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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

Perversão e ética na clínica psicanalítica

 

 

Silvia Lira Staccioli CastroI; Ana Maria RudgeII

IMestranda em Psicologia Clínica na PUC-Rio. Psicanalista. Endereço: R. Vilhena de Moraes 100, bl.4/403, Barra da Tijuca - Cep: 22793-900. e-mail: silviaflira@yahoo.com.br
IIProfessora do Programa de Pós-graduação e do Curso de Graduação em Psicologia da PUC-Rio. Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Pesquisadora do CNPq. Rua Marquês de São Vicente, 225 - Gávea - 22543-900. Rio de Janeiro - RJ - Tel. (021) 3114 1184 / FAX 3114 1187. e-mail: arudge@psi.puc-rio.br

 

 


RESUMO

O artigo examina a noção de perversão em psicanálise, questionando certos mitos, como o de que o perverso não está sujeito à angústia e é inacessível ao tratamento psicanalítico. Distingue-se, na metapsicologia freudiana, duas diferentes acepções do termo perversão: uma de alcance estrutural, referente ao caráter perverso polimorfo da sexualidade infantil, e outra, cujo paradigma é o fetichismo, que dá conta de uma sintomatologia peculiar, engendrada pela recusa frente à castração. São examinadas proposições sobre o tema, incluindo as lacanianas que promoveram grande avanço ao estudo. No cenário clínico, é como um discurso perverso na transferência que a perversão é examinada. Este discurso, performativo por excelência, busca do interlocutor que ateste a eficácia da insubmissão à Lei. Algumas formas em que o analista pode ser afetado pelas manobras do discurso perverso são examinadas, em uma reflexão que tem como foco a clínica psicanalítica, e visa contribuir para esclarecer o encaminhamento que pode ser dado pelo analista ao tratamento destes pacientes.

Palavras-chave: perversão, recusa, angústia, castração, fetichismo.


ABSTRACT

The article examines the notion of perversion in psychoanalysis, questioning certain myths, like the one that asserts that those patients are not subject to anxiety and, consequently, that they are not acessible to psicanalytic treatment. There are, in Freudian Metapsychology, two different meanings for the term perversion: one structural, referring to the polimorf perverse character of the infantile sexuality; the other one, whose paradigm is fetishism, refers to a specific sintomatology which is produced by the disavowal of castration. Several theoretical contributions to the subject are examined, including the lacanians, which promoted a great advance in this field. In the clinical scene, it is as a perverse discourse in transference that perversion is considered. This speech, performative par excellence, looks for an interlocutor who certifies the effectiveness of the unsubmissiveness to the Law. Some places where the analyst may be placed by the perverse discourse maneuvers are examined, in a reflection that has as its main focus the psicanalytic clinic and tries to clarify how the analyst should deal with the treatment of these patients.

Keywords: perversion, disavowal, anxiety, castration, fetishism.


 

 

Para problematizar a perversão, e defini-la com maior precisão no campo da psicanálise, é necessário remontar à primeira concepção elaborada por Freud nos primórdios da psicanálise. A importância deste estudo se deve a uma possível zona de imprecisão, no que diz respeito a este tema, localizada na fronteira entre a psicanálise e o discurso médico.

Cabe revisar o conhecimento sobre as perversões sexuais difundido na época em que Freud iniciou seus estudos, visto que, em sua obra, se encontram muitas referências à nosografia psiquiátrica da época.

Vários autores acentuam o grande corte que Freud teria operado em relação às concepções anteriores, ao tomar a perversão como paradigma para caracterizar a sexualidade infantil, transformando-a, portanto, de "anomalia sexual" em algo que se situaria no âmbito da normalidade. Outros, como Lanteri-Laura (1979), consideram que o corte empreendido pelo pai da psicanálise com a psiquiatria não teria sido tão radical, visto que Freud teve que se apoiar nesta literatura psiquiátrica, como fonte de saber para a nova ciência que tencionava criar.

Impulsionada por uma demanda do direito positivista, a medicina moderna se apropriou das perversões sexuais, tornando-se a referência maior no estudo deste tema (Lanteri-Laura, 1979). Como conseqüência, as perversões ganharam importância na medida em que foram trazidas à alçada do conhecimento científico. A busca de uma motivação orgânica, por trás do que era considerado como um desvio no comportamento sexual, representou uma grande mudança histórica, já que as perversões sexuais deixaram de ser vistas como desfaçatez e passaram a ser compreendidas como doenças.

A perversão ganhou na psicanálise outro estatuto que não aquele que a medicina lhe concedera, e esta transposição de uma noção para um campo teórico diverso não se faz sem uma transformação. No espaço em que o instinto no animal, como um saber inato, garantiria a tendência biológica para a adaptação, Freud valorizou a precariedade do equipamento inato de adaptação do bebê, o que o destinaria ao laço social, e determinaria a importância fundamental das primeiras experiências e relações na constituição de sua sexualidade e psiquismo.

As normas quanto ao que seria a conduta sexual sadia, que são um pressuposto necessário da definição de perversão como desvio, perdem sua sustentação dentro do enfoque psicanalítico da perversão. Quando Freud caracteriza a sexualidade infantil como polimorfa e perversa, não há mais um objeto pré-determinado e natural para a pulsão sexual: estes objetos são contingentes como as primeiras experiências que os determinaram. Portanto, apesar de Freud ter se utilizado do conhecimento produzido pela psiquiatria moderna, que categorizava as perversões como tipos de anomalia, não se manteve em suas fronteiras, mas, pelo contrário, abordou o tema de forma inédita e subversiva.

No primeiro momento de construção teórica freudiana, cujo texto de referência é Três ensaios sobre a sexualidade infantil (1905/1996a), a perversão designava a qualidade da sexualidade infantil, na qual prevalecem as pulsões anárquicas e desorganizadas. A atividade sexual habitualmente praticada pelas crianças, e caracterizada como perversa polimorfa, devido às numerosas formas de satisfação, foi universalizada e tomada como o solo em que se constitui a própria sexualidade adulta, através do recalque de certos componentes. Apoiado neste pressuposto, Freud inicialmente localizou a etiologia da perversão sexual no adulto, numa fixação em uma pulsão parcial especialmente intensa que, por isto mesmo, teria escapado do recalque. Daí o célebre axioma de que "a perversão é o negativo da neurose" (Freud, 1905/1996a, p.157).

A tese inicial, de que as fantasias que são recalcadas na neurose são atuadas sem culpa e conscientemente na perversão (Freud, 1908/1996b), foi revista em 1919, no artigo intitulado Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (Freud, 1919/1996c), quando um novo panorama se configurou pela investigação da fantasia perversa construída na análise de neuróticos.

Freud constatou que a fantasia de espancamento, tão comumente relatada na clínica, assim como outras "fixações perversas análogas" (Freud, 1919/1996c, p.208), eram apenas resíduos do conflito Edípico, mais precisamente, "cicatrizes" deixadas pelo processo.

Nesse novo contexto, não era mais possível admitir como critério de diferenciação entre neurose e perversão, respectivamente, o caráter inconsciente ou consciente das fantasias. Embora a concepção da perversão, como expressão de um infantilismo sexual ainda possa ser encontrada até os dias de hoje, não se deve mais entender que o que é recalcado na neurose "esteja a céu aberto na perversão, e, de certa maneira, em estado livre" (Lacan, 1956-1957/1995a, p. 115).

 

Fetichismo: paradigma da perversão

Tendo desenvolvido a equivalência simbólica entre fetiche e pênis da mãe (1910/1996d) e apresentado a recusa como o mecanismo psíquico operador desta equação (1923/1996e), Freud localizará a organização psíquica perversa como uma forma de se posicionar em relação ao complexo de Édipo (1919/1996c), para evitar a angústia de castração (Freud, 1927/1996f).

Nesta via, a perversão propriamente dita está para além de um desvio de objeto sexual, com o qual o sujeito estabelece uma relação de exclusividade e fixação, como Freud pensara em 1905. Além disso, sequer poderia ser compreendida como manifestação de sexualidade infantil não recalcada.

Dessa forma, na própria metapsicologia freudiana se diferenciam a perversão polimorfa, característica da sexualidade infantil, daquela que é efeito da posição do sujeito que, diante da castração, escolhe recusá-la. Desta vez, ela não está mais acompanhada do adjetivo sexual.

A posição neurótica de submissão à castração, em que os desejos edipianos são transformados através do recalque e/ou sublimação, é uma das possibilidades de saída do complexo de Édipo, mas não a única. Contra a ameaça de castração, o sujeito pode reagir contrafobicamente (Assoun, 1994), recusando-a através da instituição do fetiche, símbolo do pênis da mãe. Dessa maneira, o menino elimina a diferença sexual, e igualmente a falta. Ademais, destrói a prova da possibilidade de castração, fato que neutraliza a angústia.

A operação de construção do fetiche se funda no deslocamento do interesse pelo pênis para outra parte do corpo. Trata-se de uma formação defensiva inconsciente, solução de compromisso frente à angústia de castração, tendo como função subjetiva preservar a crença no pênis da mãe.

Mantendo a mãe fálica, o menino poupa seu próprio pênis, ao mesmo tempo em que se feminiliza, identificado-se com ela (Valas, 1990, p.100). Um caso clínico apresentado por Freud em 1927 ilustra bem esta dinâmica. O fetiche deste homem era um suporte atlético que também podia ser usado como calção de banho; o objeto tinha, por função, dissimular o pênis, eliminando, desse modo, a diferença sexual. Segundo Valas (1990), ainda que Freud não o tenha comentado, havia, neste caso, uma espécie de travestismo, já que a castração era negada na mulher e, ao mesmo tempo, representada no homem.

Freud deixa claro que a recusa não deve ser confundida com uma manobra psicótica, pois o perverso não tem uma percepção alterada da realidade: o saber sobre a vagina permanece mesmo naquele que o recusa, o que faz necessária a realização de "uma ação muito enérgica" (Freud, 1927/1996f, p. 156) para manter este saber afastado.

Dessa maneira, alternam no inconsciente duas representações opostas: "a mãe (mulher) tem pênis" e "a mãe (mulher) não tem pênis", sem que uma anule a outra, pois, neste sistema, não vigora o princípio da não-contradição. Assim sendo, pode-se concluir que o fetichista não apenas recusa, mas também admite a castração.

Uma aversão aos órgãos sexuais femininos nunca se acha ausente no fetichista, ela permanece como um "stigma indelebile" (Freud, 1927/1996f, p.157) da incidência do recalque. A mulher se torna tolerável como objeto sexual, na medida em que esta falta é recoberta, o que permite ao fetichista escapar do homossexualismo.

A perversão se constitui em dois tempos: num primeiro momento, pela recusa da castração e, num momento posterior, pelo recalque da recusa (Rosolato, 1967, p.9), cuja lembrança encobridora é a última imagem da mãe fálica, da qual o fetiche fazia parte. Recalque e recusa não são exclusivas, mas estão presentes ambos no fetichismo.

A cisão do eu que resulta disto é uma fenda que nunca se fecha, mas, pelo contrário, aumenta conforme o tempo passa (Freud, 1940[1938]/1996g). Esta cisão pode envolver uma clivagem da própria vida, mascarada pela ilusão. Para manter-se protegido da angústia, o perverso precisa recusar as mais simples observações do cotidiano, e isto exige dispêndio de grande soma de energia. Lacan compara o masoquista a um burro de carga (Lacan, 1964/1998a), mas esta observação pode ser ampliada para os efeitos da recusa à castração de modo geral:

Para obter esse efeito [que a angústia não sobrevenha], o perverso tem um enorme trabalho, e sua atividade em prol da recusa, surgindo nas várias formas de sedução, controle, etc., é freqüentemente interpretada como efeito de um compromisso com o desejo. Ironicamente, é o inverso. É o esforço defensivo contra o desejar que promove a incessante atividade (...). O perverso trabalha para não desejar, já que o desejo remete para a angústia de castração, da qual todo o seu esforço é para se evadir (Rudge, 1999, p.6-7).

 

Novo paradigma da perversão

Lacan (1956-1957/1995a) localizou o surgimento das perversões num momento em que a mãe é objeto de amor tanto do menino como da menina, e que ele qualificou como "pré-edipiano" (Lacan, 1956-1957/1995a, p.197). Constitui-se, no plano imaginário, uma relação enganadora, na qual o filho oferece à mãe a possibilidade (irreal) de satisfazê-la: "não somente como criança, mas também quanto ao desejo e, para dizer tudo, quanto àquilo que lhe falta" (Ibid., p.230).

Quando o plano da relação simbólica suplanta o da relação imaginária, o Outro é alguém que possui "o falo, o verdadeiro, o pênis real" (Ibid., p.213) e não mais um objeto imaginário. Dessa maneira, o pai exerce sua função simbólica ao provar para o filho que possui o objeto real que a mãe deseja, revelando a este a sua falta e seu equívoco quanto ao lugar que pensava ocupar na dinâmica do desejo da mãe. Inscreve, assim, a primeira Lei, a que funda todas as demais, interditando a mãe ao filho.

Na neurose, o reconhecimento da castração da mãe, este Outro primordial, permite ao sujeito se confrontar com sua própria falta. Na perversão, de forma diversa, a criança se recusa a saber sobre a diferença sexual e a admitir a falta. Assim, o fetiche se torna o símbolo de seu drible sobre a castração. Alguns autores, como Clavreul (1967), afirmam taxativamente que, na recusa, o sujeito não se submete à Lei paterna. Na verdade, trata-se mais de um desafio, já que, sem dúvida, existe uma Lei inscrita. A insistência sintomática na transgressão, por sua própria reiteração cotidiana, demonstra o quanto esta recusa não anula, de uma vez por todas, a angústia de castração que está instalada.

O Outro, cuja castração é recusada, assumirá formas variadas. Em seu texto Kant com Sade, "Lacan fez do mal, no sentido sadiano, um equivalente do bem no sentido kantiano, para mostrar que a estrutura perversa se caracteriza pela vontade do sujeito de se transformar em objeto de gozo oferecido a Deus (...)"(Roudinesco et Plon, 1997, p.793). Trata-se de um Deus obscuro, Ser-em-suprema-maldade, ao qual aludiu Sade em sua obra, que faz do perverso um "objeto eterno" (Lacan, 1963/1998b).

Este Deus maldoso é um espectador muito especial para quem a vocação para a cena do perverso é endereçada: "supereu cruel, na vassalagem fálica que o reduz a um objeto, o que recoloca o papel fundamental do masoquismo em toda perversão" (Rudge, 1999, p. 7).

Nessa medida, perversão e fantasia se contrapõem, pois enquanto na primeira o sujeito se coloca como "objeto de uma vontade outra", na segunda se sustenta como desejante (Lacan, 1964/1998a, p.175). O ato perverso não é, como vimos, a atuação de uma fantasia de desejo que seria inconsciente na neurose, mas, pelo contrário, busca erradicar o desejo, já que este implica a castração. Do mesmo modo, a recusa tem como efeito neutralizar a angústia que poderia advir da relação amorosa com o outro.

No fetichismo, o próprio sujeito diz que encontrou finalmente seu objeto, seu objeto exclusivo, tanto mais satisfatório quanto é inanimado. Assim, ao menos, ele ficará muito tranqüilo, certo de não sofrer decepção por parte dele. Amar um chinelo é, realmente, ter o objeto de seus desejos ao alcance. Um objeto desprovido de qualquer propriedade subjetiva, intersubjetiva, até mesmo transubjetiva, é mais garantido.(Lacan, 1956-1957/1995a, p. 85).

Esta posição de objeto diz respeito à perversão em geral. Lacan enfatiza que tanto o sádico como o masoquista, se oferecem como instrumento de gozo do Outro, colocando-se em posição de objeto. Entretanto, há duas diferenças a assinalar entre eles. Primeiramente, enquanto o masoquista exibe-se abertamente como objeto, o sádico desempenha este papel de forma inconsciente. De fato, o sádico ignora que trabalha para um Deus obscuro, não castrado, como seu "fetiche negro" (Lacan, 1962-1963/1995b, p.112). Em segundo lugar, no sadismo, o objetivo de suscitar a angústia no outro é bem mais explícito do que no masoquismo: "tão pouco escondido que vem antecipadamente na fantasia, a qual, se a analisamos, faz da angústia da vítima uma condição absolutamente exigida" (Ibid., p.202). Esta condição também vigora para o masoquista, embora inconsciente para ele.

O enigmático desejo sádico é apreensível apenas por seu efeito, que é submeter o outro e provocar sua angústia. O fim último do rito sádico não é causar sofrimento, mas radicalizar a divisão do outro (Lacan (1962-1963/1995b). É isso o que o masoquista também busca, embora de maneira bastante menos óbvia, já que ele é quem apanha, é vilipendiado e penalizado. Entretanto, não se pode esquecer que, desta maneira, provoca o constrangimento de seu algoz. Como exemplo, basta recorrer à literatura libertina assinada por Masoch (1870/1983), que deu nome ao quadro na nosografia psiquiátrica. Que o domínio permanece nas mãos do masoquista é o que se pode depreender do papel do contrato, que deve ser assinado pela parceira e do qual constam, enumerados em todos os detalhes, o período de duração do vínculo e os castigos a serem aplicados, o que provoca em Deleuze (1983) o comentário de que a vítima educa seu carrasco.

 

Discurso perverso: recusa em ato

A clínica psicanalítica é o território para circunscrevermos o discurso perverso, fundado na recusa da castração, e caracterizado por seu aspecto performativo. A promessa apresenta-se como um dos seus principais modus operandi, por sua força de ação.

Brincar com os performativos é uma das formas de transgredir a lei, descumprindo o pacto firmado. Além do mais, a cisão do eu instaurada pela recusa "fundamentaria uma labilidade argumentativa, em que o perverso razão diz e desdiz, talvez sem mentir, qualquer coisa que lhe poupe angústia na situação em que estiver envolvido, sem compromisso com o que enunciou" (Rudge, 1999, p.6).

O truque da sedução, no qual o perverso costuma ser um mestre, consiste em produzir a ilusão de um enunciado que só se refere a ele mesmo (Felman, 1980). Para mencionar o grande sedutor, sonho de toda mulher porque nada lhe falta (Lacan, 1962-1963/1995b), Don Juan não mente, mas não tem intenção alguma de honrar suas promessas, apenas se diverte com a propriedade auto-referente de seus enunciados e com a satisfação narcísica do interlocutor que se compraz com a imagem ideal de si que o sedutor lhe oferece. Assim, parasita o performativo pela repetição infinita, recusando, desta forma, o tempo, o fim e a morte; em última instância, a castração (Felman, 1980).

Embora o perverso tenha preservado inabalável o narcisismo vinculado aos seus órgãos sexuais, de uma forma que lhe garante um revestimento narcísico muito mais denso que o do neurótico, o que ele consegue preservar é apenas a ilusão de ser completo, enquanto algo de inesperado não lhe retira o tapete de sob os pés. Como pontuou Zalcberg (1995, p.90): "O perverso necessita da materialização dessa imagem [falo] como suporte de seu ser, desmentindo o que aparece na cadeia significante sob a forma de falta".

O discurso perverso busca unificar a imago de si e retomar a experiência de onipotência desfrutada pelo eu ideal (sentimento que sabe perdido por sua confrontação com a castração), através da identificação com o falo do Outro. Bem diferente do neurótico, que busca esse sentimento através de seus ideais, ele precisa de quem lhe ateste o sucesso de sua recusa à castração.

Para que sua performance seja bem-sucedida, o perverso também procura um parceiro que, mesmo inocente, assuma a culpa, o fracasso, a fragilidade e a incompetência. Geralmente, é um neurótico que se encaixa bem nesse papel, especialmente se sujeito a sentimentos depressivos e de desvalia.

Também interessa para o perverso, na escolha do parceiro, sua virtude, seus valores, as insígnias que porta (Clavreul, 1967). Afinal de contas, o discurso perverso precisa da lei, se um dos seus traços é desafiá-la. Por isso, é um equívoco crer que o par do exibicionista é o voyeur, e que o do masoquista é o sádico.

Sem chegar a tais extremos, digamos, no entanto, que o que continua sendo mais importante para o perverso é o fato de o Outro estar comprometido, inscrito o suficiente nas referências comuns, principalmente de respeitabilidade, para que cada nova experiência represente uma devassidão, ou seja, para que o outro se encontre extraído de seu sistema e para que ele tenha acesso a um gozo cujo domínio o perverso se vangloria de ter, em qualquer circunstância. (Clavreul, 1967, p.133).

 

Considerações finais

Através da discussão desenvolvida sobre a função simbólica do fetiche e sua relação com a recusa da castração, é possível refletir sobre as peculiaridades de um discurso perverso e sua manifestação na clínica.

Apesar de a constituição do fetiche e outras manobras da recusa produzirem um triunfo sobre a castração, há indícios de que a angústia não pode ser neutralizada de forma total, pois, se a castração é recusada, é porque ela foi inscrita e reconhecida. Portanto, a defesa contra a castração está, a todo o momento, sujeita a fracassar. Quando a vida impõe fracassos às estratégias da recusa, o caminho fica livre para a emergência de angústia.

A aposta na vacilação deste arranjo defensivo contra a angústia faz crer que a clínica da perversão não se reduz a impasses. Não há dúvidas de que eles existem, e são até muito comuns. É evidente que há grandes empecilhos ao trabalho psicanalítico, pois a tolerância a uma certa dose de angústia é necessária para o trabalho de elaboração, e esta tolerância pode se mostrar muito reduzida.

O manejo da transferência é extremamente delicado, pois, como apontou Clavreul (1967), é fácil cair nos extremos: numa posição moralizante por um lado e perversa por outro. A vontade de gozo perversa envolverá o analista, assim que se dê o deslocamento da libido que caracteriza o estabelecimento da transferência. Para delegar ao analista a angústia de castração, o discurso perverso poderá buscar acirrar sua divisão. Isto se dá, às vezes, de formas muito angustiantes para o analista, como no caso relatado por Dor, em que um paciente lhe disse que sua filha era uma de suas parceiras sexuais, das "mais depravadas e híbridas" (apud Helsinger, 1996, p.133).

Sabe-se que o discurso perverso invoca cumplicidade quanto a sua insubmissão à castração, o que não deixará de ocorrer na análise. O analista é solicitado como participante do ato perverso que se reproduz em análise, quando o analisando se oferece como "instrumento de gozo no próprio cenário analítico" (Helsinger, 1996, p.39). O analista é retirado do lugar de sujeito-suposto-saber e colocado no de sujeito-suposto-gozar. Desta forma, o analisando pode disputar o lugar de semblante de objeto a, posição que, no discurso analítico, é o do analista. Se o analista deve ocupar, na clínica, o lugar de causa do desejo, para fazer revelar ao analisando a sua verdade, o discurso perverso obstrui esta operação.

Por outro lado, a recusa tem como conseqüência que não se vai buscar análise com uma demanda de saber sobre o desejo. Esta é a posição dos neuróticos, que se colocam como deficitários na medida em que procuram pelo objeto perdido (Miller, 2001). Quando o desejo está obturado pela "consistência do gozo" (Miller, 2001; Helsinger, 1996) graças ao sucesso da recusa, o que talvez a análise possa fazer é suscitar, no analisando, um estranhamento em relação ao lugar que ocupa diante do Outro, esse lugar de objeto ou de instrumento de gozo, cujo desejo é aniquilado.

Apesar destes obstáculos na clínica ressaltados nos parágrafos acima, não se deve desconsiderar o sofrimento de um sujeito condenado à repetição do sintoma. Como nos ensinou Freud, ao invés de repetir, o paciente deve elaborar, e é por este caminho que o tratamento deve ser conduzido.

 

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Recebido em 22 de outubro de 2002
Aceito em 18 de janeiro de 2003
Revisado em 10 de fevereiro de 2003

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