Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
RELATÓRIO DE PESQUISA
O adolescente e a rua: encantos e desencantos
Mônica Araújo GomesI; Maria Lúcia Duarte PereiraII
IMestre em Saúde da Criança e do Adolescente. Rua Monsenhor Bruno, 810/702 - Meireles - CEP 60115-190 - Fortaleza-CE. e-mail: monicagomez@bol.com.br
IICoordenadora do Mestrado em Saúde da Criança e do Adolescente. Rua Paulo Morais, 175/1202 - Papicú - CEP 60175-175 - Fortaleza-CE. e-mail: mlduarte@fortalnet.com.br
RESUMO
Dado o acelerado processo de rompimento dos vínculos familiares, em decorrência do avanço da problemática do adolescente em situação de rua e o agravamento das condições de vida dessa população nas ruas, e tendo como pressuposto que a família é, em princípio, o locus ideal para o desenvolvimento psicossocial do individuo, este estudo objetiva identificar as representações sociais sobre família elaboradas por adolescentes em situação de rua e suas famílias, bem como verificar a importância das representações sociais no âmbito da comunicação e como guia de comportamento entre eles, destacando os aspectos psicossociais. Trata-se de um estudo de campo, exploratório, fundamentado na Teoria das Representações Sociais. A pesquisa desenvolveu-se no Albergue do Pólo Central de Atendimento, unidade da Secretaria do Trabalho e Ação Social, localizado em Fortaleza-Ceará, que acolhe adolescentes na situação sob enfoque. Os instrumentos utilizados na coleta de dados foram: teste de Associação Livre de Palavras, contemplando 40 sujeitos; entrevista semi-estruturada, avaliando 31 sujeitos, definidos por saturação; e observação assistemática. Os dados coletados foram submetidos à análise de conteúdo temática, apoiada nos pressupostos de Bardin, e à avaliação estatística, com base no programa Tri-Deux-Mots. Os dados analisados apontaram cinco categorias empíricas: concepções sobre família; sentimentos sobre família; causas da desestruturação da família; atributos sobre a rua e construção da identidade social. Os resultados mostraram que família representa sentimentos ambivalentes, agregador - desagregador, associada à imagem de família real e sonhada, construída a partir da interação dos sujeitos no seu cotidiano, influenciando e sendo influenciada por relações familiares conflituosas.
Palavras chave: adolescente, família, representações sociais.
ABSTRACT
Due to the accelerated process of rupture in family bonds as a result of the increasingly problematic issue of the adolescents in street environment and the deterioration in life conditions of this same population, and assuming that family is, in principle, the ideal locus for the individual's psychosocial development, this study aims to identify the family social representations, elaborated by the adolescents in street environment and their respective families, as well as to verify the importance of these representations within the scope of communication and as a behavior guide amongst them, focusing the psychosocial aspects. It is a field study, exploratory, based on the Social Representations Theory. The research was done at the Shelter of Pólo Central de Atendimento, a unit of the Work and Social Action Department in Fortaleza, State of Ceará, which shelters adolescents in this specific situation. The instruments used for the collection of data were: Free Association of Words test on 40 individuals; semi-structured interview, evaluating 31 individuals defined by exhaustive inquiry; and asystematic observation. The data has undergone the analysis of thematic content supported by premiss of Bardin and a statistical evaluation based on Tri-Deux-Mots program. The analyzed data pointed out five empirical categories: family perception; feelings about family; causes of family rupture; peculiarities about the street and construction of social identity. The results showed that family represents ambiguous feelings, of unity and disunity, associated with the image of lived up family and desired family constructed from the individuals' daily interaction; influencing and being influenced by the conflicting family relationships.
Keywords: adolescent, family, social representations
"O que mata um jardim não é o abandono, mas a indiferença dos que passam por ele"
Mario Quintana (s/d).
Introdução
A criança e o adolescente em situação de rua transformaram-se, neste final de século XX, em um fenômeno social de grande envergadura, desde o ponto de vista quantitativo, pois cresce de maneira inquietante, como também do ponto de vista qualitativo, dado o agravamento de suas condições de vida nas ruas (Graciani, 1997).
Entender o contexto que impulsiona adolescentes a viverem nas ruas, longe de suas famílias, compartilhando, com estranhos de toda sorte, um espaço público e desconhecido, estimulou que se avançasse neste estudo.
Sabe-se que a adolescência é decisiva na formação da personalidade do indivíduo, por ser considerada uma fase de transição entre a infância e idade adulta, podendo definir-se a partir de transformações físicas, biológicas, psicológicas e sociais. Nessa fase da vida, o indivíduo é surpreendido por intensos processos conflituosos, voltados para a busca de sua identidade. A adolescência é um fenômeno que está presente em todas as sociedades, no entanto, seu conceito não é hegemônico e universal, pois é construído a partir de determinadas influências históricas, socioculturais e políticas (Becker, 1994). Adolescer, do latim, significa "crescer", podendo ser este, provavelmente, o ponto de maior convergência entre os estudiosos do tema: adolescência como período de crescimento. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a adolescência compreende a faixa dos 10 aos 19 anos e, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (E.C.A.), entre os 12 e 18 anos.
Ferreira e Reif (2000) afirmam que o adolescente, em seu processo de construção da identidade, vive em dois mundos - o de criança e o de adulto - mas não chega a identificar-se, imediatamente, nem com um, nem com o outro. Vive, portanto, um "status" marginal: seus direitos ficam restritos aos da infância, enquanto seus deveres correspondem àqueles de responsabilidade do adulto. É preciso realizar um processo de luto do mundo infantil para aceitar o mundo adulto, sendo através desse luto que o processo de individuação se concretiza. É neste momento que o indivíduo busca ser ele mesmo e se prepara para a vida adulta.
Na adolescência, esta crise de identidade se reveste de maior vulnerabilidade quando seu referencial familiar também se apresenta fragilizado. Na falta de uma rede de apoio, a família vivencia momentos de tensão quanto à impossibilidade de responder, adequadamente, à demanda de seus dependentes, o que favorece aos adolescentes o deslocamento da dependência dos pais para outros grupos de referência.
A proteção integral à criança e ao adolescente, garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 4º, que tem a família, além da comunidade, da sociedade e do Poder Público, como uma das responsáveis pela proteção da sua prole, se vê, no entanto, no rumo inverso, uma vez que, alijada das mínimas condições socioeconômicas, sofre o processo da exclusão social. A injustiça social dificulta o convívio saudável da família, favorecendo o desequilíbrio das relações e a desagregação familiar. Segundo Graciani (1997), a criança e o adolescente na rua são uma criação da sociedade:
A problemática não está no menor, que tem de atuar por fora das normas, reside na estrutura social, no ordenamento e na dinâmica da sociedade que o obriga compulsoriamente a esses tipos de conduta, ao negar-lhe as possibilidades normais da vida (Graciani, 1997, p. 112).
A trajetória da família excluída é marcada pelas sucessivas crises econômica e social ao longo da história, trata-se de um fenômeno estrutural que se constrói e se reproduz, sendo hoje marcado pelo processo de submissão à política econômica neoliberal (Féres, 1991).
Nas famílias marcadas pela fome e miséria, a casa, para os adolescentes, representa um espaço de privação, de instabilidade e de esgarçamento dos laços afetivos e de solidariedade. As privações de que são objeto estes adolescentes se refletem fortemente na sua formação psicossocial. A questão da família pobre aparece como a face mais cruel da disparidade econômica e da desigualdade social que se instaurou no país.
Os reflexos da crise econômica, à qual está sujeita a família pobre, precipita a ida do adolescente para a rua e, na maioria das vezes, ao abandono da escola, a fim de ajudar no orçamento familiar. São expostos a uma situação de risco eminente e discriminados pela própria sociedade como "marginais", começando muito cedo a conhecer a perversidade do mundo fora de seus lares, ou seja, os "desencantos" da rua, sendo levados a se envolverem com drogas, iniciação sexual precoce e de risco e à prática de atos infracionais. "O contato com o 'mundo de rua' é empobrecedor pela violência da luta pela vida em um ambiente de altíssimo grau de concorrência, conflito e agressividade e com uma 'pseudoliberdade'" (Graciani, 1997, p. 114).
Este cenário adverso em que o adolescente se encontra, somado aos conflitos biopsicossociais por ele vivenciados neste período de transição biológica, constitui um ponto vulnerável para que, sem o apoio necessário, saia de casa em busca de novas alternativas. A rua passa a ser seu espaço de sobrevivência. Viver nas ruas não é uma escolha consciente dos adolescentes, mas a saída para as ruas pode tornar-se sem retorno, uma vez que se distanciam cada vez mais de suas famílias ao passarem a dormir na rua e ao se integrarem a grupos que lhe apresentam as facilidades e "encantos" da rua: liberdade, ausência de limites e uma sociabilidade às avessas. De acordo com Gregori (2001, p.55): "Eles vão estabelecendo conexões na rua, vão ganhando aptidão para 'se virar nela', através do convívio com outros meninos e instituições", passando a rua a substituir o espaço doméstico e as relações com pessoas estranhas a ocupar o lugar da família.
No imaginário social, o mito do adolescente em situação de rua, representado por aquele que não tem família, que é "filho de ninguém", vem se sustentando em função de idéias preconcebidas, a partir de símbolos e valores, cultural e socialmente vivenciados, que estruturam as representações sociais sobre família. No dia-a-dia, ao se tomar posição ou atitude diante de determinados objetos, tende-se a classificá-los de acordo com conceitos absorvidos a partir da interação social, ou seja, das associações feitas entre o referido objeto (concreto) e a sua imagem (abstrato), recorrendo, para isso, às experiências cognitivas e afetivas e a significados socialmente partilhados no grupo ao qual se pertence.
O estudo "Filhos de Ninguém? Um estudo das representações sociais sobre famílias de adolescentes em situação de rua" dissertação de mestrado defendida por Gomes (2003), foi movido pelas considerações expostas e teve como objetivo identificar as representações sociais sobre família elaboradas por adolescentes em situação de rua e suas famílias, bem como, verificar a importância das representações sociais sobre família no, âmbito da comunicação e como guia de comportamento entre eles.
Na busca por respostas a inquietações surgidas, tais como: o que leva estes adolescentes e suas famílias a viverem este processo de rompimento de vínculos?, quais aspectos psicossociais emanam desta separação?, partiu-se do pressuposto de que o convívio familiar é, em princípio, o locus ideal ao desenvolvimento psicossocial do indivíduo. Isso significa considerar-se a família como um sistema aberto, vivo, em constante transformação, no qual se originam sentimentos contraditórios podendo, portanto, ser espaço de possíveis lutas e conflitos, mas também como um espaço de convivência e de relacionamento afetivo e social, onde valores, atitudes e padrões de comportamento se reproduzem e se transformam em uma perspectiva de construção de uma vida pautada na felicidade, corroborando com Heller (1987), quando afirma ser este o compromisso de cada ser humano, e mais especialmente da família como grupo voltado para tal fim.
Aproximações teóricas
A Teoria das Representações Sociais (TRS), ao romper com o pensamento tradicional da Psicologia que desvinculava o indivíduo do seu contexto social, passou a ocupar amplos espaços de pesquisa nas Ciências Humanas, à medida que considera sujeito, objeto e sociedade inseparáveis, na construção do conhecimento do senso comum.
Berger e Luckmann (1994) afirmam que o conhecimento do senso comum é aquele partilhado com os outros nas rotinas normais, evidentes da vida cotidiana, sendo este cotidiano estruturado espacial e temporalmente.
A representação social se origina no cotidiano do indivíduo, na comunicação e interação entre as pessoas, estando vinculada a uma forma de conhecimento do senso comum, em que os indivíduos transformam sua própria realidade. Segundo Moscovici (1978), corresponde a uma relação dinâmica de estímulo-resposta, cuja finalidade é a elaboração de comportamentos e relações intersubjetivas.
Compreender a significação de família para o adolescente em situação de rua, e entender o que leva estes adolescentes e suas famílias a viverem este processo de rompimento de vínculos, considerando que é, na família, onde são formadas as primeiras imagens de mundo, foi necessário ir além dos limites que este problema aparenta impor, situando-o em seu contexto.
Nesta perspectiva, a Teoria das Representações Sociais permitiu dar voz aos adolescentes e às suas famílias, para que, por meio de suas falas, pudessem explicitar seus sentimentos, significados e representações e ainda evidenciar como o processo de construção dessas representações afeta e é afetado por suas relações familiares.
O caminho delineado
Trata-se de um estudo de campo, exploratório, fundamentado na Teoria das Representações Sociais (TRS).
· Campo de estudo: a pesquisa foi desenvolvida no Albergue, vinculado ao Pólo Central de Atendimento, unidade da Secretaria do Trabalho e Ação Social, localizado no centro da cidade de Fortaleza-Ceará que acolhe adolescentes em situação de rua.
· Sujeitos: adolescentes na faixa etária de 12 a 18 anos, do sexo masculino e feminino, freqüentadores do Albergue no período de julho/2001 a julho/2002, e suas famílias, (pai ou mãe consangüíneo).
· Amostra: para o teste de Associação Livre de Palavras, a amostra foi composta por 20 adolescentes e 20 famílias, totalizando 40 sujeitos. Já para a entrevista semi-estruturada, a amostra foi definida por saturação teórica, ficando composta por 15 adolescentes e 16 famílias, totalizando 31 sujeitos.
· Instrumentos e procedimentos de coleta dos dados: foi aplicado o teste de Associação Livre de Palavras, tendo como estímulo a solicitação: "diga quatro palavras que lhe lembrem a palavra "família". Em seguida, foi realizada uma entrevista semi-estruturada com o uso do gravador, tendo, como pergunta de partida: o que é família para você?
· Análise e tratamento dos dados: para os dados apreendidos no teste de Associação Livre de Palavras, foi utilizado a Análise Fatorial de Correspondência (AFC) com base no programa Tri-Deux-Mots (versão 2.2), (Cibois, 1998). Para as informações levantadas a partir das entrevistas, lançou-se mão da Análise de Conteúdo (AC) temática apoiada nos pressupostos de Bardin (1977).
Apresentação e discussão dos resultados
Dos conteúdos analisados, emergiram cinco categorias empíricas, definidas igualmente para os dois grupos (adolescentes e famílias) tendo em vista proceder à comparação das representações sociais entre eles: concepções sobre família; sentimentos sobre família; causas da desestruturação da família; atributos sobre a rua e construção da identidade social. As cinco categorias com as catorze subcategorias compuseram um total de 1557 unidades temáticas.
Os resultados foram apresentados em tabelas com freqüência simples das unidades de análise, evidenciando-se o critério freqüencial que serviu para dar hierarquia às categorias e subcategorias, dando uma indicação quantitativa e qualitativa dos valores de referência dos modelos representativos presentes, permitindo identificar os temas principais e os temas centrais de interesse por grupo, de tal modo que a presença ou ausência, e até a freqüência de aparição, fornecesse dados importantes para a análise.
Será apresentada a seguir a quarta categoria, atributos sobre a rua, elaborada por adolescentes e suas famílias. Para esta categoria, associou-se a dimensão da atitude, segundo a Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 1978), que favorece a identificação do posicionamento dos sujeitos em relação ao objeto da representação social. Trata-se de uma tomada de posição frente a um objeto delimitado, o que levou à divisão desta categoria em negativo e positivo.
Tabela A - Distribuição das freqüências, percentuais e qui-quadrado da categoria e das subcategorias dos atributos sobre a rua, segundo o grupo de adolescentes em situação de rua e o grupo de famílias.
Na Tabela A, encontram-se as unidades temáticas referentes à categoria atributos sobre a rua, onde se observou que os sujeitos do grupo de famílias apresentaram uma freqüência total de 100% na subcategoria "negativo". Quanto ao grupo de adolescentes, verificou-se uma freqüência de 90%, na subcategoria "negativo", seguida de 10% na subcategoria "positivo". Embora os dois grupos tenham apresentado uma freqüência elevada na esfera do atributo negativo, pôde-se registrar uma diferença significativa em prol do grupo de famílias a um nível 0,001, com valor de x2= 16,13. Já em relação ao grupo de adolescentes, observou-se um grau de significância a um nível 0,01, com valor de x2= 9,00 para o atributo positivo.
A rua é caracterizada pelo medo, insegurança e violência. Viver nas ruas está longe de ser uma situação desejável, mas sim uma condição degradante de sobrevivência. Dirk apud Graciani (1997, p. 131) afirma que:
Viver na rua significa viver em um espaço público, um espaço livre e aberto a toda população. Mas, por isso, um espaço anônimo. Ao contrário da casa, na rua as pessoas não têm nome, nem identidade pessoal, apenas funcional. A rua é para todos e para ninguém: indivíduos não têm importância, seus traços desaparecem. Eles se tornam circunstâncias abstratas e podem facilmente ser vítimas de ações gerais de violência e agressão.
Atributos sobre a rua ancorados no aspecto negativo
O aspecto negativo se refere ao posicionamento desfavorável em relação aos atributos sobre a rua, locus de sobrevivência do grupo de adolescentes que se encontram em situação de rua.
Para Ferreira (2001, p.35):
A rua é, essencialmente, lugar de perdas. Perde-se a casa das lembranças, deixando, quando não um vazio de história, uma pobreza de vida; perdem-se os espaços de intimidade, os espaços de solidão, a vivência do silêncio, sendo jogado num mar barulhento.[...] O ser protetor, a maternidade da casa, é perdido. Perdem-se hábitos só possíveis no movimento de habitar... a casa, lugar dos valores de intimidade. O sujeito é expropriado.
De acordo com o que foi exposto, apresenta-se, logo a seguir, as falas dos sujeitos que contribuíram na emersão desta subcategoria:
Adolescentes:
...ninguém tem amigo na rua (...) na rua é ruim, mas é o jeito (...) é viver com medo (...) a gente sofre (...) parei de estudar (...) você fica só usando droga (...) não tem família pra conversar (...) eu faço muita coisa ruim quando eu tô na rua....
Família:
...a rua só traz isso: droga, violência (...) fica sem ir pra escola (...) aprende o que não presta (...) se junta com pessoas que usam drogas (...) ter um filho na rua é muito vergonhoso....
Atributos sobre a rua ancorados no aspecto positivo
O aspecto positivo se refere ao posicionamento favorável em relação aos atributos sobre a rua, locus de sobrevivência do grupo de adolescentes que se encontram em situação de rua. O que provoca no adolescente essa avaliação positiva da rua? Provavelmente uma ruptura drástica com a família, levando-o a buscar na rua o que falta em casa...
Segundo Ferreira (2001, p. 117), o indivíduo busca na rua um ponto de fuga de alguma situação insuportável experimentada em casa, pois é consentido na rua realizar o "deslocamento" da cena traumática. A rua guarda um certo fascínio, uma pseudoliberdade, ilusão, prazer, novidade. Na rua, procura-se o que não se tem. A autora vai mais além e afirma que, "para esses meninos e meninas, deslocar situações e experiências traumáticas vividas em casa para a rua, mais que um apego aos atrativos que a rua oferece, sua permanência lá se deve a uma necessidade de estrutura".
De acordo com o que foi exposto, apresentam-se, logo a seguir, as falas dos sujeitos que contribuíram na emersão desta subcategoria:
Adolescentes:
...se sente aliviado fora de casa (...) às vezes eu acho bom (...) na rua eu me sinto mais livre...
Considerações finais
Ao aprofundar a discussão sobre família com os adolescentes e com as famílias dos adolescentes que estão fazendo das ruas seu espaço de sobrevivência, pôde-se fazer um retrato vivo dos reflexos que a crise econômica impõe sobre as famílias pobres, repercutindo diretamente e de forma vil nos mais vulneráveis desse grupo: os filhos, que, frutos da injustiça social, se vêem ameaçados ou violados em seus direitos fundamentais.
Concorda-se com Ferreira (2001, p.58), quando afirma que "os filhos de classe abastada ou mesmo da classe média não encontram na rua seu destino, por mais conflitos familiares que possam vivenciar".
O que justificou a aproximação com este objeto foi o desejo de desmistificar, a partir dos objetivos propostos, a idéia que prevalece no imaginário social que os adolescentes em situação de rua são "filhos de ninguém", não têm família e, por isso, vivem nas ruas expostos à sua sorte, bem como entender o contexto que os impulsiona a viverem longe de suas famílias. Longe de ser uma resposta simples e fácil, esta problemática se apresentou bastante complexa.
A análise das representações sociais elaboradas pelos sujeitos permitiu visualizá-los como sujeitos histórico-sociais, com diferentes expectativas e sentimentos, daí a relevância de se conhecerem as representações construídas por esses sujeitos para, a partir de então, verificar-se a sua importância na comunicação e como guia para seus comportamentos.
Diante dos dados apontados, é possível afirmar que a situação de esgarçamento dos vínculos familiares resulta da miserabilidade a que estão sujeitas as famílias, sendo esta a mola propulsora para a ida do adolescente para a rua.
Não foi intenção deste estudo discutir políticas sociais, no entanto se faz necessário ressaltar a urgência da mudança de paradigma em relação à implementação de programas sociais mais conseqüentes e que visualizem sempre a família como o alvo, não descontextualizando seus membros. Não dá para falar em políticas públicas eficazes sem se dar destaque à família como potencializadora destas ações. Ajudar a família mostra-se a única possibilidade da sociedade desenvolver-se dignamente.
É necessário que se exija do Estado o resgate da proteção social como um direito de cidadania, levando a família pobre a uma condição cidadã dentro da sociedade, para que ela possa, efetivamente, exercer seu papel agregador, fortalecendo seus vínculos familiares e concretizando sua participação no desenvolvimento de seus filhos.
Acredita-se que as saliências de tais aspectos venham favorecer uma concepção desvinculada do conhecimento empírico, mitológico ou moralista, que prevalece ainda hoje no imaginário social, possibilitando a fomentação de uma nova visão da problemática, aos profissionais que atuam, direta ou indiretamente, com adolescentes em situação de rua e suas famílias, constituindo, assim, como relevância social e cultural, o aprofundamento do debate acerca dos programas institucionais voltados para o fortalecimento da família.
Ao término deste estudo, espera-se, dentro dos limites a que este se propôs, ter contribuído para que este tema seja debatido e repensado. As idéias aqui apresentadas são apenas uma introdução a uma discussão bem mais ampla e que envolve a sociedade como um todo.
Referências
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Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise (A. Cabral, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Recebido em 17 de novembro de 2002
Aceito em 18 de janeiro de 2003
Revisado em 10 de fevereiro de 2003