Natureza humana
ISSN 1517-2430
ARTIGOS
Disposição e acaso em Freud: uma introdução às noções de equação etiológica, séries complementares e intensidade pulsional no momento1
Disposition and chance in Freud: an introduction to the nations of etiological equation, complimentary series and impulse intensity in the moment
Monah Winograd
Psicanalista, Doutora em Teoria Psicanalítica e Professora Assistente do Departamento de Psicologia/ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RESUMO
Este artigo tem como objetivo investigar os encaminhamentos que Freud deu ao problema da etiologia da neurose. Para tanto, destacamos três noções chave: (1) equação etiológica, (2) séries complementares e (3) intensidade pulsional no momento. Através dessas noções, percebemos como, para Freud, a busca da causa primeira da neurose, se é inata ou adquirida, na realidade, é um falso problema. Em sua obra, a dualidade herdado/adquirido fica completamente diluída ao ser compreendida como uma conjugação de fatores sempre presentes. Para Freud, a questão nunca foi a de decidir sobre a causa primeira, se a natureza do que aconteceu ao indivíduo ou se suas peculiaridades.
Palavras-chave: Equação etiológica, Séries complementares, Pulsão, Etiologia das neuroses, Inato/adquirido.
ABSTRACT
This article has the aim to explore how Freud treated the problem of the etiology of the neurosis. To do so, we detach three key-notions: (1) etiological equation, (2) complementary series (3) drive intensity at the moment. With these notions, we are able to percieve that, for Freud, the decision about the first cause of neurosis, if it is inate or if it is acquired, is a false problem. In his work, the duality inherited/acquired gets entirely diluted for it is understood as a conjugation of factors always present. To Freud, the question never was that of deciding about the first cause, if the nature of what had happened to the individual or if his peculiarities.
Keywords: Etiological equation, Complementary series, Drive, Etiology of the neurosis, Inherited/acquired.
Aproveito aqui a oportunidade para dissuadi-los de tomar partido numa disputa supérflua. No cultivo da ciência, há um expediente ao qual muitos recorrem: escolhe-se uma parte da verdade, situando-a no lugar do todo e, em seu nome, interdita-se todo o resto que não é menos verdadeiro. (Freud 1916-17, p. 315)
Com essas palavras, Freud identificava outro falso problema. Da primeira vez, em 1888 (Freud, 1888), ele estava às voltas com a discussão sobre ser a hipnose resultante de processos fisiológicos ou psicológicos. Ao invés de decidir por um ou por outro, ele preferiu sabiamente desautorizar a questão por entender que ambos os processos são operantes simultaneamente. Se, na explicação, um ou outro é privilegiado, isso não significa que todo o fenômeno hipnótico possa ser a ele reduzido.
Desta vez, em 1916-17, tratava-se da etiologia das neuroses. São as neuroses endógenas ou exógenas? São conseqüência da constituição do indivíduo ou são produto de certas experiências de vida daninhas (traumáticas)? São hereditárias, inatas ou são adquiridas, fruto do ambiente? Para Freud, esse dilema era tão atinado quanto outro, parecido com este: o filho é procriado pelo pai ou gerado pela mãe?
A equação etiológica
Em 1895 (Freud 1895), discutindo com quem situava a hereditariedade “no lugar do todo” e tratava as afecções neuróticas com base nisso, Freud introduziu uma expressão da qual jamais abriu mão: equação etiológica. Com ela, pretendia fazer entender, de uma vez por todas, que, na causação das neuroses, várias classes de causas estão inter-relacionadas quantitativamente. São elas:
1) Condição (Bedingung) 2: fatores em cuja ausência o efeito nunca se produz, mas que são incapazes de gerá-lo por si mesmos, não importando qual seja a escala em que estejam presentes, pois falta a causa específica. São os fatores hereditários, causas necessárias duradouras, de alteração dificílima, mas não suficientes;
2) Causa específica (Spezifische Ursache): fatores presentes em todos os casos em que o efeito se dá e que, quando presente na quantidade ou intensidade3 requeridas, são suficientes para produzir o efeito, desde que as condições também sejam cumpridas. Também é causa necessária, embora não suficiente, e sua entrada em ação é mais recente, o que a torna mais suscetível a alterações;
3) Causas concorrentes ou auxiliares (Konkurrierende Ursache): fatores que não estão necessariamente presentes todas as vezes, nem podem, qualquer que seja a sua escala de ação, produzir o efeito por si mesmos, mas que operam em conjunto com as condições e a causa específica para satisfazerem a equação etiológica. São quaisquer perturbações “banais”, como emoções intensas, susto, esgotamento físico, etc. Não são nem necessárias, nem suficientes;
4) Causa precipitante ou desencadeante (Veranlassung oder Auslösende Ursache): a que aparece por último na equação etiológica, precedendo imediatamente a aparição do efeito. Sua natureza essencial é ser apenas esse fator temporal.
Dentre esses quatro tipos de causas, apenas duas são necessárias: a condição e a causa específica. Já veremos com mais detalhes em que consistem. Por ora, basta que entendamos que o fato de serem ambas necessárias não significa que tenham a mesma natureza ou que operem da mesma maneira. Muito pelo contrário. Freud identificava, no efeito produzido, as manifestações de uma e de outra. Completou o quadro acima com duas observações sobre as relações recíprocas entre os diferentes fatores etiológicos.
A primeira observação especifica que a ocorrência de uma neurose depende do fator quantitativo, qual seja, a carga total sobre o sistema anímico (“sistema nervoso”, na época dessas formulações), considerando sua capacidade de resistência. Tudo o que possa manter ou retrair esse fator abaixo de certo limite possui eficácia terapêutica, pois faz com que a equação etiológica não se cumpra. Por outro lado, condição e causas específicas (as únicas necessárias) podem substituir-se uma à outra no que tange à quantidade, ou seja, o mesmo efeito acontece quando a etiologia específica é muito grave e a condição é moderada, ou o contrário. Por sua vez, a segunda observação atesta que a dimensão ou o alcance de uma neurose depende, em primeira instância, da extensão da “carga hereditária”. Ou seja, a hereditariedade funciona como um multiplicador introduzido num circuito elétrico, aumentando muitas vezes o desvio da agulha. Porém, a forma que uma neurose assumirá - a direção do desvio da agulha do circuito elétrico - é determinada exclusivamente pelo fator etiológico específico.
A primeira especificação (o fator quantitativo) trazia em si a necessidade de Freud afirmar o método de tratamento que tinha inventado e que incidia sobre as causas específicas, mais suscetíveis a alterações do que os fatores hereditários, porque mais recentes. Se hoje em dia, com todo o desenvolvimento tecnológico que permitiu à biologia expandir-se, qualquer intervenção nesses fatores hereditários já é complicada sob diversos aspectos, na juventude de Freud, ela era quase inimaginável.
Já a segunda afirmação diferencia as manifestações da hereditariedade e da causa específica no efeito produzido. A hereditariedade é condição, como uma quantidade já dada que multiplica o efeito da causa específica, sendo que, em casos extremos, uma pode chegar a substituir a outra nesse aspecto quantitativo. A causa específica influi na escolha da neurose, ou seja, no tipo de afecção ocorrida, no porquê desta e não de outra. Portanto, são dois problemas interconectados que Freud pretendia resolver: o da origem da neurose em geral e o de cada neurose em particular. Embora um implique necessariamente o outro, são problemas diferentes. O primeiro pode ser alargado para a questão da própria constituição do psiquismo: o que importa na formação de um psiquismo, o que é inato ou o que foi adquirido mais recentemente?
No ano seguinte, 1896, em “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (Freud 1896), ao dedicar-se a confrontar Charcot e sua escola diretamente, Freud construiu alguns argumentos de fato, dos quais se destacam a suposição da existência de transições e graus de disposição nervosa nas famílias e nos indivíduos, e a diferença que a patologia nervosa faz entre a hereditariedade similar e a hereditariedade dissimilar (Freud 1896). O primeiro argumento revelava um modo de ver que se tornou característico do pensamento freudiano em todos os seus períodos: do normal ao patológico há variações de graus, não uma linha divisória nítida e clara. Os ensaios de teoria sexual talvez sejam o melhor exemplo dessa maneira de pensar (Freud 1905).
Escritos em 1905, eles foram revistos e aumentados pelo autor a cada cinco anos até 1925. Neles, Freud tratou, entre outros assuntos, de perversão, homossexualismo, fetichismo, etc., demonstrando que, em matéria de amor, ninguém é normal: “No campo da vida sexual, justamente, se tropeça com dificuldades particulares, na verdade insolúveis por agora, se se pretende traçar um limite taxativo entre o que é mera variação dentro da amplitude fisiológica e os sintomas patológicos” (Freud 1905, p. 146). O que há são variações e flutuações de intensidades. A perversão, por exemplo, faz parte da constituição julgada normal. Não se deveria supor que uma disposição hereditária para ela seja uma particularidade rara, pois todos têm moções perversas mais ou menos intensas, de modo que um pouco de predisposição nervosa estaria presente em todos os homens. Qualquer distinção entre o normal e o anormal tem apenas valor convencional. 4
Quanto à hereditariedade similar e a dissimilar, a primeira é simples e certa: em afecções nervosas que dependem da hereditariedade similar, “(...) nunca se descobre traço algum de outra influência etiológica acessória” (Freud 1896, p. 144) e a forma da afecção nervosa é semelhante em todos os casos. Por sua vez, a hereditariedade dissimilar se caracteriza pelo seguinte: numa mesma família, vários membros são afetados por neuropatias funcionais e orgânicas, sem que se possa encontrar uma lei que dirija tanto a substituição de uma doença por outra quanto a ordem de sua sucessão através das gerações. Além disso, ao lado dos indivíduos enfermos, há pessoas sãs e nada explica por que alguns suportam a carga hereditária sem sucumbir nem por que outros escolhem esta e não outra afecção (ou seja, a forma da neurose). E Freud conclui logicamente:
Mas, como o fortuito não existe em patogenia nervosa mais do que em outros campos, é preciso admitir que não seja a hereditariedade que preside a eleição da neuropatia que se desenvolverá no membro de uma família predisposta, mas que cabe suspeitar da existência de outros influxos etiológicos de natureza menos compreensível, que mereceriam então o nome de etiologia específica de tal ou qual afecção nervosa. Sem a existência desse fator etiológico especial, a hereditariedade não teria podido nada; ter-se-ia prestado à produção de uma neuropatia diversa se a etiologia específica em questão tivesse sido substituída por um influxo diverso. (Freud 1896, p. 145)
No exemplo da tuberculose pulmonar5 (Freud 1895), a infecção propriamente dita é o efeito; a predisposição da constituição orgânica, dada, na maioria das vezes, hereditariamente, é a condição; o bacilo de Koch é a causa específica e qualquer coisa que enfraqueça, como emoções, infecções ou resfriados, funciona como causa auxiliar. No caso das neuroses, o esquema é semelhante: a neurose é o efeito, a hereditariedade é a condição e qualquer coisa banal, mas fragilizadora, como emoção intensa, horror, esgotamento psíquico por excesso de trabalho ou por doença, pode ser a causa auxiliar. Qual seria, então, a causa específica “sem a qual a hereditariedade não teria podido nada” (Freud 1896, p. 145)? Qual seria o bacilo de Koch da neurose?
A teoria da sedução e a etiologia sexual das neuroses
O jovem médico tinha uma teoria a respeito:
[...] cada uma das grandes neuroses enumeradas6 tem por causa imediata uma perturbação particular da economia nervosa, e estas modificações patológicas funcionais registram como fonte comum a vida sexual do indivíduo, seja uma desordem da vida sexual atual, seja uns acontecimentos importantes da vida sexual passada. (Freud 1896, p. 149)
Em “A história do movimento psicanalítico” (Freud 1914), Freud relata as recordações de três cenas que tinham lhe servido de inspiração:7
1) Breuer e Freud passeavam pela cidade de Viena quando um homem aproximou-se, precisando falar urgentemente com Breuer. Como Freud manteve-se educadamente afastado da conversa emergencial, Breuer contou-lhe ser o homem o marido de uma de suas pacientes, levada para tratamento como um caso de doença nervosa por seu comportamento “chamativo” em reuniões sociais. “São sempre segredos de alcova”, concluiu Breuer.
2) Numa recepção em sua casa, em Paris, Charcot conversava com um professor de medicina legal e foi entreouvido por Freud. O psiquiatra francês falava de uma mulher, um caso de doença nervosa grave, possivelmente relacionada à impotência ou à falta de jeito excessiva de seu marido. Rebatendo o espanto de seu interlocutor diante do que dizia, Charcot afirmou com veemência: “Mas, nesses casos, a coisa é sempre genital, sempre... sempre... sempre...”.
3) Um eminente ginecologista de Viena, Rudolf Chrobak, pediu a Freud ajuda no caso de uma paciente que sofria de acessos de angústia sem sentido. Após revelar que, embora casada há 18 anos, a mulher permanecia virgem devido à impotência do marido, Chrobak afirmou, resignado pela impossibilidade de prescrição medicamentosa, que a única receita para essa doença era penis normalis dosim repetatur.
Freud sabia que considerar a vida sexual como fonte comum das neuroses não era novidade. O que, segundo o próprio, distinguia a sua teoria era ele dar a essas influências sexuais a dignidade de causas específicas, reconhecendo sua ação em todos os casos de neurose e traçando um paralelismo regular entre a natureza do influxo sexual e a forma da neurose.
Assim, segundo essa sua primeira teoria etiológica, a neurastenia propriamente dita teria como etiologia específica o onanismo desmesurado ou as poluções espontâneas. A neurose de angústia, por sua vez, seria o efeito específico de diversas desordens da vida sexual, tais como a abstinência forçada, a excitação genital frustrada, o coito imperfeito ou interrompido, os esforços sexuais que ultrapassam a capacidade psíquica do indivíduo, etc. Todos com a característica comum de perturbarem o equilíbrio das funções psíquicas e somáticas nos atos sexuais e impedirem a participação psíquica necessária para que a economia nervosa se libere da tensão gerada.
Quanto ao segundo grupo das ditas grandes neuroses, compreendendo a histeria e a neurose obsessiva, Freud acreditava ser uma lembrança de um acontecimento da vida sexual do sujeito a etiologia específica (Freud 1894). No caso da histeria, o acontecimento registrado na memória seria uma experiência precoce de relações sexuais (anterior à maturidade sexual), acompanhada pela excitação dos órgãos genitais, resultante de um abuso sexual praticado por outra pessoa. Noutras palavras, uma experiência sexual passiva antes da puberdade. No momento em que ocorreu, o acontecimento teria tido uma efeito nulo ou escasso, mas se conservaria como memória. Por conta das transformações sofridas durante a puberdade, a lembrança adquiriria um poder que o acontecimento mesmo não teve e agiria como se fosse um acontecimento atual.
No caso das obsessões, a causa específica seria análoga à da histeria. Também teria havido um acontecimento sexual precoce cuja recordação se tornaria ativa durante ou depois da puberdade. A diferença é que, aqui, ao contrário da histeria, o acontecimento teria causado prazer e o próprio abuso sexual teria sido inspirado pelo desejo, no caso dos meninos, ou teria sido acompanhado de gozo, no caso das meninas. Ao contrário da histeria, a experiência sexual teria sido ativa, o que, por outro lado, parecia revelar a influência de uma sedução prévia, da qual a precocidade do desejo sexual seria conseqüência.
Com isso, Freud tinha nas mãos a sua famosa teoria do trauma ou teoria da sedução, a qual abandonou pouco tempo depois. Em 21 de setembro de 1897, ele escreveu ao seu amigo Wilhelm Fliess que não acreditava mais em sua “neurótica” por vários motivos (Freud 1897). Primeiro, a dificuldade em fazer a análise remontar a um acontecimento real; segundo, a debandada dos pacientes; terceiro, a ausência do êxito completo esperado e a possibilidade de explicar os êxitos parciais de outro modo. Explica Freud:
Depois, a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai tinha de ser apontado como perverso, sem excluir meu próprio pai, a intelecção da inesperada freqüência da histeria, em cujos casos se deveria observar condição idêntica, quando é pouco provável que a perversão contra crianças esteja difundida até este ponto. (A perversão teria de ser incomensuravelmente mais freqüente do que a histeria, pois a enfermidade só sobrevém quando os eventos se acumularam e se soma um fator que debilita a defesa.) Em terceiro lugar, a intelecção certa de que, no inconsciente, não existe um signo de realidade, de modo que não se pode distinguir a verdade da ficção investida com afeto. (Freud 1897, pp. 301-2)
Se o que ele considerava como causa específica, a sedução real, merecia uma revisão profunda, a idéia de uma equação etiológica permanecia como pressuposto fundamental de seu modo de compreender, mais do que a origem das afecções psíquicas, a constituição e o desenvolvimento do psiquismo humano em geral.
As séries complementares
Em 1916, a equação etiológica ganha uma complementação. Na 22a das conferências introdutórias proferidas nos Estados Unidos aparece, pela primeira vez, a noção de séries complementares (Freud 1916-17). A essa altura, a idéia de que os seres humanos contraem uma neurose quando lhes é retirada a possibilidade de satisfazer sua libido, noutras palavras, por uma frustração, não era nova para o metapsicólogo e seus colaboradores. Em todos os casos de neurose, a frustração da satisfação da libido estava presente, o que fazia dela uma causa específica na equação etiológica. Mas, como vimos, a causa específica só é capaz de produzir neurose se as condições estiverem cumpridas - causa específica e condição operam em conjunto numa relação quantitativa. Ou seja, apenas a frustração não basta, é preciso considerar também a peculiaridade de quem ela afeta.
Para que haja efeitos patógenos, é preciso que a frustração recaia sobre a única forma de satisfação de que o indivíduo é capaz. Se ele puder, por assim dizer, deslocar sua libido para novos objetos ou para alvos não sexuais, possivelmente não neurotizará, embora o grau de libido insatisfeita que se possa suportar seja limitado. A plasticidade ou, ao contrário, a viscosidade libidinal pode ser maior ou menor conforme o caso, mas, em todos os indivíduos, há um limiar a partir do qual uma frustração pode ter como efeito a regressão da libido a fases anteriores de seu desenvolvimento, determinadas por fixações libidinais ocorridas nas histórias individuais. Noutras palavras, de um lado, a frustração pode ser entendida como o fator externo acidental na causação das neuroses, de outro, a fixação da libido ocupa o lugar do que Freud chamava de fator constitucional predisponente, pois, por assim dizer, atrai a libido para organizações e objetos que, na maioria das vezes, não oferecem satisfação real.
Para Freud, é preciso que certa constituição e certas exigências nocivas da vida estejam presentes para que uma neurose ocorra, o que pode acontecer em quantidades variadas caso a caso; quando um deles aumenta o outro diminui, seguindo o princípio da equação etiológica. Pode-se até ordenar os casos de contração de neurose numa série na qual, numa das extremidades, se encontrariam aqueles nos quais se pode dizer com segurança que, em conseqüência de seu desenvolvimento libidinal, os sujeitos teriam neurotizado de qualquer maneira em quaisquer circunstâncias. Na outra extremidade estariam aqueles outros que, inversamente, teriam escapado da neurose se a vida não lhes tivesse jogado nesta ou em outra situação.
Entre os dois extremos, os casos em que “[...] um mais ou um menos de constituição sexual predisponente se conjuga com um mais ou um menos de exigências daninhas da vida” (Freud 1916-17, p. 316). Em outras palavras, casos nos quais a constituição sexual não teria provocado a neurose se não houvesse tais exigências da vida, e estas não teriam tido o efeito que tiveram com outra situação da libido.8 Às séries como esta, Freud chamou de séries complementares, nas quais os fatores em questão se conjugam, cada equação etiológica produzindo um efeito diverso de acordo com a intensidade da frustração e com a rigidez das fixações libidinais.
Porém, para ele, havia mais em jogo na etiologia das neuroses do que somente uma frustração externa acidental somada a uma situação libidinal. O exemplo usado pelo metapsicólogo para ilustrar sua teoria foram os casos nos quais indivíduos até então sãos neurotizavam repentinamente, sem que a vida tivesse feito a eles exigências maiores do que as usuais. Em tais casos, poder-se-ia facilmente identificar a ocorrência de um conflito psíquico: “Um fragmento da personalidade sustenta certos desejos, outro se revolta e se defende deles” (Freud 1916-17, p. 318). Sem um conflito desse tipo, não há neurose.
Mas, assim como ocorre com a frustração, nem todo conflito produz neurose: nossa vida anímica é agitada o tempo todo por conflitos com os quais temos de lidar. Para que um conflito se torne patógeno, é preciso que certas condições se cumpram. Nos casos em que a natureza e a intensidade da frustração são fatores notáveis, o conflito é engendrado a partir da exigência de que a libido busque outros objetos e caminhos para sua satisfação. A condição do conflito é que esses outros objetos despertem desaprovação por uma parte do psiquismo, de modo que se produza um veto que impossibilite a nova modalidade de satisfação. Não obstante, as aspirações libidinosas vetadas conseguem impor-se fazendo certos rodeios, sendo obrigadas a driblar o veto através de certas desfigurações e atenuações. Os rodeios são os caminhos da formação de sintomas e os sintomas são a satisfação nova ou substitutiva que se fez necessária pela frustração. Em poucas palavras, para que uma frustração por causas externas tenha efeitos patógenos, é preciso que se some a uma frustração interna. A primeira elimina uma possibilidade de satisfação; a segunda pretende excluir outra maneira de satisfação, em torno da qual explode depois o conflito.
Nessa época de sua obra, Freud pensava o conflito psíquico como o resultado do confronto entre forças pulsionais sexuais e forças pulsionais do eu, entre a sexualidade e o eu. Conflitos que, é bom lembrar, não são, para Freud, privilégio dos neuróticos. Todos enfrentam a mesma luta para domesticar suas pulsões, de modo que, entre as condições da saúde e da doença não há nenhum tipo de diferença qualitativa. Um acréscimo na quantidade de libido na economia psíquica, - “por ter-se alcançado certa trama da vida e por causa de processos biológicos que obedecem a uma lei [...]” (Freud 1912a, p. 241) - pode muito bem romper o equilíbrio da saúde e estabelecer o conflito, condição para uma neurose. Do mesmo modo, a debilitação do eu por doença orgânica ou por uma demanda particular de sua energia pode trazer à luz neuroses que, de outro modo, teriam permanecido latentes, apesar da predisposição existente.
Novamente, trata-se de variações de quantidade, do quanto de libido cada eu singular é capaz de aplicar, dominar ou manter em tensão em cada período de sua existência. Todos os outros fatores externos e internos - frustração, fixação - permanecem ineficientes se não atingirem certa medida de libido e não provocarem uma estase libidinal de certa monta, contra a qual o eu não pode mais defender-se sem danos. A esse respeito, afirma Freud: “A psicanálise nos advertiu que devemos renunciar à oposição estéril entre momentos externos e internos, destino e constituição, ensinando-nos que, na causação de uma neurose, se acha, por regra geral, uma determinada situação que se pode produzir por diversos caminhos” (Freud 1912a, p. 245).
Ambos, sexualidade e eu, passariam por fases ou estágios de desenvolvimento paralelos e interconexos durante os quais se organizam. Desses desenvolvimentos dependem tanto a resistência do eu quanto a rigidez das fixações libidinais. Esses dois fatores constituem o que Freud (1916-17) chamou, do ponto de vista da ocorrência da neurose, de predisposição. O esquema da equação etiológica da época da teoria do trauma (até 1897) era o seguinte: constituição hereditária + experiências infantis traumáticas e/ou experiências atuais = neurose. Agora, em 1916-17, com a complexificação da idéia de predisposição, o esquema ganhou mais um nível:9
1° nível: constituição + experiências infantis = predisposição (fixação da libido + robustez do eu)
2° nível: predisposição + experiências da vida adulta = neurose
No 1° nível há a conjugação entre o que trazemos à vida e o que a vida nos traz. Se este último aspecto não suscita maiores esclarecimentos para o entendimento pleno dos fatores constitucionais em jogo, é preciso considerar, ao lado dos aspectos ontogenéticos individuais, a dimensão filogenética relativa à evolução da espécie humana e as propensões da espécie para a neurose e psicose. “O quanto a disposição filogenética pode contribuir para a compreensão das neuroses, não podemos ainda estimar” (Freud 1915b, p. 10), escreveu Freud num rascunho datado de 1915 e encontrado em 1983, “Panorama das neuroses de transferência”. Nesse rascunho, Freud afirma ser “[...] ainda legítimo admitir que as neuroses devem também dar testemunho da história do desenvolvimento anímico do ser humano” (ibid., pp. 11-2). Com isso, ele afirmava que, na consideração dos fatores constitucionais, também estão em jogo as marcas da história da espécie.10
No 2° nível das séries complementares, a predisposição seria o resultado da conjugação entre o que foi herdado (onto e filogeneticamente) e o que foi adquirido pela experiência infantil. Esses dois fatores conjugam-se e participam da outra série, composta pela somatória da predisposição e das experiências acidentais do adulto. As duas séries são complementares porque a segunda não existe sem a primeira. Por outro lado, a primeira série não explica a etiologia das neuroses. Seja como for, em ambas as séries, pode-se encontrar os mesmos casos extremos e as mesmas relações de substituição conforme o princípio da equação etiológica. Já antes, em 1912, Freud tinha resumido sua equação etiológica em dois níveis:
[...] todo ser humano, por efeito conjugado de suas disposições inatas e dos influxos que recebe em sua infância, adquire uma especificidade determinada para o exercício de sua vida amorosa, ou seja, para as condições de amor que estabelecerá e as pulsões que satisfará, assim como para as metas que irá fixar-se. Isso dá como resultado, digamos assim, um clichê (ou também vários) que se repete - é reimpresso - de maneira regular na trajetória de vida, na medida em que o consintam as circunstâncias exteriores e a natureza dos objetos acessíveis, ainda que não se mantenha de todo imutável diante das impressões recentes. (Freud 1912b, pp. 97-8)
Numa nota, a reafirmação de que não há uma oposição de princípio entre as séries de fatores etiológicos: disposição e acaso determinam, em conjunto, o destino de um ser humano (Freud 1912b, p. 97, n. 1). Qualquer determinação da distribuição da eficiência etiológica só pode ser obtida, quando muito, em casos extremos. E, mesmo nisso em que consistiria a disposição herdada, Freud acreditava estar presente o que um dia teria sido adquirido. Por exemplo, no caso do desenvolvimento do eu, o metapsicólogo escreve em 1937:
Não há razão alguma para impugnar a existência e significância de diversidades originárias, congênitas, do eu. Um fato é decisivo: cada pessoa seleciona sempre só alguns dos mecanismos de defesa possíveis e os emprega logo continuamente. Isto assinala que o eu singular está dotado desde o começo de predisposições e tendências individuais, só que nós não somos capazes de indicar sua índole, nem seu condicionamento. Ademais, sabemos que não é lícito extremar a distinção entre propriedades herdadas e adquiridas até convertê-la numa oposição; entre o herdado, o adquirido pelos antepassados constitui sem dúvida um setor importante. (Freud 1937, p. 242; os itálicos são meus.)
Nesse mesmo texto de 1937, escrito dois anos antes de morrer, Freud ainda propôs uma nova modificação na equação etiológica e nas séries complementares: ao invés de fatores constitucionais (hereditários), é preciso pensar em termos de intensidade pulsional no momento.
A intensidade pulsional no momento
Ao dedicar-se a discutir sobre ser a análise terminável ou interminável, Freud (1937) dá a impressão de ter sido absorvido pelo pessimismo relativamente à eficácia terapêutica da psicanálise, uma vez que destaca suas limitações, suas dificuldades e seus obstáculos (Strachey 1964). Contudo, se as ambições terapêuticas da análise nunca o entusiasmaram de fato, a novidade aqui está noutra parte: precisamente no novo exame que realiza a respeito dos obstáculos ao processo analítico.
Chama a atenção sua insistência sobre os fatores de índole fisiológica e biológica que, conseqüentemente, não são suscetíveis à intervenção psicológica, tais como alterações no eu por processos fisiológicos, tais como a puberdade, a menopausa e a doença física, e “a intensidade constitucional das pulsões” (Freud 1937, p. 227; o itálico é meu). Definida em 1915 (Freud 1915a) como um conceito-fronteira (Grenzbegriff), a pulsão é simultaneamente somática e psíquica, ou seja, é uma tensão de fonte corporal que, através de objetos infinitamente variáveis, pressiona o aparato anímico, exigindo que ele trabalhe para que ela atinja seu alvo, a descarga. Vê-se como a pulsão, gerada espontaneamente pelo corpo e seus processos, apresenta-se para o sujeito como uma tensão a ser processada e encaminhada na direção de sua diminuição. Cada indivíduo apresentaria, em função de sua natureza, intensidades pulsionais singulares que ele traz à vida e que, nesse sentido, seriam constitucionais, pois independeriam do contexto.
Mas, em 1937, Freud, insatisfeito como o adjetivo “constitucional”, questiona se ele é de fato indispensável. Embora decisivos, é necessário considerar que a ocorrência de reforços pulsionais, sobrevindos mais tarde, exteriorizem os mesmos efeitos que os assim chamados fatores constitucionais. O que importa parece ser menos a intensidade pulsional que trazemos conosco do berço, nossas tendências inatas e espontâneas. Muito mais relevante é o que se apresenta, a cada momento, como expressão do encontro entre a intensidade pulsional local e o contexto no qual tal intensidade deve ser elaborada psiquicamente. A fórmula etiológica merecia nova revisão: “Haveria, pois, que modificar a fórmula: intensidade pulsional ‘no momento’, no lugar de ‘constitucional’ (Freud 1937, p. 227). Dessa intensidade pulsional no momento dependeria tanto a eclosão de uma neurose quanto o desenlace de uma análise.
À análise caberia auxiliar o indivíduo no domínio de suas pulsões, ou seja, admiti-las no eu, tornando-as acessíveis aos influxos de outras aspirações ali operantes e, portanto, desviando-as de seu caminho direto e imediato em direção à satisfação. Assim, a análise ajudaria o neurótico a realizar o que o são leva a cabo por si só. No indivíduo são, todo desenlace para um conflito pulsional vale exclusivamente para uma determinada intensidade da pulsão, ou seja, somente dentro de uma determinada relação entre robustez da pulsão e robustez do eu. Se esta última se fragiliza, por doença, esgotamento, etc., todas as pulsões dominadas com êxito até então podem voltar a apresentar suas exigências e aspirar a sua satisfação. Numa nota de rodapé, Freud alerta para que o psicanalista dê a devida importância a fatores etiológicos inespecíficos, tais como excesso de trabalho, efeito de choques psicológicos, etc., deixados em segundo plano pela psicanálise (Freud 1937, p. 228, n. 1). É que a etiologia das neuroses (e seu avesso, a saúde psíquica) só pode ser pensada, em termos metapsicológicos, por referência a proporções de forças entre as instâncias do aparato anímico. Quanto à intensidade pulsional, também ela não é dada constitucionalmente de uma vez por todas:
Por duas vezes no curso do desenvolvimento individual emergem reforços consideráveis de certas pulsões: durante a puberdade e, na mulher, por ocasião da menopausa. Em nada nos surpreende que pessoas que antes não eram neuróticas se tornem assim nestas épocas. O domínio das pulsões, que tinha sido conseguido quando estas eram de menor intensidade, agora fracassa com seu reforço. As repressões se comportam como diques contra o vigor de assalto [Andrang] das águas. O mesmo que produz estes dois reforços pulsionais pode sobrevir de modo irregular em qualquer outra época da vida por obra de influxos acidentais. (Freud 1937, p. 229)
Reforços pulsionais podem ocorrer em virtude de novos traumas, frustrações impostas do exterior e mesmo por influxos colaterais recíprocos das próprias pulsões. Em todos os casos, o resultado é o mesmo e reafirma o poder do quantitativo na causação da neurose: trata-se sempre de uma equação etiológica envolvendo séries complementares, nas quais os fatores em jogo estão o tempo todo sujeitos a variações de intensidades que podem alterar o resultado final. Vê-se como a dualidade de base herdado/adquirido fica completamente diluída ao ser incluída como uma conjugação de fatores sempre presentes. Para Freud, a questão nunca foi a de decidir sobre a causa última, se a natureza do que aconteceu ao indivíduo ou se suas peculiaridades.
Referências
Freud, Sigmund 1888: “Prólogo a la traducción de H. Bernheim, ‘De la suggestion’ ”. Sigmund Freud - Obras completas. v. I. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1994 [Doravante citado A.E.].
_____1894: “Las neuropsicosis de defensa”. A.E., v. III.
_____1895: “Sobre la justificación de separar de la neurastenia un determinado síndrome en calidade de ‘neurosis de angustia”’. A.E., v. III.
_____1896: “La herencia y la etiologia de las neurosis”. A.E., v. III.
_____1897: “Carta de 21 de setembro de 1897”. In: A correspondência completa de Sigmund Freud e Wilhelm Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro, Imago, 1985.
_____1905: “Tres ensayos de teoría sexual”. A.E., v. VII.
_____1912a: “Sobre los tipos de contracción de neurosis”. A.E. v. XII.
_____1912b: “Sobre la dinámica de la transferência”. A.E., v. XII.
_____1914: “Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico”. A.E., v. XIV.
_____1915b: A phylogenetic fantasy. Londres: The Belknap Press, 1987. [ Links ]
_____1915a: “Pulsiones y destinos de pulsión”. A.E., v. XIV.
_____1916-17: “22a Conferencia de introducción al psicoanálisis”. A.E., v. XVI.
_____1937: “Análisis terminable e interminable”. A.E., v. XXIII.
Strachey, James 1964: “Introdución ao ‘Análisis terminable e interminable”. Sigmund Freud - Obras completas. v. XXIII. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1994.
Endereço para correspondência
E-mail: winograd@uol.com.br
Enviado em 23/04/2007.
Aprovado em 22/09/2007.
1Este artigo foi redigido no âmbito de pesquisa realizada com apoio do CNPq (processo 401750/2007-8).
2A tradução brasileira utiliza aqui o termo “predisposição” ao invés de “condição”. Fazendo isso, dá margem a uma confusão com o que, posteriormente, Freud chamará de fatores predisposicionais ou, simplesmente, de “predisposição”, a saber, a configuração psíquica do adulto determinada tanto pela sua constituição, quanto pelas experiências infantis.
3Em seus textos, Freud faz uso tanto do termos “quantidade”, quanto de “intensidade”. O tipo de correspondência entre esses dois vocábulos mereceria um estudo à parte. Por ora, utilizarei os dois termos sem problematizá-los, tentando manter o uso original de Freud e confiando na tradução.
4Certamente, a questão é mais complexa, pois esse modo de pensar não impede, por exemplo, que Freud faça referência a uma normalidade e a uma patologia. Fica a pergunta sobre o que ele considerava normal e o que ele considerava patológico, ainda que pensasse em termos de transições, graus e valores convencionais.
5Phthisis pulmonum.
6Nesse texto, Freud divide as neuroses em dois grupos. O primeiro grupo, das ditas grandes neuroses, é composto pela histeria e pelas “neuroses de obsessões”. O segundo grupo contém a neurastenia, que Freud decompôs em dois estados funcionais separados pela etiologia e pelo aspecto sintomático: a neurastenia propriamente dita e a neurose de angústia.
7Nem Breuer, nem Chrobak - Charcot já tinha morrido - confirmaram a veracidade destas recordações, de modo que faremos como o psicanalista em sua clínica e não nos preocuparemos em demasia com distinguir entre a verdade fatual e o que pode ser construção fantasiosa de Freud.
8Apesar de ter, desde há muito tempo, abandonado a teoria do trauma, Freud fala em “efeitos traumáticos” das vivências.
9 Esse esquema baseia-se no que Freud desenhou na 22a conferência de introdução à psicanálise (1916-17). Nele, a constituição aparece especificada como constituição sexual e a predisposição não inclui explicitamente a capacidade de resistência do eu.
10Embora Freud fosse lamarckista (naquela época a diferença entre lamarckismo e darwinismo não era tão determinante como ficou após a descoberta do DNA na década de 50), sua teoria é muito moderna e calcada em influências da biologia e filosofia da época; na verdade, ela é comparável à sociobiologia e às atuais teorias psicogenéticas.