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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

A construção de um passado

 

 

Marília Amaro da Silveira Modesto Santos

Psicóloga. Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP. End: Rua Buarque, 97, Vila Inah, São Paulo-SP, CEP: 05618-060. e-mail: mariliaasm@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este texto se propõe a sugerir caminhos, levantar dificuldades e fazer sugestões sobre as possíveis trajetórias a serem percorridas na sala de análise com pacientes que apresentam algum prejuízo na transmissão psíquica geracional. Usando como referencial a vivência clínica com pacientes da terceira geração de imigrantes que vieram ao Brasil à procura de um abrigo, devido a traumas catastróficos, pude observar que esses pacientes necessitam que a nossa atenção fique voltada para alguns pontos importantes de suas vidas que serão enumerados neste texto. Faz-se necessário pensar em uma maneira de trabalhar com esses sujeitos na clínica psicanalítica, levando-se em conta as variáveis abaixo: muitas vezes a cultura desses pacientes pode ter ficado relegada; o trauma que a imigração pode ter deixado; as catástrofes que puderam ter ocasionado a imigração e o sentimento de estranheza que muitas vezes acompanha o estrangeiro e aquele que o hospeda. Devido à singularidade de cada sujeito observado, este trabalho não deve ser lido como um manual, como um compêndio de regras, mas como um conjunto de sugestões para a exploração de algumas possibilidades de escuta na clínica psicanalítica e como uma discussão das principais dificuldades encontradas no processo de análise com esses pacientes.

Palavras chaves: transgeração, imigração, cultura, estranho, estrangeiro.


ABSTRACT

This article intends to propose ways, raise some difficulties and make suggestions on possible paths to be explored during psycho-analysis with patients who present some loss in their psycho-generational transmission. Using as a reference clinical experience with third generation immigrants whose families came to Brazil seeking for shelter due to catastrophic traumas, it was possible to observe that those patients need our attention to be focused on some important points listed in the text. It is necessary to develop a way of working with those patients during clinical psycho-analysis taking into consideration these variables: Often, the culture of those patients may may have been neglected; The trauma the immigration could be caused; The catastrophes which could have caused the immigration and; The feeling of awkwardness which, many times, accompanies the foreigner and those shelter them. Due to the singularity of each patient observed during the study, this work should not be read as an instructions manual, as list of rules, but as a body of suggestions on the exploration of some possibilities of listening within psycho-analisis and as a discussion of the main difficulties one finds during the analytical process with those patients.

Key works: transgeneration, immigration, culture, foreign, foreigner


 

 

"ALGUÉM DEVE REVER, ESCREVER E ASSINAR OS AUTOS DO PASSADO ANTES QUE ALGUÉM LEVE TUDO A RASO".
CORA CORALINA. (2002).

O estudo sobre a transgeração nos fez pensar nos caminhos percorridos nas análises de pacientes que têm um prejuízo na transmissão psíquica geracional, por descenderem de imigrantes que, por diferentes motivos, tiveram de deixar a sua pátria.

Este trabalho parte da experiência clínica vivida com pacientes que traziam um fato comum em suas histórias passadas: eram a terceira geração de imigrantes. Coincidentemente apresentavam, de diferentes maneiras, alguma paralisia psíquica (dificuldades em abstrair, associar, simbolizar). Atribuímos essa paralisia a um prejuízo na transmissão psíquica geracional ocorrida na geração que imigrou.

As causas das imigrações são muitas, como, por exemplo: asilo político, refúgios de guerras, razões econômicas, procura por uma vida decente etc. Qualquer que seja o motivo da imigração ela é, na maioria das vezes, traumática. (Nathan, 1987, apud Morro, 2004 p. 8).

Para embasar melhor nossa proposta, descreverei primeiro o que vem a ser transmissão psíquica geracional, baseando-me principalmente nos estudos de Abraham e Törok (1995) e Corrêa (2000):

• ela se refere à passagem de normas, valores, costumes e cultura de uma geração à outra e é fundante da vida psíquica que se processa no inconsciente;

• ela parte do pressuposto de que a nossa vida é traçada bem antes de nascermos, e que a "doença" do sujeito pode estar também relacionada a traumas de gerações passadas.

O que denominamos de prejuízo na transmissão psíquica geracional é aquilo que, quando é transmitido, não contribui para a constituição do psiquismo e da subjetividade do sujeito, pois são fatos traumáticos não elaborados, não transformados.

O traumatismo pode ser tanto de:

• âmbito particular, atingindo uma determinada família, como, por exemplo: morte de um filho, doença etc. ;

• ou pode atingir uma comunidade inteira, como por exemplo: guerras, maremotos etc.

O impacto de um genocídio, de um maremoto, o horror exagerado, tudo isso faz muitas vezes com que o sujeito recuse a realidade. É como se ele dissesse a si próprio: "- Isto não está acontecendo", e para que possa continuar vivendo tenta encontrar um "lugar" para alojar o fato traumático. E, assim, o fato fica como uma "pedra bruta em uma cripta"1, fora do alcance de um trabalho psíquico e só dessa maneira é passado para os descendentes. Isto é o que chamamos de transmissão em estado bruto, sendo a pedra bruta a própria realidade dolorosa e indizível, não passível de representação porque o fato traumático não ficou reprimido no inconsciente e sim em uma cripta, isto é, em um lugar fechado instalado no seio do ego, com um mecanismo autônomo, espécie de anti-introjeção, comparável à formação de um casulo (Abraham & Törok, 1995, p. 279).

Isso quer dizer que não houve o luto do fato traumático daquele que passou pelo trauma. Por exemplo: um pai que perdeu um irmão, quando era criança pode querer que um filho ocupe o lugar desse irmão, e esse filho, com o seu destino predeterminado, pode atuar na vida sem saber por que, de uma maneira muito semelhante àquela de um tio que nunca conheceu, mas ele estaria obedecendo a um desejo do pai que não pôde enterrar o irmão. Num ângulo mais amplo, uma família descendente de refugiados de guerra pode ter como prioridade viver estocando alimentos, sem se dar conta de que a guerra acabou.

No caso dos imigrantes, estes, como muitas vezes imigram para fugir de alguma catástrofe traumática, podem trazer para a nova terra tanto um trauma de âmbito particular, como de âmbito comunitário. Lash (1987) relata que o sobrevivente de guerra, ao partir para a nova terra, joga ao mar toda a sua bagagem cultural para que o navio possa continuar flutuando. Pensamos que esta frase de Lash é uma metáfora interessante para configurar a vida psíquica desses sujeitos. Se eles jogaram ao mar toda a sua herança cultural, o "nada" toma o lugar da cultura. Nesses casos, o fato traumático pode tomar proporções tão grandes que a cultura do sujeito vai para a cripta junto com o fato traumático.

Mas, em ambos os casos, estes sujeitos carregam um sofrimento irrepresentável e são cheios de culpa e vergonha. Esses sentimentos os despojam de sua própria história como se os seus ancestrais nunca tivessem existido. Seus descendentes se "alojam" em línguas e histórias alheias.

Assim, voltamos ao objetivo deste texto que é os caminhos possíveis de serem tomados e as dificuldades encontradas com pacientes descendentes de imigrantes sobreviventes de catástrofes, na clínica psicanalítica. Eles chegam a nós como se fossem desprovidos de uma história passada e, diante deles, nos vemos impelidos a ajudá-los a resgatá-la.

Essa tarefa não pode ser feita sem "despertar" o fato traumático que só pode ser despertado quando o analista toca na cripta do sujeito. E aqui surge a necessidade de mais um conceito criado por Abraham e Törok: o conceito do fantasma. O fantasma é a falha imposta à escuta do analista por um segredo não revelável do paciente que lhe causa um mal-estar (Abraham e Törok, 2000, p. 278-279). O analista, vivendo este sentimento na transferência, "volta atrás" com o seu paciente, como num túnel do tempo, testemunhando, dia após dia, novas primeiras vezes, e cada pedaço do que descobrem (paciente e terapeuta) forma uma obra, e o antigo se faz novo.

A vivência clínica com esses pacientes nos mostrou a importância da intimidade que só pode ser assegurada pelo setting analítico e pela preservação da alteridade. Só assim o paciente pode compartilhar os segredos de família com o analista. Mas mesmo com a intimidade assegurada, o paciente muitas vezes tem medo de revelar um segredo parental ou familiar vergonhoso, como se com isso quebrasse a integridade parental.

Uma vez que o analista tenha conseguido ligar seus sentimentos vividos na transferência, num íntimo contato também com ele mesmo, cinco caminhos se revelaram importantes nesse trajeto: a alucinação e a atuação do paciente; o outro estrangeiro (analista); os sonhos, sinais, símbolos e metáforas; a testemunha (analista); o conhecimento por parte do analista da cultura da qual descende o seu paciente.

Estes caminhos levam o paciente a resgatar a cultura "perdida".

 

Alucinações e atuações — o primeiro caminho

Na experiência clínica com esses pacientes, pudemos perceber que inicialmente os únicos recursos de que dispunham para nos comunicar a fonte do seu sofrimento eram as alucinações e as atuações que acabavam aparecendo na sala de análise em estados regressivos. Seguindo os estudos de Abraham e Törok sobre os conceitos de cripta e fantasma, numa especulação teórica, conjeturamos que o analista, impulsionado pelo mal-estar que lhe causa o fantasma, vai atrás de um saber e acaba por tocar na crítpa do paciente, possibilitando assim ao paciente alucinar as imagens do fato catastrófico, que, forcluídas do inconsciente - porque estavam na cripta - são nesse momento ejetadas para fora da cripta, retornando ao paciente em forma de alucinações e delírios.

Embora o termo forclusão tenha sido forjado por Lacan, Freud, em 1894, descrevia a defesa psicótica em termos quase idênticos: "O ego separa-se da representação insuportável, mas está ligado a um fragmento da realidade; realizando esta ação, o ego separou-se também totalmente e/ou parcialmente da realidade" (Laplanche, Pontalis, 1967, p. 574)2.

Aqui estamos falando de traumas ocorridos nas gerações passadas dos pacientes, e por isso os nomeamos de fatos que ocorreram num aquém de si. Eles assemelham-se ao "estranho"3 mencionado por Freud (1919), quando ele se referia a conteúdos que um dia foram conhecidos — mas neste caso, só pelas gerações passadas — depois forcluídos, voltando mais tarde e tornando-se assustadores, provocando medo e horror.

Essas imagens ficando fora da cadeia representacional, só podem ser "expressas" pelo sujeito na palavra "coisa", isto é, em abstratos que se tornam concretos, palavras que não expressam um sentimento ou uma subjetividade, mas que se tornam a coisa em si (Freud, 1915). Essas palavras surgem também na alucinação. Acompanhando este raciocínio, para que a palavra "coisa" vire palavra representação, é necessário, dentro do possível ,a recuperação do fato traumático. Para que esta recuperação possa ocorrer, torna-se imprescindível a presença do outro. Só assim essas alucinações podem se transformar em sonhos, os sonhos em choro e o choro em palavras, que, por sua vez, se transformam em outras palavras que representam.

 

O outro estrangeiro — o segundo caminho

Quando nos referimos ao outro, referimo-nos a um outro portador de uma história passada que lhe foi transmitida. Nesse sentido, ele é sempre estrangeiro. A história de ambos nunca será a mesma. Não só a história de quem lhes antecede, como a história da própria vida pregressa.

A questão do estrangeiro refere-se a mantermos uma certa distância do paciente, ou seja, uma não familiarização do analista com o seu paciente, pois, caso contrário, perde-se o íntimo e o espaço necessário entre ambos para o surgimento do terceiro que pode ser a figura - as imagens oníricas surgidas na sessão. Seguindo na esteira de Fedida (1991), o espaço possibilita a criação de imagens, e esse espaço só se torna possível na condição de estrangeiro nas terras do paciente. O estrangeiro é esse fundo de silêncio que as coisas necessitam na língua para se traduzirem, para se tornarem visíveis. A condição de estrangeiro nos protege de nos identificarmos com o pathos desses pacientes. E, seguindo o nosso percurso na análise, se pudermos manter a posição de estrangeiros em suas terras, haverá a possibilidade do surgimento do terceiro, até então ausente na relação: as imagens oníricas que revelam o trauma e a história do paciente.

E continuando com Fedida:

(...) a análise produz espaços para a fala que reacende a lembrança, desperta a memória. E assim as figuras vão se transformando em símbolos. A língua comporta o desenho. Desenhar é o ato poético do surgimento da língua no despertar de suas palavras. ( p. 125).

E assim vamos possibilitando ao paciente apropriar-se de um passado que sempre existiu, mas que até então era desconhecido. Dessa maneira, paciente e analista falam de uma mesma coisa, de algo que o paciente não sabia que lhe dizia respeito e que o analista ignorava, mas que transcorre entre ambos num espaço analítico de retomada transformadora da transmissão. Dessa maneira o paciente pode perceber que, pela transmissão herdada, ele carregava uma história que ainda pertencia a outro, pelo fato de ser desconhecida.

 

Sonhos, sinais, símbolos e metáforas — o terceiro caminho

Na nossa experiência clínica, os fatos traumáticos encriptados, que primeiramente só puderam ser "vistos" em alucinações ou atuações, puderam ser transformados em sonhos, após o sonhar do analista. As alucinações dos pacientes despertam "sonhos" no analista que, devolvidos ao paciente em palavras, podem transformar essas alucinações em sonhos e em palavras que representam. E assim o paciente apropria-se de uma história até então perdida: como em um "jogo de sonhos" entre analista e paciente, a transmissão psíquica da geração do paciente vai sendo resgatada. O que aqui chamamos de sonhos não são os sonhos que temos quando dormimos, mas sim as imagens, livres associativas do paciente e do terapeuta que podem ser "sonhadas" numa sessão de análise. Cathy Caruth (2000), em Catástrofe e representação, se pergunta:

Não seria o sonho, alguém poderia dizer, essencialmente um ato de homenagem à realidade da qual se sente falta — a realidade que não pode mais se produzir senão se repetindo infinitamente, em um acordar nunca alcançado? (p. 129)

E continua a sua idéia de que o sonho pode ter a função de acordar o sujeito para o pesadelo da realidade, ou melhor, de levá-lo ao encontro da catástrofe traumática.

Desta maneira o sonho, além de guardião do sono, também pode "acordar" o sujeito para o pesadelo da realidade, que seria algum fato traumático que até o momento ficou "adormecido".

Seguindo Abraham e Törok (1995), os sonhos se constituem a partir das palavras da mãe, e derivam do "morto" interno que habita o inconsciente do sujeito, criando vida por meio das imagens oníricas.

Relatamos que na catástrofe não foi possível a simbolização porque não houve representação.

Perguntamos: É possível, em algum momento, essa elaboração? E, sendo possível, como ela ocorre?

Se seguirmos Ferenczi (1992), veremos uma possibilidade de elaboração do trauma pela capacidade de o sujeito produzir imagens que, como mostramos acima, dão vida às palavras mortas do sonho, possibilitando uma futura representação e conseqüente elaboração psíquica. Conforme já relatado, a experiência clínica com esses pacientes nos mostrou que essas imagens ressurgem por meio de alucinações em algum momento da análise. Essas alucinações nos servem como sinais de uma situação perigosa e traumática que o paciente tenta evitar saber pelo horror de conhecer. Mas são sinais de angústia, por enquanto, somente para nós (analistas) e não para eles (pacientes). O sujeito, neste sentido, tenta fugir cada vez mais dessas imagens que acabam se tornando persecutórias. O sofrimento do sujeito vai gradativamente aumentando, pois quanto mais ele foge mais "esses resíduos o perseguem". Mas quando o paciente começa a sonhar, podemos entender esses sonhos como os primeiros sinais de angústia, agora para o paciente, em que o sujeito não está mais preso na alienação.

Estamos tomando por base a definição de Greimas (1984), sobre sinais: objetos através dos quais o sujeito toma conhecimento de outro objeto. Embora o sonho seja o passo posterior à alucinação no caminho para a elaboração do trauma, ainda é um sinal, um aviso de que existe uma angústia, mas "(...) que não representam como o símbolo e nem são universais (...)" (Santos, 1976, p. 204). Esses sinais de angústia podem ser transformados em símbolos na escuta do analista que, por sua vez, os transformam em metáforas no momento em que os devolve ao paciente, dando a ele um sentido, construindo a sua subjetividade, pois a metáfora refere-se a uma semelhança de idéias e se fundamenta numa relação subjetiva (ibid).

Resumindo: quando uma alucinação do paciente começa a se transformar em sinal de perigo na escuta do analista, o paciente pode começar a sonhar, isto é, o sonho toma o lugar da alucinação, tornando-se um sinal de angústia para o paciente. Em outras palavras, podemos dizer que no "silêncio das vozes" emergem os sonhos do analista que, por sua vez, possibilitam a palavra do paciente.

 

A testemunha — o quarto caminho

Um outro ponto importante percebido na clínica foi a necessidade de esses pacientes nos terem como testemunhas do seu sofrimento, pois neles percebemos uma necessidade imensa de serem ouvidos e um pedido suplicante para nos mantermos em silêncio. Pensamos que muitas vezes, nesses casos, os analistas sentem-se o próprio muro das lamentações, e acreditamos que esta deva ser mesmo a nossa função. Relata Allen Grossman (apud Hartman, 2000, p. 207)

E uma pedra passou de sua boca para minha boca aberta. "Esta é a pedra da testemunha", ela disse, "que pára todos os corações".

No início escutamos um sofrimento difuso, pois o paciente não sabe de onde ele vem, embora o sinta. Talvez se trate primeiro de um sofrimento pelo próprio fato de ele carregar algo que não lhe pertence, embora ainda não saiba disso. Somente numa segunda etapa, depois do "sonho" do paciente é que, através dos "sonhos" do analista, despertados pelos próprios "sonhos" do paciente, torna-se viável conversarmos sobre o fato traumático ocorrido em alguma geração passada. Agora ele se tornou visível porque se transformou em imagens oníricas, passíveis de serem transformadas em palavras. A palavra liberta a cena traumática que ficou silenciada para proteger a sobrevivência, pois muitas vezes a desapropriação da história é a única possibilidade de vida. As palavras do paciente muitas vezes nos apelam para testemunhar o sofrimento que lhe causou o "enterro" da cultura e, conseqüentemente, da transmissão. Ao testemunharmos o sofrimento do paciente, podemos nos tornar seus parceiros na criação de um novo passado, de um passado transformado. Notamos também que quando o paciente percebe que nós aceitamos ser testemunhas de fatos que são vistos por ele como tão vergonhosos, ele pode aceitá-los de volta, diminuindo a vergonha e diluindo o segredo.

 

O conhecimento, por parte do analista, da cultura da qual descende o seu paciente — o quinto caminho

O analista é também um ser cultural (Moro, 2004), e da sua cultura ele não pode e não deve abrir mão. É importante que o analista, muito bem apropriado da sua cultura, faça uma anamnese bem feita com o paciente, ocasião em que pode coletar dados - aqueles de que o paciente dispõe - sobre a sua origem. O analista necessita também ter amplo conhecimento da cultura dos antepassados do paciente, pois só assim poderá saber do que o paciente está falando, ou porque ele está agindo de determinada maneira em detrimento de outras. Se o analista tiver conhecimento das diferentes culturas que surgem em seu consultório, torna-se mais fácil para ele detectar atitudes sintomáticas dos pacientes. Muitas vezes, essas atitudes podem estar vinculadas a costumes dos antepassados do paciente, que hoje não fazem mais sentido; ao contrário, obstaculizam sua trajetória na vida e dificultam a miscigenação. Mas não se trata, de maneira alguma, de fazer com que o paciente renegue ou denigra a própria cultura, e sim que ele a conheça, ou melhor, a reconheça como fazendo parte dele e assim reconquiste a sua alteridade. Ele pode usufruir dela no que lhe convém e transformar em "lendas e contos", que podem ser contados aos seus descendentes, aquilo que não lhe convém.

Por exemplo: podemos receber no consultório um sansei, de 60 anos aproximadamente, com fantasias de que seus filhos vão assassiná-lo, embora nada indique que isso vá acontecer. E este senhor, por ser a terceira geração de imigrantes japoneses no Brasil e devido ao fato de seus avós terem jogado a sua "bagagem cultural" no mar, nunca soube pelos seus ancestrais dos costumes da ilha de Okinawa, onde, devido à imensa pobreza e à fome generalizada, seus moradores, ao atingirem a idade de 70 anos, eram levados pelos filhos ao cume de uma montanha para lá esperarem a morte. Hoje, esse costume não é mais usado, por não ser mais necessário.

Se nós, analistas, soubermos a respeito da origem cultural deste paciente, e tivermos conhecimento do costume, poderemos ajudá-lo a associar a sua ansiedade persecutória a um fato ocorrido no passado das suas gerações, fato que ele desconhecia e que deixou marcas nos sobreviventes desse "ritual" que, hoje, não existe mais. No entanto, esse costume pode e deve ser levado aos netos desse senhor em forma de lendas de uma geração passada.

Como analistas, podemos também ajudar uma mulher de ascendência árabe mulçumana a compreender o porquê dos costumes poligâmicos e da submissão da mulher na Arábia Saudita, por exemplo, como necessidade premente de conquistas e reasseguramento de terras para um povo. Mas hoje, vivendo em outro país, esse costume não se faz mais necessário, e essa mulher não necessita mais aceitá-los. Mas ela pode entender e até ter orgulho do esforço dos seus antepassados para preservarem uma terra, necessária para a continuidade de sua descendência.

Da mesma maneira, um descendente de sobrevivente da Segunda Guerra Mundial pode ser ajudado a enxergar que hoje não é mais necessário viver estocando alimentos, porque a guerra já acabou.

Em nenhum desses casos, esses costumes devem ser vistos com preconceito pelo analista, pois, conforme realçamos, eles tinham motivos sociais, culturais e econômicos para existirem. E, além disso, um costume isolado não pode qualificar uma cultura inteira.

Moro (2004, p.10) refere-se à contratransferência cultural do analista que diz respeito à maneira como ele se situa em relação à alteridade do paciente, à sua maneira de agir e pensar a doença, à cultura do paciente e continua, explicitando que:

(...) paciente e terapeuta têm uma origem e estão incluídos em histórias coletivas que impregnam suas reações, da qual devem estar conscientes. Sem a análise desta contratransferência cultural, corre-se o risco de atos agressivos, racistas etc.

 

As quatro maiores dificuldades encontradas na trajetória da construção de um passado

Enumeraremos quatro dificuldades que temos encontrado na clínica psicanalítica no caminho da reconstrução de um passado. Como estamos falando de pacientes que descendem de imigrantes vítimas de traumas catastróficos, pensamos existir em nesses sujeitos algumas características peculiares que obstaculizam o trabalho de análise.

O hóspede e a hospedagem

Iniciaremos esta discussão pela dificuldade que esses pacientes nos passam de mantermos a nossa posição de estrangeiro. Esta questão, embora a nosso ver seja de suma importância em todas as análises, torna-se imprescindível nesses casos, ao mesmo tempo que é uma das maiores dificuldades para ser mantida. Se por um lado somos estrangeiros nas "terras" desses pacientes, por outro, ele também é um estrangeiro que se hospeda em nossas "terras". E talvez seja mais fácil para eles serem hóspedes do que hospedeiros, já que estão sem "raízes", e muitas vezes agirem como se estivessem à procura de uma taverna para se hospedar.

Porém, no momento em que eles hospedam o analista como um estrangeiro, por exemplo, quando o analista faz alguma intervenção, ela é muitas vezes recebida pelo paciente com hostilidade. O analista-estrangeiro pode, no momento da interpretação, remeter o paciente ao trauma sofrido pelos estrangeiros que invadiram a terra de seus antepassados, e que, muitas vezes, é a causa do bloqueio da transmissão e da própria imigração. Neste sentido, o analista torna-se para o paciente o "estran(ho)geiro" que vai despertar um fato traumático que um dia foi conhecido e depois reprimido.

Além do mais, como ser estrangeiro em um país de quem não sabe que tem um país? Como ser estrangeiro na casa de quem não sabe que tem uma casa? Como um estrangeiro pode ser acolhido em terras de quem não sabe que tem terras? De alguém que está alienado de suas terras? E como hospedar um estrangeiro em sua terra se foi um estrangeiro a causa da sua bagagem cultural ter sido jogada no fundo do mar? Não podemos nos esquecer a que estamos falando de pacientes que estão em análise para apropriar-se de uma história que, muitas vezes, foi perdida justamente por invasões estrangeiras extremamente hostis.

Portanto, o que muitas vezes ocorre nestes momentos é a hostilidade do paciente para com o analista. O analista pode ser visto pelo paciente como alguém intrusivo que vai querer lhe "roubar" algo, mesmo que ele ainda não sinta que tenha algo substancial a ser roubado E esse sentimento torna-se um grande obstáculo no percurso da análise, a principal causa de percalços, de idas e vindas nessa trajetória. Nos momentos de hostilidade do analisando, o movimento da análise fica interrompido, assim como a seqüência associativa do analista e do analisando.

Por outro lado, por mais doloroso que possa ser o encontro com algum fato traumático de gerações passadas, o encontro desbloqueia a transmissão psíquica geracional, devolvendo a cultura e a identidade ao sujeito.

Pensamos também que a tranqüilidade do analista em hospedar o seu paciente faz com que diminua o medo deste de receber hóspedes. Enquanto o paciente habita a "casa mental" do seu analista, pode perceber que este não tem medo de receber em sua "casa" alguém que não mora nela e não é da sua família.

O direito à hospitalidade pressupõe uma casa, uma linhagem, uma família, um grupo familiar ou étnico recebendo um outro grupo familiar ou étnico (Derrida, 2003, p.21).

O apego

A segunda dificuldade muitas vezes encontrada é o medo do apego. Esses pacientes vêm de histórias em que desapegos precoces e abruptos foram constantes na sua vida, fazendo parte dos seus antepassados. A própria imigração é muitas vezes traumática no momento em que o sujeito é obrigado a desapegar-se da sua terra natal, e algumas vezes de parentes próximos. Ocasionalmente, ao imigrar, o sujeito pode estar deixando para trás perdas significativas, como parentes mortos em campos de concentração, guerras ou mesmo patrimônios perdidos em crises econômicas. Em outras ocasiões, esses sujeitos, ao chegarem a um novo país, passam por novas perdas de parentes próximos. Enfim, normalmente esses pacientes vêm de uma história de constantes perdas que fizeram com que eles criassem uma defesa muito grande ao apego, fato que se reflete na sessão de análise, porque os pacientes têm um medo muito grande de se apegar ao analista. Dessa maneira, faltas ou até abandono da análise tornam-se freqüentes. O desapego, para esses pacientes, é mais seguro porque os protege de sofrerem, caso sejam obrigados a um novo abandono abrupto. Como eles já perderam muito, estão sempre achando que vão perder novamente.

O camaleão

A terceira dificuldade à qual vamos nos referir é a questão do "camaleão". Muitas vezes esses sujeitos, com medo de não serem aceitos na nova cultura, absorvem rapidamente a cultura do outro país, relegando a sua própria. Às vezes, o motivo que fez com que os seus ascendentes imigrassem é para eles vergonhoso. Eles preferem "esquecer" ou manter em segredo de onde vieram. Freqüentemente chegam a mentir para que ninguém saiba de onde procedem, e assim vão moldando-se facilmente não só a uma cultura que não é a deles, mas também às pessoas com quem andam. Dessa maneira deixam de ser estrangeiros e perdem a subjetividade e a liberdade inerentes a essa condição.

O atendimento de crianças

Muitas vezes a família elege um membro como o doente. Freqüentemente, o eleito é um dos filhos que, ainda criança, apresenta algum sintoma que torna muito difícil a sua convivência com a família. Nesses casos, a situação ideal seria atender a família, mas muitas vezes isso se torna difícil porque, como estamos falando de segredos vergonhosos, é comum a família não querer se submeter à análise, eles intuem, que os seus segredos talvez sejam desvendados. Percebemos muitas vezes uma cisão entre a família e a criança, ou seja, a família não sente que faz parte da vida da criança. A família não é vista como uma unicidade, isto é, como uma instituição composta de membros que se inter-relacionam.

O que propomos nesses casos é o atendimento individual da criança, com algumas sessões com a família, às vezes acompanhada pela criança, de acordo com o andamento do trabalho. Pensamos que dessa maneira torna-se mais fácil para os pais aceitarem um trabalho analítico que os ajude a apropriar-se da história cultural perdida.

Assim, qualquer que seja a dificuldade encontrada nesses atendimentos, é importante ajudarmos esses pacientes a resgatar o o seu passado, a sua cultura, a sua história, a deles e a de seus ancestrais, para que encontrem a sua subjetividade e para que nas gerações seguintes a transmissão psíquica geracional não se paralise.

Com a finalidade de ilustrarmos o que vem a ser um sujeito ter conseguido apropriar-se de sua história passada, na trajetória psicanalítica, relataremos aqui um pequeno fragmento de uma sessão de uma mulher, que na época em que procurou análise defendia ferrenhamente qualquer plástica que pudesse mudar o corpo. Após seis anos em análise, ela disse: "Ontem ao olhar uma foto minha, muito antiga, eu percebi que o meu nariz não era feio. Eu achava feio porque eu não sabia da minha origem árabe. Se eu soubesse, não teria feito plástica".

E no final desta mesma sessão ela diz: "Eu já sei, ao invés de me separar ou brigar com o meu marido, eu vou lutar para mudá-lo. Afinal, Sheerazade em suas mil e uma noites, não curou o sultão que matava as mulheres após as núpcias vingando-se por ter sido traído?"

Então pensei: não foi esse o nosso trabalho na análise, mil e um encontros entre um ouvinte e um contador de histórias que, juntos, reviram os autos do passadoocorridos há muito, muito tempo, em terras longínquas...?

 

Referências

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Recebido em 04 de abril de 2005
Aceito em 14 de abril de 2005
Revisado em 20 de junho de 2005

 

 

Notas

1 Este conceito foi forjado por Abraham e Törok que sentiram a necessidade de criar novas figuras metapsicológicas para dar conta de sofrimentos psicológicos causados por barbáries como, por exemplo, a Shoah (Corrêa, 2000, p.12).
2 Torna-se essencial, neste ponto, realçar a importância do conceito de cripta para abarcar algo que não poderia estar reprimido no inconsciente, pois assim teria representação. Por outro lado, também não poderia simplesmente ter sido forcluído do aparelho psíquico no momento da catástrofe, senão não teria como passar de geração a geração. A conjetura de que a ejeção da imagem catastrófica pode ocorrer num processo analítico fica aqui como mera especulação, uma questão em aberto.
3 Quando Freud se refere ao estranho, se refere a conteúdos reprimidos e não forcluídos. Nesta pesquisa, tomamos este termo emprestado para nos referirmos a conteúdos forcluídos e não reprimidos, porque trata-se de conteúdos não passíveis de representação.

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