Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148
ARTIGOS
O elogio ao isolamento em As Horas, romance de Michael Cunningham e filme de Stephen Daldry
Lajosy Silva
Graduado em Letras (Português e Inglês e respectivas literaturas) pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Estudos Literários pela UNESP - Campus Araraquara. Professor de Inglês da Faculdade do Guarujá. Professor de Literatura Norte-Americana na Faculdade de São Bernardo. End.: R. Caiowaa, 2206, ap. 17- Sumarezinho. CEP: 01258-010 São Paulo-SP. e-mail: lajosy@uol.com.br
RESUMO
Esse artigo pretende analisar o processo de construção das personagens de As Horas, de Michael Cunningham, tendo como contraponto uma leitura histórica dos eventos nos quais o autor se baseou para construir o romance: a morte da escritora inglesa Virgínia Woolf e a criação de seu romance mais conhecido, Mrs. Dalloway. Há também uma análise sobre a adaptação que David Hare fez do romance para o cinema, dirigido por Stephen Daldry.
Palavras-chave: personagem, cinema, adaptação, mal-estar
ABSTRACT
This article aims to analyze the process of characters building of The Hours, by Michael Cunningham, considering a historical reading of the events in which the author has founded his plot to write the novel: the death of the English writer Virginia Woolf and the creation of her most known novel, Mrs. Dalloway. There is also an analyse of the novel adapted for the screen by David Hare and directed by Stephen Daldry
Keywords: character, cinema, adaptation, discontents
Em As Horas, de Michael Cunningham, o autor fala da sua admiração pela escrita de Virginia Woolf no qual o romance busca referências imediatas ao descrever o processo de criação do romance Mrs. Dalloway1 e sua influência sobre a vida de duas mulheres. Trata-se de uma intertexualidade das obras cuja característica principal é a valorização da digressão, do fluxo de consciência das personagens e dos seus conflitos diante do tempo.
Virginia Woolf foi uma autora que se preocupava com o efeito do tempo e com a armadilha da memória. A representação minimalista das personagens - às vezes observadas e dissecadas - parece buscar uma ligação entre a reminiscência e o presente; aliás, este último, estruturando o fluxo da narrativa que se constrói na observação interrupta da passagem do tempo.
Nos romances da autora, há a representação do cotidiano de uma classe que oscila entre a média intelectualizada e uma aristocracia inglesa, sobre as quais ainda pairam os vestígios da Era Vitoriana. Não há uma representação do proletariado nos romances de Virgínia Woolf que restringe o espaço das personagens ao cotidiano de festas e acontecimentos sociais diversos, uma garden party, um passeio, dentre outros.
Em Mrs. Dalloway, por exemplo, a única interferência exterior na vida da protagonista, Clarissa Dalloway, se dá a partir da presença de Septimus, um ex-soldado que pode ser visto como sua consciência diante dos horrores da Primeira Guerra; que ela procura esquecer com suas festas e sua dedicação à família. É como se Clarissa Dalloway procurasse o isolamento para algo que está fora da sua compreensão.
Em As Horas, Michael Cunningham parece privilegiar esse aspecto de Mrs. Dalloway, ao estabelecer o isolamento das personagens como um ato de rebeldia. O autor divide a ação em três estórias que ocorrem em tempos diferentes: Vírginia Woolf e o processo de criação de Mrs. Dalloway, durante os anos vinte; Laura Brown, uma mulher casada com um herói da Segunda Guerra Mundial que lê o romance de Woolf nos anos cinquenta e Clarissa, uma editora homossexual, que está preparando uma festa para um amigo soropositivo no início desse século.
As três estórias são alternadas com cenas da vida cotidiana das personagens que, assim como as de Virginia Woolf, estão às voltas com as obrigações diárias do indivíduo comum: preparar um bolo, comprar flores e organizar um chá. Para todas, há o deslocamento, o sentimento de vacuidade diante dos afazeres domésticos e as aspirações em relação ao futuro. Assim como nos romances da autora inglesa, as protagonistas são mulheres que procuram um modo de inserção no seu cotidiano.
O prólogo do romance é o suicídio de Virgínia Woolf, em um lago, o que pode ser visto como um retrospecto da intelectual que fracassou ao tentar uma inserção na vida "normal", estabelecida por médicos e pelo marido, Leornard Woolf. É o primeiro índice de que o isolamento ou a morte é uma resposta para a dificuldade de compreender a passagem do tempo: o fluxo das horas é a tortura diante da imutabilidade do cotidiano.
Cunningham descreve o suicídio da escritora com elementos poéticos que remetem à natureza e busca representar o fluxo de consciência da personagem como um mergulho interior , a última oportunidade de integração com o mundo exterior. Ao contrário de uma morte agonizante, ela contempla esse mundo e recebe os primeiros indícios da Segunda Guerra na visão de uma mãe e seu filho, quando suas vozes ressoam no fundo do lago, onde ela se encontra morta:
Ei-los, num dia no começo da Segunda Guerra Mundial: o menino e sua mãe sobre a ponte, o pauzinho flutuando pela superfície da água e o corpo no fundo do rio, como se Virgínia estivesse sonhando com a superfície, o pauzinho,o menino, a mãe, o céu e as gralhas. (...) Tudo isso entra na ponte, ressoa através de suas madeiras e pedras e entra no corpo de Virgínia. Seu rosto, comprimido de lado contra o pilar, absorve tudo: o caminhão e os soldados, a mãe e o filho. (Cunningham, 2003, p.13)
É curioso observar a imagem do intelectual acuado que Cunningham constrói, à medida que a Morte é evocada como um alívio para aqueles que não são compreendidos e não conseguem estabelecer contato com o mundo exterior e suas mazelas. A incapacidade de lidar com problemas sociais e questões políticas é um fator que estabelece a alienação das personagens, que passam a focalizar suas vidas na dificuldade de se integrarem à vida comum.
Segundo orientações médicas, Virginia Woolf, a personagem, muda-se para o campo com o intuito de fugir do tumulto da vida urbana, mas sente-se ainda mais aprisionada no silêncio da casa. A única alternativa é a criação do romance; suas indagações buscam resposta no processo criativo, como se sua existência estivesse ligada à vida das personagens que cria. No diário de Virginia Woolf, que Cunningham transcreve como introdução para o seu romance, a autora enxerga suas personagens como "cavernas" que se comunicam e onde encontra "humanidade, amor, profundidade" (Cunningham, 2003, p.08).
Para o narrador de As Horas, Virgínia Woolf vê a importância do cotidiano enquanto representação dos anseios mais legítimos que podem ser comparados às grandes batalhas, pois, para a personagem: "as derrotas domésticas são tão devastadoras quanto, para um general, são as batalhas perdidas" (Cunningham, 2003, p.72). O fracasso criativo expõe a fragilidade da autora, que não consegue compreender os meandros da vida comum, associada à incapacidade de lidar com detalhes domésticos, como organizar um chá ou dar ordens aos empregados.
É como se Virginia Woolf tentasse ver, na vida comum, um reflexo das dificuldades do mundo moderno que não se restringem aos grandes questionamentos, como a guerra e a política. Cabe ao indivíduo compreender sua experiência pessoal como uma forma de compreensão do mundo que o cerca: se ela não consegue compreender os mecanismos de uma existência simples, como lidar com as grandes guerras? Desse movimento, temos a simbologia das horas como o verdadeiro teste para o indivíduo que deve compreender o significado de cada minuto de sua existência.
Essa visão é reforçada quando Virginia se depara com um pássaro que está morrendo no seu quintal. Ela se vê indecisa diante da morte da personagem de seu livro, Clarissa Dalloway, mas reconhece que alguém tem que morrer para que os sobreviventes possam ter uma compreensão da vida acima do pensamento comum e mediano. Mais ainda, precisa utilizar a morte para glorificar a vida, à medida que a Morte dignifica o homem na arte como nas tragédias gregas.
Como se sabe, Virginia Woolf opta por poupar sua protoganista, a Mrs. Dalloway do título, para "matar" o ex-soldado Septimus, que acaba por se revelar a consciência crítica do romance: por que Clarissa Dalloway deve se preocupar com festas quando, há tanta dor e morte lá fora?
O segundo foco narrativo de As Horas recai sobre Laura Brown, uma dona de casa norte-americana que está lendo Mrs. Dalloway. Assim como Vírginia Woolf e Clarissa Dalloway, Laura sente o imenso vazio do cotidiano. Nesse caso, temos o American Deal em plena construção, quando o marido de Laura, um veterano da Segunda Guerra, consolida a imagem da típica família de classe média do pós-guerra nos Estados Unidos.
Essa imagem reproduz a paz e calmaria dos subúrbios de uma cidade norte-americana, onde o passatempo das mulheres reside nos afazeres domésticos, compras e eventos familiares, como o Natal e o Dia de Ação de Graças. Como recompensa pelos serviços prestados à nação, os ex-combatentes ganham o direito de habitar em subúrbios urbanizados com a melhor infraestrutura criada pela economia americana.
As mulheres são vistas como recompensa para esses homens que voltaram do combate. Alguns se integram nesse sistema de reificação dos valores capitalistas, que transformam simples operários em consumidores potenciais. É como se a guerra fosse utilizada para fundamentar a hegemonia de uma nação que, das cinzas, deve reinventar-se a partir da valorização do cidadão comum, mediano.
Dessa forma, não há espaço para aspirações intelectuais e autocriticas. É nesse mundo que Laura tenta sobreviver, pois "tantas coisas foram perdidas", durante a guerra, que qualquer individualismo torna-se um crime grave para a ordem familiar e do estado (Cunningham, 2003, p.37).
Nesse mundo, Laura pode ser vista como a estranha, a ratazana de biblioteca, a intelectual reduzida à imagem da esposa do lar: "De modo que ela é agora Laura Brown, Laura Zielski, a moça sollitária, a leitora incansável, foi-se e, em seu lugar, ficou Laura Brown." (Cunningham, 2003, p.37) É possível perceber nesse trecho do romance como o narrador procura descrever a transformação da Laura de sobrenome estrangeiro (Zielski) na Laura de sobrenome comum (Brown), que não se diferencia agora das outras mulheres da comunidade.
Com efeito, mesmo sendo obrigada a representar o papel de esposa perfeita, Laura vê algo em si que a difere das outras mulheres e que não pode ser visto pelas pessoas comuns. Nesse paralelo, há ecos do bovarismo de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, à medida que Laura deseja o que não está ao seu alcance, quando questiona o aspecto comum do marido:
Por que será que ela se pergunta: que tenho a impressão de que poderia lhe dar qualquer coisa, o que quer que fosse, e receber essencialmente a mesma resposta? Por que será que ele (o marido) não deseja nada, no fundo, além daquilo que já tem? (...) É bom, ela lembra a si mesma - é adorável - que o marido não se deixe abalar por coisas efêmeras, que sua felicidade dependa apenas do fato de ela existir, aqui nesta casa, vivendo a vida dela, pensando nele (Cunningham, 2003, p.85).
Esses ecos acabam por reproduzir a imagem do sonho feminino, como representação de um mundo ocioso em miniatura mais rico em nuances, para o qual o mundo masculino se apresenta como gigantesco, embora simples e tacanho. Para o narrador, que se mistura aos pensamentos de Laura, os desejos femininos são "efêmeros" e representam sua frivolidade, que tem tempo de sobra para pensar no caráter imutável da existência, ao passo que o homem tem o trabalho como fonte de renda e força transformadora da sociedade em que ambos vivem: o homem movimenta a sociedade e a molda, enquanto a mulher reflete e a subverte, dentro dos seus limites impostos pela hegemonia masculina. A mulher é a representação do microcosmo, enquanto o homem tem o macrocosmo a seu dispor que não engloba os anseios femininos de compreensão e tolerância.
Essa visão pode parecer reducionista, à medida que reduz a temática de As Horas a uma história para mulheres e sobre mulheres que nada tem a acrescentar a não ser uma visão distorcida do que seria a alma feminina, representada por longas reflexões durante um jantar, um mau-humor inofensivo que nada interfere no cotidiano dos homens e uma predisposição para se prender a detalhes que passam despercebidos até para outras mulheres, como a criação de um bolo.
Em As Horas, os homens nada são além de uma extensão dessa visão simplista que anula a relação entre o masculino e o feminino, uma vez que o romance parece restringir os homens ao papel de coadjuvantes; que são representados como caricaturas: bons maridos, mas ignorantes do que acontece com suas mulheres, como parecem ser Dan Brown e Leonard Woolf. Obviamente, os únicos homens que escapam desse estereótipo são as personagens homossexuais masculinas do romance, que mantêm uma relação intrínseca com o feminino.
Laura está longe do discurso femininista dos anos setenta, mas parece um embrião do que está por vir, na representação de uma mulher que quer implodir a segurança do lar comum. De certa forma, esse elo se confirma, uma vez que Laura procura conforto na imagem da intelectual sofisticada e a frente de seu tempo, Virgina Woolf.
Na leitura de Mrs Dalloway, Laura parece completar-se ao fazer um paralelo entre ela mesma e a autora do romance. É interessante observar como Cunningham procura descrever a relação entre leitor e obra literária como uma leitura simbiótica, que alimenta a longevidade da ficção diante do vazio do cotidiano. As respostas podem estar nas páginas de um livro que consegue ser mais consistente e tangível que um universo de aparências e cercado de segurança.
Nesse caso, temos a visão idílica do New Deal e a função da mulher na sociedade norte-americana pós-guerra, versus as aspirações românticas da mulher insatisfeita com seu cotidiano, feito de uma aparente ordem e harmonia. Como lutar contra esse mundo de ordem e harmonia? Que papel terá a arte - sobretudo, a literatura - se esse mundo prescreve um ambiente seguro e impossível de ser questionado?
Cunningham não aprofunda essas questões e prefere mostrar-nos o silêncio que permeia a vida de Laura Brown e suas longas reflexões, enquanto realiza a tarefa de fazer um bolo de aniversário. É como se o narrador quisesse provar - utilizando o recurso do fluxo de consciência das personagens - para descrever o que nem sempre é dito, mas revivido, inúmeras vezes pelo pensamento ocioso das personagens de As Horas.
Assim como nos romances de Virgínia Woolf, o autor opta pela consciência das personagens que nada têm a dizer uma para as outras, a não ser desfiar sentenças vazias que descrevem o lado prosaico da vida, sem esconder a amargura e a decepção das ilusões malsucedidas. Isso pode ser uma homenagem ao estilo da autora de Mrs. Dalloway e acaba por reiterar o isolamento do indivíduo incapaz de se insurgir contra o status quo. É como se restasse o pensamento, mas a ação transformadora tivesse se extinguido diante do tempo.
Por essa razão, não causa nenhuma surpresa a primeira opção de Laura Brown que vê, no suicídio - devidamente inspirado no episódio real de Virginia Woolf - uma forma de escapar desse mundo tão harmônico. Contudo, Laura acaba por optar pela fuga da realidade quando abandona a família, embora o autor não descreva essa passagem, pois a personagem só aparece no fim do romance, quando temos a explicação da relação entre Laura Brown e Richard, o poeta amigo de Clarissa Vaughan, o outro desdobramento narrativo de As Horas.
Pode ser que o trecho mais elucidativo acerca de Laura Brown esteja no seu encontro com a vizinha Kitty e na descrição que o narrador faz desta última:
Kitty entra e traz consigo uma aura de limpeza e filosofia doméstica; todo um vocabulário de movimentos rápidos e vigorosos. (...) Na escola, foi uma daquelas moças autoritárias e agressivas que, não sendo bonitas, eram poderosas devido ao dinheiro e à confiança atlética que tinha... (...) foram as rainhas de muitos festivais, as animadoras das várias torcidas, as estrelas das peças de teatro. (Cunningham, 2003, p.86)
Essa descrição psicológica de Kitty parece criar um contraponto à imagem da mulher estranha, cheia de manias de Laura. Kitty é a mulher integrada ao ambiente doméstico, com muitos amigos e influência, enquanto Laura é a intelectual disfarçada de dona de lar.
Laura não demora muito para encontrar as fissuras dessa representação de Kitty, pois ela sabe que a amiga não pode ter filhos, incapaz de constituir família e propagar o ideal norte-americano do renascimento. Além do mais, Kitty tem câncer e o autor utiliza esse outro elemento como alegoria para descrever uma América doente por trás das aparências. A aproximação entre as duas mulheres torna-se evidente, à medida que o sonho dourado representado por Kitty - reforçado pela cor dos cabelos das personagens - parece ruir diante dos olhos de uma atônita Laura que "se enche de pena e ternura. Eis aqui Kitty, a poderosa. Kitty, a Rainha de Maio, doente e assustada." (Cunningham, 2003, p.91) Novamente, a proximidade da morte parece a única resposta para as personagens que se descobrem sozinhas e amendrontadas diante da perda final.
Por fim, temos um outro desdobramento do foco narrativo sobre Clarissa Vaughan; que vem a ser uma versão "atualizada" da Clarissa Dalloway do romance Mrs. Dalloway. Ao contrário de uma aristocrata inglesa do início do século XX, temos aqui uma editora que mora com a companheira, Sally, uma produtora de tv, num bairro elegante de Nova Iorque.
Os paralelismos entre as duas Clarissas constituem esse elo que Cunningham busca construir, como representação do caráter imutável da identidade feminina; embora vivam em tempos diferentes, ambas as personagens parecem comunicar-se através de hábitos (organizar festas e comprar flores, por exemplo) e decepções (as duas Clarissas amargam experiências amorosas malsucedidas).
Clarissa Vaughan organiza a festa para o poeta Richard, um amigo de longa data e ex-amante; este vem a ser o filho de Laura Brown. Richard é soropositvo e passa a maior parte do tempo recluso em um apartamento. Ele é a metáfora convencional do artista incompreendido e isolado. Acaba de escrever um romance de inúmeras páginas e parece resgatar o estilo de Virginia Woolf. Os diálogos de Richard parecem representar o estereótipo do artista malogrado que transforma em poesia tudo o que é mundano e comum.
A exemplo de Mrs. Dalloway, temos a vida de Clarissa Vaughan descrita num dia a partir dos preparativos da festa para Richard, que deve receber um prêmio pelo conjunto da sua obra. Ambos, Clarissa e Richard, pertencem à geração que teve uma vida intensa nos meados dos anos sessenta, influenciada pela cultura beatnik. Durante o verão de 1965, Richard manteve relações sexuais com o namorado Louis e Clarissa, num relacionamento aberto que tentava inserir-se nesse contexto de revolução sexual:
Era 1965; o amor consumido podia apenas engendrar mais do mesmo. Pelo menos, parecia possível. Por que não fazer sexo com todo mundo, contanto que você os quisesse e eles quisessem você? De modo que Richard continuou com Louis e começou a transar com ela também e parecia certo; simplesmente certo. Não que sexo e amor não fossem complicados. (Cunningham, 2003, p.81)
Contudo, com a passagem do tempo, Clarissa tornou-se uma caricatura desse modelo liberal convertida em dona de casa. De estudante universitária, com pretensões artísticas, a personagem acaba se tornando a pequena burguesa que mora num apartamento confortável e se ocupa de pequenos hábitos para passar o tempo. Ela construiu uma espécie de "cidadania" no país, ao se inserir num contexto politicamente correto que Cunningham parece descrever de uma cidade cosmopolita, onde homossexuais transitam sem qualquer tipo de problema, obviamente, dentro de suas fronteiras pseudodecadentes, em bairros habitados por artistas e simpatizantes.
A relação de Clarissa com a companheira Sally é terna, mas não é desafiadora, como a lembrança que Clarissa tem do verão com Richard, quando ela era uma jovem otimista e a felicidade parecia tão verdadeira quanto o beijo que eles trocaram. Por essa razão, Cunningham utiliza o beijo como símbolo dessa intimidade que todas as personagens do romance trocam, em momentos-chave da narrativa: Laura beija Kitty para consolar a amiga que está com câncer; Virginia beija a irmã Vanessa como um gesto de afeto e como reflexo da paz interior que busca naquele momento; Clarissa beija Richard para reviver essa paixão antiga e termina por beijar Sally, para selar o passado após a morte de Richard; que se mata antes da festa, realizando o seu paralelo com Septimus, o soldado que se mata em Mrs. Dalloway.
O beijo representa o afeto pequeno como uma defesa de Cunningham, ao optar por uma narrativa que valoriza o íntimo e o particular. As personagens de As Horas parecem buscar o afeto como representação de um momento de paz em suas vidas sem significado: a ausência de motivação é a própria constituição do romance que pode levar ou não a lugar algum enquanto reflexão da memória. Não é de todo fácil, portanto, compreender as motivações das personagens sob esse verniz intelectual que o romance parece sustentar, quando procura se aproximar do universo intelectual de Virginia Woolf.
Em A Brief History of English Literature, John Peck e Martin Coyle defendem a idéia de que Virginia Woolf valorizava a experiência interior das personagens, como uma forma de representação do mundo (Peck & Coyle, 2002, p.258). Ao valorizar a experiência cotidiana dos protagonistas de seus romances, tanto Virginia Woolf quanto Michael Cunningham parecem dizer que a verdadeira compreensão do mundo só é possível através das relações pessoais, embora mesmo elas não consigam explicitar os conflitos das personagens ou justificar o apego à reflexão como ponto de partida para uma compreensão do cotidiano.
Nesse caso, há uma incapacidade de compreender o que move o indivíduo: suas aspirações pessoais ou o constante desejo de se integrar ao cotidiano? O cotidiano é assustador, mas ainda é assim filtrado por uma ótica extremamente individualista que não reproduz sua totalidade, isto é, tanto Woolf quanto Cunningham parecem afastar suas personagens do convívio social, limitando-as a uma observação interrupta do passado e do presente, sem contribuirem para uma reflexão do todo: o indivíduo compreende o mundo a partir da convivência com seus semelhantes e não se limita apenas a observar a natureza morta como fonte de inspiração para seus devaneios. Ao insitirem em viver num mundo à parte, as personagens catalizam um comedimento, uma exasperação diante dos desafios da vida que celebram ainda mais sua impotência do que promovem sua rebeldia frente ao que não podem mudar através de ações.
É preciso dizer que em ambas as narrativas, Mrs. Dalloway e As Horas, não há espaço para conflitos individuais que se relacionam com as questões coletivas, como a guerra, o desemprego e a discriminação. O isolamento das personagens é um reflexo desse mundo que parece retratar o desejo fragmentário, no qual as forças que movem as personagens são fracas e ausentes de motivação. O leitmotiv parece ser o arrastar do tempo que nada significa, a não ser uma resolução das personagens que se prendem às memórias, como, única saída para continuarem vivendo.
No caso da literatura de Virginia Woolf, há uma tentativa de explicitar a identidade feminina, exigir sua representação na literatura que parecia negar os mitos femininos ou contribuir para uma versão reducionista da mulher, se considerarmos o tempo no qual a autora está inserida. Para alguns críticos, Virginia Woolf apenas reproduz uma técnica modernista - o fluxo de consciência, tão caro para autores como James Joyce e Henry James - (Peck & Coyle, 2002), mas, além dessa observação, ela dá continuidade à tradição de autores como George Elliot, Jane Austen e as irmãs Bröntes (sobre as quais a própria Virginia Woolf escreveu ensaios) e insere sua contribuição para uma compreensão da experiência individual, que pode ser compreendida como uma tentativa de repensar a relação entre indivíduo, tempo e espaço.
Quanto a Michael Cunningham, As Horas é um rascunho que pretende ser uma homenagem à obra de Virginia Woolf ao tentar trazer sua estética para um suposto contexto pós-moderno. Em As Horas, é possível questionar os méritos do autor como ficcionista, mas é interessante observar o apego do autor ao passado. Com efeito, Cunningham escreve um romance que tenta preencher as lacunas deixadas entre as três épocas que retrata (anos 20, 50 e início do novo milênio), para que possamos entrever uma literatura que se resume a pastiches e simplificações estéticas de autores canônicos, como Virginia Woolf.
Em 2002, a obra de Cunningham foi adaptada para o cinema, com roteiro de David Hare e dirigido por Stephen Daldry2. No roteiro de Hare, predominam traços melodramáticos que, no romance, são inexistentes, à medida que dão vazão aos sentimentos das personagens, esquematizados para uma melhor compreensão dos seus conflitos. A trilha sonora incidental composta por Philip Glass, busca reiterar repetidamente os conflitos com um tema frequente, com o intuito de intercalar as três estórias.
É interessante observar o trabalho de edição do filme que realiza o que parecia impossível, dada a fragmentação observada no romance, ao unir a história das três mulheres. A edição é toda feita em cortes que tentam descrever a simultaneidade do cotidiano das personagens, que se misturam no ato de acordar, tomar café da manhã e realizar afazeres domésticos.
Na cena inicial do filme, quando somos apresentados às personagens, o filme mostra as diferentes formas de acordar, que são feitas de forma simultânea pelas três personagens, como se o tempo fosse imutável nas três épocas. Assim que somos apresentados, o filme fragmenta-se como no romance, sem uma divisão exata entre as estórias contadas. É curioso ressaltar a opção de Daldry, ao valorizar a representação de uma Virginia Woolf ainda mais estereotipada, com silêncios prolongados, sob uma fotografia que tenta dar uma dimensão opressora do ambiente doméstico: o tom verde e escuro das cenas na casa da escritora é predominante.
A interpretação de Nicole Kidman é concisa nos gestos, porém, a direção de Daldry procura conduzir à visão de uma Virgínia Woolf histérica, como um objeto estranho diante dos empregados e da família, que nada podem fazer para ajudá-la e assistem passivos à sua desintegração mental. De fato, é comum a representação de escritores neuróticos e incomunicáveis no seu "mundo particular", no cinema que acaba por alimentar a imagem do artista como um ser incomum e excêntrico, condenado a vagar num labirinto de sensações intraduzíveis para o indivíduo comum. É de se perguntar, no entanto, se Virginia Woolf poderia ter sido uma pessoa incomum, privilegiando o aspecto comum do seu cotidiano, sem os arroubos e exageros da representação imposta pela direção do filme, que se concentra na imagem da escritora fragilizada, na intelectual rendida pelo olhar comum da câmera, que não a desnuda o suficiente para compreendermos seus conflitos.
No ambiente de Laura Brown, o silêncio é mais problemático e pouco traduz os sentimentos da personagem para a tela, embora seja difícil explorar pensamentos na linguagem cinematográfica, sem cair nos intermináveis fluxos de consciência que poderiam atravancar as cenas. O diretor procura explorar os olhares dos atores e a câmera tenta focalizar as personagens em closes, para uma composição melodramática do mis-en-scene: troca de olhares entre Laura e o filho, lágrimas de despedida, quando Laura toma a decisão de se matar num hotel, a discussão calorosa entre Virginia Woolf e o marido, na estação de trem, Clarissa Vaughan e Louis relembrando o passado em comum na cozinha, dentre outros.
O olhar atônito de Julianne Moore é bem dosado, mas o excesso de lágrimas aposta num sentimentalismo que não descreve a frieza na qual Laura Brown se apóia, para tomar suas decisões: matar-se, num primeiro momento; depois abandonar a família e tentar uma vida nova no Canadá3. A direção de Daldry parece explorar o sentimentalismo como forma de exteriorizar os conflitos da personagem, mas compromete o resultado, ao apostar em longos closes sobre o rosto da atriz e troca de olhares furtivos que deveriam deixar, na sugestão, o que não pode ser explicitado por gestos.
Aqui é importante discutir a questão da representativadade, uma vez que o aspecto showing (mostrar/representar) do cinema reproduz, a partir da imagem o que é apenas telling (contar/descrever) do romance (Issacharoff, 1989). Cabe à câmera traduzir o conflito das personagens, a partir de imagens e diálogos; algo que Stephen Daldry parece ter mostrado em excesso, diante das dificuldades de representação do íntimo e particular, da linguagem intimista que o tema do isolamento parece defender, desde o romance até a sua adaptação cinematográfica.
O roteiro de David Hare busca uma representação do isolamento que acomete as personagens, à medida que ressalta o silêncio como seu índice principal. Por sua vez, a câmera de Daldry reproduz essa representação com alguns planos sequências, seguidos de closes, evocando assim o estranhamento das personagens diante do ambiente doméstico. As personagens não são mostradas afastadas do seu ambiente doméstico ou com tomadas feitas sobre o espaço que ocupam. O que garante assim uma integração que não se coaduna com sua ausência de adaptação; o espaço é importante para uma compreensão do que se quer mostrar: a relação entre a insatisfação e o isolamento auto-impostos pelas personagens.
A música de Philip Glass acaba também por repetir excessimamente o que poderia ser o leitmotiv das personagens (a desintegração emocional); que se torna desnecessário em algumas cenas. Se o silêncio é o principal indicativo do isolamento, por que a música incidental em excesso?
Embora a cena da água invadindo o quarto de hotel onde Laura planeja se matar seja uma imagem impactante, parece deslocada, quando tenta ser um paralelo entre a personagem e o suicício de Virgínia Woolf. Parece ressaltar a opção de Daldry por esse aspecto de As Horas (o romance), ao privilegiar a fragmentação contínua, como uma tentativa de explicitar a relação entre as três estórias que não se completam, mas que poderiam ter uma conexão mais próxima a um mosaico da dor feminina.
Quanto a Clarissa Vaughan, os paralelos estão longe de ser percebidos pelo espectador, uma vez que é necessário uma ligeira introdução ao romance Mrs. Dalloway, no qual a personagem se baseia. Esse fato parece indicar que o filme é destinado mais para intelectuais do que para o espectador comum, que espera do filme uma leitura independente da intertextualidade entre Virginia Woolf, sua obra e o romance de Michael Cunningham.
Tanto o romance, quanto o filme procuram representar o isolamento do intelectual, que ora assume a persona da artista fracassada, ora a imagem da mulher comum ou a independente e emancipada, dividida entre a inutilidade do presente e sua imagem de mulher promissora no passado. Para todas as personagens, há o elo entre a dor e a pequenez de suas vidas que se completam, embora romance e filme não aprofundem as questões que representam esse suposto "retrato do universo feminino".
Referências
Andrade, Sérgio Augusto (2002, janeiro). Virginia Woolf e o medo. Revista Bravo, 5, 20-22. [ Links ]
Cunningham, M. (2003). As horas (B. Vieira, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Issacharoff, Michael (1989). Discourse as performance. California: Stanford University Press. [ Links ]
Pavis, P. (1999). Dicionário de teatro (J. Guinsburg & M. L. Pereira, Trad.). São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Peck, John & Coyle, Martin (2002). A brief history of English literature. New York: Palgrave. [ Links ]
Woolf, Virginia (1980). Mrs. Dalloway (M. Quintana, Trad.). São Paulo: Nova Fronteira. [ Links ]
Recebido em 08 de outubro de 2003
Aceito em 22 de outubro de 2003
Revisado em 05 de fevereiro de 2004
Notas
1 O primeiro título criado por Virginia Woolf para Mrs. Dalloway foi The Hours.
2 David Hare é dramaturgo inglês, escreveu peças como Blue Room e Ponto de Vista que já foram encenadas no Brasil. Stephen Daldry é um experiente diretor de teatro inglês, sendo Billy Elliot, seu primeiro filme.
3 No romance, Laura Brown apenas abandona a família, mas não é mencionado onde vai morar.