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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Leônia Cavalcante Teixeira

Universidade de Fortaleza Prof. Titular dos cursos de Mestrado, Especialização e Graduação da Universidade de Fortaleza; Dr. em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Ms. em Educação (UFC)

 

 

 

Moacyr Scliar
Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
274 p.

Não é inusitada a relação entre Literatura e Medicina e Moacyr Scliar ocupa, sem dúvida, lugar de destaque em ambos cenários no Brasil. Dedicado à saúde pública, suas preocupações com as políticas, especialmente no que dizem respeito à promoção de saúde e à formação médica como Histórias de um médico em formação (1962). Seus textos literários, endereçados ora aos jovens - O irmão que veio de longe (2002), ora a um público geral interessado por boa literatura, versam, prioritariamente, sobre temáticas ligadas à medicina, ao judaísmo e ao social. Dentre ensaios, contos, crônicas e romances, merecem destaque: A orelha de Van Gogh (1988), Sonhos tropicais (1992), Contos reunidos (1995), A paixão transformada: história da medicina na literatura (1996), A majestade do Xingu (1997), A mulher que escreveu a Bíblia (1999), O centauro do jardim (1980), A guerra do Bom Fim (1972), Mês de cães danados (1977), Olho enigmático (1988), Exército de um homem só (1973), dentre outras obras.

Temas como cultura, identidade, memória e sociedade constituem focos de atenção da pena do escritor. Com Scliar, a medicina se escreve via literatura. Em seus textos, literatura, medicina e judaísmo partilham o mesmo território cartografado por um estilo apurado no exercício da feitura de mais de cinqüenta obras. Scliar discorre acerca de temas que são caros às discussões filosófica, artística, antropológica, médica e psicológica. Questões relacionadas ao tempo, à história, à tradição, à modernidade, ao judaísmo, à exclusão, à morte, às migrações e ao êxodo fluem em sua escritura. O fantástico e o mitológico aparecem dessacralizados. Em seus textos, são delineadas e desconstruídas representações da ciência, da Medicina, da História, do corpo, da doença e do doente, da cidade, da adolescência, do judeu, do louco. A sua obra vem sendo foco de inúmeros trabalhos acadêmicos, podendo ser destacados os escritos de B. Waldman, A . Vaz, L.C. Guimarães, G. Silva, G. Bittencourt, A . Beatriz Miranda, M. Remédios, R. Zilberman e M. Cury, dentre outros autores.

Em 2003, Scliar nos brinda com o livro Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil, no qual erudição, estilo e espirituosidade compõem quadros ricos que vão adquirindo tons inesperados que excitam a curiosidade do leitor. Tomando de empréstimo as palavras do autor ao analisar uma suposta dieta melancólica, concordamos com ele quanto à afirmação: "história 'picante' é aquela que as pessoas ouvem de olhos arregalados, boca aberta, salivando até" (p. 139). Nesse sentido, este livro pode ser degustado como um banquete que tonifica o espírito, revigorando-o no embate constante com o sofrimento que nos humaniza.

O desenvolvimento histórico da idéia de melancolia é abordado pelo autor a partir da literatura da antigüidade - de ordem predominantemente fisiológica - , na qual a medicina envereda pelas searas da filosofia considerando os elementos orgânicos - água, ar, terra e fogo - como bases para os estados de saúde e doença. Assim, a melancolia tem origem com a civilização grega, tendo sido Hipócrates (460-375 a.C) o primeiro médico que a tratou como síndrome clínica. Etimologicamente, melancolia deriva de Melaina Chole ou bílis negra: humor que corresponde ao elemento terra. Scliar passeia com desenvoltura pelas concepções de Aristóteles, Areteo da Capadócia e Galeno aspirando, em termos breves, colorir as possibilidades de entendimento da melancolia. É importante ressaltar que as experiências de apatia, tristeza, temor, ódio, desgosto, desconfiança, insatisfação e desejo de morrer foram considerados importantes sintomas, contribuindo para a demarcação do aspecto descritivo que, posteriormente, caracteriza a compreensão da doença mental.

Na idade média, a prevalência teocêntrica envolvia os sentimentos de medo, tristeza e desânimo com o peso demoníaco do pecado e da culpa. Saturno surge no terreno da melancolia como "demônio das antíteses", influenciando o aparecimento ora da preguiça e da apatia, ora da inteligência e do êxtase. O astro da melancolia descende da astrologia árabe, marcando a literatura e a arte antigas e medievais.

É a época do Renascimento que conquista Scliar. Como ele escreve: "o relógio mexeu com a cultura" (p. 13), marcando o compasso de novas ordens temporais e espaciais. Uma nova cartografia existencial se constrói esfumaçando os espaços artístico e geográfico, possibilitando a ultrapassagem de fronteiras, lançando a metáfora do labirinto como defrontamento com o enigma da dúvida.

O autor reconstrói, no item "O mundo como labirinto, o mundo como paradoxo, o mundo como realidade oculta, o mundo (...)", aspectos literários com fineza poética, deixando-se acompanhar por pensadores como Norbert Elias, Gramsci e Schumpeter, bem como pelos escritores Juan de Mena, Goethe, Gérard de Nerval e Paul Celan. A seguir, a alusão à peste ilustra a desenvoltura do autor ao lidar com o campo da saúde pública - traço marcante em toda sua obra. O texto não é marcado pelo olhar de um cientista ou pesquisador, mas recheado de análises metafóricas que iluminam a complexidade do sofrimento humano. À visão organicista somam-se referências enriquecedoras ao mito, à religião, à lenda, ao folclore, enfim, ao saber dos poetas. Ao tratar a lepra e a sífilis, Scliar aborda-as do campo da antropologia da doença, as vicissitudes de estar enfermo em termos sociais e culturais: as doenças têm sentido, elas demandam sentido aos que padecem e àqueles que se propõem a compreende-la. A doença não existe per si. Ela se constrói imersa na profusão simbólica de um recorte espaço-temporal. É nesse sentido que Scliar se dedica ao que chama de "Pequena história da melancolia" (p. 74), ressaltando que é com o homem renascentista que a acedia - ou "melancolia profunda" (p. 74) - passa a não ser concebida como pecado capital, apresentando conotações tanto de tristeza, como de criação artística e intelectual. A melancolia como doença passa a ser enfatizada: "De outra parte, e como doença, a melancolia escapa ao estreito círculo da teologia e passa a ser abundantemente estudada, tanto por médicos como por pensadores, no contexto do interesse pela mente característico do século XVI, o século que vê o nascimento da palavra 'psicologia'" (p. 76).

Aos poucos, Scliar vai desenhando os trajetos da melancolia entre Filosofia, Medicina e Religião, esboçando a complexidade do tema que, na atualidade, tende a ser expurgada da hegemônica leitura organicista da depressão.

Relacionada aos humores, às qualidades, às paixões, às divindades e mitos, à bruxaria, à astrologia e ao folclore, percebemos que a semântica do corpo se fazia ver pela pluridimensionalidade de olhares a ele dirigidos.

Doença? Não havia consenso a respeito. De um lado estavam os adeptos do conceito galênico: melancolia é um distúrbio dos humores. (...) De outro lado, estavam aqueles que, como Vives, seguiam Aristóteles: melancolia é uma admirável condição da mente. Cornelius Agrippa, filósofo e médico fascinado pelas ciências ocultas, garantia que a melancolia estava associada à capacidade de prever o futuro. (...)A melancolia também podia estar associada às paixões.(p. 79).

No tópico "A melancolia na arte e na literatura" (p. 81), Scliar aborda a influência da "epidemia da melancolia" (p. 81) renascentista na arte, especialmente, na arte pictórica. O mundo de Dürer, nas palavras de Benjamin, lembradas por Scliar, "faz-se através das coisas e não das palavras" (p. 85). Albrecht Dürer apresenta os temas da memória, do tempo, do sono, da tristeza, da imobilidade, do isolamento, da sabedoria do espaço, do pensamento, da morte e do luto.

Após discorrer sobre tais temas, Scliar contextualiza a melancolia na Modernidade "como uma péssima notícia, muito pior do que na Idade Média, quando ao melancólico sempre restava a alternativa de tornar-se monge, recolhido ao silêncio de sua cela, ainda que correndo o risco da acedia. A situação agora é diferente. Pessoas de gênio, sobretudo aquelas com suporte material (como os artistas amparados por ricos patrocinadores), podem achar que a melancolia é uma qualidade do espírito; para os outros, ela não passa de excesso de uma substância negra, viscosa, excesso que a sociedade não está disposta a tolerar. Como não está disposta a tolerar a loucura."(p. 94). A nau dos loucos indica a época do encerramento, segundo Foucault, e marca a era dos alienistas, responsáveis em garantir a distância da loucura da sociedade. As obras de Bosch, Bruegel, Dürer e Bouts são tocadas por Scliar, já que afloram representações da morte ligadas à doença. A Inquisição no mundo ibérico e o Santo Ofício no Brasil positivam a culpa como experiência ligada à melancolia.

Scliar toca o tema da melancolia a partir da várias temáticas, como a culpa, a identidade, os médicos judaicos, a dietética, o cérebro, a festa, a máscara, o riso, o sarcasmo, o humor, a avareza, a especulação e o método, a utopia, a premonição, as viagens e as transformações geográficas. Dentre tantas voltas em torno da questão, os estímulos intelectual e erótico e as mobilidades espaço-temporais possibilitadas pelos deslocamentos geográficos atraem o autor na construção dos argumentos do título do livro. O item "Por falar em descobrimentos: a melancolia portuguesa" (p. 145) se ocupa em desenvolver a importância dos empreendimentos marítimos de Portugal, impulsionados por uma idéia de prazer relacionada ao tráfico e à indústria. Nas palavras de Scliar:

povo em busca de afirmação, vivendo num país pequeno e à sombra de um vizinho poderoso, os lusos buscaram no comércio transoceânico e na colonização de regiões distantes uma forma de subsistência e também de auto-afirmação nacional, empreendimento que envolvia cristianização e comércio de especiarias: 'Jesus e pimenta', nas palavras de Oliveira Martins. Jesus e pimenta: o espiritual e o material, o inefável e o picante. Uma combinação que moveu muitas frotas oceano afora. Foi uma epopéia admirável, em termos de arrojo, de coragem, de persistência (p.145-146).

A nostalgia , como explicita o autor, constitui um ingrediente na cultura portuguesa. Assim, nostalgia e esperança marcam a colonização do Brasil.

A "melancólica psique portuguesa" (p.150) contamina a recente cultura brasileira desde seus primórdios. Na segunda parte de livro, Scliar inicia suas reflexões sobre "A melancolia chegando ao trópico com a alusão às "doenças viajando em navios"(p. 170), focalizando obras como as de Paulo Prado (1869-1943) - Retrato de Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira -, Gilberto Freyre - Casa-Grande & senzala -, Sérgio Buarque de Holanda - Raízes do Brasil - e Caio Prado Jr. - História econômica do Brasil. Esses livros são iluminados pelo desnudamento a que submetem o país, abordando a tristeza portuguesa, indígena e negra, bem como "mais tristezas" (p. 199) com os emigrantes. A partir de meados do século XIX, a tristeza toma corpo nas mudanças do sistema agrícola para o industrial, nas contradições do crescimento urbano refletidas na ideologia do pessimismo e no ufanismo. Os antídotos para a tristeza brasileira são lembrados pelo autor por meio da festa, da cachaça, da cordialidade, do humor e da malandragem. No país do carnaval e do futebol - "canibalizados pelo processo de antropofagia" (p. 206) - a "transgressão risonha" (p. 209) mostra-se frutífera de tipos como o meliante e o batedor de carteiras.

A passagem que o autor constrói entre as elaborações que vem tecendo e o item "melancolia na literatura brasileira: Machado de Assis e Lima Barreto" (p. 212) é rápida, aflorando que a leitura fluente da primeira parte do livro - apesar da extensa quantidade de informações históricas - ressalta sua qualidade. Parece-me que as elaborações sobre a melancolia na literatura brasileira podem suscitar maior aprofundamento do autor, embora ressalte que ele destina olhar atento a Machado de Assis, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Clarice Lispector.É por esses autores que Scliar a ponta ser possível traçar o trajeto, cheio de rodeios e desvios, da melancolia européia ao Brasil, "um país chamado Brasil, descoberto por navegadores vindos de um país onde a melancolia tinha uma versão própria, a saudade" (p. 243).

Como indica o autor, o terceiro momento da melancolia ocorre no Brasil: "Havia motivo para tristeza. Não um motivo racial ou constitucional, como pretendia Prado, mas um motivo social, histórico: o genocídio indígena, a escravatura negra, as pestilências, a pobreza."(p. 244).

A finalização do livro nos convida a continuar a acalentar o tema da melancolia, tentando não prendê-la nos parâmetros da biomedicina, mas a esses aproximando a beleza da melancolia inscrita pelo saber dos poetas, filósofos e médicos que vêem a Medicina como arte.

O livro Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil representa um marco na produção teórica sobre a melancolia, podendo iluminar a complexidade do sofrimento melancólico, marcante no discurso e na singularidade de quem padece. Os olhares poético e médico de Scliar fertilizam o solo, muitas vezes árido demais, de compreensão do mal-estar que marca o humano, abrindo searas nas quais a radicalidade da experiência do sofrimento tenha lugar primordial, denotando a não fácil apreensão do espírito em classificações nosográficas.

 

 

Recebido em 18 de junho de 2004
Aceito em 30 de junho de 2004
Revisado em 10 de agosto de 2004

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