Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
RESENHAS DE LIVROS
Henrique Figueiredo Carneiro
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Julia Kristeva
AS NOVAS DOENÇAS DA ALMA
Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2002, 239p
"As novas doenças da alma" nos remete à discussão urgente sobre os rumos da psicanálise hoje. Acena como uma obra importante para os que estamos interessados em construir um novo enfoque na escuta psicanalítica, em tempos onde o sofrimento psíquico se recobre por uma capa de promessas. Promessas que, aparentemente, elimina o sofrimento do cenário operativo do sujeito à linguagem, para ser engessado pela máquina da ciência e da tecnologia, como algo relativo aos mapeamentos cartesianos de uma produção exacerbada da objetivação do homem.
Com esses ingredientes nos movemos à realização desta resenha. No lugar de confluência do pensamento exposto por Kristeva e os trabalhos que estamos desenvolvendo em duas frentes de investigação: uma linha, situada na universidade, através das produções realizadas pelo Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto (LABIO), onde as novas doenças da alma nos alerta para os caminhos que percorremos nas patologias do corpo e a conseqüente resposta psíquica que daí advêm em forma de sintomas como a anorexia, bulimia, toxicomania, obesidade e na posição que o sujeito sustenta frente à eleição de objeto sexual; a outra vertente situada dentro do espaço clínico por nós denominado de Clínica do Objeto (CLIO), onde tomamos como base o engessamento dos sintomas pela fixidez inabalável de uma posição a que chamamos de Preposicional, por restabelecer pontos importantes dentro da prática psicanalítica ao se realçar a nostalgia do paciente na passagem da vivência corpórea esquecida pela primazia do simbólico sobre o real. O livro está composto por dois espaços: um clínico e um histórico. Na parte clínica a autora trata da manifestação das novas doenças e suas formas de comparecimento ao consultório do analista, perguntando-se inicialmente, no ensaio "A alma e a imagem", se nos tempos de neurolépticos, da aeróbica, e da sustentação da imagem pela mídia, sobraria algum espaço para a insistência psicanalítica na alma. A partir desta pergunta, trabalha o dualismo corpo/alma ocidental implantado no mundo grego e sobrevivente contemporâneo da lógica do tratamento da dor na medicina e na psicanálise.
Entretanto, destaca Kristeva que a psicanálise, apesar de guardar alguns índices estruturais de uma dualidade pulsional, extrapola esse lugar quando Freud lança mão da sua pluralidade judaica, tornando a alma polifônica, na tarefa de transubstancializar o corpo em representações do sujeito, obedecendo assim a verdade do traço que cada um pode sustentar.
É nisso que aparece o furo do contemporâneo, pois o analista recebe na sua escuta o paciente cambaleante entre a (in)eficácia hospitalar e a in(ter)venção do mundo imagético. Talvez, o mais curioso seja o fato de que esse homem continue a sofrer pelo sexo e pelo corpo. Assim, o homem narcisista se mistura com sua forma de obtenção de prazer, pautado no ato perverso. É esse o produto de uma lógica resultante da exacerbação dos fármacos e do encolhimento subjetivo que nossa era propugna.
Desta forma a obra se justifica no plano clínico, ao dizer Kristeva que se um analista não descobre em cada um de seus pacientes, uma nova doença da alma, é porque não o escuta em sua verdadeira singularidade (p.16), trazendo em seguida um fragmento de caso clínico que intitula de A inibição fantasmática. Nele retrata a história de Didier, um artista que tão só conseguia se expressar pela paixão à pintura e pela masturbação. Por este recurso vai pouco a pouco ilustrando seu espaço clínico que, em outras palavras, indica um vasculhar constante sobre "o que eles pedem ao analista". A resposta: um novo aparelho psíquico".
No desenrolar do caso a autora se depara com o fracasso do paciente em organizar especificamente uma resposta perversa autêntica, porém consegue identificar que havendo um desmentido da castração se prende na sexualização sem objeto. Assim, chega a identificar nas ações de Didier um brasão dos novos sintomas contemporâneos, na medida que ele se apresenta como, ator ou consumidor da sociedade do espetáculo, tem seu imaginário em pane (17). É aí onde Didier solda pulsão e objeto. É aí onde o paciente clama pela presença do analista. É aqui onde se reinventa a psicanálise hoje.
Essa lógica de posicionamento do analista segue no livro quando a autora nos apresenta o ensaio "Para que servem os psicanalistas em tempo de desgraça que se ignora", que, entre outras questões, retoma os dois grandes confrontos que esperam uma posição da psicanálise: um encontro com as neurociências, na era do conflito entre o comprimido e a palavra e, o outro, a fuga dos pacientes à psicanálise que preferem a farmacologia ao desejo de saber sobre sua posição. Vai desenvolver assim, a lógica de que a psicanálise de hoje, "depois de seu período lingüístico, (...) está de novo atenta à pulsão, em virtude da herança freudiana e sob a pressão das neurociências. Em conseqüência, decifra a dramaturgia das pulsões para além da "significação da linguagem" em que se traveste o "sentido pulsional" (42).
Depois de haver situada esta questão na teoria freudiana e lacaniana propõe três problemas para se repensar a posição que o analista deveria considerar frente a esses impasses: que outros "sistemas de representação poder-se-iam somar ao reducionismo da estrutura aos aspectos da língua e da palavra?"; o que fazer na interpretação para que ela cause, além do simbólico, uma posição no biológico do sujeito? E, finalmente, caso se possa evidenciar esta prática onde esbarram os limites da intervenção, para que se possa trabalhar com a ética do processo?
A essas questões responde:
- o analista hoje deverá estar atento a toda uma polifonia formada pelos aspectos lingüísticos e translingüísticos;
- que é a interpretação analítica que amalgama o dito com o corpo mediante uma causação psicanalítica
- que a demanda da interpretação por se encerrar dentro do sintoma poderia inclusive provocar uma extrapolação a ele.
Desta forma, traz como ilustração três fragmentos de caso que a faz concluir ressaltando a importância da psicanálise levar em consideração a referência biológica, pulsional e lingüística em função da plasticidade do discurso psíquico.
Seguem-se mais quatro ensaios, todos com essa reflexão clínica da psicanálise hoje.
Na segunda parte da obra, encontramos vários ensaios que articulam a psicanálise com outros saberes. Entre eles, destacamos a Religião e a Literatura, como duas grandes fontes de interlocução viáveis à reinvenção reflexiva da psicanálise e suas conexões. O ensaio Ler a Bíblia, nos chama atenção quando a autora faz uma consideração que muito interessa aos olhos da sociedade hoje, principalmente quando se toma o consumismo e os limites que historicamente podem ser identificados no Antigo Testamento.
É interessante como Kristeva destaca que "o texto bíblico presta-se à auscultação semiológica" (p.128). Essa ausculta semiológica comparece quando se pergunta sobre quem e para quem se fala no texto bíblico. Essa é uma incursão bastante feliz no Texto Sagrado, por mostrar uma interface no mínimo curiosa, quando ao analisar o Levítico e o Deuteronômio se deixam transparecer "os limites precisos da abjeção (da pele ao alimento, ao sexo e à moral) Nesse sentido, a autora propõe uma paralelização entre o Levítico e a dinâmica pré-edípica do sujeito". (p.129) Enfim, o texto de Kristeva é rico porque tece sutilmente uma relação entre a Lei Bíblica e a Lei do psiquismo, mostrando que se o desejo é uma construção que a psicanálise se aprofunda a partir do século XIX, há outros saberes, e, entre tantos, o texto bíblico, que pelos traços dietéticos das posições e regimes alimentares, ensejam que o homem trabalha desde sempre num lugar possível de separação, como um suporte ao psiquismo, indicado nos limites ao prazer incomensurável, que os hábitos alimentícios e de comportamentos deixam transparecer.
A obra de Kristeva é importante pois, em última instância, conjuga clínica, história e semiótica do cotidiano. Tudo isso, feito com cuidado e pertinência que nos faz repensar a que veio a psicanálise no cenário da modernidade e quais os desafios que hoje enfrenta.
Recebido em 10 de julho de 2002
Aceito em 22 de agosto de 2002
Revisado em 25 de agosto de 2002