Natureza humana
ISSN 1517-2430
RESENHAS
Mario Fleig
Prof. Dr. do PPG-Filosofia da Unisinos
Marin Heidegger 2001 [1987]: Seminários de Zollikon. Editado por Medard Boss. Traduzido por Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado. São Paulo/Petrópolis, Educ/ABD/Vozes. ISBN: 85-283-0265-2 (Educ) ISBN: 85-326-2627-0 (Vozes)
Heidegger realizou seminários para estudantes de psiquiatria sobre sua obra Ser e tempo, a partir da iniciativa feita em 1947 por Medard Boss, estendendo-se como atividade regular até 1970. Os seminários eram dados na casa de Boss, em Zollikon, que além de propor este diálogo entre Heidegger, a psiquiatria e a psicanálise, teve o cuidado de recolher esse material, publicado em 1987. Agora temos esta obra em português.
O interesse pela obra de Heidegger, desde a publicação de Ser e tempo em 1927, foi grande e a primeira tentativa de incorporar sua crítica à ciência moderna e à metafísica aos fundamentos da psiquiatria e da psicanálise aparece na obra Formas fundamentais e conhecimento do Dasein humano, de Ludwig Binswanger, em 1941. Contudo, este grande psiquiatra não abandona as contribuições que também encontrara no transcendentalismo kantiano e na fenomenologia de Husserl. Reconhece em Ser e tempo a importância da análise ontológico-fundamental do modo de ser no mundo e do Dasein pré-científico e exte-rior à ciência, da crítica à ontologia cartesiana, do conceito de existência no qual está a relação de convivência, o ser-com e o ser-com-outros-Dasein e da noção de facticidade. Contundo, propõe uma correção desta obra, pois também nela "a relação de comunidade no sentido do amor não encontra lugar algum".
Nos Seminários de Zollikon Heidegger tece suas reservas a respeito da utilização da conceituação de Ser e tempo por parte de Binswanger, denunciando sua confusão entre analítica existencial e antropologia. A tentativa de corrigir a obra de Heidegger, pela substituição da categoria do cuidado pela categoria do amor, é um mal-entendido de Binswanger, que "não consiste tanto em que ele quer complementar o `cuidado' pelo amor, mas sim, no fato de que ele não vê que o cuidado tem um sentido existencial, isto é, ontológico, que a analítica do Dasein pergunta pela sua constituição fundamental ontológica (existencial) e não quer simplesmente descrever fenômenos ônticos do Dasein. Já o projeto abrangente do ser-homem como Dasein no sentido ek-stático é ontológico, pelo qual a representação do ser-homem como `subjetividade da consciência' é superada. Este projeto torna visível a compreensão do ser como constituição fundamental do Dasein" (p. 142). Assim, para Heidegger, a "Daseinsanalyse" psiquiátrica (Binswanger) retirou da Análise Ontológica-Fundamental do Dasein a constituição fundamental que em Ser e tempo chama-se ser-no-mundo e a utilizou, baseando sua ciência unicamente nela. Mas ela é apenas a estrutura primária que se torna evidente na primeira parte da Ontologia Fundamental - e não a única e, sobretudo, não aquela para a qual a Ontologia Fundamental aponta singularmente por ser a principal para o Dasein e sua essência. Ela (esta estrutura fundamental) está indicada na introdução clara e freqüentemente: a "compreensão-do-ser" (p. 205). A conseqüência da eliminação da "compreensão-do-ser é uma interpretação inadequada do ser-no-mundo e da transcendência.Ou seja, Binswanger interpreta o pensamento de Heidegger como sendo uma continuidade coerente da filosofia de Kant e Husserl, deixando escapar o caráter específico do Dasein em comparação com os entes que não têm o caráter do Dasein. Em outro termos, Binswanger passou por cima da crítica heideggeriana da ciência moderna como restrita à ontologia da coisa e por isso mesmo insuficiente para dar conta do mundo do existente humano.
Outro caminho se abriu através dos debates com M. Boss, permitindo retomar a psicanálise e discutir sua relação com a metafísica moderna. As ciências humanas participam do projeto matemático da ciência moderna, objetivando o ente e decidindo a priori o que ele deve ser. Em suas análises desenvolvidas nesses seminários, Heidegger inclui o procedimento freudiano no campo das ciências humanas, com vista a uma possível retomada a partir da analítica do Dasein. O modelo galilaico-newtoniano que está no princípio da ciência moderna e das ciências humanas, enquanto esquema da causalidade natural, mostra-se inadequado para uma interpretação do existente humano, pois a unificação do universo proposta pela síntese newtoniana introduz uma cisão, já denun-ciada por Husserl, entre o mundo da objetivação científica e o mundo da vida. Nessa perspectiva, a crítica heideggeriana da hipótese freudiana do inconsciente é co-extensiva à crítica da ontologia cartesiana da res extensa, na medida em que carece de um conceito ontológico-existencial de mundo. A analítica existencial não visa reconduzir do sintoma ao inconsciente, através de uma explicação causal, como Heidegger aponta no procedimento freudiano, mas, antes, "perguntar-se por aquelas determinações que caracterizam o ser do Dasein com referência à sua relação com o ser em geral" (p. 146).
Nesta direção, a analítica existencial permitiria a realização de uma Daseinsanálise na medida em que tome como pressuposto os existen-
ciais, na sua dimensão historial. Essa Daseinsanálise antropológica pode se dividir por sua vez "em (a) uma Antropologia normal e (b) uma patologia daseinsanalítica a ela relacionada. Por tratar-se de uma análise antropológica do Dasein, uma mera classificação dos fenômenos destacados não pode ser suficiente, mas precisa ser orientada para a existência histórica concreta do homem contemporâneo, isto é, do homem que existe na sociedade industrial contemporânea" (p. 151).
Essa perspectiva permitiria então o exame crítico dos efeitos do desenvolvimento da essência da técnica moderna, tomada como figura da metafísica ocidental realizada como niilismo. Heidegger desenvolve esta perspectiva ao longo dos Seminários, examinando os efeitos da consideração da natureza enquanto estritamente submetida ao modelo da mensurabilidade e ao mesmo tempo introduzindo a perspectiva da fenomenologia hermenêutica, a partir da estrutura originária do Dasein enquanto abertura e compreensão do ser. Isso lhe permite discutir as questões trazidas por M. Boss e seu grupo a respeito da medicina psicossomática e a questão do corpo, da sexualidade e mesmo da psicopatologia psiquiátrica. O fio condutor da interpretação da ciência moderna, no interior da qual se encontra situada a psicanálise, é que o Dasein não é representável como um ente subsistente, no modelo da ontologia da coisa objetificável. Afirma Heidegger: "Entretanto, se há coisas que por natureza resistem à mensurabilidade, então toda tentativa de medir sua determinação pelo método de uma ciência exata é impertinente" (p. 158).
Esse caminho aberto no diálogo com M. Boss tem se mostrado frutífero, especialmente na discussão dos efeitos da ciência moderna no interior do freudismo e de outras teorias psicológicas atuais. As possibilidades de discussão que os Seminários trazem são extremamente interessantes, ainda que não esgotem a problemática.
Deste modo, os Seminários de Zollikon marcam a presença da analítica existencial heideggeriana no campo das ciências da alma, fornecendo um instrumento para a crítica de pressupostos metafísicos da psiquiatria, da psicanálise e da psicologia. A publicação desta obra em nosso país revela a receptividade do pensamento heideggeriano, assim como possibilita a ampliação da discussão em torno das escolhas de tradução da linguagem tão complexa do pensador da Floresta Negra. A presente tradução que temos em mãos revela um árduo trabalho realizado pelas tradutoras, que certamente não foi abrandado pela familiaridade com a língua alemã que deixam transparecer. Parece-nos que encontraram dois tipos de dificuldades.
A primeira, que talvez jamais alcançará uma solução, pois toca no núcleo da impossibilidade da própria tradução de uma língua para outra, foi em parte contornada pela manutenção entre parêntese das expressões e termos no original. Esta opção favorece o leitor, pois o mesmo pode tomar uma posição a respeito da escolha das tradutoras.
A segunda, que se situa no âmbito de escolhas que escapam à especificidade filosófica ou que oscilam entre diferentes opções, pode criar dificuldades para o leitor. A respeito disso, então, cabe ao leitor estar atento. Apenas para exemplificar e deixar isso mais claro, vejamos: no índice da obra, e também adiante, "Vernehmenkönnen" é traduzido por "poder-apreender", o que não está mal, mas deixa escapar a especificidade do "perceber", como se costuma traduzir filosoficamente o "Vernehmen". Para "Unterscheidung des Seins vom Seienden" nos parece excessivo introduzir o "entre" na escolha de "diferenciação entre ser e ente". A tradução de "Gesetzmässigkeit der Natur" por "legalidade da natureza" pode deixar o leitor desorientado, visto que se trata da questão da regularidade da natureza ou, literalmente, "da conformidade da natureza à lei". A tradução de "Nacheinander", "Jetztfolge" e "Rangverhältnis" por "seqüência", "seqüência dos agoras" e "relação de seqüência" (p. 20) certamente dissolve diferenças marcantes e empobrece a tradução. Seria possível fazer uso de "sucessão" e "relação de graduação". Além disso, encontramos escolhas inaceitáveis, pois ferem o pensamento heideggeriano, como traduzir "Die Bestimmtheit des Seins" por "a certeza do ser" (p. 20), visto que "a certeza" remete para o predomínio da subjetividade (Descartes), traço fundante da modernidade, objeto da crítica à metafísica realizada por Heidegger.
Endereço para correspondência
E-mail: Mfleig@bage.unisinos.br
Recebido em 24 de fevereiro de 2003
Aprovado em 28 de maio de 2003
* Versão modificada da resenha anteriormente publicada na revista Theoria, v. 18, n. 46, pp. 109-10, 2003.