Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
RESENHAS DE FILMES
Henrique Figueiredo Carneiro
Professor Doutor do Mestrado em Psicologia da Universidadde de Fortaleza. e-mail: henrique@unifor.br
Marco Ferreri
A comilança
La Grande Bouffe. ©1973 Mara Films - Les Films 66. Capitolina Produzzioni Cinematografique. Brasil. Versátil. Home Vídeo. color, 130 min.
Chega ao Brasil um dos DVDs mais esperados para quem se interessa pelo estudo do consumo, aplicado à literalidade do corpo. Este filme me interessa pela simbologia que guarda com a Dietética e com a Psicanálise, duas pilastras que dão consistência as minhas pesquisas desenvolvidas desde 1996 e que se aprofundam dentro do LABIO - Laboratório sobre as novas formas de inscrições do objeto, da Universidade de Fortaleza - UNIFOR.
A Comilança põe em xeque o limite ao gozo que sabemos ser a principal conseqüência das contravenções que o sujeito exerce por habitar o espaço da cultura, sem, no entanto, classificar o ato dos comensais como uma negação à castração, típica de uma nosologia perversa. Os personagens trabalham diretamente com a possibilidade da morte, nade menos que através dos elementos que indicam os dois atos mais comuns e mais revestidos de requinte dentro do espaço cultural: a comida e o sexo. Levam ao extremo essas duas facetas do humano que revestem com o sentido e a linguagem aquilo que os animais o fazem pela esfera do instintual.
Fazem-no, tentando uma aproximação sutil e perigosa que toca a quebra de barreiras que separa a cultura da natureza, mostrando que, definitivamente, este interstício fica reservado ao espaço da morte, elo que do lado do humano espanta a capacidade simbólica de sentido e, pelo lado animal, não há nada que mais alinhe os bichos ao homem.
O filme de Ferreri é um convite à análise das respostas dadas por nossa época ao mal-estar construído pelos avanços da ciência e da tecnologia, quando tenta turvar a barreira do religioso, elevando ao máximo aquilo que Georges Bataille nos apresenta no conjunto de sua obra como sendo a vivência do excesso. O Excesso é permitido, a partir do momento em que Michel Picolli diz To be or not to be!, depois de receber um carro-frigorífico repleto de carnes e ao erguer uma cabeça de boi nos jardins da casa destinada por quatro amigos a ser a sede de um Seminário gastronômico. Esta expressão se modula dentro de uma frase lapidar daquilo a que me refiro como a barreira entre o animal e o cultural. A frase lapidar, La Fête commence!, foi confiada ao mon commandant!. De fato, a festa como um ritual de permissividade que vaga entre o lazer, o ócio e o sacrifício, expõe a própria vida à sua perecibilidade. Nesta cena, o homem e o animal - morto e decapitado - resumem o poder da existência. Ser ou não ser imanente, esta é a pergunta que parece percorrer toda a obra. O que vai aparecer é que o homem e o animal só podem ser imanentes na morte. É o que se constata no final do filme.
E a vida, sustentada pelo sexo e pela comida, toma nesses elementos também a via que, arrancada da cópula e do comer bestial, porta o dilema da cultura, sobretudo em nossa contemporaneidade, se pensamos a posição do sujeito frente ao objeto na condição de adito desesperado do consumo, como forma de diminuição do mal-estar.
Porém, o mais curioso é que deflagrada a festa, o falante não consegue se livrar do pensamento, da linguagem, e dos laços que nos movimentos primeiros do filme, expõe cada um dos quatro protagonistas. O piloto, Marcelo Mastroianni, terá seu destino selado, em uma máquina automobilística antiga; o cozinheiro, Ugo Tognazzi morrerá na cozinha comendo e praticando sexo; o homem de televisão, Michel Picolli, tomará a morte mais espetacular, esvaindo-se em merda e gangorreando sobre o parapeito da sacada dos jardins e, finalmente, o juiz, Phillipe Noiré, encontrará a morte entre dois seios gigantes transformados em uma espécie de mousse da erotização extremada
Ora, são esses os laços que os une à sociedade. O Juiz apresenta em seu convívio doméstico o ar de um homem infantil e preguiçoso, aferrado ao sono e à figura materna de uma dama, governanta de sua desordem libidinal, que pela manhã cedo, mistura sexo, maternagem e cuidados higiênicos. O contraponto surge daquela maternal senhora quando faz jorrar o sexo sobre o cenário doméstico, representado magistralmente pela figura nutriz dos seios opulentos, que na cena sugere uma entrada para o incesto.
O piloto, acostumado a ser o comandante de suas atitudes lógicas e precisas, como se estivera desempenhando o comando de um vôo cruzeiro onde tudo está sob controle, depara-se com a impotência. Falha no ato sexual, quando ele mesmo havia sugerido ao grupo que a companhia de algumas damas da noite poderia tornar mais agradável este pequeno ensaio de ruptura com os limites da cultura. Entretanto, nos braços de uma professorinha das primeiras letras que a todos surpreende, o comandante perde-se entre o desejo e a vontade, restando-lhe a angústia e o contentamento com a máquina de sua realização. Uma prova inconteste de que ela lhe servia como uma espécie de bengala provedora de suas conquistas e limites existenciais.
O grande mestre da cozinha sela o clássico encontro da transubstanciação entre o alimento e o sexo, permeado pela mediação do amor. Enquanto se empapuça de comida resgata uma ode quase comparável ao Império dos sentidos. Dor e satisfação talvez nunca tenham se aproximado tanto na tela, para mostrar o umbral entre o prazer e o desprazer que, dito de uma outra forma mais precisa, levaria o sujeito àquilo que chamamos depois de Freud, de Além do Princípio do prazer.
E o homem de televisão envia uma mensagem inquietante quando atravessa pela arte o portal da vida. Viver e morrer são dois lados de uma mesma moeda. Uma lição interessante quando se procura identificar movimentos da pulsão de morte e o invólucro em que ela vem escondida. No final, merda para todos! Esse parece ser a finalidade de existir. Um Fim que se conjuga com a frase da chegada To be or not To be!
Entretanto, a vida continua em um grande movimento incessante. Mais carne, sugestiva de mais excesso e falta. E a dama, é ela quem fecha a casa depois de todos morrerem. A festa começa outra vez.