Natureza humana
ISSN 1517-2430
RESENHAS
Jairo José da Silva
Professor Adjunto do Departamento de Matemática da Unesp, Rio Claro
Décio Krause 2002: Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo, E.D.U. ISBN: 85-12-79110-1
Um texto em português, de um autor brasileiro, sobre filosofia da ciência é sempre bem-vindo, se não por mais forte razão, pelo menos por acrescentar um novo título a tão magra bibliografia. Assim, esse livro do professor Décio Krause, um nome respeitado entre aqueles que entre nós se interessam pelo tratamento filosófico de questões científicas, merece, para além de suas possíveis virtudes intrínsecas, uma acolhida amistosa. Se o leitor desta resenha deseja simplesmente saber se esse livro tem, pelo seu conteúdo, qualidades que justifiquem a sua leitura, minha resposta curta é sim. Seja quem for, o leitor desse livro encontrará nele algo sobre o que refletir, desde que, claro, interesse-se em alguma medida pela história e filosofia das ciências. Mas, assim como notícia boa não vende jornal, uma resenha risonha, além de aborrecida, não engata nenhum diálogo produtivo (e sempre desperta uma ligeira suspeita de esprit de corps, além de também não vender nada). Desse modo, prefiro apontar o que nesse livro agradou-me menos, esperando assim criar um contraponto que ainda mais motive o provável leitor.
Comecemos pelo título, que me parece um pouco enganador, uma vez que o livro trata mais da teoria dos conjuntos que da axiomática da ciência. O caminho que leva o autor de um tema ao outro é o seguinte: as teorias científicas são em geral axiomatizadas em sistemas interpretados, isto é, com um modelo privilegiado ou pretendido, precisamente o domínio de entidades reais de que tratam as teorias em questão. As axiomáticas interpretadas, no entanto, admitem formalização em sistemas não interpretados que possuem em geral modelos muito diferentes entre si, tanto em conteúdo quanto estrutura. Mas, tanto num caso como no outro, os modelos, privilegiados ou não, são sempre invariavelmente estruturas conjuntistas. Ou seja, o processo de axiomatização pressupõe que o domínio a ser axiomatizado possa ser pensado como uma coleção de objetos, com todas as conseqüências filosóficas que isso traz. Por isso o autor dedica a maior parte de seu livro à teoria de conjuntos.
Cabe aqui uma ressalva a como o autor caracteriza, em mais de um lugar, as teorias puramente formais. Segundo ele, essas teorias não se referem a nada, são discursos sem objeto. Ora, por não terem um modelo privilegiado, as teorias formais não são ipso facto meros jogos simbólicos. A verdade é o oposto disso, por não serem teo-rias sobre nada em particular, elas são teorias sobre várias coisas simultanea-mente. Mas, e aqui reside uma observação importante, essas diversas coisas têm em comum uma estrutura formal, e é dela que a teoria formal trata. A manipulação puramente mecânica de símbolos não é um simples jogo, mas o modo de se obter conhecimento de estruturas formais ou, se quisermos, formas lógicas.
Vamos adiante. Um autor, ao escrever seu livro, tem em geral um público em mente. Neste caso, esse público-alvo não me parece muito bem delimitado. O livro se declara já no título um livro de introdução, mas não exclui do campo dos seus leitores, além de "qualquer pessoa interessada na discussão filosófica acerca dos fundamentos da ciência", "matemáticos, físicos e filósofos". Ora, esses prováveis leitores têm, além de backgrounds muito distintos e diferentes níveis de informação sobre o assunto, distintas expectativas quanto às questões a serem discutidas e os níveis de profundidade em que esperam vê-las tratadas.
Para atender público tão diversificado, o autor muitas vezes escolhe tratar problemas delicados da filosofia da teoria de conjuntos de modo menos rigoroso que o desejável (trataremos disso mais abaixo). Ele talvez tenha se sentido liberado das suas obrigações com respeito ao rigor, histórico ou conceitual, pelo autoproclamado caráter introdutório do texto. Mas isso me parece um erro. São os textos para principiantes, estudantes ou curiosos que mais devem cuidar desse aspecto, uma vez que o leitor mais experiente pode ele próprio corrigir eventuais imprecisões do autor. Mas a combinação de rigor com simplicidade não é fácil e é sempre um teste decisivo do valor de uma obra de divulgação ou introdução.
Essa falta de alvo preciso faz com que os limites do livro sejam muitas vezes um estorvo para o autor. Ele freqüentemente vê-se obrigado, dada a amplidão de seu público-alvo, a remeter o leitor para a literatura quando lhe falta espaço para completar uma apresentação ou discussão. Talvez tivesse sido melhor uma seleção mais cuidadosa dos tópicos tratados ou uma delimitação mais precisa do seu público.
Vejamos agora alguns aspectos do tratamento dado no livro à filosofia da teoria dos conjuntos que considero criticáveis.
Em primeiro lugar, o autor não deixa sempre clara a diferença entre a teoria dos conjuntos, isto é, a teoria matemática, axiomática ou não, sobre os conjuntos, entendidos seja como um domínio de entidades abstratas dadas, seja como a extensão do conceito formal de conjunto, e a teoria - ou teo-rias - de conjuntos, entendida(s) como teoria(s) formal(ais) sem interpretação privilegiada. A compreensão da diferença e relação entre essas duas formas de uma teoria matemática (a teoria formal é obtida por abstração formalizante, para usar a terminologia de Husserl, da teoria axiomática com domínio próprio) é essencial para a compreensão da natureza do conhecimento matemático, e me agradaria tê-las visto melhor tratadas.
Ademais, o autor deixa entender (ou pelo menos eu assim entendi) que ele crê que os conjuntos são entidades matemáticas abstratas tais que falar de conjuntos de coisas concretas, por exemplo, seria na melhor das hipóteses um relaxamento da linguagem. Isso, evidentemente, não é verdade. Há, claro, conjuntos puros, como os matemáticos, que são em forma e conteúdo entidades abstratas. Mas há também aqueles que são em conteúdo concretos, mas em forma abstratos, como qualquer conjunto de objetos reais. Os conjuntos matemáticos são formas abstratas, "cascas" ocas à espera de preenchimento, e nesse sentido são sim entidades matemáticas abstratas, mas isso não quer dizer que não possam ser preenchidos por conteúdos concretos, pois, se não fosse assim, a teo-ria dos conjuntos não poderia ter aplicação na ciência empírica.
Se bem que mencione en passant que há autores que não crêem que os "paradoxos" tenham sido determinantes no esforço de axiomatizar a teoria dos conjuntos, o autor faz o leitor acreditar nisso, dando um espaço muito grande a esses paradoxos antes de tratar da axiomatização da teoria. Vários estudos disponíveis sobre esse assunto deixam claro, entretanto, que os fatores realmente importantes no processo de axiomatização da teoria dos conjuntos estavam ligados às tentativas de demonstração do teorema da boa-ordenação (que diz que todo conjunto pode ser bem ordenado), essencial para a teoria dos números cardinais e ordinais, que é o cerne da teoria de Cantor. Mesmo porque não há, contra-riamente ao que afirma o autor, paradoxos na teoria cantoriana. Pois se, segundo Cantor, conjuntos são totalidades que se deixam pensar como unidades, isto é, como itens colecionáveis (vide abaixo), se uma totalidade não pode ser assim pensada ela simplesmente não é um conjunto, como a totalidade dos ordinais, por exemplo. Essas são as totalidades que Cantor chamava de inconsistentes e que hoje chamamos de classes próprias. Os ditos "parados" da teoria cantoriana nada mais são que reduções ao absurdo da hipótese de que certas classes inconsistentes são conjuntos. Claro, à teoria de Cantor faltava um critério independente de distinção entre conjuntos e classes próprias, o que a axiomatização posterior viria prover, mas nisso não se distinguia de muitas outras teoria matemáticas do século XIX.
Cantor nos forneceu em mais de uma ocasião explicações do conceito de conjunto, que alguns autores, Krause inclusive, preferem ver como canhestras tentativas de definição matemática desse conceito. Cantor, obvia-mente, não as entendia como tais. Uma dessas caracterizações é clássica: "um conjunto é uma multiplicidade que pode ser pensada como uma unidade, ou seja, uma multiplicidade de elementos determinados que podem ser juntados numa totalidade por meio de uma lei". O relevante nesta discussão é que Krause acredita que se pode, a partir dessas explicações, sem mais, evidenciar alguns "pressupostos" da teoria de Cantor, a saber:
1. Os elementos de um conjunto são assim em virtude de uma lei. É uma lei que os mantém "unidos" como elementos de um conjunto;
2. Um conjunto é determinado por seus elementos;
3. Os elementos de um conjunto são entre si distintos;
4. Os elementos de um conjunto "preexistem" a ele.
Segundo Krause, esses pressupostos são simplesmente versões de:
a) O princípio de compreensão;
b) O princípio de extensionalidade;
c) O conceito de identidade para os elementos de um conjunto;
d) A concepção iterativa de conjunto.
Há aqui vários non sequitur. Em primeiro lugar, a explicação cantoriana citada acima contém na verdade duas concepções distintas de conjunto. A primeira, um conjunto é uma multiplicidade que se deixa pensar como unidade; a segunda, um conjunto é a extensão de um predicado. Essas concepções são, como depois ficou claro, incompatíveis entre si. Da primeira se pode derivar, não sem esforços consideráveis (veja o meu artigo "The Axioms of Set Theory", Axiomathes, v. 13, n. 2, dezembro 2002, pp. 107-126), a concepção matemática (iterativa) de conjunto, a segunda é nada menos que a concepção lógica de conjunto, cuja inconsistência Russell exibiu por meio do conhecido paradoxo que leva seu nome.
Já o princípio de compreensão é um pobre resquício da concepção lógica contrabandeado para a axiomática da teoria dos conjuntos. A concepção lógica exige que qualquer predicado dê origem, por passagem à extensão, a um conjunto, o princípio de compreensão garante apenas que a restrição a um conjunto previamente dado da extensão de um predicado expresso por uma fórmula da linguagem da teoria dos conjuntos é um conjunto. Não são exatamente a mesma coisa.
O "princípio" 4, por sua vez, de modo algum está obviamente "contido" na explicação cantoriana de conjunto. Ele é na verdade um princípio de dependência ontológica implícito no caráter formal dos conjuntos. Um conjunto é um objeto ontologicamente dependente de seus elementos porque um conjunto é uma forma imposta pelo pensamento a uma multiplicidade dada de elementos. Um conjunto é uma multiplicidade pensável como unidade (a ênfase toda está nesse "pensável"). Se bem que a prioridade dos elementos vis-à-vis o conjunto seja parte essencial da concepção iterativa, esta não se reduz àquela. É necessário também que um conjunto seja uma unidade, ou seja, algo que, por sua vez, pode ser elemento de um conjunto, pois é isso que "unidade" significa neste contexto.
Uma palavra de advertência cabe aqui. É moeda corrente entender a prioridade dos elementos de um conjunto em relação a ele em termos temporais. Os elementos existem "antes" que o conjunto exista, este passa a existir apenas "depois" de "aparecerem" todos os seus elementos. Esses "antes" e "depois" são, ainda que implicitamente, entendidos sempre como instantes. É como se um sujeito transcendental coletasse, ao longo do tempo, objetos quaisquer, inclusive conjuntos já "montados", em conjuntos. Em geral critica-se essa imagem pela impossibilidade de se identificar esse sujeito transcendental a qualquer sujeito, real ou ideal, individual ou coletivo. Na verdade, o problema é outro, a prioridade dos elementos de um conjunto com respeito a ele não é de ordem temporal, mas ontológica. Os conjuntos, pelo menos na visão clássica ortodoxa, não são produtos da ação de um sujeito que os dispõe em níveis hierárquicos segundo a ordem de sua constituição. Os conjuntos simplesmente são e se dispõem numa hierarquia em virtude de uma relação de dependência ontológica entre eles. É claro que a explicação do conceito de conjunto dada por Cantor, citada acima, menciona explicitamente um pensar, e portanto um sujeito que pensa, mas o próprio Cantor identifica esse sujeito ao Absoluto por excelência, Deus, que como sabemos está fora do tempo.
Eis aqui um argumento simples para mostrar a impossibilidade de se pensar a concepção iterativa em termos propriamente construtivos. Se os conjuntos são de fato constituídos num processo iterativo no tempo, por não importa quão potente sujeito, então os níveis da hierarquia cumulativa poderiam ser indexados por instantes temporais. Mas como a totalidade dos instantes forma um conjunto (é um contínuo linear de cardinalidade bem determinada), e os níveis da hierarquia dos conjuntos não podem, a menos de contradição, ser indexados por um conjunto, então essa hierarquia não pode ser constituída no tempo.
O princípio de extensionalidade, por sua vez, não segue do fato de um conjunto ser, apenas do ponto de vista material, formado por seus elementos. Há ainda o aspecto formal a ser considerado. É bem possível que o modo como os elementos de um conjunto se agregam nele seja parte integrante da identidade desse conjunto. Se um conjunto é mesmo determinado por uma lei (ou por um modo de pensar a unidade de seus elementos), o que impede que consideremos essa lei (ou modo) como determinante da identidade do conjunto, negando assim o princípio de extensionalidade? A caracterização do conceito de conjunto por Cantor pode perfeitamente ser assim interpretada, ainda que sua teoria tenha sido de fato extensional. O modo como Cantor entende seus esclarecimentos não é, claro, uma indicação de correlações necessárias.
Finalmente, não vejo como dizer que os elementos de um conjunto são sempre elementos distinguíveis tenha algo a ver com algum "conceito de identidade" para eles, nem na verdade o que o autor entende por isso. O que Cantor nos diz é que se não podemos distinguir entre os elementos de uma multiplicidade, essa multiplicidade não é um conjunto. Isso porque, para ele, um conjunto deve ser sempre contável, i.e. todo conjunto tem uma cardinalidade bem determinada. Esse é um aspecto essencial da teoria de Cantor. Em contextos onde não se pode distinguir entre entidades, a teoria de conjuntos de Cantor simplesmente não cabe (o que não impede que alguma outra teoria de conjuntos caiba). Isso tem a ver com uma crítica pertinente que faz o autor ao uso da teoria clássica de conjuntos nas modernas teorias físicas, que, como a mecânica quântica, não possuem uma noção forte de identidade entre os seus objetos. Se um domínio científico é tal que não se pode a rigor dizer que contém uma quantidade determinada de elementos, esse domínio não pode ser pensado como um conjunto, pelo menos não na concepção clássica cantoriana de conjunto.
No último capítulo do livro o autor deixa crer que a existência de diferentes possíveis sistemas lógicos é de algum modo incompatível com o caráter apriorístico da lógica. Ele parece pensar que somente relativizando a lógica a domínios determinados, e assim eliminando-lhe a universalidade, ela pode admitir variantes incompatíveis entre si. A verdade desta ou daquela lógica seria então condi-cionada a, e de algum modo determinada por seu domínio, perdendo assim o caráter a priori. Isso me parece incorreto. Uma lógica não é uma teoria de objetos, mas de conceitos e relações, ou seja, é uma teoria de segunda ordem (mesmo a chamada lógica de primeira ordem, se vista como uma teoria não de objetos, mas de relações, é uma teoria de segunda ordem). Uma teoria lógica "explica" seu campo conceitual da mesma forma que uma teoria matemática explica os domínios de objetos dos quais trata. E essa "explicação" é toda ela a priori, pois não está determinado ainda a que domínio objetivo um tal campo conceitual pode ser imposto com proveito. E essa é uma decisão pragmática. Passa-se com a lógica o que se passa com qualquer outra teoria matemática. Por exemplo, para usar uma analogia favorita do autor, as diversas geometrias que há tratam de diferentes concepções de espaço, mesmo que essas concepções sejam criações puramente intelectuais, meras possibilidades de se pensar relações espaciais. Ainda que uma geometria seja sugerida de algum modo pela experiência, não importa, o trabalho do matemático é sempre independente da experiência, i.e. a priori. Já a utilidade de uma certa concepção espacial, e da geometria dela decorrente, é um fato determinado por fatores extrateóricos, de conveniência, elegância, o que seja.
O mesmo se passa com a lógica. As diferentes lógicas são apenas diferentes teorias de diferentes tipos de relações lógicas, cada uma delas instaurando seu próprio campo de significados, a serem explorados sem nenhum apelo à experiência. São então disponibilizadas para o uso conforme a necessidade ou a conveniência. Por isso, na verdade, não existe conflito entre lógicas, assim como não há conflito entre as geometrias ou as muitas teorias de conjuntos. Fatos estabelecidos a priori nem sempre têm validade universal.
Para finalizar, insisto em que esses comentários críticos quiseram apenas oferecer um outro olhar sobre algumas das questões tratadas pelo autor nesse livro. Que a leitura desse texto os tenha inspirado é, creio, um testemunho do seu valor, pois um livro do qual não se possa discordar e com o qual não se possa polemizar tem, pelo menos para mim, escassa serventia. Que eu tenha querido fazer tais comentários, porém, tem também o seu significado. Parece-me que o provável leitor de Krause não deve tomar todas as suas afirmações sem um necessário grão de sal, lembrando que, em filosofia, ainda que filosofia da ciência, o consenso é, felizmente, artigo raro.
Endereço para correspondência
E-mail: jairomat@linkway.com.br
Recebido em 26 de fevereiro de 2003
Aprovado em 30 de abril de 2003