modelo de casas-lares. Observamos que o grande número de crianças para apenas uma mãe social dificulta os momentos de interação entre adulto e criança. Foi possível constatar que a mãe social acaba limitando os movimentos das crianças, que precisam ficar a maior parte do tempo sentadas no sofá, assistindo televisão, enquanto aguardam a atividade seguinte, sempre imposta pela rotina da instituição.
Palavras-chave: Mãe social, Abrigo, Criança institucionalizada, Relação mãe-bebê.
ABSTRACT
This article intends to deepen the reflections on the reality of children who live in orphanages, trying to understand the role of the adult who takes care of the child in this context. The research was developed in an institution which receives children from zero to three years old. It was possible to observe that the high number of children under the care of one social mother makes it impossible for the social mother to interact in a healthy and positive way with each child, individually. We observed that the social mother puts a lot of limits to the movements of the children, who must stay on the sofa, watching TV, waiting for the next activity, always imposed by the routine of the institution.
Keywords: Social mother, Shelter, Institutionalized child, Mother-baby relationship.
Introdução
Pensamos que a pessoa responsável por cuidar da criança, que se encontra abrigada, tem papel fundamental em seu desenvolvimento. Estudos clássicos, como os de Spitz (1965/2000), têm enfatizado um princípio fundamental: o papel indispensável de relações interpessoais entre um agente maternal e o bebê, no intuito de se assegurar o desenvolvimento saudável da criança, assim como o aporte afetivo para a aquisição de competências sociais, cognitivas e comunicacionais.
A instituição de abrigo tem como função acolher e assistir crianças que, por algum motivo, tiveram que ser retiradas de suas famílias ou foram por elas abandonadas. Em princípio, o papel da instituição deveria ser temporário, uma vez que crianças que têm família deveriam ser reintegradas assim que tivessem condições de recebê-las de volta e, aquelas em fase de destituição de pátrio poder, assim como aquelas que foram abandonadas ao nascer, deveriam ser encaminhadas para adoção.
Quando se entra em contato com a rotina dos abrigos brasileiros, entretanto, observa-se que a realidade é bem diferente. Esse lugar que deveria, em princípio, ter função temporária, de proteção e assistência, acaba se tornado a casa permanente de muitas crianças, e assim permanecem na instituição até atingirem a maioridade (Pereira, 2003). Tal constatação é de extrema relevância, quando se pensa nas possibilidades e conseqüências no que se refere à formação de crianças que se encontram nessa situação. Afinal, ao perder o caráter temporário, a instituição acaba sendo responsável pela constituição e construção da subjetividade de cada criança. É no abrigo que elas encontram referências e formam vínculos afetivos, é lá que crescem, se desenvolvem e constroem suas histórias. É no abrigo que elaboram e significam sofrimentos e traumas.
A separação da criança do contato materno vem sendo amplamente discutida por diversos autores (Bowlby, 2001; Bowlby, 2002; Spitz, 1965/2000; Weber e Kossobudzki, 1996). Além disso, a institucionalização, que acaba sendo a conseqüência da separação, apesar de muitas vezes necessária, é uma prática que deve ser pensada com cuidado. Segundo Viorst (1986), citado por Weber e Kossobudzki (1996), a separação da mãe pode provocar cicatrizes emocionais extremamente profundas. "Sem dúvida, a privação materna nos primeiros anos de vida tem sido comparada a uma queimadura profunda. A dor é inimaginável. A cicatrização é difícil e lenta. O dano, apesar de não ser fatal, pode ser permanente." (p. 40)
Nesse sentido, é fundamental que se discuta a função das instituições de abrigamento, uma vez que se reconhecem as dificuldades implicadas na separação mãe-criança e, conseqüentemente, as limitações dos cuidados oferecidos por pessoas com quem a criança não tenha laços afetivos profundos. Winnicott (1996) afirma que a idéia de que uma criança cresça em uma instituição foi, há muito, desaprovada. Isso porque a tendência interna de desenvolvimento, assim como o crescimento emocional extremamente complexo de cada bebê, requer algumas condições que não podem se restringir a cuidados corporais de qualidade. Segundo o autor, uma criança precisa ser amada para que esses processos sejam garantidos.
Ao pensarmos na dinâmica da criança dentro da instituição, é inegável o fato de que o educador é aquele que a acompanha, permitindo que ela seja capaz de falar sobre si, por meio de brincadeiras (no caso de crianças pequenas), ações e diálogos. Sendo assim, esses profissionais têm papel e função fundamentais dentro da instituição, pois lidam diretamente com as crianças, estão mais próximos, acompanham o desenvolvimento e as aquisições de cada uma de forma mais direta (Bosse-Platière, 1989; David, 2001, 2002).
A partir dessas observações, pretendemos aprofundar reflexões acerca da realidade das crianças que se encontram em situação de abrigamento, buscando compreender a função do educador nesse contexto. A pesquisa foi desenvolvida em uma instituição que recebe e acolhe crianças no período de zero a três anos de idade. Nessa instituição o educador recebe a denominação de mãe social.
Fundamentação teórica
Winnicott (1999) afirma que não é possível oferecer à criança algo tão bom quanto o contato familiar. Pode-se, somente, oferecer-lhe um lar substituto. Tal afirmação coloca-nos uma questão fundamental ao pensarmos nas possibilidades de formação e de constituição psíquicas de crianças abrigadas. Afinal, uma vez separadas de suas famílias, deve-se pensar no que vem pela frente, no que lhes resta como alternativa e, nesse sentido, o papel da instituição de abrigo em relação a crianças que já sofreram, logo no início da vida, rompimentos afetivos bastante significativos é fundamental.
Por um lado, a função da pessoa que cuida da criança pode ser decisiva, no sentido de contribuir para que ela possa se adaptar e continuar a se desenvolver de forma saudável, ainda que se encontre separada da família. Por outro, um cuidado desqualificado corre o risco de desumanizar a criança, contribuindo para que sua adaptação e sua possibilidade de desenvolvimento e estruturação psíquica fiquem extremamente prejudicadas. (David, 2001, 2002; Falk, 1986; Golse, 2002).
O que se observa, entretanto, como afirma Bosse-Platière (1989), é que a atuação das profissionais não corresponde às necessidades das crianças; necessidades que impõem "que toda profissão da primeira infância deve ser exercida por uma equipe qualificada" (p. 13). A autora afirma, ainda, que _ apesar da heterogeneidade destas profissionais _ elas têm em comum o estabelecimento de uma relação estreita entre cuidado e educação. Além disso, o fato de essa profissão implicar, de alguma forma, a substituição da mãe (pelo menos no que se refere aos cuidados), faz com que a ambigüidade do estatuto de "cuidadora" permaneça, apesar de todos os esforços, na tentativa de profissionalizá-la.
As possibilidades de reparação e reestruturação estão diretamente ligadas ao trabalho desenvolvido pelas mães sociais, uma vez que são essas profissionais que passam a maior parte do tempo com as crianças, sendo responsáveis pelo seu dia-a-dia, por sua rotina, acompanhando-as diretamente em seu desenvolvimento, brincadeiras, interações. São elas que observam e estão em contato direto com as reações, comportamentos, demonstrações de angústia, ansiedade, alegria e dificuldades das crianças.
Este trabalho tem como objetivo procurar compreender como se dá a relação entre mãe social e criança. Buscamos analisar dois pontos principais dessa relação. Primeiramente, entender como se dá o cuidado oferecido pela mãe social à criança em situação de abrigamento, analisando o que Golse (2002) denomina de "cuidado institucional" (p. 26). Tal cuidado pode ser observado mais diretamente nos momentos de rotina e do dia-a-dia da instituição, envolvendo banho, higiene, alimentação, repouso, brincadeiras. Em segundo lugar, compreender como se dá a relação afetiva entre a mãe social e a criança, relação que se estabelece nos momentos da realização dos cuidados, assim como nos momentos de lazer, de jogos e durante as diferentes atividades desenvolvidas pela criança e acompanhadas por essa profissional ao longo da rotina institucional.
Cuidado materno e carência afetiva
Ao tentar compreender a realidade da criança em situação de abrigamento, deve-se levar em consideração o fato de que ela está, necessariamente, passando por um período de privação. Privação que teve início, em muitos casos, antes de ela chegar ao abrigo. Ou seja, muitas vezes, as razões da institucionalização relacionam-se à falta de qualidade dos cuidados recebidos quando ainda no período de convívio familiar.
Winnicott (2000) afirma que "(...) não existe isso que chamam de bebê. O que quero dizer, naturalmente, é que sempre que vemos um bebê vemos também um cuidado materno; sem o cuidado materno não haveria bebê" (p. 40). Para o autor, a essência dessas experiências reside, fundamentalmente, na possibilidade de dependência dos cuidados maternos. Winnicott afirma ainda que existem condições básicas, propiciadas pelo ambiente, que poderão garantir a possibilidade de o bebê "começar a ser". Essas constatações, que se tornarão emblemáticas de sua maneira de pensar a evolução do humano, exprimem uma visão, segundo a qual o bebê não pode ser pensado em si. Isso porque não seria possível pensar um bebê isolado da presença concreta da mãe e do ambiente que ela cria, a partir do relacionamento que mantém com o filho.
A relação maternal não pode ser substituída, mas o cuidado adequado pode permitir o desenvolvimento saudável de crianças privadas darelação com a mãe (Golse, 2002). Burlingham e Freud (1960) afirmam que esses cuidados podem ser oferecidos por uma substituta da mãe, a quem as crianças possam se apegar. Segundo as autoras, esses não têm o menor valor, se oferecidos por visitantes, ou por pessoas estranhas na casa ou voluntárias.
Winnicott (2000) afirma que falhas na adaptação da mãe às necessidades do bebê produzem aquilo que denomina de "fases de reação à intrusão, e tais reações interrompem o `continuar a ser' da criança" (grifo do autor, p. 403). Para o autor, dependendo do nível de falha do ambiente, o bebê sofrerá algo além de uma frustração, mas aquilo que define como uma ameaça de aniquilação.
Appell (1998) afirma que se ocupar de um bebê implica levar em consideração uma série de noções e detalhes. Demanda estar atento às manifestações da criança, vigilante quanto a seu bem estar, envolver-se, no sentido de garantir bons cuidados corporais e afetivos e, se necessário, levar em consideração seu mal-estar. A autora ressalta também que esses fatores tomam uma importância ainda maior, quando se trata de cuidar de crianças separadas de seus pais e que, conseqüentemente, encontram-se em sofrimento. Para tanto, é fundamental que o adulto se mantenha atento durante os momentos de cuidado. Essa atenção deve buscar compreender o que o bebê exprime, para que se possa ajustar o mais finamente possível às suas necessidades. A descrição desse trabalho não é uma tarefa fácil. Concentrar a atenção aos movimentos, sinalizações e comunicações do bebê exige treino e suporte; exige, como afirma a autora, que estejamos atentos com todos os nossos sentidos e sensibilidade. Trata-se de um trabalho que demanda muito e que só pode ser bem feito com o suporte de uma equipe e de permanente reflexão.
Abrigos são instituições nas quais, normalmente, cuidado e atenção individuais ficam extremamente limitados em função do número de crianças que precisam ser atendidas em todas as suas necessidades básicas por, geralmente, um número restrito de profissionais. É inevitável que se observe a complexidade e a dificuldade de se suprirem as necessidades afetivas de crianças que, logo cedo, já passaram por alguma situação de trauma e rompimento em suas vidas (David, 1972; Rapoport, 1998; Spira, Scippa, Berthet, Meuret, Besozzi e Cramer, 2000).
Spitz (1948) nota que privar uma a criança do contato com sua mãe, sem que lhe seja oferecido um substituto equivalente, implica colocá-la em uma situação que para o adulto é inimaginável _ situação que o autor compara com a realidade observada em alguns campos de prisioneiros de guerra.
David (1998a) denomina o sofrimento de crianças observadas na realidade institucional de carência precoce. Crianças expostas à carência precoce são pessoas que apresentarão, futuramente, enormes problemas no que se refere à constituição do self e das relações objetais. Segundo a autora, esse tipo de carência afeta também as funções cognitivas, ou seja, acaba se tornando um problema que dificilmente poderá ser reparado.
Spitz (1965/2000) discute as questões da carência afetiva centrando-se nas conseqüências da experiência institucional. Para o autor, o fato de a criança encontrar-se em um meio alienante e, mais precisamente, o fato de essa alienação ter como ponto principal a falta de um substituto maternal, ou melhor, a falta de uma relação afetiva estável e de qualidade, que poderia substituir a relação maternal, seria a causa do surgimento da carência afetiva. Spitz discute um dado extremamente relevante: o fato de uma única enfermeira (denominação usada pelo autor) ser responsável pelo cuidado de oito a dez bebês teria grande contribuição para o surgimento da carência. Afinal, essas crianças recebem "um décimo da quantidade normal de afeto propiciado no relacionamento comum entre mãe e filho" (p. 283).
Ao constatarmos que a relação maternal não pode ser substituída, devemos nos ater ao que pode ser oferecido como alternativa às crianças que se encontram em situação de abandono. Para tanto, o ambiente que recebe essas crianças deveria ser cuidadosamente pensado e estruturado. Para que isso seja possível, nada pode ser deixado ao acaso ou à mercê da improvisação das mães sociais, nem determinado pela comodidade ou necessidades administrativas. "Tudo deve ser minuciosamente pensado, previsto, aplicado, verificado e avaliado, com o único objetivo: a criação e manutenção, no interior da coletividade, de condições favoráveis ao desenvolvimento harmonioso das crianças." (David, 1973, p. 15) A criança em situação de abrigamento
Para que se possa compreender melhor o contexto estudado, deve-se observar o fato de que a realidade das instituições de abrigamento no Brasil tem relação direta com a situação social e econômica de nosso país. Situação esta que se caracteriza pela má distribuição de renda, pelo desemprego, miséria, falta de moradia, migração excessiva para as grandes cidades e, conseqüentemente, por problemas como alcoolismo, uso abusivo de drogas, distúrbios psiquiátricos, entre outros. Como conseqüência, observa-se um alto índice de famílias vivendo às margens da sociedade, nas ruas das grandes cidades. Ou seja, quando se pensa em crianças em situação de abrigamento, deve-se lembrar que são crianças (em sua grande maioria) provenientes de famílias vítimas de uma realidade social que espelha a situação econômica e os problemas enfrentados pelas classes sociais mais baixas.
Para ilustrar tal constatação, gostaríamos de mencionar uma pesquisa feita por Cabral (2003), para a organização não governamental Associação Brasileira Terra dos Homens. Tal trabalho, cujo título é Reordenamento de Abrigos, foi realizado em 69 instituições que atendem crianças de zero a 11 anos, no município do Rio de Janeiro. Um dos resultados da pesquisa demonstra que a falta de investimento em políticas públicas é responsável por 51,01% dos casos de crianças e adolescentes em situação de abandono. Além disso, segundo a pesquisa, dentre as razões para o abrigamento, foi possível constatar que 10,61% das crianças e dos adolescentes estão nos abrigos por motivos relacionados ao tráfico de drogas, saúde física dos pais ou deles próprios, dependência química dos pais ou dos próprios filhos e prisão dos pais. Constata-se que, por mais graves que sejam, esses problemas não são os principais responsáveis pelo abrigamento das crianças. Outros dados apontam que, do total de 1.981 crianças e adolescentes, 39,75% estão abrigadas por motivo de carência material de suas famílias. Ou seja, mais uma vez, constata-se que a situação de pobreza na qual muitas dessas famílias se encontram é a grande responsável pela institucionalização de muitas crianças, ainda que contra a vontade dos pais. Observou-se ainda que a falta de políticas públicas em relação a emprego e rede de serviços favorece a desagregação familiar e gera problemas como violência doméstica e ida das crianças e adolescentes para a rua, fator responsável pelo abrigamento de 38,37% dos pesquisados.
Assim, deve-se levar em consideração o fato de que essas crianças já passaram, logo no início da vida, por algum tipo de situação de violência, de privação. Além disso, ao ser retiradas da família, sofrem um rompimento significativo e, muitas vezes, traumático.
Durning (1998) afirma que toda criança pode padecer ao ser separada dos pais, "mesmo que a vida com eles não tenha sido cor-de-rosa" (p 76). Além disso, o autor afirma que essa criança poderá encontrar dificuldades para se adaptar ao novo ambiente no qual será colocada, seja ele uma família substituta ou um abrigo. Nesse sentido, é fundamental que se faça uma reflexão acerca da função do abrigo e da equipe que nele trabalha, uma vez que essas crianças precisarão de apoio, estrutura e cuidados especiais.
A realidade, entretanto, coloca-nos em contato com uma situação complicada e, em muitos casos, dramática. Afinal, ao entrar em contato com o cotidiano dessas instituições, depara-se com profissionais que não foram devidamente preparados e que não recebem respaldo ou apoio (na forma de supervisão _ formal e consistente) para desenvolver trabalho tão importante. Trabalho este que deveria envolver o oferecimento de cuidados, assim como apoio psicológico para que as crianças pudessem significar a separação, a falta da família, as situações de violência pelas quais eventualmente passaram, entre outras coisas.
O que se observa, entretanto, são instituições com mães sociais que recebem pouco ou nenhum preparo para lidar com as questões trazidas pelas crianças, com um ritmo de trabalho que visa a atender aos interesses da instituição, sem que se leve em consideração o tempo e o ritmo da criança, além de, em alguns momentos, um tratamento que envolve violência na forma de se referir e se comunicar com as crianças.
Dessa forma, pode-se compreender as constatações de Silva e Gueresi (2003) ao afirmarem que "a ausência de um conhecimento mais amplo do Estatuto da Criança e do Adolescente por parte dos dirigentes de abrigo faz com que os mesmos pautem o atendimento de suas instituições de acordo com suas próprias crenças e prioridades" (p. 40).
Na prática, os agentes encarregados da implementação dos programas de abrigos são, na maioria, entidades assistenciais que atuam segundo suas próprias crenças, as quais nem sempre coincidem com os objetivos da LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social) e do ECA. De fato, o atendimento em serviços de abrigo para crianças e adolescentes sempre teve maior participação de instituições filantrópicas e religiosas do que de serviços governamentais (Silva e Gueresi, 2003, p. 17).
O que se observa é um alto número de crianças que passam grande parte de suas vidas nos abrigos, privadas do convívio familiar. Fundamental mencionar ainda que essas crianças passam, na instituição, justamente os anos que são a base de sua formação; anos nos quais os vínculos fundamentais são construídos, anos que são a estrutura de nossa história individual, de nossa memória e, por que não?, da construção de nossos primeiros sonhos, fantasias e projeções para o futuro.
Constata-se, assim, um quadro dramático, pois a necessidade do abrigo de se manter com uma instituição de caráter temporário (apesar de se observar o fato de que muitas crianças passam anos dentro da instituição) impede que a criança tenha a experiência de sentir-se em casa, com todos os aspectos que essa experiência envolve. Dessa forma, a ansiedade que envolve a saída da instituição para que encontre uma nova família aumenta a cada dia, ainda que, muitas vezes, isso nunca aconteça. Ou seja, a criança pode passar anos sem que se sinta pertencente ao lugar no qual vive _ fato que contribui para que os anos passados na instituição fiquem esvaziados de memória, de registro, de significado.
Fundamental mencionar que a perda da possibilidade da convivência familiar é só uma das perdas vividas por crianças institucionalizadas. Ao serem colocadas no abrigo essas crianças entram em um lugar que pode ser representado por uma imagem que denominamos de "buraco negro". Essa denominação surgiu, ao constatarmos os problemas que envolvem a rede de atendimento à criança, mencionados anteriormente, e pode-se observar que, uma vez na instituição, a criança terá sérias dificuldades para ser retirada de lá. Além disso, muitos aspectos relacionados à sua vida (passada e presente) vão se perdendo.
Além disso, objetos pessoais, brinquedos, dados de sua história, de seus progressos, entre outros, também se perdem. A alta rotatividade de profissionais e a falta de cuidados individualizados geram uma perda de dados e fatos fundamentais queconstituem a individualidade e a história de cada criança, contribuindo para essa imagem do abrigo como um buraco negro.
Em função da dificuldade de comunicação entre setores da rede social de apoio e os abrigos, da falta de políticas públicas eficazes e do apoio ou auxílio às famílias, as crianças vão permanecendo na instituição (muitas chegam antes de completar um ano e permanecem até os 18), contribuindo para a categoria de crianças esquecidas, descrita por Pereira (2003).
Depara-se, assim, com a realidade de crianças que vão ficando sem história: afinal, a sua história passada acaba ficando guardada nas pastas, nos arquivos e restrita aos técnicos da instituição _ história feia, de abandono, de miséria, maus-tratos, violência _ logo, uma história da qual a criança deve ser poupada (na visão das pessoas responsáveis por ela na instituição). Além disso, há a dificuldade dos próprios adultos ao ter que lidar com tais conteúdos. Ou seja, o caminho mais fácil e menos doloroso é do de se restringir o contato das crianças com dados de seu passado e de sua história, no intuito de protegê-las e, conseqüentemente, de se proteger (ainda que esse processo ocorra de forma inconsciente).
No artigo 92, o ECA atribui à instituição de abrigo os deveres de preservação dos vínculos familiares, de integração em família substituta (quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem) e de atendimento personalizado e em pequenos grupos. Em relação ao atendimento personalizado, é fundamental lembrar que o abrigo acaba sendo o ambiente responsável por garantir estabilidade, continuidade, regularidade na vida dessas crianças. São essas características relacionadas ao cuidado materno que garantem a construção de uma base que dê sustentação para o desenvolvimento do ego.
A realidade de crianças institucionalizadas é muito específica e deve ser analisada e estudada com cuidado. Desse modo, deve-se considerar a importância de investir em estudos que visem a compreender melhor essa realidade para que se possa, então, pensar na profissionalização das pessoas que atuam na área e que são responsáveis pela saúde física e psíquica de milhares de crianças que foram retiradas do convívio familiar.
Ainda em relação à dinâmica da criança na instituição, deve-se mencionar a questão dos limites: fator fundamental para a estruturação psíquica de qualquer criança. Entretanto, como menciona Marin (1999), assim como o ritmo e a rotina, os limites também são pensados em função dos adultos e das necessidades de funcionamento da instituição. "Muitas vezes, o limite é vivido pela criança, não em função de uma relação onde uma regra tem um sentido compreensível como seria o desejável, e sim, imposta em função da rotina institucional" (p. 115). Além desses fatores, há uma característica dessas instituições, igualmente importante, já mencionada neste trabalho: a alta rotatividade dos profissionais. Ou seja, a instituição que deveria ser um equipamento utilizado de forma temporária, no qual estabilidade e segurança deveriam ser garantidos, em função das necessidades específicas das crianças que lá se encontram, acaba sendo caracterizado pelo oposto: crianças que passam anos, institucionalizadas aos cuidados de pessoas diferentes, que vão e vêm durante todo o tempo.
O "panorama" da situação dos abrigos no Brasil indica a necessidade de se começar a estruturar medidas para garantir que, apesar do abandono e dos traumas iniciais, as crianças tenham o direito e a possibilidade de se organizar de forma saudável e, por que não?, digna. Para tanto, as instituições responsáveis devem organizar-se e estruturar-se de forma a atender as necessidades dessas crianças. Afinal, somente a partir de um ambiente estável, saudável, marcado pela não violência e pelo respeito é que se pode garantir a possibilidade de um desenvolvimento psíquico saudável. Sendo assim, o papel dos profissionais que lidam diretamente com essas crianças é fundamental.
Metodologia
Escolhemos uma instituição que recebe crianças no período de zero a três anos. As crianças podem permanecer na instituição até a maioridade, mas o recebimento destas só pode se dar nesse período. "Minha Casa" é uma instituição filantrópica, sem fins lucrativos, que funciona associada a uma entidade religiosa, tendo como fonte de renda convênios mantidos com o governo, além de contar com a ajuda da comunidade local. A instituição é administrada por uma diretoria que coordena e supervisiona os trabalhos e atividades lá desenvolvidas. Todo o corpo da diretoria, desde o Presidente, Diretor Administrativo, Tesoureiro e demais cargos, atua como voluntário. Da mesma forma, médico, dentista, nutricionista, psicólogas, fonoaudióloga e fisioterapeuta também oferecem seus serviços voluntariamente. Essa instituição funciona de acordo com o modelo de casas-lares, dispondo de cinco casas que abrigam, em média, 14 crianças cada uma. Essas crianças são atendidas por um casal social e uma mãe social substituta, sendo que, em alguns casos, a casa pode ter somente a mãe social e a mãe social substituta.
A casa escolhida para a coleta de dados é conhecida como "Casa Branca" e, no início da coleta de dados, contava com uma mãe social, Rosa, de 43 anos, que trabalha no abrigo há dez anos. Atualmente, esta divide suas funções com Ana, que anteriormente era a folguista da instituição, ou seja, a pessoa que substituía as outras mães sociais em seus dias de folga. Ana trabalha na instituição há 11 anos e agora tem uma nova atribuição, sendo a mãe substituta da casa. No início da pesquisa, a Casa Branca contava com 12 crianças e 4 adolescentes, sendo um deles filho biológico de Rosa (mãe social da casa). Os nomes e idades de cada um são: Raquel (3 anos), Leandro (3 anos), Luís Paulo (3 anos), Valéria (2 anos), Andréa (2 anos), Estela (2 anos), Beatriz (1 ano), Júlia (1 ano), Cláudio (2 anos), José (7 meses), Fábio (3 anos), Tiago (11 meses), Brena (16 anos), Jamil (17 anos), Dário (13 anos), William (13 anos _ filho biológico de Rosa).
Ao avaliarmos os possíveis instrumentos para a coleta de dados, chegamos à conclusão de que a etnografia, na forma da observação participante, seria de grande valia para uma melhor compreensão do contexto da criança em situação de abrigamento, assim como das possíveis conseqüências provenientes da institucionalização. Haguette (2000) afirma que a etnologia busca descobrir os "métodos" usados pelas pessoas em sua vida cotidiana e em sociedade para que construam sua realidade social. Além disso, tal método busca também "descobrir a natureza da realidade que elas constroem" (p. 50). A autora menciona ainda que a etnometodologia não tem como objetivo a correção ou modificação do ambiente _ estes não são os objetivos destes estudos, assim como não o é a busca de teorização.
A análise dos dados obtidos, a partir da observação participante, foi feita com base na proposta de Minayo (1992), na qual a autora sugere que o pesquisador faça uma leitura exaustiva e repetida dos textos, estabelecendo uma relação interrogativa com esses exercícios que pode ser denominado de "leitura flutuante". Dessa forma, pode-se buscar relações dialéticas entre as categorias empíricas e as categorias analíticas. Em seguida, Minayo propõe que se faça uma leitura denominada de "transversal" (p. 236) de cada corpo de dados obtidos, para então fazer um recorte desses dados em "unidades de registro" (p. 236), sendo essas referenciadas por temas.
Discussão dos resultados
O grande número de crianças para apenas uma mãe social, associado a uma rotina marcada por horários a serem cumpridos, dificulta os momentos de interação entre adulto e criança, tornando-os praticamente inviáveis em função da brevidade do contato, que acaba ocorrendo de forma mecânica, sem tempo para trocas afetivas ou diálogos. Foi possível observar que, na tentativa de manter o controle e a organização, Rosa acaba limitando os movimentos das crianças, que precisam ficar a maior parte do tempo sentadas no sofá, assistindo televisão, enquanto aguardam a atividade seguinte. Tais características da realidade institucional serão descritas e analisadas a seguir.
Em coração de mãe social sempre cabe mais um?
Para iniciar uma discussão sobre as observações, é necessário refletir sobre o número de crianças que estavam sob os cuidados de uma mãe social. Rosa, a mãe social, era responsável pelo cuidado de 12 crianças, com idades variando entre sete meses e três anos de idade e mais quatro adolescentes, sendo um deles seu filho biológico. Este primeiro dado oferece material para que se possa pensar sobre as possibilidades de uma relação de qualidade entre adulto e criança em uma rotina na qual todos devem ser atendidos em suas necessidades básicas, como banho, higiene e alimentação.
Ao pensar sobre o número de crianças sob os cuidados de uma só pessoa, compreende-se a dificuldade da mãe social de estar atenta às necessidades e ao ritmo de cada criança, garantindo aquilo que Fleury (1998) denomina acompanhamento psíquico, caracterizado por cuidados atentos e que dêem segurança à criança. Para a autora, a possibilidade de garantir o cuidado adequado implica, por parte do adulto, uma atitude que não é da ordem do registro ou da estimulação, mas de uma escuta ativa e empática. Só assim o adulto poderá ter tempo para entrar no mundo da criança, "fazendo pausas, recebendo suas emoções, suas preocupações, suas questões, oferecendo em troca respostas coerentes, que estejam ao seu nível de compreensão, seja na forma de gestos, de atos ou palavras, proporcionando a segurança necessária para seu desenvolvimento" (p. 71).
Durante as observações, pudemos constatar que as crianças são atendidas em suas necessidades básicas e recebem um olhar vimentar, explorando o ambiente em seus momentos de vigília.
O respeito ao ritmo e necessidades individuais de cada um implica um olhar atento por parte do cuidador, o qual só pode ser garantido com o subsídio de muita reflexão, de treinamento e preparo. Outro fator, que contribui para dificultar o cuidado individualizado, é a própria rotina institucional que é marcada pelo grande número de crianças sob os cuidados de poucos, associada a um ritmo de atividades que visa a atender as necessidades da própria instituição, dificultando a possibilidade de se considerar cada criança individualmente.
Esperando
As observações da rotina deixam clara a dificuldade da mãe social em estar atenta às necessidades de cada criança. Os minutos iniciais da primeira etapa de observação retrataram uma situação que apareceu de forma recorrente ao longo de todo o trabalho de coleta de dados: ao entrar na casa, percebemos crianças de banho tomado, "prontas", sentadas lado a lado no sofá, à espera. Esta espera ocorria por razões diferentes, sempre ligadas à rotina institucional: espera da hora de ir para o refeitório almoçar, espera para ir para a quadra, espera para ir participar do evangelho.
O fato de estarem sempre prontas, arrumadas, esperando a hora de alguma atividade específica, impedia as crianças de se locomoverem pela sala, uma vez que se viam obrigadas atento de Rosa, quanto à limpeza, à higiene e aparência, uma vez que estão sempre limpas, penteadas e bem vestidas. No entanto, a possibilidade de garantir e manter esses cuidados ocorre às custas de banhos e trocas extremamente rápidos _ cuidados que denominamos "burocráticos" no início deste trabalho. Além disso, pode-se observar uma rigidez por parte da mãe social que, para garantir que as crianças permaneçam limpas e bem arrumadas, exige que elas permaneçam sentadas por longos períodos de tempo, sem poderem movimentar-se ou brincar, enquanto aguardam o horário de alguma atividade da rotina diária do abrigo.
Constata-se, assim, a existência de um paradoxo presente na relação mãe social/criança, com relação ao cuidado. Não se pode negar que as crianças recebem cuidados, pois estão sempre asseadas e apresentam boa aparência, no que se refere à limpeza e vestimenta. Ao mesmo tempo, a garantia de boa aparência e asseamento ocorre às custas de muita repressão para que não se movimentem e, conseqüentemente, se desarrumem, associada a cuidados rápidos, muitas vezes bruscos, que não levam em consideração o tempo e as necessidades de cada criança individualmente.
Tais constatações remetem-nos a Tardos (2001), que afirma que cuidar de um bebê envolve descobrir o ritmo e as necessidades individuais de cada um, organizando os cuidados em função desse ritmo, levando em consideração suas necessidades, além de organizar o espaço de atividade livre para que a criança possa se moa ficarem sentadas no sofá, aguardando o momento seguinte. Cada momento em que levantavam e começavam a se movimentar era seguido de uma repreensão da mãe social:
« Quem chamou? Podem voltar para onde estavam »; « Quem mandou vocês se levantarem do sofá? »; « Senta lá pra ver o dinossauro... »; « Pera aí! Podem voltar já pro sofá! »; « Olha o `conversê' aí na cozinha! »
Constata-se, assim, que as crianças ficam limitadas, sem espaço para poderem movimentar-se, brincar, divertir-se e gastar energia _ comportamentos típicos da fase em que se encontram. Ao mesmo tempo, é possível compreender a atitude da mãe social, que sem orientação no que se refere ao desenvolvimento de seu trabalho, presa às necessidades impostas pela rotina institucional, associada à necessidade de cuidar de muitas crianças, usa da repressão para poder manter a ordem e o controle.
Tais constatações remetem-nos a Guirado (1986), ao ressaltar que "as condições de infra-estrutura restringem-se à materialidade do limpar, organizar espaços físicos (onde as crianças comem ou tomam banho). A própria criança parece em dado momento se confundir com estas condições físicas que têm que ser `arrumadas', `preparadas' " (grifos da autora, p. 76).
Sousa (1984) afirma que as práticas institucionais deixam de ser meios, ou seja, uma forma de organização social necessária, para se imporem com um "sistema regulador acabado, que transforma os sujeitos em sujeitados" (p.16). O autor afirma ainda que se trata de uma opacidade criada pelas práticas institucionais, levando o sujeito a se perder no "labirinto de regras que lhe são impostas, de comportamentos que lhe são exigidos sem que seja visível que razão os demanda" (p.16). Como conseqüência, as instituições acabam se tornando "dispositivos privilegiados de criação de sujeição e reprodução dos sistemas de poder estabelecidos" (p. 16).
Nesse sentido, questionamos a possibilidade do abrigo exercer função reparadora em um contexto no qual acaba se "esquecendo" da criança, tratando-a como parte integrante de uma engrenagem que funciona em um ritmo próprio, sem considerá-la como o centro de seu funcionamento.
Não se pode desconsiderar, ademais, o fato de que essas crianças encontram-se à espera de algo ainda mais amplo e fundamental: seu futuro, suas possibilidades de sair da instituição, de retornar para as famílias de origem, de serem adotadas ou mesmo a possibilidade de permanecerem na instituição até completar 18 anos. Elas vivem, como afirma Eliacheff (1993), a incerteza cruel e devastadora para sua energia vital quanto ao seu estatuto, assim como em relação ao futuro que as espera. Ou seja, constata-se que o período em que se encontram institucionalizadas acaba reproduzindo aspectos de sua vida que são confusos, incertos e angustiantes. Essa condição tensa e permanente da espera se reproduz em momentos do cotidiano, como esperar para comer, esperar para brincar, esperar para tomar banho, esperar, esperar.
Breve contato e a dificuldade de se individualizarem os cuidados
Os momentos de cuidado individualizado foram observados em ocasiões diferentes, como horário do banho, alimentação e sono. Durante a observação do banho, a mãe social comentou que este tem que ser rápido, pois as crianças tomam mais de um banho por dia. A observação confirma o comentário de Rosa, pois o processo é realmente rápido, sem tempo para trocas afetivas ou diálogo, com exceção de Raquel, com quem a mãe social conversa e interage. As crianças ficam em fila, já sem roupa na porta do banheiro e Rosa chama uma por uma. Ao final, elas dirigem-se para o quarto, engatinhando, para não escorregar, e deitam na cama, uma ao lado da outra, aguardando a volta da mãe social para trocá-las. Ao escutar as crianças falando e brincando no quarto, Rosa as repreende, exigindo que parem de se agitar. A observação desse momento da rotina deixa clara a dificuldade da mãe social de interagir com as crianças que são muitas, além de existir um horário a ser cumprido.
O momento do banho é um dos poucos em que Rosa passa um tempo, sozinha com cada criança, e a observação mostra que, este que deveria ser um horário privilegiado, acaba ficando restrito ao procedimento em si, o qual cumpre sua função de higiene, sem muita interação ou diálogo. Constata-se, portanto, que a criança acaba ocupando uma posição passiva em relação ao adulto, ficando submissa a seus gestos e manipulações. Ao invés de convidativos, esses momentos tornam-se invasivos, impedindo a criança de participar ativamente dos cuidados que envolvem seu corpo e também seu psiquismo. Constata-se a dificuldade da mãe social em trabalhar para identificar e criar condições para a existência de um ambiente humano e material que sustentem as competências da criança, garantindo que esta seja sujeito participante e ativo de sua vida e de seu desenvolvimento, como propõe Vamos (2001).
A dificuldade de se atender a cada criança, de forma individual, se confirma no momento do almoço. Algumas crianças permanecem sentadas até a hora de receber comida, pois ainda não comem sozinhas. Observamos uma agitação ao serem obrigadas a permanecerem sentadas, olhando as outras crianças comerem. Elas demonstram inquietação, começando a se movimentar, sendo bruscamente reprimidas por Rosa, que grita e ordena que fiquem quietas. Assim, a refeição, que deveria ser calma e prazerosa, ou seja, um momento privilegiado de interação entre adulto e criança, já se inicia de forma tensa, tornando-se mais uma atividade "burocrática". Afinal, a refeição é oferecida para duas crianças ao mesmo tempo, com a mesma colher e em um só prato, de forma rápida, sem tempo para trocas de olhar ou diálogo.
Como afirma Appell (1986), a causa central das carências que sofrem as crianças que vivem em um meio coletivo, tem duas raízes fundamentais: o fracasso de seus pais _ causa originária do sofrimento _ além da falta de relações interpessoais ricas e estáveis com os adultos que delas se ocupam quando institucionalizadas. Pode-se, ainda, citar David (1972), ao afirmar que, dentre os principais fatores de carência detectada em abrigos, está a pobreza do contato entre adulto e criança, sendo esse extremamente rápido, a ponto de não permitir nenhum tipo de troca real. Para a autora, a brevidade do contato impede o adulto de observar e estar atento às novas aquisições da criança, não podendo acolher ou mesmo valorizá-las. David afirma, ainda, que é a partir do olhar do adulto _ olhar atento e preciso _, que a criança poderá sentir-se amada e, conseqüentemente, amar.
Finalmente, as observações deixam clara a dificuldade de Rosa em oferecer cuidados que Lebovici (1998) denomina "empáticos". O autor afirma que as pessoas responsáveis pelo cuidado dessas crianças não são mães, mas podem ser chamadas de "profissionais do cuidado" (p.105). Porém, apesar de não serem mães, podem desenvolver uma relação, realmente empática e fundamental, para o desenvolvimento da criança. Em uma relação desse tipo a criança sente a ajuda e os cuidados que recebe como úteis e construtivos.
Considerações finais
Observamos que a instituição tem dificuldade em acolher e oferecer cuidados de qualidade, na forma de relações afetivas estáveis e duradouras, como uma alternativa para as necessidades afetivas das crianças. Crianças em situação de abandono necessitam do estabelecimento de relações de apego estáveis e bem definidas, com um número mínimo de pessoas que as conheçam, e sejam capazes de atendê-las em suas necessidades individuais (David, 1998b; 2001; 2002; Golse, 2002). Só assim pode-se garantir o que Spitz (1948) denominou "terapia de substituição". Deve-se buscar uma alterna tiva à separação, uma vez que não se pode restituir a presença do objeto libidinal, ou seja, a mãe.
Apesar de ser fundamental levar em conta o fato de a mãe social, da casa observada, estar na instituição há muitos anos, a falta de formação e orientação direta de suas atividades provoca um atendimento marcado pela rapidez do contato, que desconsidera as manifestações e demandas individuais. Questões como a necessidade de manter-se em uma posição defensiva em relação às crianças, bem como o caráter estressante de seu trabalho, contribuem para a perpetuação das "pequenas violências" e para a reprodução da carência e da falta de qualidade nas relações afetivas (Appel, 1986; Vincze, 2002).
As observações da forma como Rosa se relaciona com as crianças evidenciam uma característica paradoxal de seu comportamento. Apesar de se atribuir à sua função, no que se refere à necessidade de se colocar como mãe das crianças, isso só ocorre com a relação emocional _ fato que pode ser extremamente prejudicial para as crianças e para ela própria. Os cuidados, no entanto, continuam precários, pois massificam, desconsideram e tratam as crianças como objetos e não como sujeitos ativos e participantes nos momentos em que têm seus corpos manipulados.
Finalmente, o que pudemos constatar é que o exercício da função de cuidar das crianças não tem uma perspectiva profissional porque a mãe social não recebe treinamento nem qualificação para tal. Se ela demonstra alguma habilidade é porque temfilhos biológicos e talvez por isso mesmo seja contratada. Por outro lado, a função de cuidado também não é percebida como função materna, porque a mãe social não se coloca como mãe, não se dispondo a privilegiar os contatos afetivos com as crianças. A mãe social é uma empregada da instituição e busca cumprir com suas obrigações como tal.
Nossa experiência nos tem mostrado essa realidade em várias observações em outras instituições com a organização de casas lares. Será possível que um investimento de qualificação de ordem técnica e pessoal venha a se constituir numa aproximação entre essas dimensões de cuidar como se fosse mãe e ao mesmo tempo ser uma profissional?
Nesse sentido, como afirma Pereira (2003), é somente a partir da capacitação profissional que as mães sociais poderão assumir posição de maior autonomia na educação da criança e do adolescente, sendo reconhecidas como figuras de referência, tanto para a criança, como com relação aos conhecimentos que têm sobre ela.
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Recebido em março/2005
Aceito em maio/2005
NOTA
1 Este artigo está baseado na Dissertação de Mestrado "A criança em situação de abrigamento: reparação ou re-abandono?", defendida em dezembro de 2004 perante o Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, realizada pela primeira autora sob a orientação da segunda.
I Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília. Professora do Curso de Psicologia da Universidade Paulista - UNIP/DF.
II Psicóloga, Terapeuta Familiar, Psicodramatista. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Docente Permanente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.