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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

Leitura psicanalítica da publicidade amorosa

 

 

Maria Cláudia Tardin PinheiroI; Regina Gloria AndradeII

IPsicóloga Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social-UERJ, Bolsista da CAPES, Participante ouvinte do GT Pesquisa em Psicanálise, ANPEPP. End.: Rua Humaitá, 18 apto. 107. CEP: 222 61-001 Humaitá / Rio de Janeiro/ RJ. e-mail: mclaudia@bridge.com.br
IIPsicanalista Professora Titular do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social-UERJ, Bolsista do CNPq, Participante do GT Pesquisa em Psicanálise, ANPEPP. End.: Rua Almeida Godinho, 26 apto. 802. CEP: 22471140- Rio de Janeiro. e-mail: reginagna@terra.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo descrever a abordagem freudiana do amor e a leitura de outros autores psicanalistas sobre o mesmo tema, para comentar como as publicidades brasileiras contemporâneas utilizam o amor em suas comunicações. A análise das peças publicitárias busca relacioná-las com os conflitos e contradições da construção cultural do amor líquido (conceito de Bauman, Z. 2004) proveniente do que este autor conceitua como mundo líquido moderno. O amor é um tema propício a ser utilizado na sedução publicitária porque ao mesmo tempo em que é uma força motivacional humana é uma construção cultural. A publicidade trabalha provocando olhares amorosos dos consumidores tentando atingir mecanismos psíquicos presentes nos sonhos e nas ilusões, que, em geral, as pessoas utilizam como atitude mental para lidar com a realidade. Explora constantemente o conflito humano de como cada um lida com os elementos da vida real e o escape por meio da vida idealizada e alucinada da fantasia. A publicidade que aqui trabalhamos comunica expressões de amor e de sexo, e nossa hipótese é que ela atinge determinados desejos arcaicos que habitam em toda pessoa. Desejos inconscientes que se misturam aos desejos paradoxais comuns da modernidade líquida: o desejo de cada um ser bem aceito pelo outro, ser desejado e reconhecido, e por outro lado, o desejo de diferenciar-se dos demais, assumindo uma posição de destaque no relacionamento social. Ao mesmo tempo em que a publicidade contemporânea veicula imagens e discursos de aceitação social, suscitando sensações de proteção e segurança, apresenta comunicações de disputa e rivalidade social que reforçam uma contínua sensação de incerteza.

Palavras-chave: amor; desejo; publicidade; modernidade líquida; amor líquido


ABSTRACT

This article has the objective to describe the concept of love in Freud's theory and others psychoanalysts approach to the same subject, in order to comment how the Brazilian contemporaneous publicities use the concept of love in their communications. The advertisements analysis seeks to relate the conflicts and contradictions of liquid love cultural constructions, which originates from Zigmunt Bauman's concept of modern liquid world. Love is a subject propitious to attract attention in publicity because at the same time it is a motivacional human strength, it is also a cultural construction. The advertisement stimulates lovely looks of consumers, attempting to reach psychological processes present in dreams and illusions that people use as a mental attitude to deal with reality. It explores the human conflict of dealing with the real life and the escape through the idealized life and fantasy hallucination. The advertisement we are working on, communicates love and sex expressions and our hypothesis is it reaches certain archaic wishes that live in every one. Unconscious wishes that mix with paradoxical ordinaries wishes of liquid modernity: the wish of being socially accepted, the wish of being desired and recognized, and by the other hand, the wish to be different from the others, getting a highlight position in social relationship. At the same time that contemporaneous advertisement shows images and speeches of social acceptance, protection and security, it presents communications of social competitions and rivalry that suggest a continuous uncertainty feeling.

Keywords: love; wish; advertisement; liquid modernity; liquid love


 

 

Amor e Desejo

Sigmund Freud considera que o sujeito é constituído pelo seu interior e pelo exterior, não opondo o dentro do sujeito do que está fora, isto é, o sujeito da cultura. Os limites do eu de uma pessoa em relação ao mundo externo não são tão nítidos, principalmente no que diz respeito às experiências amorosas. As pessoas quando amam consideram o outro como parte do seu próprio ego.

No texto Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1974a), Freud situa a origem do amor na relação do eu com seus objetos de prazer que pode se dar de forma anaclítica e de forma narcísica e está sempre remetendo ou reeditando as primeiras experiências de amor. A escolha amorosa anaclítica segue o modelo das figuras parentais, busca-se simbolicamente a mãe que amamenta ou o pai que protege, ou ainda aqueles outros que os substituíram. Para Freud, esta é a verdadeira escolha objetal, pois não se está diferenciado do outro. Já a escolha amorosa narcísica implica num investimento no próprio eu. Busca-se e projeta-se no outro o que se é, o que já se foi, o que se gostaria de ser e a pessoa que foi parte de si mesmo.

Para Freud (1914/1974a) o amor é uma repetição e suas matrizes são as imagos parentais. A pessoa está sempre buscando em suas escolhas amorosas as condições infantis de amar, ou seja, tentando reconhecer no outro os traços das imagos parentais. Por isso, ele afirma que o amor é marcado pela ilusão. As ilusões promovem ideais e expressam a crença de que um desejo (que é sempre psíquico) possa se concretizar. O desejo é a expressão de um anseio inconsciente por um objeto perdido e inalcançável que possa trazer a revivência de uma satisfação prazerosa. A ilusão mantém o desejo e o desejo coloca em movimento o psiquismo. Para que haja o desejo tem que haver uma falta. O desejo é sempre desejo de um objeto perdido.

Em 1900, na Interpretação de Sonhos Freud afirma que a primeira experiência de satisfação (provavelmente oriunda da primeira mamada) deixa registros (marcas) de prazer no psiquismo. Conseqüentemente, o aparelho psíquico começa a identificar o acúmulo de excitação como desprazer e isto impulsiona o psiquismo a agir para reviver a experiência de satisfação. O desejo é entendido como a corrente de excitação do aparelho regulado por sentimentos de prazer e desprazer. "O primeiro desejo parece ter sido uma catexia alucinatória da lembrança de satisfação" (Freud, 1900/1974b, p. 637). A falta que se dá a partir da primeira experiência satisfatória é constitucional ao sujeito. O desejo e o amor são formas da pessoa lidar com a falta alucinando objetos para aplacá-la e buscando por meio deles o objeto perdido e a satisfação conferida por este.

No desejo se busca a satisfação oriunda da descarga da pressão pulsional (do desprazer) que se produz pela falta, uma vez que não se consegue reviver a primeira satisfação. Por isso, que se está permanentemente desejando. Enquanto que no amor se busca a ilusão da completude, a satisfação total por meio da idealização do objeto é suprir aquilo que o desejo não recobre, uma vez que o desejo não alcança a satisfação plena. A satisfação é sempre parcial.

Em trabalho sobre o amor Andrade, R. (2003), diz que é no campo do Outro (mundo) que se encontram o amor e o desejo, presos em sua origem numa alienação. "Quanto ao desejo, ele está em permanente despedaçamento narcísico; quanto ao amor, sua busca é a idealização em forma de eu ideal" (p.71).

Segundo a psicanalista Ferreira, N. (2004) em seu livro A teoria do amor, não existe um objeto do desejo, mas diversos objetos que causam o desejo.

Mas nenhum desses objetos é Aquele, que se existisse - ah!, se ele existisse... - conduziria à felicidade. Então nada, absolutamente nada faltaria. Mas como esse objeto não há, o desejo não pode ser realizado. Assim, o destino do homem é ser desejante e amar na lógica do não-todo (Ferreira, 2004, p. 10-11).

Uma das expressões da publicidade é a abordagem do desejo e do amor. Observa-se nas peças contemporâneas uma tendência a estados de provocação de desejos, no caso das publicidades amorosas por meio da estimulação do desejo sexual. No mínimo poderíamos dizer que há uma incitação ao desejo, uma apologia ao desejo e à sexualidade. Em geral, os atores publicitários são apresentados como fortemente idealizados e legitimados por uma coletividade, o que já reatualiza em quem recebe a mensagem desejos inconscientes arcaicos de ser desejado pelo Outro. Desta forma, o olhar amoroso do coletivo presente na publicidade ao ator idealizado representa o alimento ao narcisismo de cada um, remetendo a marcas de idealização, proteção, segurança e onipotência oriundas da instância do eu ideal.

Observa-se também que a gratificação prometida na publicidade é instantânea. O discurso é que não se pode mais esperar pela satisfação, não se pode abrir mão do que se quer, de que é possível ter tudo e que cada um merece tudo do melhor. Essa comunicação constante nos leva ao questionamento se há tempo para a formulação do desejo no consumidor ou se ele já vem organizado, padronizado pelo olhar de desejo do Outro, nesse caso, do anunciante.

Há outras diferenças de ordem mais sutil entre desejo e amor como, por exemplo, quando se busca a própria imagem no outro, ela é atravessada pelas figuras parentais e por outras pessoas que atuaram como modelos de identificação ao sujeito. Uma pessoa não se constitui sem a presença ou a imagem de um outro, porque o eu não tem existência desde o início da vida, mas vai se construindo aos poucos.

Esta maneira de pensar foi detalhada por Jacques Lacan no texto O estádio do espelho como formador da função do eu (1998)1 que relaciona a imagem especular do bebê com seus processos de identificação e de identidade.

"Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, (...), ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem" (Lacan, 1998, p. 97).

Inicialmente o sujeito se reconhece e será amado a partir do olhar do outro que o legitima com o seu desejo. Por isso, Lacan diz que o desejo do homem é o desejo do Outro. No primeiro momento do estádio do espelho aquilo que o bebê vê no espelho é um outro. No segundo momento, ele procura quem está atrás do espelho. Vai para trás do espelho, se for possível, para ver quem está além do vidro que ele toca. No terceiro momento que é muito importante, o bebê é apresentado ao espelho com sua mãe geralmente. Aí ele olha ao espelho, olha a mãe que está ao seu lado, toca o rosto da mãe para ver se é real, pois a vê no espelho também. A mãe vai funcionar como o elemento de realidade. Depois, ele irá se tocar olhando simultaneamente ao espelho. Então irá se reconhecer através de sua imagem refletida observando o seu ato de se tocar.

Esse terceiro momento do estádio do espelho é fundamental para a criança entender sua subjetividade. Ela irá começar a perceber que tem vida própria. Ela vai começar a identificar o que é seu e o que é do outro. Começa a se separar do outro, a desenvolver sua independência. Este momento é importante porque a criança começa a amadurecer a noção de eu. Há um perigo neste momento: dela atribuir suas coisas aos outros e pegar o que é do outro, como por exemplo, o desejo do outro como sendo seu.

Ainda em seu texto acrescenta:

Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial (...) a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas (Lacan, 1998, p. 101).

 

Amor e Desamparo

O modelo infantil de busca de objeto de amor pautado nas imagos parentais não se destrói e tem a intenção de aplacar a falta, não se confrontar com o desamparo vivido frente às renúncias e aos limites da vida e resgatar uma suposta completude. Esta sensação de completude está associada tanto ao sentimento oceânico (uma vivência nostálgica de inseparabilidade do mundo, um estado fusional originário) quanto à revivência da onipotência infantil oriunda do narcisismo primário. A idéia do desamparo humano na obra freudiana está também remetida às pulsões inibidas de cada um que se submetem ao princípio de realidade buscando um prazer mais seguro no futuro.

No texto O futuro de uma ilusão (1927/1974c) Freud diz que se ama buscando reparar o desamparo e satisfazer a necessidade de proteção, dentre outras formas de buscar compensar coletivamente esse desamparo tais como: o trabalho, o conhecimento científico, a arte, a magia e a religião.

O objeto do amor de uma pessoa pode conferir uma identidade a essa pessoa dando a sensação de uma totalidade narcísica, completa, não castrada, protegida e amparada como também pode produzir uma ruptura nessa identidade, levando a pessoa à sensação de desamparo e confrontando-a com a fragmentação de seu eu. Nem sempre o objeto de amor confere ao sujeito a sensação de uma completude narcísica.

A experiência da paixão amorosa para Freud coloca o objeto da paixão no lugar do eu ideal (o que está sendo investido é na verdade o próprio eu narcísico projetado no outro) e o sujeito não vislumbra uma distinção entre o eu e o objeto. Apagam-se as diferenças entre os amantes e tem-se a sensação de nada faltar. Já a experiência do amor implica no reconhecimento do objeto enquanto diferente do eu, isto é, na aceitação da alteridade. O objeto do amor também é idealizado, mas ele está no plano da instância ideal do eu que organiza o campo identificatório da pessoa a partir da convergência da idealização narcísica que o sujeito tem de si junto com a identificação com os ideais coletivos. O ideal do eu vai funcionar fornecendo os modelos interiorizados de um sujeito, inicialmente, segundo os registros mnemônicos que as figuras parentais imprimiram nele e, posteriormente, outras pessoas que também atuaram como modelos de identificação.

O sujeito busca no objeto de amor determinados traços que o erotizam. Cada um ama a partir de suas marcas (registros mnemônicos) de prazer. A pessoa vai reconhecer traços no seu objeto de amor, que a fará idealizar este objeto, que também estão presentes em seus traços mnêmicos, em conformidade com seu ideal de eu. Por isso que Freud diz em seu texto O mal-estar na civilização (1930/1974d) que,

No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que 'eu' e 'tu' são um só, e está preparado para se conduzir como se isso constituísse um fato (Freud, 1930/1974d, p. 83).

Só que o amor não consegue encontrar um único objeto que elimina a falta constitucional do sujeito e nem tão pouco aplacar o sofrimento vivido na civilização que segundo Freud é oriundo de três fontes: o próprio corpo, o mundo externo e as relações humanas. O corpo humano trás sofrimento porque está condenado à degeneração e sofre por determinados sentimentos e ansiedades. O mundo exterior apresenta imprevisibilidades por meio de forças agressivas e destrutivas que não podem ser totalmente controladas. Por último, a dor oriunda dos relacionamentos interpessoais tais como o amor sexual, as relações familiares, de amizade, de trabalho, as sociais etc. que talvez seja o sofrimento mais penoso em relação aos outros.

Segundo o autor, mesmo a relação amoroso-sexual, que em geral é vivida como uma das mais intensas experiências de satisfação, associada ao protótipo de toda felicidade leva o sujeito a um sofrimento intenso se suas expectativas não são correspondidas (no caso de traição, morte e rejeição) uma vez que ele se coloca como dependente de seu objeto amoroso escolhido.

As representações psíquicas do amar e do desejar sexualmente o outro são em geral contraditórias e podem também fazer emergir outras fontes de sofrimento na relação amorosa, além da sensação de desamparo a cada um por suas expectativas não serem atendidas. Segundo Ferreira (2004), "quando se ama, o que está em jogo é a suposição de um ser - riqueza interior - no outro. Quando se deseja sexualmente, o que entra em cena é o outro capturado como objeto (2004, p. 11-12)". Por tanto, pode-se perceber a ambigüidade e contradição interna que produz os sentimentos de amor e de desejo sexual direcionados ao mesmo parceiro.

Ainda no texto O mal-estar na civilização Freud (1930/1974d) coloca que o amor em sua origem é um só sentimento: é amor plenamente sensual. Ele irá se desdobrar em diversas formas de manifestação: amor fraternal, filial, ao próximo etc. e inibir a sua finalidade genital não exigindo exclusividade.

O autor deriva o amor da pulsão sexual, ou seja, daquela força representada no psiquismo que faz buscar objetos de prazer, a sexualidade (as representações de prazer), mas não o confunde com ela. O amor inibido no investimento objetal sexual é o que possibilita a ternura.

Na segunda teoria pulsional (1920/1974e) Freud coloca o amor com todas as suas possibilidades de expressão e a sexualidade como manifestações da pulsão de vida. Ambos não têm um alvo específico programado pela espécie, nem uma finalidade orgânica. Ele não dessexualiza o amor, considerando-o como princípio de união, mas percebe nele a presença de uma discórdia, em função da pulsão de morte que é disjuntiva e da sexualidade que vem a fragmentar essa união. A sexualidade é um pouco anárquica na sua busca de prazer e pode ter expressões que levam à consciência da pessoa ao conflito.

A pulsão não consegue se conciliar com as exigências da civilização, o que leva a uma divisão no amor, no que concerne à ternura e à sensualidade gerando uma sensação de incompletude. Essa divisão gera insatisfações amorosas e a sensação de desamparo. No texto Moral sexual civilizada e doença nervosa dos tempos modernos (1908/1974f), Freud diz que a moral da cultura traz conflitos ao psiquismo e problemas à sexualidade, mas a pulsão também não permite a realização da satisfação completa uma vez que ela não tem objeto específico que permita a satisfação plena. A sexualidade não tem objeto específico já que o objeto que causa o desejo está perdido. A frustração pulsional também pode se dar por acontecimentos da história infantil do sujeito e pela dificuldade de conciliar o objeto da pulsão com os modelos de amor da cultura.

 

Modelos de amor

Atualmente, pode-se identificar a mistura de várias construções de relações de amor que são divulgadas nas crenças culturais, inclusive em publicidades. Construções porque o amor é um sentimento que implica uma experiência singular que só é possível conhecê-lo na medida em que se vive, mas que é atravessado pelos ideais culturais de amor. Toda época, todo grupo social com seu modo de se relacionar economicamente constrói modos de interpretar o que se vive e ideais de amor que geram ilusões e põem em movimento o psiquismo de cada um. O aparelho psíquico de uma pessoa é muito influenciado pelos ideais dos seus pais e das pessoas ou personagens de ficção que elegeu inconscientemente como modelos de identificação.

Todos os modelos de amor produzidos na cultura trazem conflitos. Não existe um melhor e correto a ser aplicado a todas as pessoas. Cada um escolhe seu parceiro em função de suas experiências de vida, suas marcas de prazer e de desprazer, seus modos de sentir o outro e de interpretar a busca de prazer na vida. Na grande parte do tempo essa escolha amorosa se dá de forma inconsciente impedindo que os parceiros conheçam profundamente as motivações dessa escolha. Mas, mesmo dentro da lógica inconsciente da escolha amorosa existe uma organização interna ao aparelho psíquico (a instância ideal de eu) que elege os modelos amorosos de identificação por meio de ideais parentais e sociais. Os ideais sociais que movimentam o desejo amoroso de cada um são modos de construção de subjetividade que emergem no aprendizado cultural - daí a possibilidade de se estudar os ideais amorosos contidos nas publicidades brasileiras.

Bauman, Z. (2004) caracteriza a atualidade como o mundo líquido moderno. Nesse mundo fluido, tudo que é de uso instantâneo e que não necessita de esforço é apresentado como bem visto. Em contrapartida, o que é sólido e durável é detestável remetendo à idéia de opressão e de dependência incapacitante. O grande avanço tecnológico permitiu uma diminuição entre o impulso humano e sua satisfação. As informações que circulam em rede são inúmeras, o que torna impossível o domínio de tudo que é divulgado aumentando a sensação de incerteza e de mundo incontrolável. Impera uma fluidez nos mercados de trabalho e uma fragilidade do valor atribuído às competências e habilidades do passado e do que se apresenta no presente. O mundo fluido não oferece mais planos de carreira e nem empregos estáveis. Os relacionamentos humanos estão se tornando muito vulneráveis dificultando os compromissos e parcerias. Os seres humanos estão sendo vistos como descartáveis. O conceito de cidadão surgido no Iluminismo é esquecido e em seu lugar, surge o homem consumidor que apresenta o ideal de liberdade e segurança ao reivindicar a satisfação prometida nos anúncios e garantida na venda.

Para Bauman, dois personagens fictícios são os ideais da economia de mercado: o homo oeconomicus que põe a economia em movimento e o homo consumens que é acolhido pelos praticantes do mercado.

O homo oeconomicus é o ator econômico solitário, auto-referente e autocentrado que persegue o melhor ideal e se guia pela 'escolha racional', preocupado em não cair nas garras de quaisquer emoções que resistam a ser traduzidas em ganhos monetários e vivendo num mundo cheio de outros personagens que compartilham todas essas virtudes, e nada além (Bauman, 2004, p. 89).

Em relação ao homo consumens acrescenta que é:

O solitário, auto-referente e autocentrado comprador que adotou a busca pela melhor barganha como uma cura para a solidão e não conhece outra terapia; um personagem para quem o enxame de clientes do shopping center é a única comunidade conhecida e necessária e que vive num mundo povoado por outros personagens que compartilham todas essas virtudes com ele, e nada além (Bauman, 2004, p. 89).

Segundo Bauman essas características do mundo líquido moderno, que é o mundo das imagens e também da publicidade são influenciadas pela cultura consumista que apresenta o produto pronto para uso imediato, que reforça a idéia de prazer passageiro e a satisfação instantânea aniquilando o impulso de desejar do homem. "É como num shopping: os consumidores hoje não compram para satisfazer um desejo (...) compram por impulso. Semear, cultivar e alimentar o desejo leva tempo" (Bauman, 2004, p. 26). Para que surja o desejo é necessário que se retarde a satisfação, pois a pessoa precisa perceber a falta nela que a separa da alteridade.

"O desejo é um impulso que incita a despir a alteridade dessa diferença" (Bauman, 2004, p. 23-24). Para o autor, desejo é vontade de consumir e a sua realização implica na aniquilação do objeto, o que nos remete ao provável sucesso da publicidade, uma vez que a cada ano maiores quantias financeiras são investidas em publicidade, ao apresentar objetos de consumo totalmente descartáveis.

Entregar-se aos impulsos é algo transitório e alimenta a esperança de não deixar conseqüências prolongadas que possam dificultar novos momentos de êxtase prazeroso.

O impulso de aniquilar a alteridade e só se relacionar com aqueles que são 'definidos', previsíveis como busca de segurança nas relações sociais acaba por trazer o efeito reverso e torna o futuro mais indefinido.

Bauman utiliza uma metáfora para falar dos anseios sociais: "busca-se uma rosa sem espinhos" (Bauman, 2004, p.23) que é o mesmo processo que acontece na tentação de apaixonar-se e do envolvimento amoroso, vivido na atualidade como envolvimento de consumo, como propõe a publicidade. A grande contradição das relações de amor líquido é a tentação de apaixonar-se e a atração de escapar ao envolvimento amoroso.

Surge um modelo de amor nos novos tempos acelerados de busca de uma satisfação com o outro dentro de uma lógica cada vez mais idealizada da diversão sem limites, de um incentivo frenético ao consumo do outro em que a grande preocupação é de aproveitar o momento presente, sem dimensionar preocupação com o passado e com o futuro. Nessa lógica de exaltação ao presente, não é bem visto o compromisso com o outro, com projetos de vida etc., pois o compromisso diminui a liberdade individual. Os contatos amorosos são rapidamente estabelecidos e numa tática do mínimo esforço, assim como podem ser rompidos facilmente.

A racionalidade que guia a modernidade líquida possui algumas características como: maior cuidado e apreço por si mesmo e pelos próprios interesses, maior preocupação com o prazer, a satisfação pessoal e a felicidade, a busca de depender cada vez menos dos outros e de considerar cada vez menos às demandas destes por atenção e cuidado. A racionalidade da modernidade líquida está sempre analisando os possíveis ganhos e perdas de um investimento, além de não se acreditar na aposta de todas as fichas num único alvo. Exige-se mais dos parceiros e espera-se que os compromissos assumidos não durem para sempre.

Bauman coloca que os outros são percebidos como companheiros nas alegrias do consumo, um amálgama entre o desejo e a ilusão, entre o objeto real e aquele que é proposto pela publicidade como objeto ideal, como os primeiros objetos de desejo. Não está mais ocorrendo a preocupação com os valores e a singularidade deles. O mercado consumidor está diminuindo a solidariedade humana.

O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu 'valor monetário' (Bauman, 2004., p.96).

 

Consumo de amor nas publicidades

As publicidades brasileiras estão continuamente produzindo ficções amorosas e sexuais em suas comunicações, tanto que em 2003 o CONAR proibiu a realização de anúncios de cerveja que veiculam menores de vinte e cinco anos e exploram cenas eróticas. As publicidades parecem oferecer promessas de conquistas amorosas quando oferecem outras mercadorias. Parecem prometer o resultado seguro da sedução amoroso-sexual de ser aceito e idealizado pelo outro sem esforço - pois é possível só utilizar um desodorante e ao sair na rua receber flores numa paquera, ou ser atacado pelo desejo sexual de outros.

Observa-se ideais amorosos conflitantes nas peças publicitárias. Tanto os ideais de amor romântico estão fortemente presentes quanto os ideais do que Bauman chama de amor líquido.

Os ideais de amor romântico reúnem amor e desejo sexual no mesmo objeto de amor que é extremamente idealizado. Esse amor está associado a uma motivação irracional que parece desvincular os interesses da razão de ordem social e econômica da escolha do objeto. Mas, como se pode observar nos anúncios são preservados dentro das escolhas de objeto os interesses de ascensão social e econômica - os atores das publicidades que mais aparecem e despertam olhares amorosos são aqueles que em geral representam a elite da sociedade brasileira (branca com comportamento típico de classe alta e média).

Os comerciais apresentam aqueles que são desejáveis, realçando suas identidades sociais (tipo físico, comportamento social, posição sócio-econômica, idade etc.) e mostrando como terão facilidade nas conquistas ao utilizarem o produto vendido.

Como o amor romântico coloca o objeto do desejo numa posição de extrema idealização e essa idealização no contexto da racionalidade do mundo líquido causa bastante temor a quem deseja o amor, uma vez que diminui o seu brilho narcísico e a auto-idealização, inverte-se o objeto da idealização que é exposto nos comerciais. Apresenta-se também o consumidor como aquele que já usa o produto e que desperta incondicionalmente o olhar desejante e amoroso dos demais personagens que são expostos nas peças publicitárias.

Idealizar o objeto de amor e de atração sexual esvazia o ego de uma pessoa, trazendo-lhe insegurança, incerteza e ansiedade. Desta forma, a lógica do amor romântico traz uma contradição intransponível e muito incômoda à racionalidade dos seres do mundo fluido. No amor líquido deseja-se estar no controle da relação de sedução e da relação de amor para não sentir sua própria vulnerabilidade. Logo, essa forte atração que o outro desperta no sujeito causa uma repulsa e uma atração pelo descarte do mesmo.

Na época que antecedeu o dia dos namorados em 2004, a atriz Débora Seco fez um comercial na TV que dizia demonstrando desapego, que os namoros de hoje em dia levam de uma semana a duas no máximo, não querendo se comprometer com um contrato de ligação celular por um ano para uma pessoa (no caso, o namorado atual) que a empresa estava oferecendo. Depois, a atriz aparece dizendo que estava brincando e que era mentirinha o que tinha dito.

As publicidades têm apresentado a idéia que os bens de consumo darão sensações novas e inéditas, mesmo que só se modifique a embalagem de antigos. Como os bens de consumo valorizados são os mais modernos e de último lançamento, principalmente em termos tecnológicos, a mesma lógica é transposta à sedução amorosa. Constantemente são lançados novos ícones masculinos e femininos como ideais de desejo e como identidades socialmente aceitas que despertarão o olhar amoroso e desejante dos consumidores que recebem as publicidades, uma vez que já fascinam aqueles que participam dos anúncios.

 

Conclusão

As publicidades que aqui discutimos são aquelas que utilizam a força do amor para atrair a atenção e despertar o impulso de compra nos consumidores. Acreditamos que o amor é uma força que retira o sujeito do lugar onde se encontra. Daí a importância de repensar as comunicações de amor na publicidade. Como os anúncios retratam as construções de amor? Que contradições e conflitos essas comunicações nos impõem?

Numa cultura que não suporta mais a idéia da dor, principalmente da espera de algo que se deseja, é mais fácil extinguir a esperança, não pensar no futuro e se concentrar no prazer imediato, na satisfação instantânea de impulsos. Da mesma forma, já se observa nos comerciais esse ideal do amor líquido em que não se espera construção de relação de amor duradoura. O compromisso com algo ou alguém é algo que impede a autonomia do sujeito. As publicidades enfocam continuamente a satisfação instantânea dos prazeres individuais, em que a velocidade é o motor principal, o que demonstra dinamismo, evolução, capacidade de superação de obstáculos, de autonomia - condições essas que levam ao reconhecimento social. Desta forma, desejar instantaneamente alguém portando utensílios e imagens produzidas pelos aparatos culturais, simbolicamente representa ser desejado pelo Outro - o que alimenta a instância do eu ideal e o narcisismo de cada um, tão necessário à líquida racionalidade moderna do consumidor. Consumidor de si.

 

Referências

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Recebido em 14 de junho de 2004
Aceito em 02 de julho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004

 

 

Nota

1 A concepção do estádio do espelho foi introduzida por Lacan no XIV Congresso Internacional de Marienbad em 1936 com o título "The looking-glass phase".

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