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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

O aparato de combate ao crime e a sensação de insegurança

 

 

Maria Léa Monteiro de Aguiar

Jornalista. Doutora pela UFRJ. Assessora de Imprensa do IBGE. Redatora Jornal do Brasil. Repórter O Estado de São Paulo. Repórter e Editora da TV Cultura. End. Rua Tiradentes, 107/2305 — Ingá, Niterói. Rio de Janeiro. Cep. 24.210-510. e-mail: laguiar@ibge.gov.br

 

 


RESUMO

Os gastos do Estado com as forças da lei e da ordem crescem no mundo inteiro, com o pretenso propósito de garantir segurança aos cidadãos. Não obstante esses gastos cada vez maiores com equipamentos de segurança, efetivos policiais, construção de prisões e com um crescente encarceramento de pessoas, a sensação de insegurança permanece e chega ao limite do suportável nos grandes centros urbanos. O sentimento subjetivo de insegurança parece aumentar em função mais do aparato de combate ao crime que do crime propriamente. A sensação de insegurança cresce, sobretudo por estar o aparelho repressivo voltado para a vasta camada de população mais pobre, que, evidentemente, é mais numerosa que a do topo social. Dessa ligação fictícia entre a criminalidade e a pobreza, advém o medo exagerado que as classes mais abastadas vêm desenvolvendo contra os guetos e os enclaves populacionais habitados por pobres, nas metrópoles. Não por acaso, são esses guetos os grandes fornecedores da população carcerária, que se agiganta no mundo todo, provocando, por sua vez, mais exclusão, revolta e, conseqüentemente, mais insegurança. A crise da segurança tem sido uma constante nas sociedades modernas e cresce junto com a urbanização. Por outro lado, os crimes violentos exercem uma verdadeira sedução sobre as pessoas, recebendo, em conseqüência, um tratamento privilegiado nos meios de comunicação de massa. Desse modo, essa crise pode ser uma construção política sobre um problema que é crônico no meio urbano impessoal. O sentimento de "estar seguro", portanto, talvez só possa ser proporcionado pelas comunidades, mas nem os guetos de excluídos, nem tampouco as fortalezas de segurança que os ricos constroem em bairros protegidos, podem ser assim denominados.

Palavras-chave: segurança, prisão, comunidade, guetos, criminalidade


ABSTRACT

State spending on law enforcement and security is increasing world wide with the expectation that it will improve public security.Despite these ever larger expenditures on security equipment, police officers, prison construction and to pay for the jailing of more and more criminals, a feeling of public insecurity remain. In some large urban centers this insecurity has reached almost unbearable levels.The subjective feeling of insecurity seems to grow as a result of the anti-crime apparatus rather than as a result of crime itself. This is largely because efforts to repress crime are directed at the poorer population, a population that is more numerous than the social and economic elite. The fictitious connection between criminality and poverty results in the exaggerated fear that wealthier groups are developing against areas of concentrated poverty, especially in large urban areas. It's not by accident that these ghettos are the main sources of the prison population, which is growing throughout the world, provoking more exclusion and revolt and as a consequence, more insecurity. The public security crisis has been a constant theme in modern society and grows along with urbanization. On the other hand, violent crimes exercise a seductive force over people and receive, in turn, privileged treatment in the mass media. As a result, the public security crisis may be a political construct designed to deal with a chronic problem inside the impersonal urban world. The feeling of "being safe'', as a result, is perhaps something that can only be measured by communities, but the neither the ghettos of the excluded nor the security fortresses that the rich construct in protected neighborhoods can be called communities.

Keywords: security, prision, community, ghettos, criminality


 

 

O confinamento espacial, o encarceramento, sob variados graus de severidade e rigor, tem sido, em todas as épocas, o método primordial para lidar com setores inassimiláveis e problemáticos da população, difíceis de controlar. Os escravos, por exemplo, eram confinados nas senzalas. Também eram confinados os leprosos, os loucos e os de etnia ou religião diversas das predominantes (Baumann, 1999, p. 114).

No Brasil, até a vadiagem já foi motivo de aprisionamento, assim como a prática da capoeira ou o exercício do samba. A separação espacial que produz um confinamento forçado tem sido, ao longo dos séculos, diz Baumann, uma forma quase visceral e instintiva de reagir a toda diferença, particularmente à diferença que não pode ser acomodada ou que não se deseja acomodar na rede habitual das relações sociais.

Quando a intimidade das relações pessoais prevalece na vida diária, o clamor por retribuição ou punição do acusado é superado mais facilmente, sem a invocação do uso da lei penal. No entanto, dado o grau de urbanização crescente, vive-se, inevitavelmente, entre pessoas desconhecidas e que, provavelmente, jamais se conhecerão. Sendo assim, a tendência das sociedades atuais é A de dar o significado de crimes aos atos vistos como indesejados ou, simplesmente, aos atos praticados por pessoas indesejadas.

 

Por que atos indesejados se tornam crimes e pessoas indesejadas, criminosas?

Para o sociólogo do direito, Thomas Mathiesen (in Baumann Lei global, ordens locais), dada a intenção seletiva dos legisladores de atacar a base e não o topo, da população as ações cometidas por pobres mortais têm mais chance de aparecerem nos códigos criminais nacionais. Até mesmo ações aparentemente inocentes, como as de jogar no bicho, lutar capoeira ou cantar samba foram ou são criminalizadas, como uma forma de ter sempre um motivo à mão para justificar o encarceramento de pessoas ou grupos indesejáveis. Roubar nações inteiras, comunidades inteiras, jamais foi incluído entre os atos criminosos passíveis de punição; ademais, são notícias com grau de complexidade maior e espetaculosidade menor.

Além de não oferecerem espetáculo tão fascinante como os dramas resultantes de julgamentos de ladrões e assassinos, as leis criminais são locais, ao passo que as elites atuam globalmente e obedecem a leis supranacionais ou internacionais de mercado.

Tudo isto converge para um efeito comum: a identificação do crime com os desclassificados. Até mesmo na visão dos mais pobres, os tipos mais comuns de criminosos vêm da "base" da sociedade. Sendo assim, os guetos urbanos e as zonas favelizadas são consideradas, quase acriticamente, áreas produtoras de crimes e de criminosos.

Para Loïc Wacquant (2001b), no seu livro Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos EUA, o Estado-Providência foi substituído por um Estado-Carcerário e Policial, no seio do qual a criminalização da marginalidade e a contenção punitiva dos atos das categorias deserdadas fazem as vezes de política social.

Desde o início, tem sido altamente discutido se o pretenso propósito das casas de correção de reabilitar os internos foi alguma vez atingido. Citando o sociólogo do direito, Thomas Mathiesen, este afirma no livro Prison on Trial que, "em toda a história, a prisão jamais reabilitou pessoas na prática, jamais possibilitou sua 'reintegração'"; Baumann (1999, p. 118) resalta que hoje, até mesmo estas "boas intenções" foram abandonadas e se, em outras épocas, a prisão já foi uma forma de controlar a oferta de mão-de-obra, hoje ela é antes uma alternativa ao emprego, neutralizando uma parcela da população para a qual não há trabalho que possa absorvê-la e possibilitar-lhe a reintegração nas relações sociais vigentes. Não importa o que façam em suas celas, importa que fiquem ali. As modernas prisões americanas praticam simplesmente a exclusão e a imobilidade forçada.

Nenhuma evidência foi encontrada até hoje para provar que as prisões desempenham, na prática, os papéis a elas atribuídos em teoria. Além disso, pergunta Baumann, qual é a base moral para se punir alguém? A questão é tanto mais preocupante, quando se sabe que "aqueles que punimos são, basicamente, pessoas pobres e estigmatizadas, que precisam mais de assistência que de punição".

Os gastos do Estado com as forças da lei e da ordem crescem em todo o mundo, assim como a população carcerária, que, ainda que distinta em cada país, acompanha o mesmo fenômeno universal. Segundo Wacquant (2001), em As prisões da miséria, a população carcerária nos EUA aumenta numa velocidade vertiginosa, dobrando em dez anos e quadruplicando em vinte, fato sem precedentes em uma sociedade democrática,. O número de pessoas encarceradas cresce a uma taxa de 9% ao ano, ou seja, dois mil detentos por semana durante a década de 90, chegando a 2,5 milhões em 2000. Se estivessem todos em uma cidade, esta, diz Wacquant, seria a sexta metrópole mais populosa do país.

 

Tensão em torno da segurança

Muita tensão acumula-se em torno desse tema e qualquer medida voltada para promover a segurança é incomparavelmente mais espetacular que atitudes e gestos voltados para combater as causas mais profundas do mal-estar atual da civilização, diz Baumann. O combate ao crime, assim como o próprio crime, e, particularmente, o crime contra o patrimônio e a propriedade privada, dão excelente audiência e despertam extraordinário interesse em todas as camadas sociais.

A construção de novas prisões, a redação de novas leis que multiplicam as infrações puníveis com prisão e o aumento das penas fazem crescer a popularidade dos governos, dão-lhes a imagem de severos, capazes, decididos e carregam uma espetaculosidade tal, que escondem a sua (in)eficácia.

Num mundo globalizado financeiramente, os governos locais são pouco mais que superdistritos policiais, tendo como as principais funções varrer mendigos e perturbadores das ruas, erguer muros e prisões, instalar câmeras e equipamentos de segurança, enfim, investir na suposta segurança e bem-estar dos munícipes. Sendo assim, as tarefas do "estado ordeiro" resumem-se à tarefa de combate ao crime.

 

Sensação de insegurança ou insegurança de fato

A chamada "crise da segurança" tem sido uma constante nas sociedades modernas e cresce junto com o fenômeno da urbanização. Hoje, no Brasil, a população urbana representa 81,2% do total da população, contra 76,6% em 1996, segundo dados do Censo 2000, divulgados pelo IBGE. No Rio de Janeiro, a situação é ainda mais grave, com a taxa de urbanização chegando a 96,04% no ano 2000, com 13,7 milhões de pessoas, das 14,3 milhões do total da população do estado, vivendo nas cidades.

Os fatos violentos, por seu turno, exercem, de fato, uma espécie de sedução sobre as pessoas, como diz Muniz Sodré (no artigo A Sedução dos Fatos Violentos, 1996), ao atribuir a esse fenômeno diversas causas, entre elas o prazer desfrutado graças ao mal de outrem ou até à função de descarga e controle equilibrador das pulsões agressivas ou sadomasoquistas dos consumidores/leitores.

A crise de segurança, pois, pode, mais que uma crise, ser uma construção política sobre uma situação de insegurança que é crônica no meio urbano. O medo do delito, sim, seria mais importante, social e politicamente, que o delito mesmo. "O sentimento de insegurança se converteu em um problema centralmente político, que aparece em todos os discursos e programas eleitorais, com escandalosa presença nos meios de comunicação de massas" (Lola Aniyar, 1999b, p. 5).

E o Estado é, de fato, o proprietário desse problema, uma vez que só ele tem, nas sociedades modernas, o monopólio do controle da violência, na acepção usada por Max Weber (1970, p. 56). A construção do arcabouço democrático culmina, justamente, com a retirada dos cidadãos da prerrogativa de usarem a violência para fins particulares. É ao Estado que cabe a imposição da ordem pública, através de mecanismos coercitivos, regulados por restrições legais que regem a conduta dos oficiais.

 

O uso legítimo da força pelo Estado

A segurança pública tem caráter de bem coletivo - nenhum cidadão pode ficar à margem desse direito, independente de sua maior ou menor contribuição. Ao concentrar no Estado e em suas instituições de controle social o monopólio do uso legítimo da violência como meio de atingir os fins, a polícia implementa, em cada esquina, a função essencial do Estado: a imposição coercitiva das regras de comportamento que uma determinada sociedade estabeleceu (Paixão, 1998).

Ocorre que, no Brasil, segundo Márcia Regina da Costa (1999), o Estado, além de não dar segurança, sempre exerceu a violência (na suposta pretensão de garantir a segurança) em nome da manutenção dos interesses privados dominantes, ou não foi capaz de coibir a violência e o arbítrio praticados por seus representantes, contra os cidadãos.

Por conseguinte, a insegurança nos grandes centros urbanos fez com que a segurança deixasse de ser um bem público para tornar-se privilégio de pessoas que podem pagar por ela. Dessa forma, a insegurança passa a atingir, principalmente, as zonas mais desprotegidas. Por essa razão, "é preciso exercer um controle mais estreito, tanto na teoria como na prática, das polícias privadas que compram as classes média e alta" (Costa, 1999, p. 3).

 

O que é um crime?

Um crime, por definição, é o que o Código Penal de um país registra como crime — tudo que ali está é crime e também apenas o que ali está descrito. Se não há um código penal, não há crime. Se se mudam as leis, certos atos deixam de ser crimes e outros passam a sê-los. E, pelo Código Penal Brasileiro, são crimes: o aborto (art.125); deixar de prestar assistência à criança abandonada, da pessoa inválida, ferida ou ao desamparado, ou não pedir o socorro da autoridade pública (art.135); caluniar alguém (art.138); difamar alguém (art;139); injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade e o decoro (art.140); deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes (o REFIS — que é o programa de refinanciamento que o governo está oferecendo aos empresários incursos neste artigo 168, para refinanciarem suas dívidas com o INSS pelo prazo de 180 meses - comprova a boa vontade do governo para com certos crimes. A pena para a infração deste artigo é de dois a cinco anos de reclusão, mais multa); apropriar-se de coisa achada sem devolver à autoridade competente no prazo de 15 dias (art.169); emitir cheques sem fundos (art.171); emitir fatura ou duplicata que não corresponda à mercadoria vendida (art.172); enganar, no exercício da atividade comercial, o adquirente ou consumidor (art.175); violar direito autoral (art.184 — as máquinas xerox de todo o país que o digam); seduzir mulher virgem, menor de 18 e maior de 14 anos (art.217 — pena de dois a quatro anos); prostituição (vários artigos, de 227 a 230); praticar ato obsceno em público (art.233 — pena de três meses a um ano, com multa); deixar de prover a instrução primária do filho em idade escolar (art.246); enfim, a lista é exaustiva e quem, em sã consciência, pode dizer que nunca cometeu um desses crimes? Sem falar na bigamia (art. 235 — dois a seis anos) e no adultério (art.240 — detenção de 15 dias a seis meses).

Portanto, não há objetividade alguma em se dizer que uns são criminosos e os demais, guardiães da lei. Alguns são perseguidos e, para esses, achar-se-á sempre um artigo em que possam estar enquadrados.

Ainda que se reconheçam as causas da criminalidade como inúmeras e complexas, e que até mesmo o conceito de criminalidade seja discutível - variando conforme a época, o lugar e as forças dominantes em uma determinada conjuntura político-econômica-social — sempre que se anuncia uma política pública de combate ao crime e à criminalidade, o vezo político é o mesmo, o de dirigir-se a um segmento da sociedade: o das classes mais baixas.

A criminalidade, no entanto, segundo os mais recentes conceitos da Nova Criminologia, não é um comportamento de uma restrita minoria, mas, ao contrário, um comportamento de largos extratos ou mesmo da maioria dos membros de uma sociedade (Baratta, 1999).

 

Os crimes que não são crimes

A tentativa de se compreender uma política penitenciária não pode deixar de levar em conta que ela é apenas uma das partes da Política Criminal, da qual fazem parte ainda a política judiciária e a política de segurança. Se a Criminologia interpreta uma realidade, é à Política Criminal que cabe transformar ou não esta realidade. É esta decisão política que transforma o ilícito em crime (o ato legislativo que o vincula a uma pena) e que, justamente por isso, obedece aos interesses da classe política dominante e não a princípios éticos ou morais. O que equivale a dizer que o Estado primeiro cria, ou inventa o crime, para depois combatê-lo (Batista, 1996, pag. 21).

Desse modo, embora a população assista, diariamente, ao desfilar constante, diante de seus olhos, de uma infinidade de "atos reprováveis pela moral e ética" que o senso comum poderia considerar crimes, porque lesam a sociedade, eles não a são, ou seja, ainda não foram inventados ou definidos como tal, pelo Estado.

O crime do colarinho branco, como foi definido originalmente por Edwin Sutherland (Castro, 1982), é aquele cometido por uma pessoa de respeitabilidade e alto status socioeconômico, no exercício de suas atividades empresariais. O custo econômico de um só destes delitos pode ser maior do que todos os furtos e roubos que se cometem em um ano, num país.

Apenas a observação dos noticiários demonstra, na prática, que as condutas delitivas são praticadas indistintamente por pessoas de todos os setores. Assim como as classes mais baixas roubam, furtam e matam, os setores mais altos têm seus delitos e infrações consideradas como "ilegalismos", apenas. Tanto os delinqüentes de colarinho branco, como os convencionais aprendem suas condutas num processo de comunicação simbólica, de aquisição de técnicas e de organização, que são diferentes apenas porque são diferentes as suas motivações, seus meios e suas oportunidades (Santos & Delgado, 1986).

Entretanto, o público percebe mal o caráter delitivo desses fatos, considerando-os com mais indiferença que os convencionais, e não crêem que seus autores sejam mais perigosos que os últimos (Castro, 1982). Mesmo quando existem sanções previstas, diz a criminóloga, há uma grande dificuldade em descobri-los e denunciá-los, tendo, como conseqüência, a impunidade.

A impunidade de direito decore do silêncio frente a certas condutas. Na verdade, diz ela, obedece a diversas causas: "o forte poder econômico e social dos autores; a cumplicidade das autoridades; a privacidade que rodeia a vida e as atividades dos autores e a complexidade das leis especiais, que podem ser manipuladas por hábeis assessores jurídicos e contábeis" (Castro, 1982, p.165).

Um outro elemento que colabora fortemente para a impunidade é a organização, descrita por Sutherland (Castro, 1982), como um verdadeiro delito organizado. E o fato de que seja cometido por grandes corporações torna mais difusa a responsabilidade penal. A organização, na maioria dos casos, inclui uma complicada máquina para manter a corporação fora do alcance da lei.

 

Interação com o poder político

Os crimes de colarinho branco estão, sempre, fortemente conectados com a estrutura de poder político, diz Lola Aniyar, dada a interação que, nos sistemas da América Latina, existe entre o poder econômico e os governos.

As investigações sobre este tipo de crime encontram grandes barreiras em qualquer parte, não apenas pela sua incidência nula nas estatísticas ou em qualquer outra fonte de informações, mas porque as organizações políticas não as consideram uma área prioritária, por razões óbvias. As implicações políticas típicas desse tipo de investigação impedem a colaboração das autoridades e, tampouco, os empresários delinqüentes estão dispostos a colaborar para a solução de crimes como este.

O trabalho de Cândido Furtado Maia Neto, A Criminologia e a Política Criminal na América Latina (1985), enfoca a desproteção do cidadão e, em conseqüência, sua insegurança frente aos poderes econômicos e sociais. A impossibilidade de o Estado oferecer tutela jurídica à maioria da população é atribuída à politização dos sistemas de justiça e à predominância dos interesses grupais no Brasil. O direito penal difuso, diz ele, não oferece às comunidades lesadas a segurança jurídica, simplesmente porque deixa de castigar certas condutas, ainda que estejam criminalizadas em códigos e leis penais especiais.

As políticas criminais na América Latina não estão definidas para apreender o criminoso de colarinho branco. As ações do governo, nesse campo, são de repressão à delinqüência nas ruas, destinando-se a polícia à proteção do sistema, caracterizando-se, nitidamente, como uma instituição política (Maia Neto, 1985). As representações que o poder público têm sobre o delito de colarinho branco e sobre o delito convencional são, portanto, diferentes, e o sistema punitivo latino-americano, como um todo, só se interessa pelos atos ilícitos perpetrados pelos politicamente selecionados, os desprotegidos.

Nilo Batista (1997) fala no bom delinqüente e no mau delinqüente, dois clientes distintos do sistema penal e alvos de duas Políticas Criminais também diferentes. O primeiro é, antes de tudo, um consumidor, que deve ser preservado e poupado do ingresso na penitenciária, sob o argumento do "contágio prisional". Já o segundo é um "infrator perigoso", que só se converte em eventual consumidor pelo produto do crime e, para este, recomenda-se drástica repressão e o maior tempo possível sob o mesmo "contágio prisional", que é evitado para o "bom delinqüente". Como resultado dessas duas Políticas Criminais distintas, é natural que, na ponta do sistema, no nível mais próximo da população, que é a esfera policial, os comportamentos também sejam diferentes.

Sendo a segurança pública um dos tripés da Política Criminal, é natural que ela se oriente pelo mesmo padrão de comportamento, como efeito de um maniqueísmo que se manifesta continuamente nas diversas engrenagens do aparelho repressivo de Estado.

As (i)legalidades da classe dominante, segundo Foucault, sobrevivem através do confinamento das (i)legalidades das classes dominadas (Cerqueira & Neder, 1997), sendo a lei sempre uma composição de ilegalismos, que ela diferencia ao formalizar. Basta considerar o Direito das sociedades comerciais, diz Delleuze (1988) no seu estudo sobre Foucault, para comprovar que as leis não se opõem à ilegalidade, mas se organizam de tal forma que umas não cumprem as outras. A lei seria, então, uma gestão desses ilegalismos, permitindo alguns, tolerando ou inventando outros, seja como privilégios das classes dominantes ou como compensação para as classes dominadas. E, assim, as mudanças na lei são, em essência, uma nova distribuição dos ilegalismos, entre outras razões, porque as infrações tendem a mudar de natureza.

Emílio Garcia Mendez, investigador do Instituto de Maracaibo, denunciava já no Primeiro Seminário de Criminologia Crítica, ocorrido em Medellin, em 1984 (apud Castro, 1999a), como as formas de controle dos delitos de colarinho branco, aqueles praticados por pessoas poderosas, aparecem somente em instrumentos normativos outros, que não os penais, como as Leis Especiais, Códigos do Comércio, do Meio ambiente, Lei das S/A etc., despojando-os, assim, do caráter estigmatizador que o Código Penal confere.

Lola Aniyar Castro (1982, p. 167), em Delito de Colarinho Branco e sua Incidência na América Latina, lembra que Sutherland identifica o homem de negócios com ladrão profissional, por apresentarem diversas características comuns: 1) ambos são, geralmente, reincidentes; 2) suas condutas ilegais são, freqüentemente, mais amplas do que indicam as acusações e denúncias; 3) não perdem seu status entre os associados (o prestígio se perde apenas por uma violação do código de negócios, não pela violação do código penal); 4) ambos expressam desprezo pelas leis, pelo governo e pelos funcionários da administração pública; 5) seus atos são deliberados e organizados; 6) fazem uso de linguagem cifrada para comunicarem-se entre si e 7) geralmente preferem o anonimato e a discrição.

Segundo Cândido Maia Neto (1995), é preciso haver uma mudança radical e isto só pode vir da auto-reflexão crítica da violência estrutural. E a auto-reflexão tem que partir dos protagonistas do sistema judiciário, juízes, advogados, que são também professores universitários da carreira de Direito. A nova maneira de estudar o Direito Penal e a Criminologia corresponde a um movimento social pelos Direitos Humanos. Hoje, diz ele, o Direito é ensinado como uma ciência neutra e politicamente imparcial, apenas para punir e reprimir as classes inferiores, os únicos cidadãos "vulneráveis" ao sistema repressivo do Estado.

Em seu trabalho O Sistema de Justiça Criminal no Brasil: Dilemas e Paradoxos, Kant de Lima (2000) afirma terem os cientistas sociais, nos últimos 20 anos, insistido na presença de princípios paradoxais e nas características ambíguas da sociedade brasileira — prega a igualdade entre os indivíduos, mas convive com uma visão implícita, mas claramente detectável, de mecanismos que asseguram a desigualdade.

Desigualdade, diz ele, inconcebível em uma república, mas que mostra o grau de iniqüidade em que nossa sociedade se move. Como exemplo, cita a legislação processual penal, que admite tratamento diferenciado a pessoas acusadas de cometer infrações, não em função das infrações, mas em função da qualidade dessas pessoas, consagrando até a instrução superior como um desses elementos de distinção.

Como, identifica magistralmente Kant de Lima (2000, p. 2), "tudo isso não está na lei sem que esteja antes na sociedade. O Código de Processo Penal apenas expressa a cultura presente em nosso cotidiano, responsável pela naturalização do que se convencionou chamar de práticas autoritárias — categoria que define o abuso de poder em sociedades igualitárias, mas que os antropólogos preferem denominar de hierárquicas, justamente porque não se constituem em abuso, mas em cumprimento de preceitos estruturais de desigualdade".

Os delitos dos poderosos e a corrupção do Poder Judiciário "nos descortinam um panorama de criminalidade muito diferente daquele dos Códigos Penais e dos livros de Criminologia, que começam por capítulos, rigorosamente repetitivos e retóricos, sobre definição (causas do delito, tratamento); métodos (indutivo, dedutivo); objetivos; relações com outras ciências; pobreza e criminalidade, delito e raça, e, assim, sucessivamente" (Castro, 1999a, p. 7).

 

Elites de colarinho sujo, ou dirty collar

Como a comprovar que os crimes são cometidos, indistintamente, por toda a população, começa a aparecer nos noticiários uma outra configuração delituosa mais recente, ou de divulgação e publicização mais recentes: os crimes cometidos por jovens das classes médias e altas. E os delitos mais comuns são os mesmos dos jovens favelados: tráfico, uso de entorpecentes (muitos atuando como "aviões" do asfalto), furtos e roubos de carros. Esses crimes já correspondem a 30% do total dos casos. Ainda que pouco notificados, alguns dos crimes convencionais de maior repercussão ocorridos no Rio e em São Paulo, ultimamente, estão associados a esse perfil.

Nesse caso, a "máquina de prevenções" tradicional contra a violência não pode ser acionada. Não haveria como interagir, preventivamente, contra esse grupo não estigmatizado. Como isolá-lo? Aquela representação de si próprios como grupo, o we-group de que fala Norbert Elias (2000), como o grupo mais valioso da sociedade, é atingida, no sentido de confundir a falsa representação da realidade que um grupo social tem a respeito de si próprio e de seus respectivos valores.

Como se depreende, são crimes que já estão "inventados", mas que não fazem parte das estatísticas, nas quais estão super-representados os crimes cometidos por integrantes das classes mais baixas (a criminalidade de rua, de natureza mais violenta) e que apresentam mais visibilidade na imprensa, na polícia e no Judiciário; pouco representados os das classes médias e, com representação quase nula, a criminalidade de colarinho branco, praticada pelas elites financeira, industrial, comercial ou política, produtoras de danos mais intensos, tanto à vida e à saúde da coletividade, como ao patrimônio social e estatal.

O fato de essa criminalidade ter como origem o próprio modo de produção e organização da sociedade capitalista, aliado à posição de poder dos autores, explicam essa exclusão das estatísticas. Seria o caso de se perguntar, como Lola Aniyar de Castro (1999a, p. 7), em seu trabalho O triunfo de Lewis Carroll, "como podíamos nos ocupar do ladrão da esquina, do homicida do bairro, quando tanta delinqüência de outro tipo, massiva e prepotente, se estende de um lado a outro de nosso continente?"

Os crimes não são privilégio de uma parte "podre", "defeituosa" ou "doente" da sociedade. Utilizando-se os mesmos elementos de divulgação e de publicização, com os quais se cria o clima de insegurança a propósito dos crimes convencionais, poder-se-ia, num exame empírico e rápido, comprovar o caráter delitivo do conjunto da sociedade, não sendo, portanto, a criminalidade do poder econômico e político um fenômeno irregular ou acidental, mas regular e institucionalizado, ligado estruturalmente à organização política e econômica da sociedade capitalista (Cirino, 1981).

Esses crimes não inventados são, portanto, resultantes da superestrutura ideológica e jurídica, que legaliza a violência de criminosos reais, aqueles em posição de influência e poder nos quadros da ordem econômica e política.

A lei configura-se, assim, como uma expressão direta dos interesses das classes dominantes, ao definir o comportamento criminoso e a norma que o expressa.

 

A busca da segurança no mundo atual

Ainda que a Criminologia Liberal, ou Crítica, demonstre, ao estudar a cifra negra e os crimes de colarinho branco, que o comportamento criminoso se distribui por todos os grupos sociais, e que a nocividade social das formas de criminalidade dominantes é muito mais grave que toda a criminalidade realmente perseguida, é na violência ocorrida nas ruas, com seus pequenos crimes, que os governos identificam o inimigo a ser combatido — a grande fonte de insegurança nas grandes cidades.

No entanto, diz Baumann (2003), em Comunidade: a busca por segurança (no capítulo O nível mais baixo: o gueto), este Estado, armado com os meios de coerção e que, supostamente, teria poderes para corrigir as injustiças, está sumindo de nossas vistas. Esperar que o Estado faça algo de palpável para mitigar a insegurança, diz ele, não é muito mais realista que esperar o fim da seca por meio de uma dança da chuva. A "defesa do lugar", vista como condição necessária à segurança, deve ser uma questão do bairro, um "assunto comunitário". Onde o Estado fracassou, poderá a comunidade fornecer aquele "estar seguro".

A segurança das condições existenciais, diz Baumann, dificilmente pode ser comprada com os recursos da conta bancária. O que ele chama de "os globais", essa elite voadora, pode obter o equivalente da haute couture da indústria de segurança, construindo fortalezas, espécies de abrigos nucleares pessoais que, erroneamente, se chamam de comunidades. Dada a intensidade do medo, diz Baumann, se não existissem estranhos, estes teriam que ser inventados. E eles são efetivamente inventados pelos circuitos fechados de TV, pela vigilância defensiva, pelos guardas armados até os dentes, de tal modo que eles criam seu próprio objeto: o alienígena, como uma ameaça. São o que Loïc Wacquant (in Baumann, 2003) chama de guetos voluntários, cujo propósito é impedir a entrada de estranhos. Seu efeito sufocante é uma "conseqüência não prevista", ou um efeito colateral.

Canalizar a incerteza existencial para uma busca frenética por segurança, diz Baumann, funciona como todas as demais profecias: uma vez iniciada, tende a dar motivos, razões e justificativas para a ação original.

Por outro lado, outra parte da população vive nos verdadeiros guetos, que são a sedimentação da rejeição, de que fala Wacquant, como os guetos de negros americanos ou as áreas ocupadas por imigrantes nas metrópoles européias. Nesses guetos, não se pode estar livre do poderoso estigma territorial ligado à moradia numa área publicamente reconhecida como "depósito de pobres", de casas de trabalhadores e de grupos marginalizados.

Nos seus estudos sobre o gueto, Wacquant (in Baumann, 2003, p. 108) afirma que "ser pobre numa sociedade rica é ter o status de uma anomalia social e ser privado de controle sobre sua representação e identidade coletivas. Esta privação simbólica, diz ele, torna seus habitantes verdadeiros párias modernos".

A guetificação é parte orgânica do sistema, uma vez que os pobres, não sendo mais úteis como "exército de reserva da produção", se tornam consumidores incapazes e, portanto, inúteis. Segundo Baumann (2003, p. 109) a guetificação "é paralela e complementar à criminalização da pobreza, havendo uma troca constante entre os guetos e as penitenciárias, uma servindo como fonte para a outra. Guetos e prisões são dois tipos de estratégia para prender os indesejáveis ao chão".

Desta forma, enquanto o capital solicita menor influência do Governo para sua livre ação, exige, por outro lado, mais governo para os marginalizados pelo sistema produtivo. Liberal para certas atividades e totalitário para outras.

A vida nos guetos não sedimenta a comunidade, diz Baumann (2003, p. 110) "compartilhar o estigma e a humilhação pública não faz irmãos os sofredores, antes alimenta o escárnio, o desprezo e o ódio". Um gueto, para Baumann, não favorece os sentimentos comunitários, ao contrário, é propício à desintegração social. Gueto, resume Baumann, quer dizer impossibilidade de comunidade.

Paradoxalmente, apenas uma verdadeira comunidade estaria em condições de oferecer a segurança que o Estado já não é mais capaz de prover, entretanto, nem as fortalezas de segurança que os ricos compram podem ser chamadas de comunidade, nem tampouco os guetos (no caso brasileiro, as favelas), para onde são alijados e segregados os excluídos do capitalismo, podem ser assim denominados.

 

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Recebido em 20 de novembro de 2004
Aceito em 08 de janeiro de 2005
Revisado em 20 de junho de 2005

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