Estilos da Clinica
ISSN 1415-7128 ISSN 1981-1624
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i2p221-223
DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i2p221-223
EDITORIAL
Impasses na constituição do sujeito
Assumir que há uma constituição do sujeito e que nela podem ocorrer impasses, mais do que a descrição rigorosa de uma pretensa realidade e sua consequente formalização científica, é propor uma fórmula com a qual operar com o real.
Coube a Lacan, em particular em seu texto "A ciência e a verdade", demonstrar que, ao contrário do que crê o espírito positivista tomado desde a modernidade como o verdadeiro espírito científico da ciência , a operação fundamental do trabalho científico não é a decifração da realidade, mas, antes, uma cifração com a qual se opera com o real.
Por mais que pareça que a verdade estaria colada na realidade e que caberia à ciência apenas desvelá-la em sua forma fixa e invariável, vemos que ela a verdade deve, antes, ser buscada no jogo de palavras que utilizamos para operar com o real. Pois bem, a seguirmos com essa definição, somos obrigados a constatar, mesmo a contragosto dos positivistas, que a ciência tem um sujeito, aquele mesmo que a ciência moderna tentou evacuar de seu campo por entendê-lo como uma anomalia ao saber científico, posto que traria sua singularidade instável para um terreno no qual se busca uma regularidade estável.
Para a ciência moderna só poderíamos compreender os desacordos tão frequentes na comunidade científica como resultantes do engano daqueles que ainda não perceberam corretamente a realidade: a verdade está garantida por Deus, o homem é que pode se enganar, acreditava Descartes. é, portanto, da miopia do homem, em sua imperfeição, que devemos duvidar e a ciência deve dar-lhe os óculos que faltam para melhor ver o que foi escrito por Deus.
A novidade herética introduzida por Lacan, nesse sentido, foi a de demonstrar que a garantia da verdade se é que a verdade garante algo está do lado do sujeito: não há verdade sem um sujeito que a engendre.
Talvez se possa pensar que foi a percepção, ainda que nebulosa, dessa ligação funesta entre sujeito e verdade que levou a ciência a expulsá-lo de seu campo, inclusive para que este pudesse se constituir. Quando se busca um campo estável, seguro, deve-se estar prevenido contra o sujeito. Nisso não se pode reprovar a decisão da ciência: onde há sujeito há impasse.
Com a psicanálise nos demos conta de que esse sujeito perturbador não é um dado da natureza: ele se constitui. Contrariamente à grande parte do pensamento filosófico e científico, para a psicanálise, a cria humana não nasce inacabada, mas, antes, indeterminada.
A ideia de inacabado sugere que o que vem a seguir é da ordem do completamento de um texto o texto genético cuja forma inicial, já escrita, é determinante para sua continuidade. Por força dessa ideia, o conceito de desenvolvimento, tão caro à biologia, onde nasceu, ganhou terreno espraiando-se para outros campos, em particular à psicologia.
Já a ideia de indeterminado implica pensar não que não haja nada no ponto de partida, mas que o que há no ponto de partida não assegura nenhum movimento retilíneo uniforme para o percurso. Ainda que haja algo já escrito, é o que será inscrito no percurso que definirá o texto que vai valer.
Nesse sentido, isso que vem depois, e que vem como inscrição, não é da ordem do complemento do natural, mas do suplemento: o sujeito é suplementar à natureza.
Sua constituição não prolonga uma lógica pré-escrita, ao contrário, perturba essa lógica introduzindo nela outra legalidade, abrindo possibilidades que só a noção de destino tão cara a Freud no desenvolvimento de seu conceito de pulsão pode contemplar. Se o sujeito se abre a um destino é porque não está predeterminado.
A célebre figura de Victor de Aveyron o menino selvagem personagem fundamental na história das ciências humanas, tornou-se o exemplo paroxístico dessa indeterminação de saída. A lição essencial que se pôde tirar de sua história é que nem mesmo a humanidade, que sempre se acreditou estar escrita e garantida pelo texto genético do homem, está assegurada, livre do peso dos acasos.
Dessas diferentes compreensões do humano derivam diferentes concepções daquilo que o define, bem como diferentes modos de trabalhar com ele. Os recentes debates entre a psicanálise e a psiquiatria em torno da definição do campo das patologias é uma prova ilustrativa dessa diferença.
A noção de transtorno tornada peça-chave na lógica diagnóstica nos manuais diagnósticos ganhou celebridade no campo da psiquiatria. Aparentemente, ela foi concebida para evitar os inconvenientes da ideia de desvio, herdeira da ideia de norma, sempre inevitavelmente moralizante. Moralização que coube a Canguillhem, em seu célebre livro O normal e o patológico, tão bem desmontar.
Diferentemente da física, por exemplo, para a qual o conceito de norma não faz nenhum sentido, para a biologia, ele é central e constitui a entrada de um valor no campo suposto neutro da descrição do fenômeno.
Com a noção de transtorno se optaria por uma visada puramente descritiva, livre das querelas interpretativas que se perdem em longas discussões estéreis sobre a etiologia e a semiótica dos sintomas. Mas transtorno em relação a quê?
Resulta interessante imaginar o diagnóstico que poderia ter sido dado a Victor de Aveyron que, na época, foi diagnosticado como retardado severo , segundo os critérios diagnósticos atuais na psiquiatria. Transtorno de espécie, talvez. Quem sabe? Para além da provocação, a hipótese mais provável é que ele fosse diagnosticado como politranstornado, o que já mostra o embaraço da psiquiatria em evacuar de seu campo qualquer valoração para além da descrição do quadro.
Com esse diagnóstico veríamos Victor entrar numa série genérica e asséptica que faria perder todo o valor singular que sua história agregou para o conhecimento humano. O politranstornado é um diagnóstico estatisticamente muito frequente. Sua frequência significativa nos leva a pensar que a precisão buscada com o novo método diagnóstico talvez leve a uma imprecisão que necessita ser compensada com a multiplicação de diagnósticos. Como o sujeito não cabe em uma categoria diagnóstica, é melhor o colocarmos em várias. é isso mesmo: o sujeito é aquilo que resiste/excede a toda classificação.
Com a noção de impasse, a psicanálise escolhe outra via de compreensão. Um impasse é a detenção de um sujeito num conflito do qual se pode esperar uma saída, um passe. A constituição do sujeito é feita de impasses cuja consequência é a construção de uma história particular, irrepetível: é cifração. Nessa perspectiva, o que vai se cifrar nessa história depende dos incidentes vividos ou, como se convencionou dizer na teorização psicanalítica: do acaso como causa.
De tal forma, uma história como a de Victor, assim como todas as outras, deve ser entendida no fio de seus impasses constitutivos, nos quais se pode encontrar não a causa de seus sintomas pergunta, ao contrário do que se pensa, sempre pouco importante para um psicanalista mas a razão da inércia destes, porque é aí que a possibilidade de algum passe pode vir a ser descoberta.
Neste dossiê o leitor encontrará bons exemplos das discussões que se dão no interior dessa querela constituída a partir desses dois modos de compreender o humano e seu sofrimento. O sujeito entre o saber médico, psiquiátrico e o saber psicanalítico gera mesmo boas discussões. Esperamos que esse debate, que está longe de encontrar um bom termo, funcione verdadeiramente como um debate sem sucumbir à querela, forma mais deletéria de uma discussão que não leva senão ao entrincheiramento em lados que não se ouvem mais porque restou apenas, a cada um deles, a tarefa de atacar.
Rinaldo Voltolini