Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
RELATÓRIO DE PESQUISA
Trauma e estrutura familiar
Profª Drª Andréa Hortélio Fernandes
Psicanalista, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade Denis-Diderot (Paris 7), Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Coordenadora da Especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica da Universidade Federal da Bahia, Integrante do Grupo de Trabalho "Dispositivos Clínicos em Saúde Mental" da ANPEPP. End.: Rua Rio São Pedro, 24/ 501, Graça, CEP: 40150-350 Salvador-Bahia/. e-mail: ahfernandes@terra.com.br
RESUMO
Nos anos cinqüenta, o complexo de Édipo, tal qual foi elaborado por Sigmund Freud, será repensado por Jacques Lacan. Nesta ocasião, Lacan chamou atenção para o fato de que o entendimento de tudo o que diz respeito à teoria da clínica psicanalítica estava associado à necessidade de colocar a noção de castração como sendo central aquilo que se passa na experiência da constituição do sujeito. Tal leitura lacaniana fez com que o Complexo de Édipo passasse a ser tomado numa dimensão estrutural, onde os elementos envolvidos (a mãe, a criança, o pai e o falo) passaram a ser analisados de acordo com a forma como eles interagem entre si. A estrutura assim formada tinha por base a relação que cada um dos elementos mantinha com as três formas possíveis da falta de objeto. Nesta perspectiva, o pai e a mãe passam a valer como funções que podem ou não ser desempenhadas pelos próprios genitores. As múltiplas funções atribuídas ao pai fizeram com que Jacques Lacan o tomasse em três diferentes registros, quais sejam: o pai simbólico, o pai imaginário e o pai real. Na contemporaneidade, o declínio da imagem paterna traz à tona sintomas com os quais a psicanálise é continuamente confrontada. Nesta perspectiva, o presente trabalho analisa as transformações ocorridas na estrutura familiar e o declínio do pai em sua dimensão simbólica. Para isso será utilizado um recorte clínico de um atendimento de uma criança, realizado sob nossa supervisão. Este artigo faz parte do desenvolvimento da pesquisa "Saúde Mental e Família: uma abordagem psicanalítica" integrante do Grupo de Trabalho (GT) intitulado: Dispositivos Clínicos em Saúde Mental da ANPEPP.
Palavras-chaves: trauma; estrutura familiar; complexo de Édipo; função paterna; castração.
ABSTRACT
In the fifties, the dipus complex, just as it was elaborated by Sigmund Freud, it will be rethought by Jacques Lacan. On this occasion, Lacan got attention for the fact that the understanding of everything that says respect to the theory of the psychoanalytical clinical was associated to the need of placing the castration concept as being central that happens in the experience of the subject's constitution. Such reading as lacanians gave to the dipus complex starts take in a structural dimension, where the involved elements (the mother, the child, the father and the phallus) became analyzed in agreement with the form like them interact to each other. The base of the formed structure was based in the relationship that each one of the elements blanket with the three possible forms of the lack of the object. In this perspective, the father and the mother start to have functions that can or not be carried out by the own genitors. The multiple functions attributed to the father made Jacques Lacan took it in three different registrations, which are: the symbolic father, the imaginary father and the real father. In the contemporariness, the paternal image declines due to the symptons which the psychoanalysis has been confronted. In this perspective, the article analyzes the transformations in the family structure and to the father's decline in its symbolic dimension. For that a clinical studing of a treatment of a child will be used, accomplished under our supervision. This article is part of the development of the research " Mental Health and Family: as a psychoanalytical approach" of the Group of Work (GT) entitled: Clinical devices in Mental Health of ANPEPP.
Keywords: trauma; family structure; dipus complex; paternal function; castration.
A teoria da sedução, inicialmente cogitada como responsável pela etiologia das "psiconeuroses", faz com que o tema da saúde mental e da família1 esteja presente desde os primórdios da psicanálise. O interesse pela origem das "doenças mentais" leva Freud a abandonar a teoria do trauma em prol da teoria da fantasia na qual o complexo de Édipo passa a ser considerado como o complexo nuclear de toda neurose. Daí decorre uma subversão do sujeito dada a dialética do seu desejo. A teoria da clínica psicanalítica de orientação lacaniana atenta aos efeitos desta subversão, promove uma releitura do complexo de Édipo freudiano que implicará num percurso que vai do mito à estrutura. Surge então uma questão: seria a releitura do Édipo, feita por Lacan, uma tentativa de lidar na clínica com as transformações ocorridas na estrutura familiar, sobretudo, no que diz respeito à função paterna? Utilizaremos um recorte clínico de um atendimento de uma criança, realizado sob nossa supervisão, para examinar os efeitos na clínica da releitura do complexo de Édipo feita por Lacan.
A teoria do trauma e concepção de criança no século XIX
A teoria do trauma proposta por Freud traz em si uma certa compreensão da natureza da criança e do lugar que lhe foi conferido ao longo da história. Até a Idade Média, não era concedido à criança um lugar particular. Somente a partir dos cuidados dedicados à criança que a estrutura familiar tomará corpo e com ela, veremos surgir os deveres dos pais que nascem respectivamente dos direitos das crianças. Foi assim que a educação da criança passou a ser considerada como instrumento de iniciação social, da passagem da infância a idade adulta (Ariès, 1981).
A partir do século XVII, os pais passaram a se preocupar com a escolha dos educadores e das escolas. Os pais buscaram estar mais próximos da educação de seus filhos, que passaram a ser valorizados por representarem os homens de amanhã. Com base neste histórico, podemos inferir que a teoria do trauma formulada por Freud aproxima-se da concepção da natureza humana da criança defendida por Rousseau, para quem não haveria "perversidade original no coração humano" (Rousseau, 1999, p. 90), todo e qualquer vício que viesse a ser nele encontrado teria uma causa passível de ser rastreada. A teoria da sedução de uma criança por um adulto pode ser entendida como sendo uma tentativa de realizar este rastreamento.
No século XIX, a definição da criança estará bastante influenciada pelos estudos de Rousseau, para quem a criança era desprovida de toda sexualidade (Grosrichard, 1991). É possível então entender a subversão promovida por Freud ao defender a idéia da sexualidade infantil perversa polimorfa. Tal construção freudiana fez com que a psicanálise tivesse de levar a sério o ditado do poeta William Wordsworth (1770-1850), segundo o qual a criança é o pai do homem. Com isso, no texto intitulado O interesse científico da psicanálise ( Freud, 1913/1969a) a origem da vida mental dos adultos passa a ser atribuída à vida mental das crianças (Cirino, 2001). O complexo de Édipo e a teoria da fantasia são tributários do reconhecimento da importância da realidade psíquica na vida mental dos neuróticos.
O Complexo de Édipo em Freud e Lacan
O complexo de Édipo é vislumbrado por Freud desde a suas cartas à Fliess. Porém, a expressão - complexo de Édipo - só será utilizada por ele em 1910, no texto Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (Freud, 1910/1969b). A forma como o conceito foi apresentado fez com que ele fosse tomado como estando centrado no menino, que foi visto "como um ente constituído em sua sexualidade, cuja evolução, de natureza biológica e predeterminada, o faz dirigir-se aos seus pais" (Bleichmar, 1991, p.13). O complexo de Édipo seria estruturante do sujeito na medida em que o sujeito seria conseqüência da sexualidade que se desenvolve no seio da situação edípica. No sujeito, a divisão subjetiva poderia ser ilustrada pela tensão entre os seus desejos incestuosos e a cultura, sustentada pela lei da interdição do incesto.
A partir dos anos vinte, o complexo de Édipo passará a "caracterizar a totalidade da estrutura em jogo" (Bleichmar, 1991, p.13), na qual os elementos não valem isoladamente, mas a partir da relação que mantém entre si. Desse modo, a saída do complexo de Édipo será pensada, por Freud (1921/1969c), como promovendo algo novo que seria uma identificação, revelando que no humano a identidade sexual difere da identidade biológica. Conseqüentemente, o complexo de Édipo começa a mostrar dificuldades em se manter centrado em um dos pólos da estrutura edípica, ou seja, no menino. A identidade sexual seria resultado da relação dos elementos envolvidos no complexo de Édipo.
Nos anos trinta, Freud se dedicará aos impasses existentes na sua teorização acerca do complexo de Édipo e afirmará que o mesmo não ocorre da mesma forma no menino e na menina. A castração colocada no centro do complexo de Édipo demarcará particularidades na entrada e também na sua saída. Longe de esgotar os impasses referentes a como lidar na clínica com o real da castração, Freud deixa a questão sobre que o que quer uma mulher como sendo central à problemática aí em jogo (Jones, 1961/1988).
Lacan retomará a questão deixada por Freud e tratará a castração como sendo a não complementaridade entre os sexos, o que o leva a afirmar que não há relação sexual. Isto fará com que ele tome o complexo de Édipo na sua dimensão estrutural. Nesta perspectiva, o complexo de Édipo será tomado como uma estrutura na qual os quatro elementos (o falo, a mãe, o pai e a criança) interagem entre si, a partir da relação que cada um deles mantém com as três formas possíveis de falta de objeto. O falo como o significante da falta (Lacan, 1958/1998a) mostra que a estrutura do Complexo de Édipo é sustentada na anterioridade e prevalência das partes, o que promove no sujeito neurótico a questão de saber o que quer o Outro, além dele se indagar que lugar ele ocupa no desejo do Outro.
A subversão do sujeito dada a dialética do seu desejo faz com que o sujeito, sobretudo em se tratando de uma criança, se questione sobre o seu futuro, seu destino. Algumas falas de crianças mostram-se como sendo uma tentativa de dialetizar suas histórias de vida: "o meu padrinho é padre, eu vou ter que ser padre quando crescer?"; "Quando tinha a minha idade, treze anos, meu pai parou de estudar para trabalhar, eu não gosto de ajudar na loja da minha família, e estudo porque minha mãe exige, não sei ainda o que fazer no futuro".
Sobre a história, Lacan (1966/1998b) dirá que para a psicanálise, a história tem uma dimensão diferente da do desenvolvimento e que seria uma "aberração" reduzi-la a este. A história, segundo Lacan, se desenvolve como um contratempo do desenvolvimento, "o que marca o ritmo do desenvolvimento é o desejo do Outro que opera na criança por meio de seu discurso" (Cirino, 2001, p. 109). Com Lacan, podemos dizer que o sujeito em análise seja qual for a sua idade, se dedica ao trabalho de reescrever a sua história.
A Família pelo viés da Psicanálise
Desde Os complexos Familiares, Lacan aponta que "entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura" (Lacan, 1938/1987, p. 13). Para isso, dentre as demais instituições envolvidas na educação da criança, caberia à família a tarefa da "repressão dos instintos", dito de outro modo, à família caberia refrear o gozo. Assim sendo, ela estabeleceria uma "continuidade psíquica", entre as gerações, demarcada pela interdição do incesto. Esta demarcação seria dada pela função paterna graças a qual o desejo da mãe que ocupava totalmente a criança pode vir a ser substituído pelo Nome-do-Pai. A metáfora paterna, aí presente, produz uma significação que não existia antes e com isso leva a uma moderação de gozo, que em Lacan, recebe o nome de castração.
A família, para a psicanálise, seria então o palco onde se desenrola o percurso que vai do mito à estrutura. Toda criança entraria na família com um certo gozo mítico e originário, gozo que toma forma no mito da mãe fálica. Este mito sustenta-se na crença da possibilidade de encontrar um objeto que esteja à altura do desejo do Outro materno. Dentro desta lógica, ao mito da mãe fálica corresponderia "um mito do casal parental, onde o pai, enquanto significante do desejo da mãe, estaria à altura de responder pela sua falta, fazendo existir a relação sexual, pela copulação de significantes" (Barros, 1995, p. 114-115). Este mito traria em si o "enunciado do impossível", na medida em que diz respeito à "constelação originária que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino, (...), à sua pré-história, a saber, as relações familiares fundamentais que estruturam a união de seus pais" (Lacan, 1953/1979, p. 295).
As transformações ocorridas na estrutura familiar, entre elas: o declínio do patriarcado, a participação das mulheres no mercado de trabalho, os métodos contraceptivos, mostram que "o pai é sempre, por algum lado, um pai discordante em relação à sua função, um pai carente, um pai humilhado" (Lacan, 1953/1979, p. 305). E qual seria a função do pai? A ele caberia transmitir a lei do desejo que faz com que os seus filhos possam fazer laço social na sua própria geração, para isso é preciso que ele outorgue o direito à sexualidade, por meio da máxima "não dormirás com a tua mãe, mas sim com qualquer outra mulher" (Julien, 2000). É necessário que o pai mostre para os filhos que seu desejo "viril" se dirige para uma mulher, podendo ser a mãe ou não. Cabe precisar que a "virilidade do desejo do pai não é uma realidade em si", pois o que estará em jogo é como o pai transmite o falo a seus filhos (Brancion, 1996, p. 142). Estaríamos nos remetendo ao terceiro tempo do Édipo lacaniano, onde "o complexo de Édipo tem um valor, não normativante, mas, sobretudo patogênico" (Lacan, 1953/1979, p. 305).
Conseqüentemente, será no contexto da crise edipiana que a criança será levada a indagar o que não foi resolvido na transmissão do mito familiar, trata-se, segundo Lacan, da "insondável relação que une uma criança aos pensamentos presentes em sua concepção" (Lacan, 1953/1979, p. 295). A criança ao perceber que o pai tem o pênis, o órgão masculino que dá consistência ao significante fálico, espera que ele possa encarnar aquele que tem alguma coisa que a mãe não tem. A crença da criança seria que esse pai é potente, que ele pode transmitir o que se passa na relação sexual. Porém, a relação entre um homem e uma mulher não se escreve. Nenhum pai se mostra a altura desta tarefa. A metáfora materna demonstra isso já que o significante do Nome-do-pai é exterior, logo não se trata da pessoa do pai, mas de uma metáfora que substitui outros significantes que tem para o sujeito uma função idêntica. Daí, porque Lacan irá chegar a nomeá-lo Nomes-do-Pai, reconhecendo com essa nomeação as múltiplas funções edípicas do pai. Isto fará com que o pai venha a que ser tomado, por Lacan, em três diferentes registros: simbólico, imaginário e real.
O sintoma neurótico responde a inconsistência do desejo do pai, o que faz com que a neurose seja tomada como a forma singular pela qual o desejo do pai é tomado por um sujeito.Tudo se passa como se os impasses próprios à situação original, (o mito da mãe fálica), fossem deslocados, no final da crise edípica e/ou retomados na adolescência, para um outro ponto da rede mítica (o mito do casal parental). Logo, aquilo que foi recalcado no simbólico retornaria no próprio simbólico como sintoma. O drama do neurótico vem a se manifestar nos seus sintomas, sonhos e fantasias. Utilizaremos o recorte de um caso clínico, atendido sob nossa supervisão, como ilustração.
Caso Clínico
M. está com onze anos e cursa a 4ª série quando inicia seu atendimento. Na primeira entrevista ele apresenta seu sintoma da seguinte forma: "vejo pessoas que não existem, e que, às vezes, ficam me perseguindo". Fico confuso, continua ele, e vou dormir na cama do meu tio. É o tio paterno que o traz a sessão, visto que M. é órfão de pai e mãe. Segundo o tio, a morte da mãe de M. foi ocasionada por um crime passional e seu pai, autor do assassinato, morreu enquanto aguardava o julgamento na prisão.
Ainda nesta primeira entrevista, o tio ressalta que procurou atendimento para o sobrinho em razão do encaminhamento feito pela escola. No colégio ele foi "diagnosticado" como portador de "distúrbio de comportamento, impaciente e violento" (certa feita, xingou a professora). O tio se faz porta-voz desta queixa, entretanto, ao falar em nome próprio diz que o sobrinho é muito inteligente, chegando a surpreender todos em casa, "ele gosta de consertar objetos e inventar coisas". Atualmente, diz ele, seu sobrinho começou a ver pessoas que não existem à noite.
Nesta mesma sessão, M. coloca que sua vida tornou-se "turbulenta" com a morte de seus pais, há quatro anos, na época ele tinha sete anos. Ele declara então que procura o atendimento para poder "desabafar", quer encontrar alguém em que possa "confiar e assim desabafar". Veremos que a instauração da transferência possibilitará a M. reconstruir sua história, indo mais além da preocupação em rememorar os acontecimentos importantes de sua vida, em especial a morte de seus pais. Conseqüentemente, M. trará, para a análise, um cenário fantasístico criado por ele para lidar com as questões relativas à morte e a sexualidade.
A transferência como reatualização da realidade sexual do inconsciente funcionará como o motor do tratamento. Ela revelará que no drama de M., como em todo drama neurótico, "o mito e fantasia confluem e a experiência passional ligada à vivência atual da relação com o analista" torna-se o "trampolim, por intermédio das identificações que ela comporta, para a resolução de um certo número de problemas" (Lacan, 1953/1979, p. 299).
É desse modo que M. pode "confiar" na pessoa que o atende e utilizar todo um roteiro fantasioso para retomar aquilo que dizia respeito a sua posição de sujeito na sua constelação familiar. Ele traz então um sonho. Neste sonho seu pai está num lugar escuro e sua mãe está gritando pedindo para que ele seja socorrido. Este sonho de salvamento do pai faz com que ele afirme que após a morte da mãe, passou a sonhar com ela, via seu rosto nos sonhos, assim como, quando ia jogar futebol via uma pessoa que parecia sua mãe, "quando olhava de direito não era ela".
Os sonhos com tema de salvamento, de acordo com Freud (1910/1969), têm um histórico particular e são derivativos do complexo parental. Já Lacan chama atenção para o fato de que, em uma análise, o sujeito pode retomar a sua "constelação familiar" sem se vincular "de forma alguma com o que quer que seja que aconteça de atual" (Lacan, 1953/1979, p. 296). Desta forma, o sujeito encontra um prazer no cenário fantasístico, já que consegue circular entre os dois elementos da fantasia, quais sejam, o sujeito e o objeto.
Em uma sessão, M. fala sobre o seu futuro, pensa em ser investigador policial, ou biólogo, "não que ao só trabalhar como meu tio, quero também cursar uma faculdade", diz ele. E mesmo afirmando não gostar de falar sobre morte, sempre que algum acidente, envolvendo a morte, acontece, ele vai olhar o morto, com isso o cenário da morte é freqüentemente trazido para as sessões. Em uma ocasião, ele relata, com detalhes, como matou o gato da vizinha. Algumas sessões mais tarde, dirá que o fez porque quando seu cachorro morreu, ele ficou triste e chorou, esta vizinha, ao vê-lo chorando, deu risada, a atitude dela fez com ele matasse o gato dela.
Constatamos que a forma encontrada por ele para nada querer saber sobre o gozo mortífero que lhe é peculiar se dá, sobretudo, ao falar nas sessões por meio de enunciados. É assim que ele vem a uma sessão e diz "mulher é chave de cadeia". Segundo ele, o autor da frase é um amigo de seu pai que luta Box. Utiliza também uma novela da rede Globo (Kubanacam), na qual um personagem (Estevan), procurado pela justiça, é rastreado pelos relacionamentos que mantém com as mulheres, sendo repetidamente preso por crimes que nem ele mesmo sabe que cometeu já que possui dupla personalidade.
Partindo do princípio de que a arte muitas vezes imita a vida, veremos como M. aos poucos vai se implicando no mal-estar do qual se queixava desde o início do tratamento. A advertência de Lacan, segundo a qual, alguns comportamentos do neurótico obsessivo guardam certa proximidade com as construções delirantes (Lacan, 1953/1979) nos servirá aqui de orientação. Retornemos à primeira sessão de M.
Cabe lembrar que, na primeira sessão em que são atendidos, tanto M. como seu tio, afirmam que M. via pessoas que não existiam. Numa sessão M. põe em dúvida se sua mãe estaria realmente morta, como não foi ao enterro, não viu a mãe, diz então que tem dúvidas. Dentro da lógica construída, a dúvida quanto à morte da mãe morta, faria com que seu pai não fosse o assassino dela. Porém, uma coisa é certa, M. se sustenta na crença do pai morto. De fato, ele foi ao enterro do seu pai, mas isso não faz com que o assassinato do pai deixe de fazer parte das suas fantasias, pois nelas encontramos a reedição de um cenário fantasístico que se impõe a ele.
No texto O mito individual do neurótico, Lacan (1953/1979) revela como o drama do neurótico se vislumbra num roteiro fantasioso que adquire seu valor em virtude da apreensão que dela toma o sujeito. Assim, o "crime passional" ao qual está relacionada à morte da mãe de M. tomará seu valor "traumático" dado a forma fantasística que ele assume para M. Há algo que reenvia ao real sexual de M. e que se presentifica na fantasia ligada ao tema da morte do pai.
Este caso ilustra a necessidade de se tomar o pai em três diferentes registros: real, simbólico e imaginário. Com efeito, "é a morte imaginária e imaginada que se introduz na dialética do drama edipiano" (Lacan, 1953/1979, p. 306) e é ela que está em jogo no sintoma neurótico. É neste sentido que, muito freqüentemente, vemos que a morte de um pai, de um irmão mais novo, torna uma criança obsessiva. O que vislumbramos é que o real da morte convoca a criança a lidar com o pai na sua função traumática, que diz respeito ao "pai da exceção, o pai mítico, primitivo e irreal" (Silvestre, 1991, p. 89).
Este pai da exceção seria o pai mítico que teve acesso a todas as mulheres, e que teve seu poder aumentado graças à implementação da lei da interdição do incesto, promulgada com sua morte. Deste pai é esperado um saber sobre o sexo, na medida em que é esperado que a lei, por ele outorgada, possa orientar todos os humanos. Esta é a forma que toma a dissolução do complexo de Édipo em Freud. Contudo, a leitura lacaniana do pai morto revela que ele funciona como um "puro significante" reenviando ao sujeito, mesmo uma criança, o seu próprio desejo, que se manifesta por intermédio do sujeito da enunciação.
Segundo Silvestre, a única resposta que retorna inicialmente ao sujeito quando é levado a fazer apelo ao pai morto é a castração, "isto é a uma falta de gozo" (Silvestre, 1991, p. 94). Isto porque o pai primitivo é aquele cuja existência depende inteiramente da renúncia ao gozo sexual. Logo, ao fazer apelo ao pai morto, o sujeito não encontra nenhuma resposta neste pai simbólico que o oriente a como lidar com o seu próprio desejo sexual. É assim que Lacan dirá que "a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um puro significante, de um reconhecimento não do pai real" (Lacan, 1955/1998c, p. 562). Logo, apesar do apelo feito pelo neurótico obsessivo ao pai morto, enquanto puro significante, enquanto pai simbólico, o que retorna para o sujeito, como questão, é seu próprio desejo.
Comprovamos que o obsessivo faz apelo ao pai morto porque ele evita, ao máximo, se confrontar com a sua existência como sujeito desejante, assim ao falar, em análise, ele o faz, sobretudo por meio de enunciados e não de enunciações. Contudo, a não-resposta advinda do pai simbólico, o pai morto, faz com que ele construa na fantasia uma figura de pai que seja propícia a seu desejo. Nesta situação, o obsessivo se propõe a salvar o pai imaginário, que é a imagem do pai criada pela criança. Nesta busca, o obsessivo entra numa série de relações imaginárias, envolvendo uma relação especular entre o sujeito e o outro, que faz com que o sintoma neurótico apareça como sendo algo da ordem de um determinismo (Lacan, 1953/1979, p. 294). A teoria lacaniana enfoca esta formulação na máxima que diz que o desejo do sujeito é o desejo do Outro. Voltemos ao caso de M. para ilustrar esta questão.
A transferência, funcionando como motor do tratamento, faz com que o cenário da fantasia criada por M. reatualize para ele um gozo que lhe escapa. É assim que, numa sessão, ele diz que não se interessa por pessoas da sua idade, gosta de mulheres mais velhas e de cabelos lisos, cabe uma precisão, a pessoa que o atende é branca e de cabelos lisos. Ele continua a dizer que se tiver que escolher entre uma mulher branca e uma negra, se conhecer melhor a negra, fica com ela.
Numa outra sessão, ao retomar o assassinato da mãe, M. é levado a desculpar o pai, rememorando inclusive situações agradáveis com o pai como: partidas de futebol, passeios em parques, etc. E traz para uma sessão o seguinte material, "sempre é o negro que é o assassino", referindo-se aos programas de investigação policial que costuma assistir na TV. Ele informa ainda que seu pai era negro e sua mãe branca. Ele defende que seu pai só matou sua mãe porque tinha ingerido bebida alcoólica e, também, porque se enganou e tomou o remédio controlado da sua avó paterna, no caso a mãe do pai de M.
Com esta construção fantasística M. tenta isentar seu pai da responsabilidade pelo seu ato. Entretanto, o cenário fantasístico não consegue mais proteger M. que aos poucos vai perdendo seus "referenciais identificatórios e se vê ameaçado de destruição, de desaparecimento sob o que lhe aparece como o gozo do Outro" (Barros, 1995, p. 116). Vemos aí o abalo da função paterna na sua dimensão simbólica.
O que acontece é que o cenário do "crime passional" que envolve a morte da mãe de M. revela para ele um gozo que escapa ao falo, ao registro da lei simbólica da interdição do incesto. Isto porque a leitura que M. faz da cena do assassinato, que poderíamos tomar como uma metáfora da cena primitiva ("comércio sexual dos pais" como dizia Freud), é de que seu pai está em uma posição degradada em relação à sua função simbólica. O entendimento da problemática em jogo pode ser vislumbrado se retomarmos a "cena primitiva".
A "cena primitiva", tema das teorias sexuais das crianças, revela que o comércio sexual dos filhos está associado à criança tomada como objeto de desejo dos pais. Seria o sexo com fins de procriação. Entretanto, o "crime passional" que envolve os pais de M. revela que ele está excluído dos desejos dos pais.
Retomando a sua primeira sessão, constatamos que ele atribui seu mal-estar ao fato da sua vida ter se tornado "turbulenta" depois da morte de seus pais. Porém, ele traz também um outro elemento, aí envolvido, que diz respeito às internações psiquiátricas da avó paterna. Este cenário fantasístico reenvia para M. o real da castração, relançando a questão sobre o seu próprio desejo, que para a psicanálise é o desejo Outro.
O desejo do Outro se fundamenta no mito da mãe fálica, ou seja, na crença da criança da necessidade de se igualar ao objeto fálico do desejo do Outro materno. O pai aí está longe da sua dimensão real, ele funciona, é apenas um pai simbólico, um significante (Nome-do-Pai) que inscreve o fato de que há um terceiro lugar imaginado para além da mãe. Segundo Julien, o pai imaginado é uma criação da criança. Conseqüentemente, é esse pai como imagem que, por definição, é "o objeto mesmo do trabalho analítico" (Julien, 1997, p. 55). Um trabalho de luto desse pai imaginário deve ser feito para franquear ao sujeito o trabalho de construção de um pai real, o pai que pode transmitir a lei do desejo para os filhos.
Na psicanálise com crianças, o percurso que vai do mito à fantasia vai implicar num trabalho de construção de um pai onde este apareça como portador de um desejo que faz da mãe uma mulher. É este pai real que permitirá à criança barrar o Outro e modificar sua posição na fantasia que dava consistência ao Outro e que a aprisionava em um mito que se cumpria como destino.
Para finalizar, trazemos um último recorte de M. que ilustra justamente este trabalho de construção do pai real.
Informado sobre a possibilidade de ser encaminhado para um outro profissional, em razão do afastamento da pessoa que o atendia no Ambulatório do Serviço de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, ele afirma que pensa em continuar porque ainda tem muito trauma. A definição dada por ele para trauma é "conversar sobre morte ou saber se alguém morreu". Fazendo uma retrospectiva, ele revela que o trabalho analítico está em curso, uma vez que declara que quando chegou era "cheio de traumas: não conseguia dormir, sonhava com monstros" (fazendo referência ao sonho com pessoas que não existem).
Atualmente, ele tem retomado o mito da mãe fálica nas suas sessões, trazendo-o à análise ao abordar a temática da loucura.
M. afirma então que "loucura é hereditário, quando vemos um maluco na rua, o filho também é maluco". Fala do remédio psiquiátrico da avó, e afirma que o pai também fazia uso de um remédio controlado, porém era mais fraco que o da avó. Surge em M. então uma vacilação subjetiva, ele enuncia que tem medo. Feita à M. a seguinte pontuação: "você tem medo", ele diz: "de ficar louco não, tenho medo de correr risco, de me arriscar um pouco, tenho medo de morrer, medo de escuro".
Concluindo, a teoria lacaniana trabalhando na vertente de acolher a fantasia do sujeito numa escuta que se eximi de explicá-la, revela ser o desejo do analista, ao apontar sempre para algo de enigmático, que produz um abalo da fantasia e levar uma criança a realizar o luto do pai ideal (Fernandes, 2002). É o desejo do analista que dará sustentação para a criança realizar a operação do luto do pai ideal, franqueando à criança a possibilidade dela "dizer tudo aquilo que é reprovação (...) tudo, inclusive, o que há de mais triste, de mais amargo (...)" (Julien, 1997, p. 58) .
Referências
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Recebido em 02 de junho de 2004
Aceito em 21 de junho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004