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Estilos da Clinica

 ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624

     

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p34-46 

10.11606/issn.1981-1624.v23i1p34-46

DOSSIÊ

 

O HIGIENISMO MODERNO E A PRÁXIS DO PSICANALISTA NA PÓLIS

 

MODERN HYGIENISM AND THE PRAXIS OF THE PSYCHOANALYST IN THE POLIS

 

HIGIENISMO MODERNO Y LA PRAXIS DEL PSICOANALISTA EN LA POLIS

 

 

Paula Fontana FonsecaI

IPsicanalista. Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Psicóloga no Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Docente do curso de pós-graduação da Universidade Ibirapuera e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (Lepsi) da IP/FEUSP, São Paulo, SP, Brasil.

Correspondência

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é abordar a retomada do ideário higienista que ocorre na atualidade sob e égide do discurso universitário. Com o intuito de demonstrar como esse empreendimento tem ocorrido nas políticas públicas voltadas à primeira infância, analisaremos o programa Criança Feliz, que foi formulado em 2016 pelo Governo Federal. Para tanto, discorreremos sobre a proposição dos discursos feita por Lacan, dando ênfase para o discurso universitário – ou do mestre moderno – e capitalista. Temos por objetivo analisar a lógica vigente e suas consequências para a práxis do psicanalista na pólis.

Descritores: psicanálise; política; discurso universitário; discurso capitalista.


ABSTRACT

The proposal of this article is to approach the resumption of the hygienist ideologies that currently occurs under the auspices of the discourse of the university. Aiming to demonstrate how this undertaking has been occurring in public policies focused on early childhood, we will analyze the Happy Child program, which was formulated in 2016 by the Brazilian Federal Government. To this end, we will discuss about the proposition of discourses made by Lacan, giving emphasis to the discourses of the university – or modern master – and capitalism. We have as objective to analyze the current logic and its consequences for the psychoanalyst's praxis in the polis.

Index terms: psychoanalysis; politics; discourse of the university; discourse of the capitalism.


RESUMEN

La propuesta de este artículo es abordar la reanudación del ideario higienista que ocurre en la actualidad bajo la égida del discurso universitario. Con el fin de demostrar cómo este emprendimiento ha ocurrido en las políticas públicas dirigidas a la primera infancia, analizaremos el programa "Criança Feliz" que fue formulado en 2016 por el gobierno brasileño. Para ello, discurriremos sobre la proposición de los discursos hecha por Lacan, enfatizando al discurso universitario –o del maestro moderno– y capitalista. El objetivo es analizar la lógica vigente y sus consecuencias para la praxis del psicoanalista en la polis.

Palabras clave: psicoanálisis; política; discurso universitario; discurso capitalista.


 

 

X: O que o senhor diz está sempre descentrado em relação ao sentido, o senhor escapa do sentido.

Vai ver é nisso justamente que meu discurso é um discurso analítico. A estrutura do discurso analítico é ser assim.

Jacques Lacan

 

A expressão "higienismo moderno" alude à proposta lacaniana de pensar o mestre moderno como aquele que se dirige ao campo do Outro tomando-o como objeto de um saber dado, que deve ser orientado segundo técnicas e parâmetros estabelecidos e consagrados. Alude, também, ao projeto higienista do início do século XX, que pautava a conduta médico-pedagógica em concepções científicas – hoje chamadas de pseudocientíficas – que fundamentavam um entendimento acerca das necessidades das populações carentes e o consequente atendimento a elas proposto.

Nosso intuito, ao abordarmos o higienismo moderno, é o de demonstrar que nos dias atuais vemos concepções higienistas, tidas como ultrapassadas, comparecerem nas políticas públicas sob a égide do discurso universitário. Ou seja, um novo agenciamento de teorias caducas. Uma retomada tecnocrática de fundamentos ideológicos que reavivam a importância de se realizar um debate acerca do lugar da assistência e sua diferença com o assistencialismo.

Para tanto, vamos retomar a discussão lacaniana acerca do discurso universitário e analisar o projeto Criança Feliz proposto pelo Governo Federal em 2016. Assim, pretendemos trabalhar elementos que sustentem um fazer do psicanalista no contexto contemporâneo das políticas públicas voltadas à primeira infância.

 

Discurso da ciência e o mestre moderno

Em sua primeira aula de 1964, Lacan se pergunta se a psicanálise seria uma ciência ou uma religião. Ele afirma: "a psicanálise, quer seja ou não digna de se inscrever num desses dois registros, pode mesmo nos esclarecer sobre o que devemos entender por uma ciência, mesmo por uma religião" (Lacan, 1998b, p. 14). Quanto a isso, Fink (1997) comenta que ele situa a psicanálise "na posição privilegiada de ser capaz de nos ajudar a conceber o que seja uma ciência ou uma religião, a partir do exterior, como de uma posição outra" (p. 70).

O significante excomunhão, escolhido para nomear essa aula de Lacan quando da compilação do seminário por Jaques-Alain Miller, faz referência à exclusão que Lacan sofreu pelos membros da International Psychoanalytical Association (IPA). Ele adverte que esse fato está "no princípio de nossa interrogação concernente à práxis psicanalítica" (Lacan, 1998b, p. 12). Importa-nos destacar o risco ao qual aponta de que a comunidade psicanalítica poderia fazer eco a uma prática religiosa, definida nos seguintes termos: "não me procurarias se já não me tivesse achado" (Lacan, 1998b, p. 15, grifos do autor). Salientando que há uma afinidade entre o registro religioso com a ideia do pesquisador, como aquele que procura por algo já encontrado. Ou seja, ele deixa ler nas entrelinhas que tanto a ciência quanto a religião, no fundo, buscam fundamentar o que já estava lá antes.

Lacan afirma que na religião a causa é incumbência entregue a Deus, portanto é em nome de Deus que se faz ou não uma série de coisas, enquanto a ciência se sustenta na ideia de que "da verdade como causa, ela não quer-saber-nada" (Lacan, 1998a, p. 889). A esse movimento Lacan propõe o uso de termo verwerfung – foraclusão –, fazendo alusão ao fato de a ciência nada querer saber daquilo que a causa. E ainda destaca que a ciência comunica seu saber não por força do hábito, "mas porque a forma lógica dada a este saber inclui a modalidade da comunicação como suturando o sujeito que ele implica" (Lacan, 1998a, p. 891). Ao comunicar seu saber, estruturado como uma verdade sobre o sujeito, ela obtura qualquer pergunta acerca da causa.

Essa operação de sutura do sujeito coloca a ciência em posição contrária à do psicanalista que, conforme adverte, situa sua práxis justamente na fenda do sujeito. Ele ressalta o aspecto de causa material que a verdade tem em psicanálise, e explica que "essa causa material é, propriamente, a forma de incidência do significante", sendo que o significante "se define como agindo, antes de mais nada, como separado de sua significação" (Lacan, 1998a, p. 890). Lacan (1998a) conclui dizendo que o sujeito "veiculado pelo significante em sua relação com outro significante, ele deve ser severamente distinguido tanto do indivíduo biológico quanto de qualquer evolução psicológica classificável como objeto da compreensão" (p. 890). O sujeito não é, portanto, um objeto apreensível e classificável uma vez que ele sempre é efeito da relação significante.

Conforme afirma Lacan (1992), o discurso analítico é condicionado pelo discurso da ciência na medida em que este último "não deixa para o homem lugar algum" (p. 138). Ou seja, uma vez que a ciência forja um sujeito do conhecimento, a psicanálise pode subvertê-lo e tomá-lo pelo avesso.

Para a psicanálise, um significante só poderá ganhar uma significação em relação a outro significante, o que coloca a primazia da fala em contraposição ao que a ciência produz como verdade ao comunicar seu saber sobre o sujeito. A ciência foraclui a verdade como causa material, ou seja, foraclui o sujeito dividido tomando-o como objeto classificável da compreensão, que fica, assim, suturado ao saber que ele implica no âmbito científico.

Essa concepção de ciência tem aproximações com o que Lacan postula ser próprio ao discurso universitário que toma o outro por objeto e, ao fazê-lo, produz um sujeito suturado ao saber e que recorre à ciência para poder suprir justamente sua falta.

Lacan (1992) afirma que o discurso universitário "mostra onde o discurso da ciência se alicerça" (p. 97). O assim chamado mestre moderno é aquele que subtraiu o saber do escravo, deslocando a lógica do discurso do mestre – que era pautado numa relação de dominação senhor-escravo – para uma nova lógica regida pelo imperativo de um saber tomado como único. "Não pensem que o mestre está sempre aí. O que permanece é o mandamento, o imperativo categórico Continua a saber. Não há mais necessidade de que ali haja alguém". (Lacan, 1992, p. 99, grifos do autor).

O discurso Universitário fundamenta a aplicação de condutas pautadas por um saber que se supõe o mais atual. Ele carrega a ideia de progresso uma vez que é sempre possível produzir mais saber: "Vai, continua. Não para. Continua a saber sempre mais" (Lacan, 1992, p. 110).

O mestre moderno é, desse modo, aquele que toma o outro como objeto de um saber consagrado, único e atual.

A questão que ganha relevo na contemporaneidade não é a existência do laço tecnicista proposto pelo discurso universitário e sua afinidade com o discurso da ciência. Nosso destaque recai sobre a hegemonia dessa modalidade discursiva que tem seus alicerces na prevalência de uma concepção de ciência referendada pela técnica e reprodutibilidade. A reificação do sujeito como objeto do discurso propicia a emergência do discurso capitalista, no qual essa posição fica radicalizada, tendo por efeito sua coisificação.

O discurso capitalista, formalizado por Lacan em 1972 em uma conferência realizada em Milão, é um discurso que não faz laço social. Isso é inscrito no matema por ele proposto, uma vez que não há uma flecha indicativa do enlace do agente do discurso ($) com o outro a quem se dirige (S2).

 

 

 

 

O capital comparece no lugar da verdade, como significante mestre (S1). O sujeito ($) aparece no lugar de agente como consumidor dos gadjets (a) produzidos pela ciência (S2): "O saber científico nesse discurso é capitalizado para fabricar os objetos que possam representar os objetos pulsionais (S2→a)" (Quinet, 2006, p. 39). A seta que sai do objeto em direção ao sujeito indica que este último é governado pelo objeto produzido pela ciência. De modo que o saber da ciência vira mais um objeto ofertado ao sujeito como uma mercadoria a ser consumida.

O discurso capitalista gira sobre si mesmo, em círculos, imprimindo um ritmo que é seu próprio fim. E essa palavra tem tanto o sentido de finalidade como de terminalidade: se consome ao se consumar. Ele anda "como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas justamente anda tão rápido, se consome, se consome de forma que se consuma" (Lacan, 1978, p. 48, tradução nossa).

Sendo esse um não discurso, por definição, ele não comparece no campo das relações humanas como um regulador destas, mas como um produtor de segregação (Quinet, 2006, p. 41).

 

O higienismo de ontem e hoje: criança feliz?

Em 2016, o governo que assumiu a presidência lançou um programa voltado a crianças de zero a seis anos de idade, batizado de Criança Feliz (Brasil, 2016). A campanha ficou a cargo do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário e contou com a participação de representantes dos Ministérios da Saúde, Educação, Cultura, Justiça e Cidadania. Ele foi lançado como o carro-chefe no trabalho com a primeira infância do Brasil.

Na página do programa Bolsa Família é possível encontrar uma explicação sucinta sobre o Criança Feliz. Esclarece-se que não há remuneração às famílias atendidas e que "além de aumentar a fiscalização do programa e combater fraudes do Bolsa Família, será possível acompanhar e orientar melhor as famílias para que possuam um desenvolvimento humano mais acelerado" (Brasil, 2018, não paginado). A necessidade de controle acerca do benefício para as famílias atendidas pelo Bolsa Família fica explícita, a questão que fica sem resposta é: um desenvolvimento mais acelerado em direção a quê?

Conforme é anunciado na página de apresentação do programa Criança Feliz:

Todo mundo torce para que seu bebê se transforme em um vencedor na vida. Estimular as crianças corretamente desde o começo é a melhor maneira de garantir essa vitória.

O Programa Criança Feliz surge como uma importante ferramenta para que famílias com crianças entre zero e seis anos ofereçam a seus pequenos ferramentas para promover seu desenvolvimento integral.

Por meio de visitas domiciliares às famílias participantes do Programa Bolsa Família, as equipes do Criança Feliz farão o acompanhamento e darão orientações importantes para fortalecer os vínculos familiares e comunitários e estimular o desenvolvimento infantil.

Os visitadores serão capacitados em diversas áreas de conhecimento, como saúde, educação, serviço social, direitos humanos, cultura etc. A troca com as famílias será rica e constante. Assim, novos campeões serão criados e a luta pelo desenvolvimento social será vencida. (Brasil, 2016, não paginado, grifos nossos)

O programa, portanto, dirige-se às famílias em situação de vulnerabilidade social e beneficiárias de outros programas assistenciais – como o Bolsa Família, por exemplo – com o intuito de promover o desenvolvimento integral das crianças de zero a seis anos. Para tanto, foi proposta a constituição de equipes capacitadas cuja ação se pauta na orientação visando o fortalecimento do vínculo das crianças com a família e com a comunidade. Essa ação se apoia em "pesquisas científicas" que "comprovam que os primeiros anos de vida são o período com a maior 'janela de oportunidades' para o desenvolvimento humano integral" (Brasil, 2016, não paginado).

É evidente o retorno de um discurso higienista que, inclusive, adota estratégias de ação como a visitação, similares às adotadas anteriormente. Isso ressalta que a lógica assistencialista-higienista não foi superada e pode, agora, retornar às políticas públicas como a inovação que vai possibilitar o desenvolvimento integral das crianças e a vitória na luta pelo desenvolvimento social.

O higienismo, na virada do século XIX para o XX, se estabeleceu como ideário mestre na implantação de políticas públicas que visavam à criança e seus ambientes principais: a escola e a família. A apropriação da psicanálise se fez de modo a adensar a discussão científica que agenciava um fazer educativo, do lado tanto das escolas como das famílias, que obtinha como produto as chamadas "crianças desajustadas", "alunos-problema" e também as "famílias disfuncionais". Sem produzir um questionamento acerca dos padrões estabelecidos como baliza para a normalidade, se deteve em estudar os desviantes e propor maneiras de prevenção às inadequações de modo a normatizar a vida familiar segundo padrões burgueses e individualistas, atribuindo às mães a obrigação da boa educação dos filhos (Costa, 1989).

Conforme destaca Patto (2005), o projeto iluminista adquiriu o sentido de "conhecer a natureza humana para melhor controla-la" (p. 128). A eugenia e o higienismo passaram a organizar o olhar dos cientistas que tinham por objetivo prevenir os desvios de modo a corrigir e adaptar, sobretudo as crianças advindas de famílias empobrecidas. Desse modo, as políticas públicas passaram a legitimar e promover a ideia de normalidade psíquica. A autora ainda afirma que "no cerne da definição vigente de normalidade psíquica, aptidão é adaptação a uma realidade social indiscutível. É apto quem aceita as regras do jogo social, trabalha com afinco, compete na medida em que convém ao capital e obedece" (Patto, 2005, p. 129). Em outras palavras, uma política que pretende conformar os sujeitos a uma realidade social que é tomada como normal e que, portanto, resta inquestionável.

A presença das ideias higienistas na atualidade não é exatamente uma novidade. Um estudo de Yazlle e Fernandes (2009), por exemplo, recolheu junto às formadoras dos cursos para profissionais de educação infantil suas concepções acerca do trabalho realizado em creche. As pesquisadoras destacaram uma visão "assistencialista/filantrópica com caráter higienista, de modelagem de corpos e mentes, até uma visão compensatória, de estimulação e preparo para escola fundamental" (Yazlle & Fernandes, 2009, p. 207, grifos das autoras). O programa Criança Feliz alça a status de uma nova política pública uma concepção higienista enraizada em nossa sociedade.

O discurso universitário, tal como formulou Lacan (1992), pode ser explicitado ao extrairmos elementos que constam na citação retirada da página de divulgação do programa. Dessa forma, obteríamos que os agentes técnicos capacitados (S2) com conhecimento científico acerca do desenvolvimento infantil (S1) orientarão as famílias carentes (a) de modo que possam obter crianças que sejam vencedoras na vida ($).

 

 

O "(não)-campeão", situado no lugar da produção, vem apenas explicitar que o que se produz com esse discurso nada mais é do que um sujeito que se perpetua na posição daquele que precisa de um agente do saber para que possa ter acesso a algo, que nunca vai abarcar a totalidade das suas necessidades, permanecendo refém das orientações dos profissionais capacitados que falam em nome de um saber que lhes é alheio. Portanto, um não-campeão por definição.

Há ainda outro ponto que vem implícito no programa: a ideia de que criança é feliz. Essa é uma concepção corrente no imaginário social que associa a infância tanto à inocência quanto à alegria. Não é excessivo relembrar que Freud (1905/1993), em seus "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" propõe que a amnésia infantil:

Converte a infância de cada individuo em um tempo anterior, pré-histórico por assim dizer, e oculta para o indivíduo os começos de sua própria vida sexual; é a culpada de que não se tenha outorgado valor ao período infantil no desenvolvimento sexual. (p. 159, grifo do autor)

Dessa sexualidade que não se tem notícia – recalcada pela criança e foracluída pelo adulto – emerge a imagem de um ser imaculado e angelical que se sobrepõe à criança que temos diante de nós. Novamente, a discrepância entre a imagem ideal de infância e a criança de carne e osso é lida sob o crivo do desajuste da criança e de seus cuidadores em produzirem esse idílio.

O adulto olha a criança através das lentes impregnadas do que atribui à infância, de modo que ela passa a encarnar A-Criança fantasmada: "Desta maneira, os seres pequenos ficam à mercê da falta de oportunidade de serem diferentes da maneira como são supostos e desejados" (Lajonquière, 2010, p. 214).

Provavelmente, colocar a felicidade infantil como ideal de infância atende mais aos anseios dos adultos em legitimarem suas próprias infâncias como sendo da ordem de um paraíso perdido. Lajonquière (2010) afirma que "criança alguma possui uma infância. Pois, paradoxalmente, só um adulto pode 'ter' uma infância enquanto perdida" (p. 201).

De toda forma, a felicidade vira novo parâmetro para política publica, sem que os conceitos de felicidade e de infância sejam abordados criticamente.

Em 2017, para fortalecer a implementação do programa, foi disponibilizado o documento Programa Criança Feliz: a intersetorialidade na visita domiciliar. Um manual de ações que pautam as visitas domiciliares e que conta com descrições do público-alvo, da rede intersetorial e uma espécie de tutorial que liga situações problema com encaminhamentos esperados. Não há discussão de princípios ou conceitos, não se problematiza a realidade social brasileira. Enfim, o silêncio acerca de temas tão importantes em um contexto complexo e desigual quanto o nosso deve se fazer ouvir.

Se, conforme demonstramos anteriormente, a prevalência do laço tecnicista fixa os sujeitos na posição de objeto – tal qual realizado no programa Criança Feliz – e essa operação tem por efeito propiciar a emergência do discurso capitalista: podemos analisar a tendência que se desenha e nos arriscarmos a imaginar qual seria o próximo passo em termos de políticas públicas voltadas à primeira infância no Brasil?

Entendemos que o momento atual é caracterizado pelo favorecimento da mercantilização das soluções nesse campo. As políticas públicas no Brasil contemporâneo se empenham por equiparar o termo assistência a assistencialismo, desqualificando-o e possibilitando o desmantelamento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Isso assinala para a possibilidade cada vez mais concreta da sociedade civil organizada assumir para si a responsabilidade pela gestão da coisa pública, constituindo-se como parceira do Estado nessa tarefa. Operando, dessa forma, uma redução da ideia de política à de modelo de gestão, conforme já advertiu Voltolini (2015).

 

A psicanálise e o psicanalista

A discussão acerca do discurso universitário e sua articulação com uma concepção hegemônica de ciência aponta para os riscos que o psicanalista e a psicanálise correm nos dias de hoje.

É possível acessarmos a complexidade do fenômeno contemporâneo por meio da teoria dos discursos proposta por Lacan de modo a fundamentar que a prevalência e fixidez em uma modalidade de laço social, com as características do discurso universitário, se configura como terreno fértil para a emergência do discurso do capitalista.

Mas, se com a psicanálise conseguimos problematizar o contexto contemporâneo e realizar uma leitura da lógica presente em uma política pública voltada à primeira infância – o programa Criança Feliz –, o que isso traz como consequência para o psicanalista?

Não é excessivo lembrar que a teoria psicanalítica já foi apropriada como mais um saber a dar lastro para as práticas e concepções higienistas a que fizemos referência no início desta reflexão. Ou seja, enquanto teoria, sua apropriação pode se dar segundo a lógica tanto do discurso do mestre como do discurso universitário.

Dunker (2017) nos recorda que Lacan (1998c) distinguiu fortemente política, estratégia e tática, fazendo referência ao célebre texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder". Ele comenta que:

o grau de liberdade que temos nas táticas de interpretação se subordina a uma liberdade menor no plano da estratégia da transferência. Esta, por sua vez, nos oferece menos liberdade do que a política do tratamento, que consiste na ética da psicanálise e em sua prerrogativa dada à palavra e à recusa do exercício do poder. (Dunker, 2017, p. 298-299).

Ele adverte para o perigo de tomarmos por política algo que teria um valor estratégico e, portanto, contingente e transitório. Tanto a tática como a estratégia não são equivalentes à política, pelo contrário, elas emergem em nome de uma política que as sustenta. Ao tornarmos um grupo selecionado como sendo objeto de uma política – e não de uma estratégia – resvalamos no totalitarismo uma vez que produzimos silenciamento, coisificação e segregação.

O programa Criança Feliz é, em nosso entendimento, uma política para populações pobres e que cria, desse modo, uma identificação entre o grupo atendido e a estratégia ofertada. Fomentando, assim, a convicção de que aquelas pessoas realmente precisam de orientação para se tornar mães, pais e – claro – crianças felizes. Elas precisam dessa política, nós não!

Para Lacan, a segregação é o retorno no Real do que não se inscreve no Simbólico. Todas as políticas de sofrimento giram em torno desse buraco e a segregação é simplesmente a identificação de algo ou de alguém com a matéria-prima da qual o buraco é feito. (Dunker, 2017, p. 299).

Ao tomarmos a criança empobrecida como objeto de intervenção de modo a conformá-la aos nossos ideais ideologicamente sustentados, não fazemos outra coisa senão totalizar sua existência. Larrosa (2017) afirma que "nosso totalitarismo consiste na captura pragmática da novidade, em sua administração e sua venda no mercado do Futuro" (p. 239).

Toda natalidade implica um novo, segundo as belas palavras de Hannah Arendt (2005).

Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. (p. 243).

Se eliminamos a novidade, que é a chegada de uma criança, em nome de um futuro campeão, reduzimos a existência humana aos ditames mercadológicos impostos por uma classe dominante que pretende, a todo custo, se perpetuar no poder.

Assim, advertidos que estamos sobre o risco da mercantilização totalizante das soluções no campo de atenção à primeira infância e de que a psicanálise, como teoria, não é uma tábua de salvação no mar agitado dos tempos que correm: que esperamos do psicanalista?

Para que a psicanálise não seja apropriada apenas como mais uma teoria acerca das vicissitudes humanas de cunho adaptacionista, é preciso que haja um analista que a presentifique com seu ato. "Andar só é um ato desde que não diga apenas 'anda-se', ou mesmo 'andemos', mas faça com que 'cheguei' se verifique nele", afirmou Lacan (2003, p. 370).

O psicanalista se faz presente na pólis com seu ato e, para tanto, deve responsabilizar-se por ele. Nesse sentido, era esperado que houvesse uma diversidade de posicionamentos no campo psicanalítico no que toca às políticas públicas, uma vez que o que vale não é a palavra em nome de quem falamos – Freud ou Lacan – pois não se fala em nome d'A psicanálise.

Um psicanalista fala em nome próprio, o que não quer dizer que seja um solilóquio. Ao fazer da psicanálise um acontecimento presente e singular, temos, como efeito, um psicanalista. Sua inscrição na pólis deve ser calculada tanto quanto qualquer ato analítico, ou seja, balizada pela teoria e referenda por seu efeito que ocorre no après-coup inalienável da experiência significante.

 

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Endereço para correspondência
pff@usp.br
Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco D, sala 150
05508-030 – São Paulo – SP

Recebido em fevereiro/2018.
Aceito em abril/2018.

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