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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

     

 

ESTUDO DE CASO

 

A clínica do amadurecimento e o atendimento às pessoas com deficiências

 

The maturation clinic and work with persons with deficiencies

 

 

Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe-se analisar a importância das propostas winnicottianas de intervenção às pessoas com deficiências. Depois de refletir sobre a intervenção, apresentada pelo autor a partir de suas experiências como pediatra, observando bebês e suas mães, e como psicanalista, no atendimento dos "casos fronteiriços", foram analisados três aspectos: o uso desses conceitos para a compreensão do desenvolvimento de pessoas com deficiência, sua relevância no entendimento da maior intensidade de riscos a que estão expostos e a pertinência dos pressupostos da clínica do amadurecimento com esses indivíduos. Algumas vinhetas de um caso são utilizadas para exemplificar o uso da teoria de Winnicott na compreensão do cliente e da técnica utilizada.

Palavras-chave: Clínica do amadurecimento, Procedimentos de intervenção, Desenvolvimento, Deficiência visual, Caso clínico.


ABSTRACT

The purpose of this text is to analyze the importance of winnicottian concepts of intervention with disabled persons. After reflecting on the concepts proposed by the author, based on his pediatric experiences, observing babies and their mothers, and as psychoanalyst, attending borderline cases, three aspects have been analyzed: the application of these concepts with regard to understanding the development of disabled persons, their relevance to the understanding of the intensive risk to which individuals are exposed and the pertinence of the proposals of the maturation clinic near these individuals. Some case vignettes were utilized as examples of applications, as well as techniques.

Keywords: Maturation clinic, Intervention procedures, Development, Blind impairment, Clinical case.


 

 

O uso dos conceitos de Winnicott para o atendimento às pes-soas com deficiência tem se mostrado uma rica contribuição a essa área de estudos. As propostas teóricas de Winnicott proporcionam uma nova maneira de compreender e tratar essas pessoas.

Embora não tenha se dedicado especificamente à compreensão e ao atendimento de crianças com imperfeições físicas ou funcionais, Winnicott, em vários momentos de seus escritos, refere-se a elas, indicando as diferenças que podem ocorrer no caminho do desenvolvimento das crianças com funcionamento variável do psique-soma:

Talvez se pudesse demonstrar que as mães são liberadas lentamente por bebês que eventualmente se descobre possuírem um QI baixo. Por outro lado, um bebê com um cérebro excepcionalmente brilhante, eventualmente mostrando um QI alto, libera a mãe mais cedo. (Winnicott 1949, p. 413)

Refere-se, também, às crianças cegas, quando procura nos fazer entender que o precursor do espelho é o olhar da mãe:"as crianças cegas necessitam ver-se refletidas por outros sentidos que não o da vista" (Winnicott 1967, p. 155). Essas colocações nos mostram que suas idéias são importantes para a compreensão do desenvolvimento daqueles cujos limites e imperfeições peculiares estão além dos experimentados pela maioria das pessoas.

Suas propostas de intervenção têm se revelado úteis em diferentes campos de ação para pessoas com deficiência, nos procedimentos educacionais, nos programas de reabilitação e em diversas formas de intervenção clínica, permitindo sua extensão para além dos limites do consultório - a assim chamada "psicanálise sem divã".

Um aspecto importante observado, ao se debruçar sobre os textos de Winnicott, é a constatação de um eixo central a partir do qual se pode compreender tanto o processo de desenvolvimento do ser humano como os princípios básicos da clínica do amadurecimento. Seus escritos revelam a crença de que modos particulares de interação indivíduo/am-biente são condição necessária e suficiente para um desenvolvimento pleno e sadio. Essa relação se modifica no decorrer da vida, de uma dependência absoluta à mãe-ambiente (quando, na realidade, não há relação, pois não há dois indivíduos) até a independência relativa ou autonomia, uma troca amadurecida entre o indivíduo e o ambiente que o rodeia.

A clínica do amadurecimento, que tem como objetivo a busca dessa interação de forma saudável, propõe o fortalecimento do ego e o desenvolvimento da capacidade do indivíduo para estabelecer uma interação satisfatória com o mundo dos objetos compartilhados. Para Winnicott, a compreensão do ser humano, ao invés de assentar-se sobre a teoria da sexualidade1 ou do desenvolvimento do id, como proposto por Freud, tem como base uma complexa evolução do ego e sua relação com o mundo externo; considera a sexualidade como um elemento que completa o todo e que o desenvolvimento da libido ocorre após a constituição do ser como um indivíduo total, integrado, habitando um corpo e capaz de relacionar-se com outros seres humanos. O conceito de saúde implica a maturidade do desenvolvimento emocional de acordo com a idade do indivíduo, ou seja, a maturidade tem como referência um processo evolucionário.

A teoria do desenvolvimento construída no decorrer de suas experiências como pediatra, observando os bebês e suas mães, e como psicanalista, no atendimento dos "casos fronteiriços", é a base que sustenta os procedimentos da clínica que realiza e que, em alguns aspectos, difere da clínica freudiana.

Winnicott considera que a clínica desenvolvida por Freud aplica-se àqueles que foram adequadamente tratados na infância e consti-tuíram-se como pessoas totais, capazes de relacionar-se com outras pessoas totais. Para esses indivíduos, a proposta terapêutica orienta-se pelos conflitos e ansiedades que fazem parte das relações interpessoais e a análise deve basear-se na compreensão das conexões inconscientes do material apresentado e sua comunicação ao paciente por meio de palavras, situação que ocorre em um determinado setting. Mas, para aqueles cuja estrutura pessoal ainda não está fundada de forma segura, a interpretação e o manejo se inscrevem em outras bases, na oferta ao paciente de um ambiente em que ele possa experimentar uma maternagem suficientemente boa, de modo a ter a sensação de "um novo sentido de self ". Nesses casos, há um descongelamento da situação de fracasso ambiental e, a partir da nova força do ego, o indivíduo pode vivenciar a raiva do am-biente, que não pode ser experimentada. Para Winnicott, as dificuldades vividas por tal pessoa se inserem muito mais num fracasso de adaptação ambiental original do que num fracasso pessoal, em um momento anterior ao da constituição dele como indivíduo total e antes que ele possa assumir seus instintos e desejos como pessoais. Essa compreensão é fundamental no atendimento terapêutico às pessoas com deficiências.

Ao comentar a prática psicanalítica e os aspectos intuitivos da "arte" ou da técnica do analista, Winnicott a relaciona com o tipo de paciente a ser tratado. Propõe três categorias de casos, que exigem do analista equipamentos técnicos peculiares:

Primeiro há os pacientes que operam como pessoas totais e cujas dificuldades estão na alçada das relações interpessoais. A técnica para o tratamento desses pacientes faz parte da psicanálise como esta foi desenvolvida por Freud no início do século.

Em segundo lugar estão os pacientes nos quais a totalidade está apenas começando a ser considerada como algo que se pode levar em conta; na verdade se pode dizer que a análise se relaciona com os primeiros acontecimentos que pertencem e se seguem, de forma inerente e imediata, não apenas à conquista da totalidade, mas também à junção do amor e ódio e ao reconhecimento da dependência que começa a despontar... Neste caso, a idéia da sobrevivência do analista é importante. No terceiro agrupamento, coloco todos os pacientes cuja análise deve lidar com os estádios primitivos do desenvolvimento emocional, antes e até o estabelecimento da personalidade como uma entidade... Com relação e estes, a ênfase está certamente no manejo e o trabalho analítico comum deve ficar suspenso por longos períodos, sendo mantido apenas o "manejo". (1954-5, p. 460)

Nos estudos relacionados às pessoas com deficiências, as propostas de Winnicott trouxeram modificações em três aspectos. Em primeiro lugar, por sua maneira de compreender o desenvolvimento humano, que se constitui como um robusto pilar para a sustentação de novas abordagens na compreensão da imperfeição orgânica. Se compreendermos, como Winnicott, que "A base da psique é o soma", e que "A psique começa como uma elaboração imaginativa das funções somáticas" (Winnicott 1988, p. 37), vê-se que o organismo daqueles que possuem alguma imperfeição física é a base a partir da qual o seu psiquismo e o seu si-mesmo se constituem. A deficiência será, então, uma parte integrante do psiquismo deles, e não um acessório a ser negado ou eliminado. Esses indivíduos serão tão mais saudáveis quanto mais o ambiente - e suas mães como o primeiro ambiente que os sustentam - puder atender às suas necessidades peculiares e ajudá-los em seu caminho de desenvolvimento e amadurecimento, que, sem dúvida, terá mais obstáculos. Todavia, é fundamental compreendermos que é a partir dessa condição que eles precisam ser conhecidos e amados: "mas a coisa principal é ser amada como é e do modo como nasceu", como diz Winnicott (1971b, p. 31) a respeito de Iilo.

Em segundo lugar, o autor descreve as falhas que podem transformar-se em fracassos ambientais, causando distúrbios ao ser em desenvolvimento e trazendo complicações especiais aos indivíduos que têm uma condição orgânica peculiar. Winnicott considera a doença psíquica uma defesa organizada do ego para a proteção do si-mesmo, ameaçado por invasões ambientais para além do limite e do tempo que o ego do indivíduo é capaz de suportar. Essas falhas, que se constituem em intrusões ao ser em desenvolvimento, pela não satisfação de suas necessidades, podem ocorrer tanto por ações extemporâneas como pela ausência daquilo que deveria acontecer, mas não ocorreu, causando uma ruptura em seu continuar a existir.

A ocorrência de invasões ambientais, seja pelo impingir de uma ação inoportuna seja pela não satisfação das necessidades do indivíduo, acontece com freqüência na interação entre um ser com deficiência e o ambiente que o circunda. Essas dificuldades podem ser observadas desde as primeiras interações mãe-bebê, no estágio da primeira mamada teórica, e se repetem nas inumeráveis interações experimentadas pelas pessoas com deficiência em diferentes momentos de sua vida, quando há uma dependência relativa e quando o indivíduo já caminha rumo à independência. Ocorrem tanto nas relações familiares como no contato com amigos, com professores, com colegas e até nas relações profissional/cliente, pois, mesmo o profissional que tem por objetivo ajudá-los, muitas vezes relaciona-se com eles na base da intrusão.

Perceber as necessidades de outro ser humano por meio de outras pistas sensoriais ou motoras que não aquelas a que estamos habituados não é um processo simples. Assim como também não é fácil a constatação de que a realização plena e satisfatória de alguns passa por condições extremamente diversas das nossas.

Em terceiro lugar, pode-se considerar que a abordagem clínica de Winnicott, nomeada como a clínica do amadurecimento, amplia as propostas e as formas de intervenção para as pessoas com deficiência. O desenvolvimento, entendido como a progressão da dependência absoluta para a independência ou autonomia, é uma questão básica para as pes-soas com deficiência, para sua família e para todos os grupos sociais com os quais se relacionam. Se pensarmos como Winnicott (1971c), que saúde psíquica significa maturidade relacionada à idade do indivíduo, e não apenas o desenvolvimento da capacidade instintiva pelo avanço nas posições do id, como salientado por Freud, e que para um homem ou mulher adultos a sanidade relaciona-se com sua capacidade em "alcançar uma certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou pessoais" (p. 21), o atendimento às pessoas com deficiência terá uma outra vertente.

A questão da dependência/independência, da autonomia e de como esta deve ser compreendida é uma questão fundamental para os indivíduos com deficiência. Observa-se, muitas vezes, nas relações com essas pessoas, que não fica clara a diferença entre a noção de independência como um sólido Eu sou - um assumir e controlar seus próprios impulsos, estabelecendo trocas satisfatórias entre o mundo interno e externo, proporcionando espaço à espontaneidade na manifestação externa - e a necessidade de ajuda, devido a uma limitação somática ou funcional, para alguma ação que expresse o seu si-mesmo.

A confusão entre uma inevitável limitação física ou psíquica e a condição de dependência nas relações interpessoais é um fato que precisa ser discutido, analisado e elaborado, em cada caso, com o cliente, seja adulto ou criança, e com seus familiares. Creio que essa é uma questão nodal a ser considerada no atendimento às pessoas com deficiências.

Nesses atendimentos, são encontrados os três tipos de clientes apontados por Winnicott; mas, na maior parte das vezes, o profissional vê-se às voltas com indivíduos cujas dificuldades se inserem na falta de um ambiente suficientemente bom, e a análise deve lidar com estádios primitivos do desenvolvimento ou com aqueles que estão às voltas não só com a conquista da totalidade como também com a junção do amor e do ódio e o reconhecimento da dependência.

Entre as pessoas com deficiências, há muitos que precisaram lutar contra um fracasso da adaptação por parte do meio ambiente, tendo de ocupar-se com a reação às intrusões ambientais, que os conduzem a interrupções nos processos do self e dissociação entre os diferentes aspectos do eu, levando-os a uma sensação de irrealidade e à organização de um "falso self", como defesa ao seu si-mesmo verdadeiro. Como diz Winnicott:

A partir disto, pode-se formular um princípio de existência fundamental: aquilo que procede do self verdadeiro é sentido como real (mais tarde bom), seja qual for sua natureza, ou grau de agressão; aquilo que acontece no indivíduo como reação à invasão ambiental é sentido como irreal, fútil (mais tarde mau), mesmo que seja sensualmente satisfatório. (Winnicott 1954-5 p. 477)

Apresentarei, a seguir, as vinhetas de um caso em que alguns desses aspectos foram observados e como as propostas de Winnicott favoreceram o seu desenrolar.

 

De um grande herói ao pequeno Lucas

A história de Lucas nos mostra a grande dificuldade dessa criança cega em estabelecer uma integração entre os vários núcleos do eu. A cisão revelada nos mostra a dissociação entre um Lucas forte, agressivo e provocador, ao lado de um garoto solitário, frágil e com muitos medos.

Esse caso foi atendido em uma pesquisa com crianças deficientes visuais com problemas de aprendizagem. Os procedimentos consis-tiam: no atendimento à criança - com uma proposta de psicoterapia breve, utilizando o Procedimento de Desenhos-Estórias2 -, a seus pais - que participaram de sessões em grupo e individuais - e à escola - com orientações às professoras e a toda comunidade escolar. Dessa equipe participaram psicólogos e pedagogos sob minha coordenação.

Lucas3 é um menino de 10 anos que freqüenta a 4ª série de uma escola pública. É filho único de uma família de classe média. Nasceu de parto prematuro e a permanência em berço isolete causou retinopatia da prematuridade: é cego. Submeteu-se a muitos exames oftalmológicos até a cirurgia, aos oito meses de idade; esta, segundo a mãe, foi acompanhada de muito sofrimento e pouco resultado. Até um ano de idade a criança não dorme bem, tem sono agitado e pesadelos; nessa época, toma calmantes; após melhora, a mãe suspende medicação por conta própria. Tem sono agitado, sendo freqüentes os pesadelos. Há dois anos atrás, o estado de agitação e a queixa de dor de cabeça foram investigados por exames, inclusive ressonância magnética. Os resultados foram normais.

Lucas chega aos atendimentos psicológicos com a queixa da professora especializada sobre sua dificuldade no aprendizado da matemática; é descrito como uma criança inteligente, mas que resiste ao aprendizado. Os pais também colocam o problema no aprendizado da matemática, dizendo que ele não sabe contas simples. Referem-se, também, a dificuldades de interação na escola, que, segundo eles, hoje está melhor. Já Lucas queixa-se bastante da escola, dizendo que é um ambiente ruim e hostil: a professora grita, os colegas caçoam dele e fazem muito barulho.

Considerando as queixas que nos foram apresentadas, logo nos vem à mente a palestra proferida por Winnicott na Association of Teachers of Mathematics (1968). Nela, o autor relaciona o estudo da matemática com o da personalidade humana, pois considera que ambos estão centrados na questão da unidade. Afirma que o estudo da matemática só terá sentido para o indivíduo quando ele se tornar uma unidade.

Vocês perceberão com facilidade onde estou querendo chegar: a idéiade que a aritmética começa com o conceito de um, e que isso deriva - necessariamente - do self unitário de toda criança em desenvolvimento. (Winnicott 1968, p. 45)

Será que a dificuldade de Lucas em matemática estava ligada a essa questão?

A integração parece ser uma complicada tarefa para as crianças com cegueira congênita4 e a queixa de dificuldades em matemática é comum entre elas. Além disso, a história de Lucas nos fala de uma condição inicial difícil: parto prematuro, angústia dos pais tentando reverter uma situação sentida como catastrófica e uma condição ambiental extremamente invasiva, com exames oftalmológicos, hospitalizações e cirurgia. Foi levantada como hipótese inicial dificuldades na área do estabelecimento do Eu Sou.

No segundo mês de atendimento, surge um fato que consideramos muito significativo e esclarecedor. Quando o terapeuta chega à sala de espera, Lucas está sentado bem junto à mãe, aninhado. Ela olha com expressão de sofrimento e cansaço e, ao ser perguntada sobre como estão, responde: "Mais ou menos, é que enfrentamos um probleminha". Lucas, no caminho para a sala de atendimento, explica que o problema foi uma dor intensa no ouvido na noite anterior. Conta que não conseguiu dormir e que o ouvido parecia que ia ser arrancado de tanta dor que sentia. Disse que ficou muito assustado, que o ouvido repuxava e que ele não sabia o que ia acontecer. A família o levou até um pronto-socorro. O ouvido estava inflamado e ele ficou muito nervoso. Aí ele conta com detalhes o que aconteceu no hospital:

Lucas: A médica perguntou se eu preferia gotinha ou injeção, aí eu preferi gotinha, mas eu ouvi (faz barulho) a embalagem se abrindo. Era injeção. Eu fiquei muito nervoso. Fiz o maior escândalo, teve que ter três para me segurar. Eu disse que não queria.

Terapeuta: Você se sentiu enganado?

Lucas: Eu entendi, eu escolhi gotinha, mas minha mãe preferiu injeção.

Uma condição discutida no atendimento aos pais das crianças cegas é que, por não enxergarem, elas têm menor controle do ambiente, possuem menos pistas sensoriais para lhes informar sobre o mundo externo, o que pode lhes trazer incertezas sobre o que está ocorrendo, sendo necessária a ajuda dos pais para que a criança possa desenvolver a crença no ambiente e a capacidade de confiar.

No caso de Lucas, vemos que a mãe, ao invés de ajudar a criança em sua confiabilidade no ambiente, favorece essa desconfiança; aproveitando-se de ele não ver, sinaliza à médica para que esta adote uma conduta diferente da que ele havia escolhido. Esse foi um ponto anotado para ser discutido com a mãe.

A questão da confiabilidade é básica para o desenvolvimento do ser humano. Os modos de interação para com as crianças com deficiência mostram-se, em muitas ocasiões, pouco confiáveis, seja pela angústia dos pais, seja pelas dificuldades da criança em decodificar as informações ambientais. Para que a criança possa caminhar de uma dependência relativa no rumo de uma independência, precisa ter a possibilidade de prever os acontecimentos futuros e isto só será possível se houver confiança no ambiente. "A palavra-chave no que tange ao lado ambiental (correspon-dendo à palavra `dependência') é `confiabilidade' - confiabilidade humana e não mecânica" (Winnicott 1968, p. 48).

No decorrer das sessões, foi-se tornando mais clara a dissociação de Lucas, sentida, também, pela dissonância entre suas estórias e suas palavras. Nas estórias que conta, aparece como um menino independente e seguro, diante de um ambiente hostil e agressivo, mas a sensação que causa é a de um garoto extremamente frágil e solitário. Durante algumas sessões, conta estórias em que, sempre isolado, consegue sucesso nos seus propósitos, agride e vence todos os que o ameaçam. Elege a professora, os colegas e a escola como o ambiente mal que odeia e quer destruir.

Foi ficando claro que o caso de Lucas deveria ser classificado na categoria daqueles "nos quais a totalidade está apenas começando a ser considerada como algo que se pode levar em conta" (Winnicott 1954-5, p. 460); aqueles que não conseguem integrar o amor e o ódio. Lucas desenvolve um comportamento hostil em relação ao mundo como defesa contra sua fragilidade ante as ameaças deste.

Lembrando a colocação de Winnicott, de que o importante nesse momento é que o terapeuta sobreviva, era colocado para Lucas que percebíamos sua raiva e sua vontade de acabar com tudo.

Um dia ocorreu um fato que deu oportunidade para uma intervenção significativa. Após contar situações que estava vivendo na escola, como se sentia ameaçado e como gostaria de revidar, diz:

L: Agora vou fazer um desenho de uma casa grandona... Hoje é sexta-feira, é dia de zoar (fazer bagunça na perua escolar).

Lucas vai falando enquanto desenha. Conta que tem aulas com a professora especializada às terças e sextas-feiras. De repente rasga o papel com o lápis, pois estava fazendo muita força no traçado. A ponta do lápis quebra e ele leva um susto. Eu lhe digo:

T: Você levou um susto por ter quebrado a ponta do lápis e rasgado o papel.

Ofereço apontador, ele aponta o lápis e lhe digo:

T: Você quebrou o lápis, mas também pode consertá-lo.

Esse episódio foi relembrado por Lucas em muitos outros momentos, revelando que naquele momento foi vivida uma experiência real de raiva e agressão, mas também de reparação.

Continua por um período a falar de como se vinga das pessoas, como cria artimanhas para prejudicá-las e como prepara armadilhas para que elas se prejudiquem; aos poucos começa a falar de seus medos e pesadelos. Algumas vezes não fica claro se ele está nos relatando pesadelos ou alucinações, ou se está no estado indiscriminado de passagem do sono para a vigília.

Um pesadelo que conta é o seguinte:

L: Mal deitei na cama, ouvi um sopro nas minhas costas. Era um monte de parede que veio se aproximando. Saco! Saco! Gritei. Eu acordei e gritei. As paredes iam me seguindo, se aproximando e vinham me cercar... Meu pai estava vendo TV e veio para o quarto e acendeu a luz. Meu pai falou: "Isso não é nada". Em outra ocasião apareceu um negócio redondo, grandão, que andava dentro que fazia medo, um bicho que cercava, que pisava, eu não queria aquela coisa. Sentia que tinha uns buracos que soltava os bichos, uma vez aquela coisa ia para minha cama. Aí tinha um bocão e se eu me mexesse parecia que eu ia cair, que tinha um buraco. Aí dei um grito. Às vezes eu sinto que tem uma coisa me seguindo pela casa. Penso, se eu tiver pesadelo eu vou pôr um banquinho na geladeira e vou comer presunto e quero ver o pesadelo me pegar na cozinha. Eu tomo água com açúcar para fazer a digestão.

Falamos de como ele se sentia só para enfrentar os pesadelos e de como ele achava que comendo ia ficar mais forte para vencê-los. De como ele não contava com ninguém para ajudá-lo. E de como era difícil às vezes saber o que era imaginação e o que era realidade.

Um aspecto interessante, que chama a atenção, é o tipo de pesadelo relatado por Lucas. Há sempre uma ameaça tátil ou cinestésica: "sopro nas costas", "bicho que pisava", "buraco em que caía", "uma coisa me seguindo". Por outro lado, o confortador está relacionado a uma satisfação oral: "vou pôr um banquinho na geladeira e comer presunto".

A repetição dessas sensações nos leva a supor a grande dificuldade de Lucas na área dos fenômenos transicionais. Seus medos parecem estar relacionados à sua incapacidade para discriminar os objetos da imaginação daqueles da realidade e em transformar os objetos subjetivos em objetos compartilhados.

Pensando com Winnicott, parece-nos que Lucas tem dificuldades para estabelecer uma efetiva passagem da relação com o objeto para o uso do objeto. Conta, em várias situações, sua incapacidade para aceitar as frustrações e falhas naturais, e inevitáveis, do ambiente. A realidade é vivida como hostil e frustradora, o que o impede de destruir o objeto subjetivo e de poder amar o objeto da realidade compartilhada, percebendo sua dependência dele.

Paralelamente, Vanda, a mãe de Lucas, estava sendo orientada. Seu processo caminhou de uma atitude defensiva, em que procurava nos mostrar todo o cuidado que teve com o filho, para uma atitude de extrema fragilidade, em que nos falava de suas angústias por não saber como lidar com uma criança cega e de sua sensação de incapacidade. Chegou a nos falar sobre as disputas e competições com suas irmãs e o compromisso com o pai, que esperava dela a oportunidade para uma ascensão familiar. O nascimento de um filho cego foi elemento desestruturante de sua dinâmica pessoal. A imagem de si como vencedora foi quebrada, fazendo reviver suas angústias e culpas ante uma mãe sentida como frágil e desvalorizada. Sua defesa foi uma dedicação total à sua vida profissional, de forma a ter condições financeiras para dar a Lucas toda possibilidade de tratamento e recursos materiais, o que lhe deixava pouco tempo para conviver com o filho. Discutimos suas dificuldades e capacidades, salientando os esforços que fazia, sua ambivalência e as necessidades de Lucas. Vanda deixou de trabalhar por um período e pôde dedicar-se mais ao filho, restaurando sua relação com ele.

No término dos atendimentos, Lucas já não apresentava tantas dificuldades em matemática e não tinha mais pesadelos. Após o final das sessões programadas, foi indicado a Lucas a continuidade do tratamento, assim como à sua mãe. As propostas de Winnicott foram muito esclarecedoras para a compreensão deste caso e para os atendimentos que se seguiram.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
E-mail: mltma@usp.br

Recebido em 12 de fevereiro de 2003
Aprovado em 28 de abril de 2003

 

 

* Doutora em Psicologia e docente da USP
1 Esse tema foi desenvolvido com grande propriedade por Loparic no texto: "Winnicott: uma psicanálise não-edipiana" (1996), no qual analisa as propostas de Freud e Winnicott, assinalando as diferenças entre ambos.
2 Técnica terapêutica desenvolvida por Amiralian 1997a, a partir do uso desse procedimento diagnóstico.
3 Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos casos.
4 Em pesquisa anterior (Amiralian 1997b), evidenciou-se essa dificuldade pela necessidade dos cegos congênitos de ter de haver-se com uma tríplice integração: seu mundo interno, o mundo externo experienciado por seu sistema perceptivo e o mundo externo experienciado pelos videntes, centrado na percepção visual.