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Estilos da Clinica

 ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624

     

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

As relações entre o estádio do espelho e os transtornos psicomotores1

 

Relationships between the mirror phase and psychomotor disorders

 

Las relaciones entre el estadio del espejo y los transtornos psicomotores

 

 

Luís Fer nando Bar netche Barth*

Serviço da Atenção à Criança, Adolescente e Família de Cachoeirinha, RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente artigo, o autor busca estudar as relações entre o conceito psicanalítico de estádio do espelho e o aparecimento de transtornos psicomotores em crianças. O trabalho parte do desenvolvimento motor, tal qual é classicamente concebido pela biologia, até propor uma metapsicologia do desenvolvimento. Esta pesquisa é baseada no tratamento psicanalítico de uma criança portadora de Transtorno Específico do Desenvolvimento da Função Motora, servindo de elemento à construção metapsicológica de caso como forma de apresentação dos achados de uma pesquisa psicanal ítica.

Palavras-chave: Estádio do espelho, Transtorno psicomotor, Metapsicologia do desenvolvimento, Transtorno específico do desenvolvimento da função motora, Construção de caso.


ABSTRACT

In the following article the author seeks to study the relationships between the psychoanalytical concept of the mirror stage and the emergence of psychomotor disorders in children. The essay starts by considering motor development as it is traditionally understood by Biology and it ends by proposing a metapsychology of development. The research is based on the psychoanalytical treatment of a child with a diagnosis of Specific Developmental Disorder of the Motor Function, and it served as an element for the metapsychological construction of the case and for the presentation of the findings of a psychoanalytical research.

Keywords: Mirror stage, Psychomotor disorder, Metapsychology of development, Specific developmental disorder of the motor function, Metapsychological case construction.


RESUMEN

En el presente artículo el autor intenta estudiar las relaciones entre el concepto psicoanalítico del estadio del espejo y la aparición de trastornos psicomotores en los niños. El trabajo parte del desarrollo motriz, tal como es tradicionalmente definido por la biología hasta proponer una metapsicología del desarrollo. Esta investigación está basada en el tratamiento psicoanalítico de un niño portador del Trastorno Específico de la Función Motora, y sirve de elemento para la construcción metapsicol ógica del caso como modo de presentación de los descubrimientos de una investigaci ón psicoanalítica.

Palabras clave: Estadio del espejo, Trastorno psicomotor, Metapsicología del desarrollo, Construcción metapsicologica del caso.


 

 

A clínica psicanalítica, ao ser estendida às crianças, passou a aliar pesquisa e prática clínicas a solução e teorização das questões psíquicas infantis, bem como ao subsídio à investigação dos transtornos do desenvolvimento. Por essa razão, os transtornos psicomotores têm gerado questionamentos e interesse tanto dos profissionais da área instrumental quanto dos da área estrutural. Entre os fenômenos relativos ao desenvolvimento infantil, a aquisição pósturo- motora e suas vicissitudes podem ser examinadas concomitantemente ao estabelecimento do sujeito psíquico na criança, mostrando a fundamental importância da constituição psíquica como substrato das funções orgânicas.

Se comparado a outras espécies animais, o ser humano encontra-se, ao nascer, em um estágio de imaturidade neurológica. Tal imaturidade, que é espec ífica do homem, é fruto de uma não absoluta mielinização dos axônios, quando do nascimento. Todavia, a matura ção insuficiente não é responsável por todo o atraso do desenvolvimento psicomotor, uma vez que a experiência parece desempenhar um papel decisivo na aquisição da função motora. Os centros nervosos estão em funcionamento mesmo antes dos órgãos sensoriais correspondentes, levando a acreditar que a mielinização favoreça a condução dos estímulos nervosos.

Assim, Levin (1995) afirma que “a criança ao nascer tem a maioria das vias aferentes mielinizadas, o que ainda não está mielinizada é a possibilidade de resposta. A criança tem inervações sensoperceptivas, o que não consegue é associar. O que não está mielinizado são as áreas de associação, portanto não pode coordenar, nem integrar a resposta corporal. Como consegue, então, superar esta insuficiência corporal própria da espécie? O problema apresenta- se na defasagem entre o que a criança recebe ao nascer (vias aferentes) e o que tem que responder (vias eferentes), por isso depende dos olhos e do toque do Outro para organizar sua resposta ” (p.53).

O desenvolvimento motor da criança inicia-se pelas funções elementares e reflexas, desenvolvendo, posteriormente, funções complexas e voluntárias. Tal desenvolvimento é determinado por duas leis que estabelecem uma seqüência no aparecimento das aquisi ções motoras. A primeira delas, chamada lei do desenvolvimento céfalo-caudal, define que o desenvolvimento motor se dá de forma decrescente, desde a cabeça até os membros inferiores. A segunda lei, chamada próximo-distal, estabelece o desenvolvimento da motricidade do eixo do corpo às extremidades dos membros (Guillarme, 1983).

Classicamente, os transtornos psicomotores abarcam uma série grande e variada de problemas, embora este artigo se debruce apenas sobre as dispraxias, que são dificuldades na execução de movimentos voluntários coordenados, e que ganham de Bergès (1988) a seguinte definição: “Existem transtornos psicomotores constantes. Eles são principalmente de dois tipos: um, onde as perturbações motoras são muito prevalentes e caricaturais; nestas crianças o exame neurológico permite evidenciar seqüelas discretas mas indiscutíveis de prejuízo neurológico. Outro, ao contrário, no qual o exame neurológico é totalmente negativo. As dificuldades parecem ser mais psicomotoras, ligadas, particularmente, às perturbações do esquema corporal”(p. 124 [itálico nosso]).

Esses transtornos do desenvolvimento motor são conhecidos por todos aqueles que trabalham com crianças, haja vista a atenção dada a esses problemas nas diferentes classificações que se ocupam da psicopatologia infantil. A Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 descreve o Transtorno Específico do Desenvolvimento da Função Motora (F 82), o qual já foi chamado de Síndrome da Criança Desajeitada, resguardando as descri ções feitas pelos psicomotricistas mais experientes.

O conceito de esquema corporal foi estabelecido em 1911, por Henry Head, emprestando à psicomotricidade um dos seus mais importantes marcos referenciais. Em contrapartida, L’Hermitte propõe o conceito de uma imagem corporal que, em 1935, ganha de Schilder uma noção mais abrangente que a neuropsicológica, acrescentando os aspectos mental e social (Le Boulch, 1982, 1987).

A partir da psicanálise, esses conceitos ganharam definições diferentes e bem delimitadas, ao levarem em consideração os processos de simbolização como a articulação fundamental que separa a psicanálise dos demais campos. Assim, Yáñez (1995) concebe o esquema corporal como o conhecimento que as pessoas têm de seus próprios corpos, e que vai se modificando com o passar do tempo a partir das transformações corporais próprias do crescimento. A imagem corporal, segundo a mesma autora, é estabelecida a partir da história individual e nas relações sociais com os outros, sendo determinada pelo toque corporal, pelas manipulações de cuidado materno e pelas palavras, que operam nela constantes modificações.

Dolto (2002) afirma que o esquema corporal tem como função ser o intérprete da imagem corporal. O esquema corporal não varia, em princípio, entre os indivíduos, mas a imagem corporal é peculiar a cada um: ela é a síntese das experiências vividas, as quais são marcadas pelas relações libidinais linguageiras com os outros. A imagem corporal pode ser entendida como a “encarnação simb ólica inconsciente do sujeito desejante” (Dolto, 2002, p.14). O que resulta daí é que o esquema corporal é consciente, mas tamb ém pré-consciente e inconsciente, enquanto a imagem corporal é eminentemente inconsciente. A imagem corporal é estruturante para a identidade do sujeito, de modo que sem imagem corporal não há possibilidade de o sujeito compreender o esquema corporal, visto que ela é a singularização do esquema corporal e revela-se por meio dele.

A psicanálise mostra que a ordem cronológica está sujeita a mudanças que agem retroativamente sob a ascendência do registro simbólico. Lacan (1986) afirma que “o desenvolvimento só ocorre na medida em que o sujeito se integra ao sistema simbólico” (p.104), sendo atravessado pela linguagem. Por isso, é necessário que o bebê procure por significantes capazes de representá-lo, uma vez que seu nome e sobrenome, marcas indispensáveis para sua inclusão no mundo e na cultura, não são suficientes para tal.

Não se pode dizer a priori como uma criança estruturar-se-á e, menos ainda, como articulará o seu fantasma. As funções significantes não são causa, mas condições para o aparecimento do sujeito. Ao contrário do que os primeiros psicanalistas costumavam concluir, o recém-nascido não é passivo diante do mundo que aos poucos se descortina para ele. Esse momento inicial coincide com a fase auto-erótica descrita por Freud (1905/1972) como sendo o investimento pulsional sobre o próprio corpo da criança, associando-se as satisfa ções das zonas erógenas às necessidades de nutrição. A essa fase anobjetal, integrante do narcisismo primário, segue-se o narcisismo secundário. O narcisismo primário pode ser entendido como o período vivido pelo homem, que vai desde as primeiras tentativas de obtenção de satisfa ção sem o concurso da necessidade orgânica até a identificação com sua imagem unificada no estádio do espelho; e o narcisismo secundário, como o investimento em objetos exteriores a ele. No narcisismo prim ário, o modo de satisfação da libido é o auto-erotismo. Como o eu ainda não está constituído, são as próprias partes do corpo os objetos investidos pelas pulsões. Freud (1914/ 1974) também enfatiza a posição dos pais na constituição do narcisismo primário. Para o autor, a atitude afetuosa dispensada pelos pais aos filhos corresponde à revivescência do narcisismo abandonado pelos pais. O narcisismo secundário será formado pelo retorno do investimento libidinal dos objetos para a imagem do eu, a qual é constituída pelas identifica ções do eu com as imagens dos objetos.

O desenvolvimento das fantasias inicia-se muito precocemente na vida da criança. A base para um adequado investimento libininal do corpo e do aparelho genital, precondições para a vida erótica adulta, dependem da qualidade da relação estabelecida entre a criança e sua mãe. McDougall (1991) reporta-se às pesquisas de Spitz e seus colaboradores quanto às ligações entre a masturbação e as primeiras relações objetais na criança. A autora destaca dessas pesquisas três formas de auto-erotismo encontradas no primeiro ano de vida da criança: o balançar rítmico do corpo, os jogos fecais e a manipula ção genital.

Segundo McDougall (1991), os pesquisadores observaram que a totalidade das crianças cuidadas por mães que estabeleceram boas relações mãe-bebê elaborou atividades autoer óticas do tipo manipulações genitais espontâneas e constantes; que metade das crianças expostas a uma relação instável com suas mães apresentou ausência de atividades e metade apresentou balanceamento do corpo e jogos fecais e; as crianças bem cuidadas, mas privadas de qualquer relação afetiva, não organizaram atividades auto-eróticas.

Em relação aos resultados, McDougall (1991) diz que os achados dessa pesquisa contradizem a tese freudiana de que a iniciação da criança em atividades auto-eróticas é dependente dos cuidados corporais a elas dispensados. As conclusões de Spitz, segundo a autora, são de que as atividades eróticas das crianças no primeiro ano de vida dependem da qualidade das relações objetais. Quando uma mãe estabelece uma relação estável com seu bebê, a criança desenvolve um auto-erotismo de natureza genital, o qual servirá de base a sua vida fantasmática.

Outra maneira de observarmos a metapsicologia do desenvolvimento da criança é a partir de suas aquisições simbólicas. Rodulfo (1990) prop õe tomar o brincar infantil como uma atividade intensa com o objetivo de conceder à criança a capacidade de simbolização. Portanto, no brincar está refletido o lugar no qual o sujeito se situa no mundo, incluindo- se aí as perturbações psicopatol ógicas.

Assim, tão logo se coloca em contato com a mãe, vê-se que a crian ça vai apresentando reações que configuram uma verdadeira atividade extrativa (Rodulfo, 1990, p.55). O corpo do Outro se oferece como um território a ser explorado por suas vacilantes mãos em busca de significantes, já que o mito familiar acha-se enquistado no corpo materno, onde a ordem discursiva familiar se reflete nas carícias, na música, no calor e na aproximação/distanciamento. Os comportamentos do bebê de colocar o dedo na boca e ouvidos da mãe, puxar os cabelos e objetos como correntes e brincos buscam furar esse corpo materno, do qual ele retira os primeiros significantes necessários a sua representação. O trabalho de esburacar o corpo do Outro dá a possibilidade de a criança também ir incorporando buracos que passam a funcionar como zonas erógenas e, mais ainda, buracos que funcionem como portas, dotando o sujeito de uma defesa do gozo do Outro. Concomitante a isso, a criança busca fabricar uma superfície. De início, as roupas e mesmo o espaço físico integram a superfície corporal precariamente diferenciada. O espalhar alimento sobre a mesa e o lambuzarse, somados às experiências de rotina (a regularidade dos cuidados ao bebê), conferem à criança a descoberta da superfície como logicamente anterior à compreensão das opera ções dentro/fora.

O segundo aspecto do brincar infantil é o estabelecimento de jogos que expressam a relação continente/ conteúdo, dependentes de um momento anterior de fusão com o corpo materno (Rodulfo, 1990). Jogos repetitivos de inclusão de objetos em outros objetos caracterizam esse momento do desenvolvimento. Cabe lembrar que a relação entre o continente e o conteúdo é de absoluta reversibilidade, ou seja, o objeto maior que serve de continente pode, em seguida, ser tomado como conte údo. A segunda função do brincar acarreta a formação de um tubo que permitirá relações entre continente e conteúdo, ainda sem a concepção de interno/externo. A figura topológica do tubo permite os brinquedos de borda, o que é fundamental para a organização dos circuitos pulsionais.

A partir de então, segundo Rodulfo (1990), surge a terceira variação do brincar infantil: o jogo de esconde- esconde. Essa modalidade foi considerada por muito tempo a primeira demonstração do brincar infantil, por envolver uma franca express ão de gozo e pela busca reitera da e deliberada desses momentos. O deixar cair objetos e o cobrirse são variações da mesma operação simbólica, determinando o desmame da criança em um âmbito que transcende a oralidade. Metapsicologicamente é a diferenciação eu/não-eu que está em curso, permitindo que a criança se deixe levar por esses jogos sem ser tomada pela angústia.

Com o advento da linguagem, é o não que passa a ter a primazia na constituição lúdica da criança. Somando-se a ele uma maior destreza motora refletida na deambulação, o brinquedo de fechar portas prenuncia o desaparecimento do Outro e o controle sobre o seu distanciamento, abandonando o corpo dos que a cercam.

Os jogos de presença/ausência dão à criança a possibilidade de organizar o fort-da (Freud, 1920/1976), permitindo o domínio simbólico do objeto perdido e a satisfação pulsional inerente. A criança deixa de ser objeto passivo dos cuidados maternos para se fazer ativo, sujeito de demanda, coincidindo com a capacidade de criar imagos que permitam distanciar-se do Outro e suportar uma espera. A concepção de objetos propicia, através da simbolização, a proteção à criança do transbordamento pulsional de seu corpo.

Complementando a idéia de um corpo que transcende o biol ógico e faz os seres humanos irremediavelmente diferentes das demais espécies, tem-se o conceito de estádio do espelho, que a psicanálise lacaniana elaborou para explicar o narcisismo primário, a constituição do eu e as identificações secundárias. A partir de várias influências, Lacan (1998) define o estádio do espelho como “um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental” (p.100.).

Wallon (1971) foi um dos primeiros estudiosos a se interessar pelas reações tanto das crianças quanto dos animais frente as suas imagens refletidas no espelho, servindo, mais tarde, de ponto de partida para as teorizações lacanianas. Quanto a esse tema, Wallon assevera que “o conhecimento adquirido pela criança de sua imagem ao espelho é, sem dúvida, um processo mais ou menos episódico entre os que lhe servem para fazê-la entrar, gradualmente, tanto a si mesma quanto a seus elementos mais imediatos, no número das pessoas e das coisas cujos traços e identidade soube fixar progressivamente, de modo a finalmente apreender-se como corpo entre outros corpos, como um ser entre outros seres. É através de mil pontos de referência, utilizando analogias e assimilação com o que já sabe perceber e representar distintamente, que a criança chega a individualizar e a discernir os diferentes aspectos sob os quais lhe é permitido adquirir uma representação de si mesma. Consiste, pois, todo este trabalho, em proporcionar-se imagens próprias e análogas às que pode formar no exterior de si mesma e, aliás, impossíveis de serem formadas de outra maneira” (p. 196-197).

Para Dor (1991), a experiência da criança frente ao espelho passa necessariamente por três tempos fundamentais até a aquisição da imagem de seu corpo. Como primeiro tempo, o autor situa a percepção, pela criança, da imagem refletida como se fosse um outro ser real. Nessa etapa, a criança não faz diferenciação entre si e o outro, buscando aproximar-se de sua imagem. No segundo momento do estádio do espelho, a crian ça assujeita-se ao Imaginário por compreender que a imagem devolvida pelo espelho não é um outro real, mas uma imagem. Agora, a criança, além de não querer mais se aproximar da imagem refletida, é capaz de fazer a distinção entre a imagem do outro e o outro real. O terceiro tempo, dialetização dos anteriores, é o encontro da criança com sua imagem. É no reconhecimento de sua imagem que a criança cria uma totalidade unificada do corpo, realizando, assim, sua identificação primordial.

Embora já estivesse presente no texto de Wallon (1971), a necessidade de a criança ser apresentada ao espelho por um adulto que a segura no colo e ao mesmo tempo diz o nome da criança não foi evidenciada por Lacan. Assim, o encontro da criança com sua imagem também pode ser apresentado esquematicamente, conforme Levin (2001): no primeiro momento, a mãe e o bebê, juntos, olham o seu reflexo no espelho; no segundo momento, o bebê gira buscando a mãe que o segura e escuta o seu nome dito por ela, nomeando sua imagem refletida; no terceiro e último momento, dá-se o encontro do olhar da criança com sua imagem já nomeada pela mãe.

Quinet (2002) lembra que, na jubilação frente ao espelho, a criança encobre sua falta constitutiva com uma imagem completa. A consistência do registro Imaginário vela a falta; falta esta que é o efeito do Simb ólico sobre o Real. Se no registro do Real não há falta, o Imaginário encobre a falta que o Simbólico instaura pela castração, fazendo o sujeito jubilar diante da idéia (imagem) de ser completo. Seguindo no mesmo sentido, Nasio (1992) chama atenção para a existência do furo na imagem do espelho, ou seja, a criança pode ver sua imagem no espelho, mas não o seu olhar, na medida em que o olhar em si não é especularizável. Isso também se dá nas relações que se estabelecem com os outros, pois a imagem enviada pelo outro não é completa, e o furo é uma das condições da instauração dos circuitos pulsionais. Nessa perspectiva, a mãe mostra-se furada para a criança, ou seja, mostra-se não detentora de uma imagem absoluta, fruto de sua dimens ão pulsional.

Françoise Dolto faz três objeções à formulação lacaniana (Dolto & Nasio, 1991): a primeira refere-se à superfície do espelho, que, para a autora, é uma superfície psíquica onirefletora, ajudando na assunção de uma imagem inconsciente da criança; a segunda, ao contrário de ser uma experiência inaugural e primeira, o espelho de Dolto confirma uma individualiza ção narcísica já iniciada desde o narcisismo fundamental; a última diferença é a modificação da reação da criança frente a sua imagem que, antes de ser um momento de jubilação, é, para Dolto, a prova dolorosa de uma castração. Portanto, a visão que a criança tem de sua imagem refletida no espelho rompe com a idéia que fazia de si mesma, trazendo conflito entre a realidade da imagem visual percebida e a realidade da imagem corporal já formada. A partir desse momento, ocorre o recalcamento de sua imagem, que passa a ser definitivamente imagem inconsciente do corpo.

As relações dessa fase com as aquisições pósturo-motoras são definidas como segue: “Vocês sabem que o processo de maturação fisiológica permite ao sujeito, num dado momento de sua história, integrar efetivamente suas funções motoras, e aceder a um domínio real do seu corpo. Só que, é antes desse momento, embora de maneira correlativa, que o sujeito toma consciência do seu corpo como totalidade. É sobre isso que insisto na minha teoria do estádio do espelho a só vista da forma total do corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário do seu corpo, prematuro em relação ao domínio real. Essa formação é destacada do processo mesmo da maturação e não se confunde com ele. O sujeito antecipa-se ao acabamento do domínio psicol ógico, e essa antecipação dará seu estilo a todo exercício posterior do domínio motor efetivo” (Lacan, 1986, p.96 [itálico nosso]).

As relações entre psicomotricidade e o estádio do espelho foram estudadas, primeiramente, nos casos em que os transtornos motores impedem o estabelecimento do estádio do espelho. É nas crianças portadoras de malformações e síndromes genéticas que se observam freqüentemente dificuldades oriundas da impossibilidade de a mãe servir de espelho à criança e, deste modo, darlhe o seu olhar. Levin (1995) é bastante enfático ao atribuir à torpeza a causa das dificuldades do processo de simbolização nas crianças dispráxicas.

Bergès e Balbo (1997) indicam que os movimentos motores descoordenados não fazem parte da cena do espelho, pois não são especulariz áveis, ou seja, só é possível a coordena ção dos movimentos na medida em que a criança não os enxerga, indicando o estatuto simbólico que subjaz à motricidade. Bergès e Balbo mostram como a organização do espelho inicia-se precocemente: “No espelho, a motricidade está, normalmente, fora do enquadramento, mas o que nela é visto do ouvido, isto é, é a motricidade da boca da mãe motricidade que é encontrada nas imitações precocíssimas é visto particularmente porque a mãe dá mais sua boca que se move para seu filho comer, do que o alimento que ela lhe apresenta diretamente na boca... Esta motricidade da boca da mãe faz parte do espelho; e o que é visto no espelho é o a posteriori dessa motricidade: neste sentido, o espelho antecipa o ato de palavra, antecipação que cria a jubilação” (1997, p.86).

Portanto, pode-se considerar o estádio do espelho uma Nachtr äglichkeit (après-coup) do espelho oferecido pelo contato materno, dado pelos jogos posturais da criança frente ao espelho. É no contato de partes do corpo com a superfície do espelho (mãos, boca, língua, etc.) que a acriança aproxima-se de sua imagem em movimento; imagem da qual a criança aos poucos se apropria.

Levin (2001) acrescenta uma nova explicação para os transtornos psicomotores, além das citadas anteriormente. Diz Levin que “se uma criança tão pequena tem transtornos psicomotores, isto pode decorrer do fato de ter nascido com transtornos metabólicos, neurológicos ou genéticos, ou seja, problemas no desenvolvimento neuromotor, ou na inscrição, ligação e incorporação do universo simbólico” (p.167 [itálico nosso]).

Tomar o transtorno motor como decorrência da deficiente instauração do simbólico na criança é uma posição já defendida por Bergès e Balbo (1997). Os autores compreendem a psicomotricidade em sua face simbólica, na medida em que, ao jubilar frente ao espelho, a criança não vê os movimentos descoordenados serem refletidos. A dimensão simbólica está justamente em a criança não ver sua atividade, enquanto a motricidade serve de enquadramento ao espelho por não ser especularizável. Bergès e Balbo indicam que o Simbólico (por não ser da ordem da imagem, mas da ordem significante) decorre da qualidade do suporte da inscrição significante. É por isso que os autores creditam as perturbações do projeto motor à falência das inscrições simbólicas.

Uma frágil inscrição significante traz como conseqüência o não afastamento entre a função e o funcionamento corporais, o que compromete a instauração dos circuitos pulsionais. Para Bergès e Balbo (1997), o funcionamento cria as pulsões e seus objetos pelo afastamento das funções provocado pelas inscrições significantes.

Nasio (1992) afirma que há uma série de significantes privilegiados que inscrevem o desejo do outro para cada sujeito, revelados pela relação imaginária com o semelhante. A inscrição significante, para Bergès e Balbo (1997), é dependente da escolha das diferenças fonéticas percebidas e registradas pela criança. Quando a mãe fala com a criança, sua palavra serve de vetor aos significantes, ao mesmo tempo em que a mãe coloca-se no lugar de Outro para a criança.

As trocas significantes entre a mãe e o seu bebê só são possíveis se a criança se identificar com o que falta à mãe, ou seja, o falo. Embora as relações mãe-filho não pareçam ser mediatizadas, a própria condição do objeto fálico mostra o caráter imaginário dessa acepção. Como reitera Dor (1991), o pai é o elemento que frustra qualquer tendência fusional entre a mãe e o seu bebê, ditando a lei que possibilitará à criança colocar o pai na condição de depositário do falo, privando a mãe de seu objeto. O surgimento do pai, como uma verdadeira função paterna, faz com que a criança se confronte com a castração e perceba o pai como depositário do objeto de desejo da mãe, elevando-o à condição de pai simbólico. Esse momento do desenvolvimento infantil atesta a mudança do registro do ser para o do ter o falo. No final do complexo de Édipo, a mãe deixa de ser o alvo da rivalidade fálica, trazendo duas possibilidades de resolução: o menino renuncia a ser o falo materno e identifica- se com o pai, suposto detentor do falo; e a menina também deixa de ser o falo materno, identificando-se com a mãe, que não o tem, no mesmo movimento em que busca o falo junto ao pai.

Jerusalinsky (1984) afirma que, formalmente, a única função propriamente dita é a do pai, já que será a partir do simbólico a única possibilidade de articulação do sujeito. Todavia, a prematuridade do bebê humano torna-o dependente da presença real de um agente materno, o qual criará um espaço virtual em que o bebê possa se imaginarizar. Podemos falar em uma função materna, na medida em que a mãe esteja referida ao Simbólico, o que quer dizer que esteja referida à função paterna e constitua-se em nome dele, ocupando o lugar de agente intermediador do Simbólico para o infans.

A partir dessa concepção, Levin (1995) entende o transtorno psicomotor como uma decorrência da insuficiente introdução do pai, o qual não faz corte entre a mãe e seu filho. Como conseqüência, tem-se que a criança, cujo torpor impede a execução precisa dos movimentos, acaba por apoiar seu esquema corporal nesse entorpercimento e não na imagem corporal, que é o seu correspondente simbólico, dificultando sua afirmação como sujeito. A falta de apropriação do corpo pela criança com transtorno psicomotor é fruto da sua não separação do corpo do Outro (a mãe), ficando sujeita a uma união gozosa com o Outro, na qual os transtornos psicomotores são dados a ver, erotizando a função motora. O transtorno psicomotor é, então, uma resolução em falso da separa ção da criança com sua mãe, que a mantém unida ao seu filho pelo olhar.

 

O Caso Laís

A presente construção metapsicol ógica de caso nasceu do trabalho analítico com crianças portadoras de transtornos psicomotores e, especialmente, do tratamento de uma menina a quem chamarei de Laís, entre dois anos e onze meses e quatro anos e sete meses de idade, em uma clínica de atendimento público. Cabe ressaltar que a construção metapsicológica de caso é um amálgama ficcional de tratamentos psicanalíticos, no qual a escanção significante é a marca do texto metapsicológico.

A história do tratamento de Laís iniciou de forma típica para uma crian ça com atraso no desenvolvimento, ou seja, ela foi levada a um neurologista pelo atraso na aquisição da marcha quando contava um ano e meio de idade, e logo foi encaminhada para um atendimento de estimula ção precoce (E.P.). Os exames a que foi submetida não evidenciaram altera ções significativas, e a hipótese inicial de uma possível paralisia cerebral não foi confirmada. Transtornos da praxia, na ausência de um correspondente dano neurológico, ganham o diagnóstico de Transtorno Específico do Desenvolvimento da Função Motora (F 82), conforme a Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10.

A paciente recebeu atendimento em E.P. de uma terapeuta ocupacional durante um ano até ser encaminhada para um tratamento psicanalítico. Na ocasião, deambulava com dificuldade. Como lhe faltava o equil íbrio, preferia engatinhar, e emitia alguns sons com sentido como: “mã”, para mãe, e “vá”, para vai.

Laís nasceu de uma gravidez não planejada, pois o casal já contava com uma menina de sete anos e um menino de três. Sua mãe chorava muito e pensou em abortar, pois não queira ter mais filhos, e só passou a aceitar o nascituro quando soube que esperava uma menina, julgando ser mais fácil de cuidar. Aos três meses de idade, Laís viajou com sua família a fim de ser apresentada para a avó materna e para os demais parentes. Laís não chorou durante os três dias de visita, levantando suspeitas de que fosse muda (quando o fato mais comum é que a criança não chore por ser surda e não muda). À época, Laís chorava pouco e era necessário que sua mãe oferecesse alimentos, pois não parecia sentir fome.

A paciente contava com três anos e um mês quando aconteceu o que pode ser chamado de primeiro espelho. Como a menina parecia não perceber os espelhos (em número de dois) na sala de atendimentos, e como eu estava interessado em verificar a sua reação frente a eles, propus a seguinte situação. Curvando-me um pouco para frente, olhei Laís pelo espelho, falei com ela; disse o seu nome. Isso a entreteve durante algum tempo. Ela não quis realizar outra atividade e evitou aproximar-se de mim. Percebendo seu estado de ang ústia, anunciei a abertura da porta e o término da sessão. Ao sair, Laís pediu colo a sua mãe. Tal comportamento nunca fora observado anteriormente.

A primeira experiência com esse objeto causou uma reação de estranhamento na menina, ao ver nossas imagens duplicadas em uma virtualidade para a qual ela não dispunha de ferramentas para compreender. Nesse sentido, como marco fundamental da inteligência, a experiência com o espelho deveria ser acompanhada da expressão de espanto, ao mesmo tempo em que a criança percebesse o funcionamento da virtualidade em jogo. Esse momento fundante, na qualidade de um Aha-Erlebnis, ou seja, a admiração acompanhada de uma rápida compreensão de algo a partir de determinada vivência, não é ao que Laís acedeu no seu primeiro encontro com o espelho.

A reação ao espelho pôde ser confirmada, na sessão seguinte, pelos seguintes comportamentos de Laís: busca do colo materno, evitação a entrar na sala sem a presença da mãe, uso do bico durante a sess ão e o fato de esconder-se debaixo da escrivaninha, reiterando as afirmações teóricas de Dolto de que a experi ência do espelho nem sempre faz surgir na criança o comportamento de jubilação (Dolto & Nasio, 1991). Laís mostrou de forma inequívoca que o espelho pode não ser um momento de chegada, de encontro com uma imagem já intuída (Nachträglichkeit), mas o momento de corte em uma situação psíquica de indiferencia ção entre a mãe e a criança. Assim, o encontro com sua própria imagem refletida no espelho plano mostra-se claramente dependente da identificação com uma imagem.

Depois dessa sessão, devido às resistências de Laís, mantive a porta da sala aberta durante o atendimento. Enquanto jogávamos, ocorreu de um outro paciente de dois anos de idade aproximar-se da sala junto com sua terapeuta ocupacional (T. O.). Autorizado em sua intenção de entrar, o menino engatinhou em nossa direção, sentando-se junto de nós. Laís pegou brinquedos para ele, mas o menino buscava contato comigo. O jogo se repetiu até que o paciente foi convidado por sua T. O. a se retirar da sala. A paciente seguiu o menino até a sala de espera, reencontrando sua mãe e negando-se a retornar à sala. Mais uma vez, Laís evitaria entrar sozinha comigo ao atendimento na sessão seguinte.

A pequena Laís, ainda impactada pela propriedade reflexiva da superf ície polida, viu a cena terapêutica desdobrar-se quando da entrada do menino e de sua T. O. Laís e o menino, a T. O. e eu formamos uma cena que produz um distanciamento, pelo inusitado da situação, na relação mãe-filho vivida pela paciente. Nessa fase, ainda não havia a identificação da paciente com sua imagem refletida no espelho, a qual era percebida por ela como um outro real (primeiro tempo fundamental do estádio do espelho). A descoberta do outro trouxe expressões de agressividade relatadas por sua mãe.

A partir desse momento, o espelho passou a ter lugar especial nas sessões, sendo colocado junto à caixa de brinquedos. Laís já não estranhava mais o espelho e, aos poucos, passou a observar os movimentos produzidos por ela e devolvidos pela superfície plana. Nossos olhares se cruzavam ora diretamente ora atrav és do espelho, fazendo desdobrar virtualmente o espaço.

O brinquedo organizado por Laís tinha uma expressão muito rudimentar, preferindo os jogos de continente/conteúdo, que são prévios à construção da dimensão dentro/fora. Aos poucos, Laís propôs um brinquedo de borda, ao colocar uma boneca na beira da caixa de brinquedos, deixando-a cair. O brinquedo de borda refere-se à constituição topológica de um tubo, ordenador dos circuitos pulsionais. Em vários momentos, Laís chupava a haste central de um joão-bobo, cujo corpo era formado por argolas de diferentes tamanhos, enquanto observava sua imagem no espelho. Essa haste central não era apenas a peça de sustentação do corpo fragmentado do joão-bobo, mas o objeto criado pela instauração da transferência. Naquele momento, Laís era somente a boca com a qual se ligava ao mundo. O comportamento de chupar a haste frente ao espelho reassegurava uma organização corporal primitiva, pela alucinação de um objeto pulsional. O joão-bobo surgiu como um significante capaz de representar Laís em todas as circunst âncias, como se fosse um significante amalgamado em uma imagem, sem hiato, sem possibilidade de deslizamento.

Quando passei a atender Laís, guiei-me pela ficha de identifica ção já preenchida anteriormente pela colega terapeuta ocupacional. Ao longo do tratamento, percebi com surpresa que em seu nome, inscrito em sua ficha de identificação, não constava o sobrenome paterno. O ato falho de minha colega, redobrado por meu esquecimento (também uma formação inconsciente) denunciava a fragilidade da entrada do pai na vida de Laís, se levarmos em conta que éramos muito cuidadosos no levantamento dos dados de identificação. Outro dado que vem reforçar essa hipótese é o fato de Laís chamar todas as pessoas que cuidavam dela de “mãe”. O fato aponta justamente para o fracasso das inscrições simbólicas, na medida em que o patronímico marca a presença de um terceiro, fazendo de seu nascimento algo diferente de uma partenog ênese psíquica, marcando a relação mãe-filho com um elemento exterior o pai.

Laís estava com três anos e quatro meses quando um novo brinquedo foi introduzido na sala de atendimento – tratava-se de uma sala de uso compartilhado entre vários profissionais. A novidade, uma grande bola de plástico azul, foi ignorada por Laís apesar de sentarmos próximos do objeto. O interessante aqui é observar como a percepção dos objetos não é dada a priori e, ainda que se tratasse de um objeto de grande tamanho, a percepção dependeu de uma indicação feita à paciente.

Na sessão seguinte, ao entrar na sala de atendimento, Laís ignorou novamente a bola azul, ainda que esta estivesse junto à caixa de brinquedos. A menina se olhou no espelho enquanto brincava com os objetos de costume. Aos poucos, inclinei-me indicando a bola com o meu olhar, mas pareceu que ela se detinha no ventilador que estava ligado sobre a mesa.

Pela primeira vez no tratamento, Laís estabeleceu o jogo de embalar uma boneca, batendo nas suas costas ao mesmo tempo em que dizia “Ah, ah, ah”, como fazem as mães ao ninarem seus filhos. Outro comportamento novo foi o de atirar objetos em mim, alegrando-se com isso. Foi somente ao sair da sala que Laís se aproximou da bola e, apontando para ela, exclamou um surpreso “Ah!”.

Em outro encontro, observei que Laís estava com um machucado na testa e outro no nariz e, ao deixarmos a sala de atendimento, sua mãe conta que ela caiu ao tentar sentar em um carrinho de bonecas. Durante aquele atendimento, enquanto brincava com os talheres, xícaras e pratinhos plásticos, a menina colocou o polegar dentro de sua calcinha, esboçando tímida e rapidamente um ato masturbatório. Essa foi a única ocasião em que esse comportamento pôde ser observado em Laís.

Em uma nova entrevista com a mãe, pude observar que ela parecia pouco entusiasmada com as aquisições da filha. Em vários momentos, a mãe afirmou não perceber as evoluções da menina e, minimizando seus reais progressos, declarou: “Parece que ela não tem necessidade” e “acho que ela gosta do silêncio, de ficar sozinha”.

Logo depois do nascimento de Laís, sua mãe permaneceu em casa por três meses sem trabalhar. Em relação aos cuidados dispensados à filha nesse período disse: “Foi fácil porque ela era muito calminha, era só dar de mamar e manter ela seca... a fralda limpa”, o que pode sugerir que o contato entre as duas se resumisse à amamenta ção e aos cuidados básicos de higiene e bem-estar. Por outro lado, seu marido precisou ser submetido a uma primeira cirurgia no rosto em função de um câncer de pele. Segundo ela, Laís tinha apenas nove dias de vida quando ele baixou hospital, permanecendo internado por três dias e sem enviar notícias à esposa. Todavia, ela não foi capaz de se recordar dos sentimentos despertados pela doença do esposo. Em uma posterior entrevista com o pai, ele dirá que sua internação ocorreu dois meses antes do nascimento de Laís.

Na primeira sessão após a interrupção de férias, Laís apresentava melhoras no seu desempenho motor, traduzidas na capacidade de fechar zíperes, tampar garrafas e recipientes com rosca, segurar a colher e o copo e tomar banho de banheira sozinha. Quanto à linguagem, sua mãe afirmou: “Agora ela deu para falar nessa língua dela”, referindo-se aos sons produzidos pela filha.

Durante a sessão, a paciente trabalhou com uma caixa de legos grandes. Percebi um salto significativo tanto em seu desempe nho práxico quanto na linguagem, pois pareceu compreender melhor as coisas que dizia a ela. A maior destreza motora ficou por conta da habilidade em encaixar e desencaixar as peças de lego, chegando a aproximá- las de seu corpo para melhor aproveitar a força física empreendida ao desencaixá-las.

Oito meses depois do episódio do primeiro espelho, quando Laís contava com três anos e nove meses, houve um novo episódio que chamei de o espelho, o eu e o outro. Nessa sessão, ao olhar para o espelho e apontando para ele disse “o nenê”. Em seguida perguntei “quem?” e, de forma tímida, Laís respondeu “eu”. Ainda acrescentei “onde está a Laís?” e ela prontamente apontou para sua imagem no espelho. Ainda durante a sess ão, Laís tornou a se olhar no espelho e a dizer “o nenê” e, em seguida verbalizou algo que julguei ser uma tentativa de dizer seu nome.

Laís estava com exatos quatro anos quando tornou a apontar para o espelho e a dizer “nenê”. Eu disse o seu nome e a menina repetiu-o de forma quase inaudível. Ela tomou o joão-bobo nas mãos, mostrando-me o nariz do boneco. Disse a Laís que era o nariz do joão-bobo e toquei seu próprio nariz. Pouco tempo depois, a paciente voltou a tocar o nariz do brinquedo dizendo claramente “nariz”.

Um jogo passou a se repetir no final das sessões. No momento em que eu anunciava a suspensão de nosso trabalho, Laís resistia a deixar a sala, usando a estratégia de se deitar sobre o tapete, reclinando-se sobre uma almofada. Deitada, a menina se olhava e me olhava através do espelho em uma atitude sedutora. A paciente sorria, soltando gritinhos, virando-se de um lado para outro enquanto chupava a haste central do joão-bobo. Ao ver a insistência prazerosa com que chupava o objeto enquanto se olhava no espelho, eu disse a Laís que seu jogo lembrava o tempo em que mamava em sua mãe, mas que, naquele momento, não era mais um bebê; e fiz com que ela olhasse sua imagem de menina no espelho. Todavia, a paciente não desistiu de seu jogo prazeroso.

Precisamente cinco dias depois, na sessão seguinte, Laís mostrou o efeito da intervenção dada por mim ao brinquedo de chupar. Durante o atendimento, ela pegou o joão-bobo e, retirando as argolas que compunham o seu corpo, inclinou-se para frente e fim de levar à boca a haste central do boneco. Depois, reclinouse na almofada enquanto se olhava no espelho. Quando tornou à posição sentada, Laís foi acometida de flatulência a qual pude escutar. Como ela se mantivesse impassível por certo tempo e como, no trabalho psicanal ítico, devemos evitar oferecer cuidados corporais e de higiene aos pacientes, chamei sua mãe para que a levasse ao banheiro. Quando sua mãe retirou-a da sala, percebi que a paciente tivera uma descarga intestinal, que o tapete da sala podia confirmar. Do banheiro, Laís partiu com sua mãe para casa, não sem antes esta dizer em tom de desculpas “ela deve ter comido algo que fez mal”.

Não chegou a me surpreender que Laís não tivesse novas evacuações naquele dia, ou seja, o que sucedeu era fruto das possibilidades da relação transferencial. A menina não apresentou qualquer outro sintoma ao qual se pudesse vincular um transtorno orgânico. Foi precisamente minha interpretação que fez Laís deslocar seu interesse para a zona anal, através da queda de um objeto anal, reorganizando os orifícios do corpo. Em frente ao espelho, com o olhar perdido em sua imagem refletida, Laís deixou cair, em uma descarga intestinal, o objeto alucinado, fundando nova zona de investimento pulsional. Como conseqüência disso, houve incremento na quantidade e qualidade de sua atividade motora.

Depois do ocorrido, Laís mostrou estar mais coordenada em seus movimentos. Agora, podia jogar bola ensaiando o chute. Outros movimentos nunca antes vistos podiam ser observados: ajoelhar, andar de joelhos, sentar em um grande carro de plástico e deslocar-se com ele pela sala. Outro aspecto foi a insistência em apontar as figuras de um menino e de uma menina no rótulo da caixa de legos. Com alguma dificuldade, mas de forma inequívoca, ela disse “menino” e “menina”. Nesse momento, eu disse à paciente que ela tamb ém era uma menina. Laís se aproximou do espelho e, mantendo-se de pé, olhou e admirou sua imagem.

Com quatro anos e um mês, Laís descobriu o prazer do movimento nas brincadeiras de correr durante as sessões. Também ela já era capaz de fazer rodopios e movimentos bruscos para observar, através do espelho, os efeitos em sua saia. Outra brincadeira em frente ao espelho era a de jogar os braços para cima gritando e logo se deixar cair ajoelhada numa almofada.

Os sons também passaram a interessar a paciente. Laís usava as próprias mãos e às vezes alguns objetos que aproximava de seu ouvido para produzir a reverberação de seus próprios gritos, escutando admirada. Os movimentos produzidos com a boca também eram observados através do espelho.

Aos quatro anos e sete meses, Laís conseguiu uma vaga em uma escola infantil. Os profissionais da escola ficaram em dúvida quanto à forma ideal de tratar a menina, mas ela foi mantida na turma de crianças correspondente a sua faixa etária. Segundo a mãe, os colegas de classe não fizeram distinção, brincando com Laís sem preconceitos. A paciente estava feliz em freqüentar uma escola infantil, e uma comprovação de seu interesse deu-se no primeiro sábado quando, pegando sua mochila, Laís indicou à mãe que desejava ir à escola.

 

Discussão do Caso

Todo cuidado materno visa, em primeiro lugar, acionar as funções corporais envolvidas na satisfação das necessidades da criança. O contato materno transborda as funções org ânicas em funcionamento, isto é, marca o corpo infantil para além da sua condição puramente biológica. Cabe à mãe dar sentido às sensações viscerais de seu filho, emprestando ao infans hipóteses acerca do funcionamento corporal. Um exemplo clássico são as trocas estabelecidas entre a mãe e seu bebê durante a amamenta ção. Enquanto a criança e sua mãe trocam olhares, a criança suga o peito e a mãe dirige sua fala a ela. É certo que a criança também já está sob o efeito do discurso da mãe, mamando mais do que o leite. São as palavras da mãe, na qualidade de significantes, que a criança busca ativamente no corpo materno e serão elas que darão funcionamento às funções, automatizando-as. A função deve cair, ficar esquecida, dando vaz ão ao funcionamento regido pelo significante.

Desde o nascimento, o desenvolvimento de respostas adequadas aos estímulos sensoriais externos não carece exclusivamente de um processo biológico de aquisição de funções, uma vez que a criança depende da influência de outro para essa organiza ção. É nas trocas com a mãe que o bebê poderá vir a conquistar o dom ínio dos movimentos corporais de acordo com as intenções (projeto motor), fazendo surgir uma gestualidade, que é o movimento com finalidade de comunicação. Para que o desenvolvimento da função motora seja possível, é preciso que a mãe possa antecipar essa função, ainda imatura na criança, criando o funcionamento. Os significantes ouvidos e escolhidos pela criança irão balizar os movimentos torpes da criança em busca do domínio motor. Lembro, no entanto, que as trocas significantes entre mãe e filho são dependentes da ordem simbólica, o que quer dizer que já deve haver refer ência a um terceiro nessa relação dual. A ordem simbólica garante um funcionamento para além da mera função biológica. A entrevista na qual a mãe de Laís afirma que a menina parecia não ter necessidade – referindo- se ao fato de ela não pedir comida – é um exemplo muito preciso retirado da observação materna, porque mostra como a mãe não conseguiu antecipar o uso das fun- ções biológicas para sua filha, só lhe restando concluir que Laís gostava do silêncio e de ficar sozinha, também como forma de se defender do fracasso da função materna. Para que a criança possa se apropriar de sua pró- pria imagem e interiorizá-la, é preciso que ela tenha um lugar no Outro, o qual deve ser encarnado pela mãe.

No presente caso, tudo leva a crer que, para Laís, as inscrições simb ólicas não haviam se estabelecido plenamente, mantendo-a como objeto do desejo da mãe; isso porque, por definição, o Simbólico deve instaurar a falta. Como conseqüência e, ao mesmo tempo, podíamos observar a inconsistência simbólica de Laís no fato de a menina ainda não ter chegado ao fort-da, momento constitutivo do sujeito pelo engendramento de uma ordem simbólica preexistente a ele, mas indispensável ao seu processo de estruturação psíquica. O fort-da, como par de alternâncias, é a simbolização primordial que inaugura a cadeia significante com a conseq üente substituição significante, dando acesso à linguagem. Através da articula ção de um par de fonemas que se opõem, a criança renuncia à mãe como primeiro objeto de desejo. Os dados coletados pelo processo transferencial durante o tratamento psicanalítico de Laís sugerem que o comprometimento motor da paciente, também chamado de Transtorno Específico do Desenvolvimento da Função Motora, pode ser considerado um transtorno psicomotor decorrente do estádio do espelho, isto é, um conflito decorrente do processo de subjetivação do sujeito psíquico. O acompanhamento da paciente por mais de um ano e meio mostrou como a menina chegou ao atendimento sem ainda ter passado pelo estádio do espelho, processo esse que foi sendo observado ao longo de seu tratamento.

A não constituição de uma imagem corporal e, conseqüentemente, do próprio eu são características marcantes do caso apresentado, as quais podem ser ratificadas pelos embates de Laís com o espelho. Tamb ém fica claro que, sem uma imagem corporal de base, a criança não consegue organizar seu esquema corporal, frustrando as tentativas de tornar efetivo o projeto motor. As dificuldades encontradas por Laís são creditadas ao fracasso do estabelecimento das funções simbólicas, o que foi observado na inexistência de jogos masturbatórios genitais, na pobreza das manifestações lúdicas da paciente e, principalmente, por ela não ter chegado ao fort-da, como express ão máxima da capacidade simb ólica do sujeito, segundo a psicanálise. Laís ainda lida com as relações de continente/conteúdo, sem a elabora ção de relações de dentro/fora, relações essas imprescindíveis para a organização do fort-da.

A relação de Laís com a mãe mostrou que, embora sua mãe seja uma mãe cuidadosa, o nascimento da menina suscitou fantasias inconscientes das quais ela procurou se defender e, para ser mais preciso, da angústia que tais fantasias devem incrementar. Mostrei também como a figura do pai não apareceu como um elemento terceiro capaz de rearticular as relações mãe-filha, uma vez que todos são mãe para Laís. A paciente permanece ligada ao corpo materno em uma relação de gozo e a mãe tem de suportar uma proximidade que não desejava, isto é, o transtorno psicomotor da filha vem questionar essa mãe. Laís não encontra significantes capazes de balizar o seu desenvolvimento em direção a um adequado funcionamento das funções, não constituindo sua imagem corporal e, conseq üentemente, não organizando seu esquema corporal. A falta de significantes fratura o encontro com o espelho, o qual não chega a ser o momento de organização psíquica da criança. O contato com a superfície polida do espelho, momento de Nachträglichkeit de uma imagem já intuída pela criança e enfim encontrada, é uma experiência que se mostra frustrada.

Deve-se entender o estádio do espelho como a transformação ocorrida em um sujeito ao assumir uma imagem, uma identifica ção determinada pelo contato precoce com a mãe (Outro). Destarte, o encontro da criança com a superfície polida do espelho pode ser entendido como um momento de verificação de uma hipótese já intuída pela criança, consolidando o narcisismo infantil. Em nossa cultura, o encontro da criança com sua imagem refletida no espelho sói acontecer entre o sexto e o décimo oitavo mês de vida, ainda que a assunção de uma imagem pela criança se dê independentemente da presença real do objeto espelho.

Laís não chega a perceber no espelho sua imagem porque lhe falta a hipótese prévia de uma imagem totalizante do corpo. A experiência frente à superfície polida será um confronto com sua idéia de união ao corpo materno, ratificando as teorizações de Dolto (Dolto & Nasio, 1991), para quem a ausência do encontro jubilatório com a imagem refletida, tal qual preconizado por Lacan (1998), evidencia a prova dolorosa de uma castração. Num primeiro momento, o encontro com o espelho real surpreende e assunta Laís, mas, em seguida, mostra-se importante para o estabelecimento de um espaço virtual ainda não conquistado.

Os significantes que circulam entre a mãe e a criança servem de verdadeiros títeres capazes de suster o movimento infantil ainda titubeante e descoordenado. São esses significantes que levarão a criança ao efetivo domínio motor quando da assunção de sua imagem e, paulatinamente, farão com que a criança possa dispensar os cuidados maternos, pois cada vez mais a criança terá o domínio de suas funções motoras, agora já traduzido em gestualidade e intencionalidade.

Ao relacionar a adequação do desenvolvimento motor à constituição da imagem corporal da criança e à constitui ção da imagem corporal como decorrência do estádio do espelho, verifiquei que os problemas motores sem etiologia definida – chamados aqui de Transtorno Específico do Desenvolvimento da Função Motora – são transtornos surgidos durante o processo de organização do estádio do espelho desde suas fases mais precoces, pela falha nas inscrições simbólicas decorrentes de um inadequado estabelecimento da função materna. Cabe ainda ressaltar que este artigo tomou o conceito de transtorno psicomotor como um conflito decorrente do processo de subjetivação do sujeito psíquico e não como o sinal de uma doença, e, mais ainda, como a expressão, na criança, de sua não separação do corpo materno e o conseqüente posicionamento da criança na qualidade de objeto a do fantasma materno.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: luisfernandobarth@terra.com.br

Recebido em junho/2007
Aceito em outubro/2007

 

 

NOTAS

1 Este artigo foi extraído da Dissertação de Mestrado As relações Entre o Estádio do Espelho e o Transtorno Específico do Desenvolvimento da Função Motora em Crianças: Uma Construção Metapsicológica de Caso, defendida no Curso de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFGRS, sob a orientação do professor Dr. José Luiz Caon
* Psicanalista, mestre em Psicologia do Desenvolvimento e doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Serviço da Atenção à Criança, Adolescente e Família de Cachoeirinha, RS

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