Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
ARTIGOS
Considerações sobre a sintomatologia na histeria de angústia e na paranóia
Cláudia Andréa Gori
Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae. Aperfeiçoamento e aprimoramento clínico (clínica psicanalítica das neuroses) pelo Instituto Sedes Sapientiae. Mestre pelo Núcleo de Psicanálise da PUC-SP. Coordenadora do Projeto Musicoterapia para Crianças no Instituto Sedes Sapientiae. Rua Antonio Achê, 84. 14020-600 Jardim Irajá. Ribeirão Preto São Paulo. e-mail: claudiagori@ig.com.br
RESUMO
O ponto de partida deste trabalho é a idéia freudiana de que o sintoma é uma formação de compromisso que denuncia a presença de um sofrimento que é derivado de uma forma de funcionamento psíquico. Assim, neste trabalho, apresento uma proposta de leitura a respeito das relações possíveis de serem estabelecidas entre o sintoma e a forma de funcionamento psíquico sobre a qual ele se assenta. A questão central em torno da qual esta reflexão se faz presente é o problema da identificação de uma determinada forma de funcionamento psíquico por meio da visibilidade dos sintomas e o conseqüente distanciamento de uma das pedras fundamentais que Freud estabeleceu nas origens da psicanálise: o Inconsciente e a necessária invisibilidade que ele implica. Essa proposta de leitura tem como substrato teórico alguns fragmentos de textos freudianos que se referem à questão da sintomatologia em duas distintas formas de funcionamento psíquico, a saber: a histeria de angústia e a paranóia. Nesses fragmentos, o enfoque do trabalho recai sobre a sintomatologia presente nestes casos específicos de histeria de angústia e de paranóia e evolui para algumas considerações metapsicológicas a respeito do posicionamento que o sujeito assume diante de seu próprio sintoma e da realidade externa.
Palavras-chave: sintomatologia, psiquismo, inconsciente, histeria de angústia, paranóia
ABSTRACT
The starting point of this work is the Freudian idea that the symptom is a formation of commitment that reports the presence of a suffering which is derived from a form of psyche functioning. And so, in this work I introduce a reading proposal concerning the possible relations that can be established between the symptom and the form of psyche functioning in which it is based on. The main point of the present discussion is the problem of identifying a determined form of psyche functioning through the visibility of the symptoms and the consequent separation of one of the cornerstones that Freud established in the origins of Psychoanalysis: the Unconscious and the necessary invisibility that it implies. This reading proposal has as theoretical substratum a few fragments of Freudian texts that refer to the question of symptomatology in two distinct forms of psyche functioning: hysteria of anguish and paranoia. In this fragments, the focus of the work falls on the symptomatology present in these specific cases of hysteria of anguish and paranoia, and evolves into a few metaphysical considerations regarding the positioning that the subject assumes before his own symptom and the external reality.
Keywords: symptomatology, psychism, unconscious, hysteria of anguish, paranoia.
A questão da sintomatologia aponta para aquilo que é manifesto em uma determinada organização libidinal, ou seja, trata-se das múltiplas formas e também da forma privilegiada por meio da qual o sofrimento decorrente de uma posição subjetiva é traduzido. No entanto, na sintomatologia está presente um paradoxo: ao mesmo tempo que envolve uma certa visibilidade ao manifestar o sofrimento, por outro lado, assinala uma invisibilidade na medida em que tem como substrato uma determinada forma de funcionamento psíquico.
Essa invisibilidade marca as origens da psicanálise. Foi com o abandono da hipnose e do método catártico, nos quais o tratamento era restrito a algo da ordem da palavra direcionada à extinção do sintoma, que Freud distanciou-se da visibilidade do sintoma e abriu espaço para a escuta do invisível, ou seja, para aquilo que está para além do manifesto: o funcionamento psíquico compreendido a partir de uma proposição metapsicológica.
Em seu texto de 1915, intitulado O Inconsciente, Freud propõe a compreensão dos fenômenos psíquicos a partir de uma concepção metapsicológica. Escreve ele: "Proponho que, quando tivermos conseguido descrever um processo psíquico em seus aspectos dinâmico, topográfico e econômico, passemos a nos referir a isso como uma apresentação metapsicológica." (Freud, 1915/1996c, p. 186). Assim, a metapsicologia refere-se à abordagem teórico-conceitual do aparelho psíquico, considerando-se os pontos de vista dinâmicos (relacionados aos mecanismos de defesa), topográficos (em referência a um aparelho psíquico dividido em instâncias) e econômico (no que diz respeito à teoria das pulsões).
A partir desta proposição freudiana acerca dos processos psíquicos, é possível considerar a presença de uma relação necessária, mas de forma alguma suficiente, entre um determinado modo de funcionamento psíquico e a sintomatologia daí decorrente. Aqui, estamos diante de um perigo: uma forma de funcionamento psíquico, necessariamente, produz sintomas. Porém, esses sintomas jamais podem ser identificadores de uma ou outra forma de funcionamento psíquico, ou seja, não é possível identificar uma determinada forma de funcionamento psíquico a partir da visibilidade dos sintomas. A este respeito, em seu texto de 1905, Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria, Freud escreve: "Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos preponderantes ou exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos."(Freud,1905/1996a, p. 37).
Este fragmento deixa claro o que Freud propõe a respeito do funcionamento psíquico, ou seja, que uma forma de funcionamento psíquico, neste caso a histeria, não é identificada pelas manifestações sintomáticas, que podem ou não estar presentes, mas pela especificidade de uma organização libidinal. Portanto, na relação entre a organização libidinal e a sintomatologia, estão excluídos os critérios de linearidade e de causalidade.
Para pensar como o sujeito pode articular-se em relação ao seu próprio sintoma e em relação ao outro, tomarei como exemplo duas formas de funcionamento psíquico distintas, a histeria de angústia e a paranóia, a partir dos textos freudianos de 1909 Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos e Um Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica da Doença, de 1915.
Apesar de estes textos terem sido escritos por Freud dentro do referencial teórico de sua primeira teoria do aparelho psíquico, proponho que a questão da sintomatologia nestas organizações psíquicas, histeria de angústia e paranóia, sejam pensadas a partir da segunda teoria do aparelho psíquico, proposta por Freud a partir de 1920, pelo fato de que o conceito organizador deste modelo conceitual é o eu, o que permite pensar a posição intermediária do eu entre o Isso e a realidade, na oposição neurose-psicose.
Em seu texto de 1924, Neurose e Psicose, Freud situa a neurose e a psicose em um patamar comum no que diz respeito à questão da etiologia. Para ele, em ambos os casos, o que é determinante é a frustração de um dos desejos infantis que nunca fora dominado. Esta frustração tem origem na realidade externa e instaura uma tensão conflitual na qual o eu é colocado em uma posição intermediária entre o Isso e a realidade externa.
Diante deste conflito, o eu poderá assumir duas posições distintas: fazer calar o Isso e permanecer investindo no mundo externo, ou deixar-se dominar pelo Isso e empreender um corte libidinal com a realidade externa. Essas diferentes posições assumidas pelo eu diante do conflito marcam formas distintas de funcionamento psíquico que irão desencadear, respectivamente, a neurose e a psicose.
Nas neuroses, o que define o posicionamento do eu diante da frustração é o mecanismo pelo qual o eu empreende a defesa contra a experiência frustrante. Em seu texto Neurose e Psicose, Freud apresenta a hipótese de que as neuroses têm origem a partir de um movimento pelo qual o eu defende-se das pulsões por meio do mecanismo de recalcamento.
Essa operação psíquica consiste, em termos gerais, no afastamento ou manutenção de representações no Inconsciente. Esse movimento defensivo é empreendido pelo eu, que entra em conflito com o Isso, a serviço das ordens do supereu e da realidade externa. No entanto, o material que se tornou inconsciente pela ação do recalcamento força passagem pela consciência por meio de formações substitutivas (sintomas) que não são reconhecidas pelo eu, devido ao grau de deformação que sofrem ao atravessarem a barreira da censura, situada entre o sistema Iconsciente e o sistema Pré-consciente-Consciente.
Em termos metapsicológicos, a posição do eu nas organizações neuróticas é marcada pelo conflito com o Isso, desencadeado a serviço da realidade externa e do supereu. Diante desse conflito, é acionado o mecanismo de recalcamento que mantém no Inconsciente representações ligadas a uma pulsão e que produz derivados (sintomas) que se impõem ao eu por meio de uma formação de compromisso.
No entanto, apesar de o eu suprimir um fragmento do Isso em nome da influência da realidade, em seu texto de 1924, A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, Freud trata da questão da perturbação da relação do eu com a realidade nas organizações neuróticas. Neste texto, Freud levanta a hipótese de que a reação neurótica envolve dois tempos: em um primeiro tempo o eu, a serviço da realidade, utiliza-se do recalcamento para suprimir uma parcela da vida pulsional. Para Freud, este primeiro tempo alcança êxito, mas ainda não configura a eclosão da neurose.
Em um segundo tempo, há um fracasso do recalcamento e o eu é invadido pelo retorno do recalcado, que se apresenta sob a forma de sintomas e representa um movimento de rebelião do Isso contra as exigências da realidade. Nesta organização libidinal, o surgimento da angústia é marcado pelo movimento de retorno do material que se pretendeu evitar por meio do recalcamento, e o afastamento da realidade consiste em evitar entrar em contato com o fragmento de realidade que desencadeou o recalcamento, ou seja, o eu ignora esse fragmento da realidade.
No entanto, para Freud, esse afastamento da realidade nas neuroses não se limita à evitação do fragmento de realidade que mobilizou o recalcamento, mas há, também, um movimento de substituição dessa realidade por outra mais adequada aos desejos do Isso. Essa substituição, nas organizações neuróticas, é realizada por meio de um processo regressivo que conduz o eu a um passado satisfatório, levando-o a um mundo de fantasias que ficou cindido do mundo externo no momento de instauração do princípio de realidade.
No que diz respeito à questão da sintomatologia na histeria de angústia, em seu texto de 1909, Análise de uma Fobia em um Menino de Cinco Anos, Freud, tendo seu raciocínio guiado pela sua primeira teoria da angústia, defende a idéia de que a formação de sintomas fóbicos tem sua origem em um trabalho psíquico que tem como objetivo ligar, psiquicamente, a angústia que se encontra em estado livre.
Em relação ao estatuto da fobia dentro das organizações psicopatológicas, Freud considera que a fobia não é uma organização libidinal independente mas um sintoma. Escreve ele: "No sistema classificatório das neuroses não foi, até agora, atribuída uma posição definida para as 'fobias'. Parece certo que elas só devam ser encaradas como síndromes, que podem formar parte de várias neuroses e que não precisamos classificá-las como um processo patológico independente."(Freud, 1909/1996b, p.106). Portanto, a fobia seria um sintoma presente em uma organização neurótica (neurose de angústia), por meio do qual a angústia livre é deslocada para um objeto fóbico.
Considerando o relato da análise do Pequeno Hans, é possível perceber a posição do eu em sua relação com o Isso, com a realidade externa e com o sintoma. Neste caso clínico, a moção pulsional sujeita ao recalcamento era a atitude libidinal de Hans para com seu pai (hostilidade, ciúme e medo) e os impulsos sádicos em relação à sua mãe.
Sendo alvo do recalcamento, a representação paterna desaparece da consciência e ocorre um deslocamento desta representação para um animal que se presta a ser objeto mobilizador de angústia: a representação paterna, agora inconsciente, é substituída pela representação de um cavalo a partir de conexões associativas singulares.
No entanto, o recalcamento da representação paterna não logrou êxito, na medida em que a quota de ansiedade ligada a esta representação continuou ativa e evoluiu para formação de uma fobia, ligando-se ao objeto fóbico "cavalo". A partir desta conexão, o que se segue são tentativas de fuga e evitação com o objetivo de impedir a liberação da angústia.
Para Freud, esse movimento de evitação, decorrente da formação da fobia, apresenta um resultado duplo: ao mesmo tempo que protege Hans da liberação de angústia, promove sua aproximação ao objeto de amor, na medida em que ele evita sair de casa (por causa do medo de cavalos), permanecendo perto de sua mãe. Segundo Freud, é esse resultado duplo que atribui ao distúrbio um caráter neurótico pelo fato de que o sintoma satisfaz, em um mesmo compromisso, os desejos do Isso e as formações defensivas que o eu empreende contra estes desejos.
Porém, os mecanismos de evitação da realidade presentes na organização fóbica de Hans, não foram suficientes para atender à pressão exercida pelo Isso sobre o eu. A organização fóbica foi seguida por um movimento regressivo que pode ser observado no momento de eclosão da neurose.
Na discussão sobre o caso clínico de Hans Freud apresenta a idéia de que na constituição psicossexual desta criança, a zona genital foi aquela que proporcionou grandes sensações de prazer: Hans era, particularmente, interessado pelo seu "pipi" e, como conseqüência, em um momento inicial, conduzia suas pesquisas sexuais de forma não conflituosa.
Na medida em que os primeiros conflitos começaram a despontar, momento que coincide com a eclosão da neurose, a criança elege formas de prazer ligadas à zona anal, o que configura um movimento regressivo, que parte da genitalidade em direção à analidade. No entanto, é importante considerar que essa regressão se dá dentro de uma organização neurótica, na medida em que Hans não atinge formas diretas de satisfação pulsional mas, ao contrário, desenvolveu reações de asco em relação aos temas "pipi" e lumf, o que mostra a ação do recalcamento sobre as representações que proporcionariam uma satisfação pulsional direta.
No que se refere às organizações psicóticas, dentro das quais está inserida a paranóia, em seu texto de 1923, A organização Genital Infantil, Freud postula a hipótese de um mecanismo de rejeição, por meio do qual o eu recusa a percepção da realidade da castração. Em 1925, no texto Algumas Conseqüências Psíquicas da Distinção Anatômica entre os Sexos, Freud situa este mecanismo na origem das psicoses.
A rejeição é um movimento defensivo empreendido pelo eu, que consiste em recusar a percepção da realidade externa. Diante de uma frustração, diferentemente do que ocorre nas neuroses, o eu cede às exigências do Isso, rompendo sua relação com a realidade externa. No entanto, o fragmento da realidade externa que foi rejeitado retorna sob a forma de uma construção delirante.
Assim, metapsicologicamente, o posicionamento do eu nas organizações psicóticas é caracterizado pelo conflito com a realidade externa, desencadeado a serviço das exigências do Isso que arrancam o eu da realidade externa.
Em seu texto de 1924, A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, Freud defende a idéia de que este afastamento do eu da realidade externa implica duas etapas: primeiramente, o eu rejeita a realidade externa para atender às exigências do Isso, e esse mecanismo de rejeição provoca uma ruptura, deslocando o eu para longe da realidade.
Em um segundo momento, o eu inicia um movimento de restauração dessa ruptura a partir da criação de uma nova realidade remodelada de acordo com os desejos do Isso. Diferentemente do que ocorre nas neuroses, Freud considera que a primeira etapa do mecanismo psicótico, a rejeição da realidade, é em si patológica e suficiente para desencadear a psicose.
A segunda etapa do mecanismo psicótico é marcada, assim como na neurose, por um fracasso: o eu empreende um movimento de remodelação e substituição radical da realidade externa pela realidade delirante. No entanto, essa nova realidade é insatisfatória, e o eu é invadido pela angústia no momento em que a realidade delirante encontra, na realidade externa, poderosas formas de oposição.
Portanto, para Freud, o afastamento da realidade nas psicoses ocorre em uma primeira etapa, no momento em que o eu rejeita a realidade externa e, em uma segunda etapa, na medida em que o eu tenta substituir a realidade externa pela realidade delirante. Essa remodelação delirante do fragmento rejeitado da realidade é construída pelo material fornecido pelas fantasias, assim como ocorre nas neuroses. Porém, diferentemente destas, nas psicoses há uma tentativa de colocar a realidade delirante no lugar da realidade rejeitada.
Considerando o relato clínico exposto por Freud em seu texto de 1915, Um Caso de Paranóia que Contraria a Teoria Psicanalítica da Doença, é possível perceber os movimentos do eu em sua relação com o Isso, com a realidade externa e com os sintomas.
Para pensar as posições ocupadas pelo eu neste relato de Freud, talvez seja possível tomar como referência inicial para a reflexão um dado clínico: a paciente jamais procurou relacionamentos amorosos com homens e vivia tranqüilamente com sua velha mãe, sustentando-a.
A partir deste fragmento, é possível entrever uma poderosa ligação homossexual da paciente com sua mãe, o que é confirmado por Freud quando ele diz: "Seu amor pela mãe se tornara o porta-voz de todas as tendências que, desempenhando o papel de uma 'consciência', procuram embargar o primeiro passo de uma moça na nova estrada que leva à satisfação sexual normal."(Freud, 1915/1996d, p. 275).
Portanto, a paciente está dominada por um complexo de representações, carregadas afetivamente, que se referem à sua relação com a mãe. Provavelmente, esse complexo materno é o fator que coloca em ação o mecanismo de rejeição, o qual incide sobre um fragmento da realidade da paciente: sua própria sexualidade, que se expressa na relação amorosa com um homem ou, mais especificamente, o que é rejeitado é a percepção da diferença sexual. O conflito é desencadeado pela irrupção da sexualidade versus o vínculo que a paciente mantém com sua mãe, na medida em que a sexualidade é aquilo que vem denunciar a realidade da separação entre o sujeito e o objeto, pois sectio, do latim, significa divisão.
No que diz respeito a um outro mecanismo presente na paranóia, a projeção, Freud defende a idéia de que, provavelmente, o ruído que a paciente alegava escutar e que, segundo ela, provinha do estalido de um relógio que se encontrava sobre a escrivaninha, na verdade tratava-se de uma projeção: a situação erótica em que se encontrava a mulher justificava a sensação de excitação clitoriana a qual foi projetada como sendo uma percepção externa.
A partir dessa ruptura com a realidade externa, a paciente inicia um movimento de restauração dos vínculos rompidos com a realidade, por meio de uma construção delirante. Essa construção delirante da realidade é realizada a partir de fragmentos presentes na própria realidade externa, que são deslocados do contexto em que estão inseridos e rearranjados em um novo contexto, que é elaborado de acordo com os desejos do Isso. Assim, a serviço do Isso, o eu cria uma nova realidade que irá substituir, autocraticamente, a realidade externa.
Outra característica deste processo de construção delirante que ocorre na paranóia, além do deslocamento de impressões é, segundo Freud, o uso retardado desse material. No que se refere a esse uso retardado enfocado por Freud, é possível pensar que esse retardamento está relacionado com os dois tempos do mecanismo psicótico: primeiramente, o rompimento dos elos entre o eu e a realidade externa e, em um segundo tempo, um movimento que tem como objetivo a reconstrução dos elos rompidos. Portanto, o processo de deslocamento das impressões que se prestará à remodelação delirante da realidade é retardado porque vem tarde, vem a posteriori, depois de um processo de ruptura, visando remendá-lo.
Ainda em referência ao processo de reconstrução delirante da realidade, é importante considerar a vertente dinâmica presente no movimento da libido. Para Freud, a construção delirante elaborada pela paciente é movida pelo acervo de fantasias inconscientes e, mais precisamente, por uma fantasia específica: a fantasia de observar as relações sexuais parentais. Para Freud, esta fantasia foi o que regeu a reorganização delirante dos fragmentos de impressões deslocadas da realidade.
Assim, as impressões extraídas da realidade foram montadas de acordo com o roteiro desta fantasia e esta construção foi colocada em cena, na realidade externa, tomando como suporte os personagens ali presentes. Como se trata de uma fantasia de observação da cópula, pressupõem-se três personagens, sendo que um deles observa os outros dois que são observados. Desta forma, a chefe idosa passou a ocupar o papel da mãe e o amante estaria na posição do pai da paciente.
A partir de um movimento regressivo, a paciente substituiu a mãe como objeto amoroso e identificou-se com ela, ou seja, ela se tornou a mãe por identificação. Com isto, pressupõe-se que a mãe tenha sido destruída e, portanto, a posição de observador foi atribuída a uma terceira pessoa: os indivíduos que ela encontrara na escada, logo após ter saído dos aposentos do amante.
Provavelmente, a peculiaridade desta forma de identificação aponta para uma regressão de caráter oral, na medida em que há um processo de incorporação que denuncia uma certa forma de organização da libido, seguida por uma escolha objetal específica que teria uma origem narcísica e, portanto, homossexual.
No que diz respeito ao processo de substituição da realidade externa pela realidade delirante, é possível observar que o eu procura impor essa construção no lugar em que ocorreu a ruptura com a realidade externa.
Este movimento pode ser observado no momento em que a paciente, movida por sua desconfiança em relação ao amante, começa a indagá-lo de forma atormentadora sobre a veracidade do conteúdo de sua construção delirante. A não confirmação por parte do amante configura uma forte oposição da realidade ao delírio, o que pode mobilizar quantidades de angústia diante do fracasso dessa tentativa de substituição que viria a atender aos desejos do Isso.
Disso, podemos concluir que a proposição metapsicológica elaborada por Freud deixa patente o lugar da psicanálise em sua relação com a questão da invisibilidade. Essa invisibilidade é aquilo mesmo que está nas origens do humano no momento em que o outro, com sua sexualidade, invade a partir de fora as fronteiras da carne e inscreve uma primeira marca, alicerce do ser que será por ela regido, a partir de um desfile de representações encenadas segundo a ordem do desejo.
A partir dessas representações é que se torna possível falar em sofrimento, uma vez que o sujeito se faz como resposta à intensidade da sexualidade do outro e, sendo o que reage a esta marca, ele é o próprio sintoma de si mesmo.
Somente as lembranças podem fazer sintoma, na medida em que a recordação é aquilo que ficou representado do fato em si, portanto, adoece-se de representações inseridas em um contexto que envolve, sempre, um circuito afetivo com o outro.
Neste circuito afetivo, o sintoma é apenas mais uma representação que se faz visível e, ao mesmo tempo, oculta todo um mundo de fantasias que constroem aquele animal desnaturado, impulsionado, dolorido, chamado humano. Vozes, palavras, histórias... talvez sonhos...
Referências
Freud, S. (1996a). Fragmentos da análise de um caso de histeria (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 7, pp. 1-109). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1905). [ Links ]
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Freud, S. (1996h). Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 19, pp. 303-322). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1925). [ Links ]
Recebido em 09 de maio de 2005
Aceito em 23 de maio de 2005
Revisado em 20 de junho de 2005