Natureza humana
ISSN 1517-2430
ARTIGOS
Escritura e psicanálise: Derrida, leitor de Freud
Writing and Psychoanalysis: Derrida as a Freud’s reader
Joel Birman
Psicanalista, Professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RESUMO
A finalidade deste ensaio é evidenciar como o inconsciente, descrito teoricamente por Freud na constituição da psicanálise, pode ser concebido como uma escritura e não segundo o modelo da linguagem falada, de acordo com a interpretação proposta por Derrida.
Palavras-chave: Inconsciente, Escritura, Fala.
ABSTRACT
The aim of this article is of showing the interpretation by which the unconscious, theoretically outlined by Freud in the constitution of the psychanalysis, can be thought as a writing and not as the spoken language, by the interpretation proposed by Derrida.
Keywords: Unconscious, Writing, Speaking.
Livro e texto
A totalidade do percurso filosófico de Derrida está fundada na problemática da escritura. Foi em torno desse eixo teórico que este desenvolveu todos os seus temas de meditação e de pesquisa, derivações circunscritas daquele centro efetivo de preocupação maior. Daí ter formulado, de maneira peremptória e até mesmo intempestiva, na “Gramatologia”, que não existiria nada fora do texto (Derrida 1967a, p. 227).
Esta foi a sua contribuição original e fundamental para a filosofia contemporânea, sem qualquer dúvida, na medida em que passou a caracterizar a constituição da modernidade, iniciada no século XIX, pelo advento da escritura. Esta, identificada que foi com a idéia de texto, se oporia à problemática que lhe antecedeu historicamente, dominada pela presença eloqüente do livro (ibid., cap. 1, 1ª parte). Este teria, enfim, regulado toda a tradição teórica anterior, de forma a ser constitutivo da metafísica e da teologia. Daí o capítulo inaugural da “Gramatologia” ser intitulado “O fim do livro e o começo da escritura” (idem).
Nesse contexto, o discurso filosófico de Hegel foi destacado como o último representante legítimo da tradição do livro e o primeiro a balbuciar o começo da tradição da escritura (ibid., pp. 39-41). Se Hegel elogia a leitura de Leibniz da escritura não-fonética, por um lado, o horizonte do saber absoluto seria, contudo, o apagamento da escritura em prol de logos e a reapropriação da diferença, pelo outro. Porém, não se pode esquecer que Hegel foi também o pensador da diferença irredutível e, dessa maneira, reabilitou o pensamento como memória produtora de signos (ibid., p. 41).
O discurso filosófico de Nietzsche já se destacava na segunda metade do século XIX pela sua crítica feroz à tradição metafísica e pela promoção do conceito de interpretação no registro estrito do texto (ibid., pp. 31-3). O último Heidegger se inscreveu finalmente também nessa nova tradição, não obstante as suas ambigüidades iniciais diante disso, quando se aferrava ainda ao filosofema do ser como voz (ibid., pp. 33-9), tal como foi enunciado no Ser e tempo (ibid., pp. 21-2) e na Introdução à metafísica (ibid., p. 22).
Presença, logos e episteme
Não é absolutamente arbitrária, aqui, essa referência inicial à problemática da voz, pois esta, como phone, dominou a totalidade da metafísica ocidental, desde Platão e Aristóteles. Seria pela mediação da voz que o ser se colocaria efetiva e imediatamente como presença, conforme nos disse Aristóteles em “Da interpretação”. Nessa perspectiva, a voz seria a produtora dos primeiros símbolos e teria, então, uma proximidade imediata com a alma (idem).
A voz, assim, não seria um simples significante entre outros, pois teria uma posição privilegiada. Isso porque expressaria imediatamente o estado da alma, que refletiria as coisas por mera semelhança natural. Portanto, entre o ser e a alma, entre as coisas e as afecções, existiria uma relação de significação natural. Vale dizer, entre a alma e o logos haveria uma relação de simbolização convencional. A primeira convenção, que se relacionaria imediatamente com a ordem da significação natural e universal, iria se produzir como linguagem falada. Portanto, a linguagem escrita apenas fixaria as convenções, ligando entre elas as demais convenções (idem).
Antes de Aristóteles, contudo, Platão já desqualificava a escrita em relação à voz. Assim, a escrita seria uma simples forma de registro daquilo produzido vivamente pela palavra falada. Seria esta, portanto, que evocaria a presença plena do ser, como nos disse Platão no Fedro. Nessa perspectiva, a escrita seria algo da ordem do veneno e não do remédio, como enunciou Derrida em “A farmácia de Platão” (1967d), já que na oposição entre remédio e veneno se articularia outra oposição fundamental, qual seja, a da verdade e da não-verdade no campo do logos comandado pelo imperativo da vontade de verdade.
Na leitura proposta por Derrida, a tradição da voz foi constitutiva da metafísica ocidental, marcada pelo logocentrismo e pela episteme, na qual a presença imediata do ser promovida por aquela seria a sua característica mais eloqüente (Derrida 1967a, 1ª parte, cap. 1). O logos e a episteme seriam os correlatos do imperativo da presença. Trata-se, bem entendido, da presença imediata do ser na alma como consciência, na medida em que o sujeito teria aqui se constituído nesta relação, ao ser fundado pelo imperativo da presença.
Nessa perspectiva, a tradição metafísica e logocêntrica ocidental seria fenomenológica desde os seus primórdios, enunciando a presença imediata do ser na consciência, que constituiria assim o sujeito propriamente dito (Derrida 1967e). Não seria, então, um simples acaso, que essa tradição tenha atingido o seu apogeu, e a sua crise com a fenomenologia, inicialmente com Hegel e posteriormente com Husserl (idem).
Essa tradição da voz estaria em crise desde o advento da escritura no século XIX, como já disse inicialmente. Porém, nas últimas décadas desse século, o desenvolvimento dos discursos das ciências não mais permitiria a tradução desses no registro da linguagem falada. A matematização dos discursos científicos, cada vez mais complexa, teria progressivamente impossibilitado a redução desses discursos ao registro da escrita fonética (Derrida 1967a, 1ª parte, cap. 2). Portanto, as leituras de Ortigues e de Granger foram ostensivamente criticadas por Derrida, pois estes sempre supunham que o simbolismo matemático seria o produto de uma elaboração secundária, pois seria fundado no uso do discurso e em convenções explícitas (ibid., 1ª parte, Exergue, p. 12).
Assim, a dita tradição metafísica seria fundada não apenas pela voz, mas pela presença imediata da coisa na consciência e pela referência ao logos, bem como ao fonologismo. A fonética definiria a linguagem no seu ser, de maneira que a fonologia seria o saber de referência crucial para a elucidação daquela. Daí a dita tradição metafísica ser também fonocêntrica, contrapartida necessária do logocentrismo. Não seria um acaso, portanto, a fonologia ter sido alocada no centro conceitual da lingüística moderna; com Saussure, Trubetzkoy e Jakobson o ser da linguagem foi reduzido à sua estrutura fonética. Sendo assim, a lingüística moderna estaria completamente fundada nos pressupostos da tradição metafísica da voz (ibid., 1ª parte, caps. 1 e 2).
A leitura de Derrida foi a própria desconstrução da tradição do logocentrismo, produzida ao longo da história da metafísica ocidental, trazendo de volta aquilo que fora excluído, qual seja, a problemática da escritura (idem). Não existiria, então, qualquer voluntarismo filosófico no gesto teórico empreendido pela desconstrução, na medida em que este seria o ponto de chegada de um longo processo histórico produzido no interior da própria metafísica.
É preciso enunciar agora o que Derrida concebe como sendo a escritura, para não amesquinhá-la no registro conceitual. Por escritura entende-se aqui todas as modalidades de escrita que sejam fundamentalmente não-fonéticas, mesmo que a escrita fonética tenha se constituído num tempo posterior da história da escrita (Derrida 1967a, 1a parte, cap. 1).
A linguagem tecida por características, concebida por Leibniz, seria um exemplo privilegiado da escritura na história do Ocidente (ibid., 1ª parte, cap. 3, pp. 115-9). Contudo, a escrita chinesa, construída por ideogramas, seria outro exemplo destacado de escrita não-fonética (ibid., pp. 121-30), indicando ao mesmo tempo que o Oriente se ordenou segundo outros fundamentos filosóficos, bem diferentes dos que foram estabelecidos no Ocidente. Da mesma forma, a escrita hieroglífica egípcia se destacou na Antiguidade e marcou ostensivamente como um enigma crucial o imaginário ocidental até o século XIX, quando foi decifrada por Champollion, justamente pelo seu caráter eminentemente não-fonético (ibid., pp. 119-20). Finalmente, a linguagem dos sonhos seria um exemplo privilegiado disso, comparado que foi por Freud (Derrida 1967b, pp. 318-28), pelo seu não-foneticismo, às escritas chinesa e egípcia (Freud 1900, caps. VI e VII).
O que Derrida pretendeu destacar com essa ênfase teórica colocada na escritura, em oposição marcante à tradição dominada pela voz, foi a existência de um pensamento do traço (Derrida 1967b, pp. 297-318). Esta modalidade de pensamento se contraporia fundamentalmente à tradição de logos, sendo, então, o correlato da escritura e a contrapartida crucial para a restauração desta, com a desconstrução da metafísica ocidental.
Crítica da fenomenologia e do estruturalismo
Não foi certamente uma eventualidade o enunciado do conceito de escritura por Derrida ter se balizado pela crítica sistemática de um duplo campo de pesquisa em filosofia, que ainda se opunham nos anos 60. De um lado, a fenomenologia transcendental de Husserl. De outro, o estruturalismo, que desde a publicação por Lévi-Strauss, de As estruturas elementares de parentesco, em 1949, passou a ocupar a cena filosófica de maneira triunfante e a desbancar a posição teórica até então ocupada pela fenomenologia. Foi nesse contexto histórico e filosófico que se realizaram as primeiras publicações de Derrida, formalizando, pela crítica desses discursos, seu projeto teórico.
O que estava fundamentalmente em pauta na crítica da fenomenologia de Husserl era o filosofema da presença, que seria o apogeu da metafísica ocidental. Isso porque esta nunca deixou de pensar o fenômeno e a fenomenalidade para buscar um terreno que fosse suficientemente seguro para fundar a idéia de verdade. Dessa maneira, a fenomenologia transcendental de Husserl seria não apenas a forma mais crítica, mas também a mais original e moderna para conceber a fenomenalidade do ser como presença plena para o sujeito (Derrida 1972). Portanto, desconstruir sistematicamente o filosofema da presença na fenomenologia transcendental de Husserl seria uma das condições teóricas de possibilidade para o enunciado do conceito de escritura (Derrida 1967e).
No estruturalismo, em contrapartida, estava em pauta a concepção ao mesmo tempo estática, sincrônica e taxonômica do conceito de estrutura. Em decorrência disso, esse conceito assumia uma versão marcadamente a-histórica, que era preocupante. Com efeito, como nos disse Derrida numa de suas entrevistas em “Posições”, publicadas em 1972, o conceito de texto constituiria o limite do estruturalismo, tanto como saber quanto como ciência. Isso porque o texto seria aquilo que excederia a estrutura, produzindo necessariamente a abertura desta para o que lhe é outro. Com isso, o texto seria marcado pela alteridade, relançando, então, a estrutura numa temporalidade marcadamente histórica (Derrida 1972, p. 39).
Pelos enunciados dos conceitos de diferir (différer) e de diferença (différance), que marcariam o texto enquanto tal, Derrida procurou formular como a estrutura seria relançada em direção à sua abertura, marcada agora pela diferença, promovida pela seqüência diferencial de novos signos. Com isso, a historicidade seria restabelecida pela dinâmica escritural, que inscreveria o tempo na própria espacialidade da escrita. O espaçamento, como signo eloqüente da escrita, seria marcado, enfim, pela temporalidade do diferir (Derrida 1967a).
Nessa perspectiva, o conceito de diferir se articularia intimamente com o de suplemento (ibid., Carta 52, 2ª parte, cap. 2). Isso porque cada novo signo, inscrito na escritura de maneira imperativa, funciona como um suplemento daquele que lhe antecedeu imediatamente. Contudo, o suplemento não é o complemento, bem entendido. Se este alude a algo que falta ao signo anterior e que precisaria, assim, ser complementado como uma totalidade plena preestabelecida na e pela estrutura, o novo signo como suplemento teria a potência de reorganizar tudo o que lhe antecedeu na disposição da seqüência sígnica. Portanto, o suplemento funcionaria como um efeito de posterioridade no registro estritamente textual (Freud 1887-1902; Freud 1895, 2ª parte), tendo o efeito de impacto da retroação sobre o que lhe antecedeu na escritura, delineando, enfim, o horizonte da produção do sentido.
Dito tudo isso de maneira bem sintética e condensada, até mesmo bastante esquemática, podemos agora começar a enunciar o interesse da filosofia de Derrida pela psicanálise. Fomos obrigados a realizar esse percurso introdutório para evocar alguns conceitos básicos do discurso teórico de Derrida, a fim de esclarecer a inscrição da psicanálise no projeto filosófico de Derrida. Pretende-se evidenciar aqui como o discurso freudiano é a realização exemplar, por um lado, e uma contribuição teórica, por outro, para a constituição daquilo que Derrida intitula pensamento do traço (Derrida 1967b).
Leituras da psicanálise
A leitura que Derrida realizou da psicanálise se centrou quase que inteiramente na análise do discurso teórico de Freud. A referência a outros teóricos também se realizou, seja de forma episódica, mas fundamental, como foi o caso de Melanie Klein (Derrida 1967a, pp. 131-6), seja de forma mais ampla, como ocorreu com Lacan (Derrida 1992). Contudo, a dita leitura de Freud se empreendeu em tempos diversos do projeto teórico de Derrida, atravessando, assim, diferentes patamares de complexidade. Além disso, foi objeto de sua leitura diferentes problemáticas presentes no discurso freudiano. Porém, não se pode esquecer jamais, o que seria teoricamente imperdoável, que a leitura de Freud foi seminal na constituição do pensamento teórico de Derrida, como será discutido ao longo deste ensaio.
O tempo inaugural da inscrição da psicanálise no discurso filosófico de Derrida se realizou nos anos 60, numa conferência proferida para psicanalistas da Societé Psychanalytique de Paris. Essa longa conferência, que foi publicada em 1967 com o título de “Freud e a cena da escritura” (Derrida 1967b), já evidenciava a originalidade da leitura empreendida por Derrida da psicanálise. Nada do que se publicou até então sobre o discurso freudiano, seja oriundo do campo psicanalítico seja do campo filosófico, tinha qualquer proximidade e mesmo vestígio com o que Derrida enunciou nesse ensaio genial, que ainda se mantém até hoje por sua originalidade.
Em seguida, Derrida escreveu um longo livro publicado em 1980, intitulado A carta postal: de Sócrates a Freud e além (Derrida 1980). A originalidade se manteve ainda aqui, na maneira pela qual ele trabalhou a teoria das pulsões de Freud, principalmente a relação entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, com a problemática do diferir.
Num terceiro tempo, em 1994, Derrida retornou à psicanálise num outro registro, numa conferência realizada agora em Londres, num colóquio internacional intitulado Memory: the Question of Archives. Essa conferência foi publicada em 1996 sob o título Mal de arquivo (Derrida 1996a). A contribuição do discurso freudiano para a renovação do conceito de arquivo se enunciou aqui de forma eloqüente, numa leitura original de Moisés e a religião monoteísta ’(Freud 1938), de Freud.
Finalmente, Derrida pronunciou a conferência magistral “Estados gerais da psicanálise”, realizada em Paris, em 2000. Este convite se deveu às suas múltiplas colaborações anteriores que contribuíram para a leitura filosófica da psicanálise. A conferência foi ainda publicada no mesmo ano, sob o título Os estados da alma da psicanálise (Derrida 2000).
Inscreve-se ainda nesse percurso filosófico de Derrida sobre o discurso psicanalítico o seu debate com Foucault, centrado na sua leitura crítica da História da loucura na Idade Clássica (Derrida e Foucault 2001). Nesse debate, Derrida pronunciou duas conferências nas quais a psicanálise foi referida, principalmente a segunda, de 1991, intitulada “Fazer justiça a Freud”. A resistência provocada pela psicanálise foi destacada com bastante eloqüência nesse texto, daí Derrida ter reunido textos dispersos sobre a psicanálise numa obra publicada sob o título Resistências da psicanálise (Derrida 1996b), em 1996.
No ensaio “Freud e a cena da escritura”, primeiro tempo desse percurso, Derrida indicou a importância da psicanálise no seu projeto filosófico. O filosofema do pensamento do traço foi aqui enunciado, assim como o conjunto de conceitos que lhe acompanhavam, como veremos adiante.
Em A carta postal, Derrida trabalhou no mesmo quadro conceitual estabelecido no ensaio anterior, mas agora voltado para a teoria das pulsões, enfatizando as relações existentes entre as pulsões de vida e de morte. Questionou, nesse contexto, as conseqüências da soberania atribuída por Freud ao princípio do prazer.
Em Mal de arquivo, terceiro tempo desse projeto, desdobrou os pressupostos enunciados no primeiro ensaio, agora com o conceito de arquivo. Nesse contexto, a pulsão de morte seria um mal de arquivo, pois apagaria os arquivos existentes para que novos arquivos pudessem então ser inscritos. Ao lado disso, o conceito de arquivo presente no discurso da ciência da história foi também criticado, pois se restringiria ao arquivo patente e escrito na linguagem fonética.
No quarto tempo, em Os estados da alma da psicanálise, Derrida investigou as antinomias da soberania e da crueldade presentes no psiquismo, estendendo-as para os registros da política e do direito. Derrida retomou aqui algumas questões já esboçadas no ensaio A carta postal, enfatizando agora, contudo, as relações existentes entre a soberania e a crueldade.
Duas problemáticas maiores se destacaram nesse percurso, condensadas nas palavras álibi e resistência, que estariam, então, intimamente articuladas. Assim, se a psicanálise seria uma modalidade de saber sem álibi, de forma que a criação de álibis impossibilitaria efetivamente o discurso psicanalítico, pode-se entrever que a resistência crescente à psicanálise se articularia com a constituição desses álibis, tanto no interior quanto no exterior do discurso e da comunidade psicanalíticas. Com tais álibis, com efeito, a psicanálise constituiria mecanismos auto-imunitários, que provocariam, finalmente, a sua própria imobilização e dissolução como discurso (Derrida 1996b e 2000).
O traço
O ensaio inaugural foi fundamental no projeto teórico de Derrida de leitura da psicanálise, pois delineou o campo conceitual que foi retomado nos ensaios posteriores, não obstante as suas diferenças e avanços teóricos. A tese de Derrida era bastante original, como já disse acima, pois não existia então nada de similar nos campos filosófico e psicanalítico, nos anos 60, que se aproximasse do que Derrida então enunciou. Qual seria essa tese? O aparelho psíquico, tal como foi forjado progressivamente por Freud, do começo ao fim do seu percurso teórico, seria uma máquina de escritura. Assim, dos balbucios iniciais do “Projeto de uma psicologia científica” (Freud 1895), de 1895, até o ensaio intitulado “Notas sobre o bloco mágico” (Freud 1925), de 1925, o discurso freudiano perseguiu uma mesma problemática, qual seja, a de articular o imperativo do dito aparelho ser uma máquina com o imperativo de que seria efetivamente uma máquina voltada para a escritura. A dificuldade em harmonizar esses dois imperativos, máquina e escritura, regulava os desajustes e os ajustes do projeto teórico de Freud ao longo do seu percurso teórico.
Assim, a escritura como gramma seria fundamental no projeto teórico de Derrida, em oposição cortante aos registros da voz e da phone. Derrida assume literalmente o pressuposto teórico de Freud, enunciado desde “Projeto de uma psicologia científica” (Freud 1895), de que a problemática da memória seria fundamental na constituição do psiquismo. A memória como engrama, com efeito, seria constitutiva do psiquismo, de maneira que, sem aquela, este não existiria. Seria preciso não apenas mostrar, mas também demonstrar, em seguida, que a memória seria uma escrita marcada por traços diferenciais, pelos quais a rede de marcas escriturais definiria a constituição e a produção do sentido (Derrida 1967b).
Nessa perspectiva, Derrida se contrapôs ao discurso teórico de Lacan, não apenas pela sua fundamentação estruturalista (Lacan 1953), mas principalmente porque, para Lacan, o campo da psicanálise seria o da fala e da linguagem (idem), conforme enunciou no célebre discurso de Roma, em 1953. Pelo viés da fala, portanto, Lacan se inscreveu na tradição metafísica da voz. Derrida, em contrapartida, propôs outra modalidade de retorno a Freud, diferente da que foi realizada por Lacan, pela qual a dimensão escriturária do inconsciente estaria no primeiro plano.
Derrida evidenciou no discurso freudiano as marcas teóricas que enunciariam a formulação sobre a existência de um pensamento do traço. Essa modalidade de pensamento estaria presente do início ao fim do percurso teórico de Freud, tal como afirmou Derrida no final do ensaio “Freud e a cena da escritura” (Derrida 1967b, p. 339). Para sustentar essa tese de maneira consistente, contudo, Derrida realizou uma inflexão metodológica crucial, que supõe uma crítica fundamental aos conceitos metapsicológicos presentes no discurso freudiano (ibid., p. 294).
Entretanto, essa leitura proposta por Derrida não se apoiou nos conceitos metapsicológicos expostos por Freud, pois eles seriam oriundos da tradição metafísica e logocêntrica. Os conceitos forjados por Freud estariam embebidos nas fontes e referenciais constituídos nessa tradição. Assim, não apenas os conceitos de inconsciente, consciência, pré-consciente e percepção se inscreveriam nessa tradição, mas também as problemáticas que definem as oposições dentro/fora e interior/exterior.
Porém, segundo Derrida, seria possível empreender uma leitura que privilegiasse o percurso freudiano no registro do discurso, para apreender, então, em estado nascente, a crítica frontal dessa tradição. Seria por este viés, portanto, que se poderia evidenciar o esboço de um pensamento do traço no discurso freudiano. Dessa forma, poderíamos apreender uma leitura do discurso freudiano e não dos conceitos metapsicológicos, pois estes se oporiam à novidade representada pelo pensamento de Freud, que teria anunciado um pensamento do traço e de escritura (idem).
Assim, do “Projeto de uma psicologia científica” ao pequeno ensaio “Notas sobre o bloco mágico”, o discurso freudiano perseguiu um pensamento sobre o traço, de maneira sistemática, mesmo que não tenha enunciado e explicitado todos os pressupostos desse pensamento, porque estava marcado profundamente pela retórica conceitual da metafísica ocidental. Porém, as formas pontuais assumidas pelo pensamento de Freud, com as ênfases colocadas pelo discurso freudiano, permitiriam evidenciar tais pressupostos teóricos. Poder-se-ia destacar, portanto, a contribuição efetiva e ostensiva da psicanálise, pelo viés do discurso freudiano, para a constituição do projeto filosófico do pensamento do traço (idem).
Contudo, é preciso que não se acelere o passo teórico no que concerne a isso, pois a psicanálise não seria a desconstrução da filosofia, mas ofereceria, sem qualquer sombra de dúvida, instrumentos teóricos importantes para que tal projeto fosse efetivamente possível (Derrida 1967b, pp. 293-4). Plagiando e mesmo parodiando Derrida, num dos títulos de seus livros, pode-se-ia dizer que a psicanálise, como pensamento do traço, possibilitaria colocar em suspensão o “tom apocalíptico usado outrora pela filosofia” (Derrida 1983), isto é, pela metafísica.
Porém, se isso é efetivamente possível de ser sustentado no registro teórico, deve-se à crítica contundente que o discurso freudiano realizou da metafísica da presença, ao desalojar o sujeito do registro da consciência e fundar então o psiquismo no registro do inconsciente. Nessa operação teórica, empreendida sistematicamente pelo discurso freudiano com a problemática do descentramento do sujeito (Freud 1900), a crítica radical à metafísica da presença se condensaria com eloqüência.
Com isso, os estados da alma não seriam mais o simples reflexo especular dos estados de coisas do mundo, como estava pressuposto desde a metafísica de Aristóteles, pois os estados de coisas do mundo se inscreveriam no psiquismo de maneira difratada, numa rede diferencial de traços de complexidade crescente. Contudo, nessa rede de diferenças não existiria mais qualquer representação pontual dos ditos estados de coisas.
Portanto, com o discurso freudiano, seria possível ultrapassar o filosofema da presença e caminhar em direção ao pensamento do traço. Dessa maneira, esse discurso seria uma crítica dos pressupostos da fenomenologia e da filosofia do sujeito, inscritos que esta e aquela estariam na problemática da presença. Contudo, para radicalizar mais ainda o que estaria em pauta no pensamento do traço realizado pelo discurso freudiano, seria preciso também mostrar e demonstrar que, com isso, o sujeito não se deslocaria da consciência para o registro do inconsciente, positivado que seria, então, como sujeito do inconsciente (Derrida 1967b, pp. 334-5).
Este foi, com efeito, o deslocamento teórico realizado pelo discurso teórico de Lacan (Lacan 1953), que ficou ainda atado na problemática da presença. Assim, para Derrida, o inconsciente não seria um sujeito marcado pela presença da voz, que se inscreveria como palavra plena, como nos disse Lacan, em oposição à palavra vazia (idem). Essa oposição entre o registro da palavra plena e da palavra vazia, que remete à oposição entre verdade e não-verdade, não teria, então, qualquer lugar num pensamento que concebe o inconsciente como traço e escritura.
Assim, o que seria preciso evidenciar no discurso freudiano é o inconsciente ordenado como um texto e uma escritura, isto é, como uma rede aberta e complexa de traços diferenciais, na qual o texto e a escrita não seriam redutíveis à escrita fonética. Não existiria aqui, portanto, qualquer fonologismo que marcasse essa escritura e que permitisse elucidá-la. Foi esta a direção teórica primordial assumida na leitura de Derrida do discurso freudiano.
Para isso, foi necessário inscrever o diferir como operador fundamental da cena psíquica, responsável pela produção e distribuição de signos no campo das diferenças (différances). Nessa perspectiva, a cena psíquica seria transmutada e concebida como uma cena de escritura, como evidenciou, aliás, Derrida no título que escolheu para o seu ensaio (Derrida 1967b).
Nesse contexto, os trilhamentos e as grades de contato constituiriam um sistema de diferenças, delineado que seria esse sistema na articulação entre a excitação que se dissemina e as resistências que essas encontram para a descarga, de maneira que seriam os traços assim produzidos que indicariam o aparelho psíquico (idem). Porém, a descrição do psiquismo como um conjunto de traços se oporia à idéia de máquina, a qual já se apegava Freud no “Projeto de uma psicologia científica” até as “Notas sobre o bloco mágico” (idem), isto é, em todo o seu percurso metapsicológico.
Essa tensão e conflitualidade entre os registros da máquina e do traço foi sublinhada por Derrida com toda a eloqüência possível, já que seria necessário ao discurso freudiano enunciar que modalidade de máquina seria adequada ao registro do traço (idem). Essa adequação teórica foi apenas formulada nas “Notas sobre o bloco mágico”, quando o discurso freudiano enunciou que o aparelho psíquico funcionaria efetivamente como uma máquina de escrever (ibid., pp. 328-39).
Não se pode esquecer, no entanto, que, se no “Projeto de uma psicologia científica” o aparelho psíquico foi descrito como um sistema de traços, que definiriam o campo da memória, esse sistema não constituía ainda uma escritura propriamente dita (ibid., pp. 297-305). Foi apenas posteriormente que o discurso freudiano transformou o sistema de traços numa escrita psíquica, de maneira que a cena psíquica seria, então, uma cena da escritura, como já indiquei anteriormente. Porém, muito precocemente no seu percurso teórico, já na Carta 52 a Fliess, Freud incorporou a retórica teórica da escritura, transformando, enfim, a cena psíquica numa cena da escritura (idem).
Para que a astúcia teórica presente na leitura de Derrida fique patente, é preciso sublinhar que, para Freud, no “Projeto de uma psicologia científica”, o psiquismo seria fundamentalmente constituído pela memória. Vale dizer, sem memória não existiria qualquer aparelho psíquico, mas apenas um frágil organismo neurobiológico, voltado para a simples descarga das excitações. Sendo assim, a questão inaugural de Freud nesse texto foi definir o que seria a dita memória (Freud 1895, 1ª parte).
Para Freud, a memória seria um conjunto de marcas neurobiológicas, denominadas engramas, resultantes das resistências que se oporiam à livre circulação das excitações. Nesse contexto, o organismo visaria à descarga total das excitações, pela sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria a morte do organismo, a “urgência da vida” se oporia, então, à dita descarga total. Com isso, a descarga seria apenas parcial, de modo que somente uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo (idem). Seria justamente essa oposição à descarga que constituiria as resistências neuronais à livre circulação das excitações sendo, então, a condição de possibilidade para a ordenação da memória enquanto tal.
É preciso destacar ainda que, no “Projeto de uma psicologia científica”, Freud enunciou outra tese suplementar à anterior. Assim, além do aparelho psíquico ser fundamentalmente fundado na memória, ele deveria ser concebido como um sistema que pudesse estar permanentemente aberto para a recepção das novas excitações - condição sine qua non para a sua sobrevivência e adaptação ao meio ambiente - e que, ao mesmo tempo, pudesse ser marcado de maneira ilimitada pelos traços oriundos das resistências (idem). Isso implicaria uma descrição do aparelho psíquico pela qual o pólo de recepção das excitações não se confundiria e não se superporia jamais com o campo de inscrição dos traços. Com efeito, como o pólo de recepção deveria estar permanentemente aberto às novas excitações, o aparelho psíquico não poderia, então, funcionar como o campo de inscrição dos traços (idem).
Foi também a conflitualidade produzida por essa dupla exigência teórica que conduziu Freud a ter de enunciar novas descrições para o aparelho psíquico (desde o “Projeto de uma psicologia científica”), a fim de harmonizar os diferentes imperativos existentes entre os registros da máquina e da escritura. Por isso mesmo, foi apenas com a formulação do modelo da máquina de escrever, forjado posteriormente nas “Notas sobre o bloco mágico”, que Freud pôde construir um modelo teórico, ao mesmo tempo simples e elegante, que respondesse à dupla exigência enunciada desde o “Projeto de uma psicologia científica” (idem).
Portanto, se o pólo sensorial do aparelho psíquico apreendesse permanentemente os novos estímulos, já que não seria um espaço de inscrição psíquica, mas apenas de recepção, o tecido da memória, marcado que seria pelas redes neuronais, inscreveria, então, no aparelho psíquico, os traços, de maneira indelével (idem). Porém, a memória em questão não existiria como presença plena dos estados de coisas que incidiriam no pólo de recepção do aparelho psíquico. Os estados de coisas não se fariam jamais totalmente presentes em nenhum neurônio ou numa rede localizada de neurônios, mas se espalhariam e se disseminariam como uma rede complexa, constituindo um sistema de diferenças com a totalidade dos traços neuronais (Derrida 1967b).
Assim, os traços seriam forjados pelas forças que se disseminam e pelas resistências que essas encontram na rede neuronal. Dessa maneira, o sentido seria constituído pelas diferenças assim produzidas e pelo diferir forjado entre as forças que se disseminam, articulado com a resistência que encontram na rede neuronal (idem). Enfim, não existiria qualquer reflexo dos estados de coisas no psiquismo, no sentido epistemológico desse conceito, na medida em que o reflexo seria outra versão da metafísica da presença.
Nessa perspectiva, não existiria também qualquer oposição entre os registros da força e do sentido, pois seria no entrejogo das forças disseminadas e das resistências produzidas entre os registros da força e do sentido que os traços se inscreveriam no psiquismo, de modo que, se tal oposição estivesse presente na metapsicologia freudiana, seria ainda uma problemática oriunda da tradição metafísica e do logocentrismo (idem).
A operação do diferir e do engendramento do sistema de diferenças dos traços se realizaria pela produção daquilo que Derrida denominou espaçamento. Os traços se ordenariam, então, pelo espaçamento, que seria ao mesmo tempo a própria constituição da espacialidade e da disposição dos traços que se inscreveriam na dita espacialidade. Isso porque o espaço não seria algo que preexistiria ao traço, mas se constituiria ao mesmo tempo que este, pelo engendramento da própria operação do diferir (idem). Portanto, da mesma forma que não existiria a oposição entre os registros da força e do sentido, oriunda do logocentrismo, não haveria também a oposição entre os registros do interno e do externo, oriunda igualmente do logocentrismo (cf. tb. Derrida 1967a, 1ª parte, caps. 2 e 3).
Seria ainda pelo viés do dito espaçamento que Derrida indicava a presença da temporalidade na produção dos traços. Assim, o vir-a-ser espaço se realizaria pela mediação do tempo e se evidenciaria por uma série de mecanismos enunciados no “Projeto de uma psicologia científica”. Com efeito, os conceitos de retardamento, repetição e posterioridade indicariam a modulação temporal no processo de engendramento do dito espaçamento (Derrida 1967b). Enfim, tais conceitos poderiam ser mais bem explicitados e compreendidos no contexto do pensamento do traço do que na perspectiva teórica da neurobiologia e do fisicalismo.
Se o conceito de espaçamento é tão fundamental na leitura de Derrida, assim como a idéia do vir-a-ser espaço pela mediação da temporalização, isso se deve à problemática fundamental da filosofia de Derrida, qual seja, a questão da escritura. A escritura seria basicamente espaçamento, inscrevendo e dispondo os traços num espaço produzido pelo próprio processo do diferir.
Do traço à escritura
Porém, se no “Projeto de uma psicologia científica” o aparelho psíquico foi esboçado como uma estrutura espacial de traços, na qual as forças se inscreveriam como sentido na rede neuronal das diferenças, não existiria ainda, no entanto, uma escritura. Vale dizer, a cena psíquica não seria ainda uma cena da escritura. Foi apenas em 1896, na célebre Carta 52, enviada por Freud a Fliess (Freud 1887-1902), que esse passo teórico foi finalmente dado pelo discurso freudiano.
Assim, nesse texto, o discurso freudiano começou a descrever o aparelho psíquico como uma escritura complexa. O psiquismo seria ordenado por diferentes camadas, na qual cada uma seria produzida como um registro diferente da escritura. Porém, as diversas camadas de escritura se articulariam entre si de maneira dinâmica, já que um signo inscrito numa dada camada de escritura se inscreveria igualmente nas outras camadas, num processo pautado e regulado pela reinscrição permanente (idem). A especificidade da escritura psíquica seria, então, essa reinscrição permanente, pela qual o processo de diferir constituiria as redes de traços e inscreveria continuamente os signos em registros diferentes, de maneira a constituir outros espaçamentos (Derrida 1967b). Com isso, a temporalização do processo (que engendraria o vir-a-ser espaço pelo tempo) se faria, aqui, fundamentalmente pelo mecanismo da posterioridade (idem).
Assim, do signo da percepção aos registros do pré-consciente e da consciência, passando pelo registro do inconsciente (idem), o aparelho psíquico seria não apenas uma escritura, de fato e de direito, mas também uma escritura forjada por um processo permanente de reinscrição de seus signos (idem). A operação do diferir se evidenciaria aqui com bastante clareza, constituindo-se por uma textura de espaçamentos e produzida pela temporalização que se pautaria pela posterioridade.
Foi apenas nesse texto que se enunciou no discurso freudiano um vocabulário que seria especificamente do registro textual. Assim, a retórica do texto se inscreveu no discurso freudiano de diferentes maneiras: pelos conceitos de signo, de inscrição, de transcrição e, finalmente, de tradução (Freud 1887-1902). Um dado signo que se inscreveria inicialmente na cena da escritura seria transcrito e traduzido posteriormente em outros registros dessa cena, imbricando os diferentes níveis e registros dessa na cena escriturária.
Derrida criticou, contudo, o conceito freudiano de tradução e a idéia de conceber a interpretação como tradução (Derrida 1967b). Essa problemática da tradução e da interpretação como tradução foram retomados pelo discurso freudiano em outros lugares, como em A interpretação dos sonhos (Freud 1900, caps. VI e VII) e o “Caso Dora” (Freud 1905a). Porém, Derrida a critica de maneira recorrente, por evidenciar no discurso freudiano signos oriundos da metafísica logocêntrica, pela qual a idéia de presença se faria evidente pela fixidez de um sentido a ser traduzido (Derrida 1967b). Em contrapartida, a retranscrição permanente dos signos indicaria o processo do diferir como engendrador do sentido enquanto tal, pelo dinamismo mesmo de produção do sistema de diferenças (idem).
Portanto, na Carta 52 Freud assumiu uma direção teórica oposta da que tomara anteriormente, isto é, da que enunciara sobre o realismo do trauma sexual na etiologia das psiconeuroses (Freud 1896). Reconhecer que o psiquismo seria não apenas um conjunto de signos diferenciais, mas também permanentemente reinscritos e transcritos em outros níveis de ordenação escriturária, iria se contrapor, portanto, a qualquer realismo do sentido fixo, enunciado pelo suposto trauma sexual engendrador das psiconeuroses. Por isso mesmo, logo em seguida, em 1897, ainda na sua correspondência com Fliess, Freud pôde dizer a este que “não acreditava mais na sua neurótica” (Freud 1887-1902), isto é, em uma teoria realista do trauma sexual na etiologia das neuroses.
Nessa perspectiva, tudo aquilo que até então Freud tomava literalmente como realista, na narrativa de seus analisandos, passou a ser compreendido como oriundo de uma interpretação destes de algo que lhes teria impactado nas suas experiências psíquicas. Vale dizer, o que os analisandos diziam nas suas narrativas seriam produções de seus fantasmas e estes regulariam o processo de interpretação que empreendiam. Assim, os fantasmas como signos circulariam na cena psíquica da escritura, sendo permanentemente reinscritos e transcritos em outros registros da escritura psíquica, num campo, portanto, marcado pelas diferenças e pelos diferentes contextos diferenciais da cena psíquica.
Com toda essa nova construção teórica, o discurso freudiano desembocou em A interpretação dos sonhos, no qual não apenas o fantasma passou a ocupar uma posição primordial na cena psíquica, como também a idéia de escritura passou a se delinear com mais evidência ainda a cena psíquica (Freud 1900, cap. VII).
Escritura e máquina
Em A interpretação dos sonhos, o discurso freudiano enunciou a existência da realidade psíquica no sentido estrito, que se oporia à realidade material (idem). Seria tal realidade psíquica constituída por traços e atravessada por fantasmas, de maneira que o sentido seria produzido por estes e aqueles, distante então de qualquer realismo ordenado pelo estado de coisas.
Foi nessa obra que Freud enunciou a tese, que estava na contramão da neurologia e da psiquiatria da segunda metade do século XIX, segundo a qual o sonho era uma produção significativa. Isso porque sonhar seria uma modalidade de pensamento (ibid., Introdução). Existiria, então, uma equivalência entre os sintomas das diferentes psiconeuroses e os sonhos, na medida em que estes e aqueles se fundariam na dita realidade psíquica (idem). Posteriormente, os lapsos, os atos falhos (Freud 1901) e os chistes (Freud 1905b) foram também inscritos no mesmo sistema de equivalência, pois estariam fundados na mesma realidade psíquica.
Porém, a realidade psíquica seria fundamentalmente inconsciente e este seria marcado pelo imperativo da realização do desejo (Freud 1900, cap. II). Portanto, os sonhos seriam modalidades de realização de desejo, que se fariam patentes de maneira indireta, encoberta e figurada, apresentando-se, pois, de forma efetivamente enigmática. Por isso mesmo, teriam de ser devidamente interpretados para que o seu sentido latente pudesse explicitar a realização de desejo que estaria em causa (idem).
Assim, para enunciar a especificidade da interpretação psicanalítica, Freud criticou as modalidades existentes de interpretação dos sonhos. Condenou a interpretação simbólica (que considerava a narrativa onírica uma totalidade fechada e bem estabelecida) e a modalidade da interpretação presente na Antiguidade, baseada na fragmentação da narrativa onírica, valendo-se de um código de significação preestabelecido, denominado chave do sonho (idem). Porém, se Freud criticou a noção de chave de sonho pela fixidez do sentido que prescrevia, reconheceu a superioridade do segundo modelo diante do primeiro, pois propunha que o sonho seria algo a ser decifrado (idem).
A interpretação psicanalítica seria, então, fundada no deciframento, uma vez que a narrativa onírica teria de ser fragmentada nos diferentes signos que a compõem, mas estes não teriam mais qualquer sentido preestabelecido. Seria a livre associação do sonhador que ofereceria outros signos capazes de entreabrir a cena psíquica latente e que se faria patente nas experiências do sonho (idem). Isso porque a livre associação relançaria o processo do diferir, que regularia a cena psíquica da escritura pela inscrição de outros signos.
Em A interpretação dos sonhos, Freud retomou aqui não apenas a descrição da Carta 52 de forma bem mais elaborada, mas principalmente a retórica escriturária que caracterizava essa descrição. Nessa perspectiva, o sonho seria não apenas uma escritura, mas uma escritura de caráter não-fonético de maneira ostensiva. Foi nesse contexto que o discurso freudiano se valeu dos modelos da escrita chinesa e egípcia para poder descrever a cena psíquica do sonho como uma cena da escritura (Derrida 1967b). Mesmo quando apareciam palavras nos sonhos, o discurso freudiano as considerava uma escrita não-fonética, em que não aparecia a lógica da escritura fonética (idem).
Não obstante isso, a cena escriturária do psiquismo ainda se conjugaria com um modelo do aparelho psíquico descrito como uma máquina, na qual o modelo da escritura não se conjugaria. Em A interpretação dos sonhos, são os modelos ópticos â o microscópio e o telescópio â que serviam de metáforas para Freud descrever o aparelho psíquico, da mesma forma que no “Projeto de uma psicologia científica” foram as metáforas neurobiológicas (idem).
Portanto, no enunciado da cena da escritura no discurso freudiano posterior, a metáfora da máquina se fazia também presente, de maneira desarmônica e ruidosa com o modelo escriturário. Sendo assim, nos ensaios metapsicológicos de Freud (Freud 1915-17), a mesma tensão entre modelos teóricos incompatíveis se fazia ainda presente de forma ostensiva (Derrida 1967b). Porém, nas “Notas sobre o bloco mágico”, a tensão finalmente teria se apagado, na medida em que o brinquedo infantil escolhido por Freud para descrever o aparelho psíquico funcionaria como um brinquedo voltado para a escrita (idem).
Dessa maneira, o aparelho psíquico seria agora uma máquina de escrever que consegueria incorporar em si próprio, na sua própria estrutura, as duas condições enunciadas desde o “Projeto de uma psicologia científica”, quais sejam, a de possuir um pólo de recepção que pudesse receber de modo contínuo as excitações exteriores e uma superfície de inscrição ilimitada para as ditas excitações. Se a desarmonia entre o modelo da máquina e da escritura aqui se silenciou, isso se deve ao fato de que o aparelho psíquico seria uma máquina de escrever que produziria permanentemente a cena da escritura.
Ao lado disso, a insistência, no discurso freudiano, de que o psiquismo teria de ser um aparelho que funcionasse como uma máquina, marcando o discurso de Freud de fio a pavio, mesmo na melhor solução que seria a da máquina de escrever, revelaria, ao mesmo tempo, o que estaria em questão naquela insistência de Freud, a saber, a problemática da morte como fundadora do psiquismo e da vida. Sendo assim, a insistência na metáfora da máquina como arcabouço do aparelho psíquico fundado na escritura evidenciaria como seria a possibilidade da morte aquilo o que levaria ao imperativo da escritura como forma de afirmação da vida (idem).
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: joelbirman@uol.com.br
Enviado em 29/12/2006.