4 1Sacrificio père-versión 
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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148

     

 

EDITORIAL

 

Sacrifício, sofrimento psíquico e literatura

 

 

Poderíamos dizer que o mal-estar na cultura se deve em grande parte a-versão que se tem do pai. E nada mais atual que a discussão sobre a fragilidade da função paterna e sua relação com a inundação de père-versión que se lança sobre a formação de laços sociais na nossa epocalidade. Por outro lado, o sofrimento psíquico que brota do sujeito em função daquilo que emana da cultura nos indica o surgimento de sintomas que atingem o corpo e a subjetivação, mostrando-nos, sobretudo, que existe uma pitada elevada de sacrifício nos movimentos que o homem exerce na sua existência.

Neste número, abrimos nossa apresentação editorial com um trabalho de real interesse para a elucidação do sentido de sacrifício vivido em nossa época, quando percorremos dois caminhos da lógica sacrificial, seja através de uma manobra que permite a formação de uma aliança e de um intercâmbio que se faz pacificamente com o pai, com o objetivo de uma poupança de sacrifício e de angústia; ou, através da ausência de pacto que lança o sujeito no mais árduo dos sacrifícios, promulgado pela severa voracidade do pai que se faz presente mediante a ação do supereu.

De um pai a outro. De Freud a Marx, apresentamos duas visões de cultura que se engendram dentro do espectro do mal-estar, atravessados por Eros e Civilização, bastante presentes em uma sociedade cujo sacrifício se estende à lei consumo.

Desta maneira, o sacrifício pode se encarnar no próprio corpo, onde um dos sintomas mais recorrentes, mostrados pela mídia, enlaça a falência moral pela falta de saúde exibida nos pacientes obesos. Um corpo que há de atravessar o corredor polonês das representações sociais, recebendo todo tipo de projeção, a partir da inserção de um paradigma estético negativo.

Em nome de um pai severo que, muitas vezes, pode assumir a lei econômica, podemos averiguar que o sofrimento passa também por uma tipificação que obedece a uma espécie de mercantilização da subjetividade, podendo inclusive trazer um sacrifício insustentável para o dispositivo da cura, quando se joga a escuta apenas sobre o eixo da eficácia.

Pela perspectiva da literatura, o sacrifício adentra as vertentes do amor e do ciúme, fazendo lembrar o ato parricida primordial. Uma análise literária entre dois tempos, que guardam, entre si, cem anos de distância, revela que há um deslizamento entre o mundo romântico e o mundo prostituto explicados, respectivamente, pelo deslocamento realizado entre um cenário romântico, cuja marca é a ilusão amorosa, e um cenário onde as relações ficam esvaziadas de ideais ou de interditos.

E que tipo de sacrifício se subjetiva hoje na literatura, quando a personificação do sofrimento retoma um dos diagnósticos mais banalizados de que se tem notícia? A depressão pode ser colocada no lugar do outro duelista, cuja arma não mais pode ser representada pela lança forjada na palavra. Os medicamentos podem aparecer como uma outra versão do sacrifício que um sujeito se impõe, para não ter que enfrentar o seu próprio fantasma.

Assim, aprofundando o sacrifício pela via do isolamento, trazemos à cena sacrificial As Horas de Michael Cunningham, que incide diretamente sobre a impossibilidade de compreender a passagem do tempo. O resultado do mal-estar sentido nessa operação culmina com o suicídio, tomado talvez pela própria vítima como o verdadeiro índice de sacrifício que se possa imaginar, desta feita não como algo indesejável, mas sim como uma ponte entre o sofrimento psíquico e um processo de dessubjetivação de uma existência que se aprisiona no silencio da própria casa.

Edgar Allan Poe e Julio Cortázar completam esse percurso literário, servindo como referências a uma análise comparatista sobre o mal-estar na literatura.

Do sacrifício do sujeito ao sacrifício da conquista, trabalhamos com uma metáfora diacro-sincrônica situada entre o cordel e o paubrasil, por ser um texto que guarda todo o frescor do que podemos chamar de uma leitura sobre a subjetividade imediata, que brota dos rincões do nordeste do Brasil, em função da sua historiografia e identidade. Serve-nos para repensar formas do mal-estar e novas configurações de sacrifícios.

Fechamos o número com uma resenha sobre as patologias da época, principalmente para destacar que os sintomas que comparecem ao nosso cenário social reclamam outra escuta. Uma escuta que não mantenha a clássica leitura de uma moral sexual que serviu a Freud em 1908, mas que possa tratar agora de uma outra nerviosidad, digna dos avanços produzidos pelo saber que se promove em nome de respostas eficazes e eficientes que emanam da ciência e da tecnologia.

Portanto, tratamos, neste número, do mal-estar sacrificial que se enlaça com o sofrimento e com a subjetividade, na clínica e no campo social.

 

Henrique Figueiredo Carneiro

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