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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

As faces do trauma na contemporaneidade: a dialética do dizível e do indizível no transtorno do pânico, uma lacuna na história

 

 

Jacqueline de Oliveira Moreira

Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP, Mestre em Filosofia pela UFMG, Psicóloga Clínica. Professora do Mestrado de Psicologia da PUC/MG, Professora Adjunta III do Departamento de Psicologia da PUC/MG - Unidade Betim, Psicóloga Clínica. End.: R. Congonhas, 161, São Pedro, Belo Horizonte - Minas Gerais - CEP: 30 330 100. E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

No presente trabalho, pretendemos refletir sobre a questão do desamparo e do trauma presentes no transtorno do pânico, sobre a vinculação dessa forma de adoecer com os traumas pós-modernos, e pesquisar a falência traumática do ego em historicizar a vida do sujeito panicado. O mundo moderno não oferece ao sujeito formas eficazes de contornar a condição estrutural de desamparo, criando um ambiente propício ao aumento de casos de transtorno do pânico. A situação de desamparo pode ser atualizada na vida de um sujeito, quando este se depara com a perda de um ideal que funcionaria como referencial organizador de sua estrutura psíquica. A perda desse ideal organizador produz um enlouquecimento da cadência pulsional e, frente ao grande perigo interno, o aparelho psíquico, numa tentativa de defesa, projeta o perigo para o mundo externo na forma de pânico. O ego será o agente dessa projeção, pois é o primeiro anteparo contra a angústia. Assim, o transtorno do pânico é uma tentativa patológica do psiquismo de lidar com o enlouquecimento produzido pela perda do ideal. Nossa hipótese é a de que nesse trabalho o ego perde sua capacidade de retecer a história do sujeito que se refere à relação com a instância ideal. O ego narcísico-imaginário tenta historicizar o início imprevisível, mas o ataque de angústia fragiliza essa instância, criando uma lacuna na história do sujeito. Assim, concordamos com Fédida, quando este revela que o psicanalista cuida do eros doente pelo excesso, a palavra transferencial oferece a escuta e a nominação desse afeto, possibilitando um novo destino para este último (afeto). Idéia que defendemos em um caso clínico ao final do texto.

Palavras-chave: pânico, pós-modernidade, trauma, ego, história


ABSTRACT

In the present paper, we intend to discuss the issues of helplessness and trauma, both present in panic disorder, as well as the link between this sickening process and post-modern traumas. We will also study the ego traumatic failure in historicizing the panicked subject's life. The modern world doesn't provide subjects with efficient ways of dealing with the structural helplessness condition. It creates, therefore, a propitious environment for the rising of panic disorder cases. The helplessness situation can emerge in the subject's life when he has to face the loss of an ideal who used to work as an organizing reference of his psychic structure. The loss of this ideal/organizer generates great confusion in the pulsional cadencies. The psychic system, in order be able to face a great internal danger, in an attempt to defend itself, projects danger in the outside world by panicking. The subject's ego will be the agent of this projection, for it is the primary barrier against anguish. Therefore, panic disorder is a psychic pathological attempt to deal with the craziness generated by the loss of the ideal. Nevertheless, according to our hypothesis, during this whole process the ego loses it's capacity of rebuilding the subject's story concerning his relation to the ideal instance. The narcissistic-imaginary ego tries to historicize the unpredictable beginning, but the anguish attack weakens such instance, and generates a gap in the subject's history. This is why we agree with Fédida, as he reveals the psychoanalyst takes care of an Eros sickened by excess. The word 'transference' offers the hearing and the nomination of this affect, providing it with the possibility of a new faith (affect). This is the idea we stand for in a clinical case described at the end of the text.

Keywords: panic, post modernity, trauma, ego, history


 

 

É EM MIM MESMO QUE TUDO SE FAZ, NO IMENSO PALÁCIO DE
MINHA MEMÓRIA. É AÍ QUE TENHO SOB MINHAS ORDENS O
CÉU, A TERRA, O MAR E TODAS AS SENSAÇÕES QUE PUDE
EXPERIMENTAR, EXCETO AS QUE ESQUECI; É AÍ QUE ME
ENCONTRO A MIM MESMO.

SANTO AGOSTINHO, CONFISSÕES, LIVRO X.

As mudanças culturais, a aceleração da vida cotidiana, o mercado competitivo são ingredientes que produzem novas formas de sintomas ou criam mudanças em antigas formas. Com essa afirmação, buscamos defender a idéia de que os sintomas são inscritos historicamente, que respondem a questões específicas de um dado momento histórico. Não queremos nos comprometer com a afirmação de que determinadas formas de adoecer psíquico só aparecem em uma época específica. Mas acreditamos que o componente social incide de maneira significativa sobre as diferentes possibilidades de manifestação psicopatológica, que podem produzir novos sintomas em antigas formas de adoecer. Não podemos afirmar que o transtorno do pânico seja uma forma de adoecer exclusivamente moderna; Pereira lembra que são encontrados relatos de transtorno similar ao do pânico no início do século XVII.

O inglês Robert Burton (1577-1640) apresentava, em seu famoso tratado sobre a melancolia, uma descrição clínica bastante precisa de uma crise aguda de angústia (Pereira, 2003, p. 43).

Burton, citado por Pereira, descreve sintomas, como palidez, tremor, suor e palpitação que aterrorizam muitos homens quando devem aparecer em público. Essa informação pode representar uma pista histórica que nos coloque na trilha de outros relatos médicos sobre sintomas similares ao do pânico em séculos anteriores.

E, se aceitamos a hipótese de Pereira que associa pânico a desamparo, devemos pensar que a condição de desamparo é humana, independentemente do momento histórico. Pereira revela:

O pânico instaura-se a partir de uma confrontação crua com a dimensão de perigo na sua forma mais absoluta: a Hilflösigkeit, como condição insuperável (Pereira, 1999, p. 313).

Mas podemos pensar que a forma de organização da sociedade moderna cria mais possibilidades de ocorrência de transtorno do pânico, ou seja, um aumento de casos de pânico individual. As sociedades clássicas possuíam uma forma holista e hierárquica de organização, na qual a identidade do indivíduo era vivida na e para a vinculação social. As sociedades modernas baseiam-se no individualismo, o sujeito sente-se livre e autônomo, mas perde a forma simbólica totalizante de proteção contra o desamparo. O sujeito moderno está sozinho, entregue a sua própria sorte. A forma simbólica moderna de proteção contra a situação de desamparo, reatualizada com a descoberta do espaço infinito, é a racionalidade. Essa perspectiva é inaugurada com a frase cartesiana: "penso, logo existo".

Entretanto, o projeto moderno fracassa como possibilidade de contenção e minimização da condição humana de desamparo. Assim, surge a perspectiva pós-moderna1, que assume o profundo caos apresentado no início da modernidade e denuncia a impossibilidade da solução racional, criando assim verdadeiras revoluções da sensibilidade, que podem ser traduzidas pelo imenso individualismo e pela busca sensual dos sujeitos pós-modernos. Mas acolher a fragmentação e a efemeridade pode produzir uma perda do sentido individual e coletivo, desnudar a condição de desamparo.

Se tudo é relativo e provisório, devo viver intensamente o meu agora, sem preocupar-me com o outro e o futuro. Nesse sentido, ocorre um crescente aumento de patologias como a depressão, a toxicomania e o transtorno do pânico. A hipótese é simples: se o pânico individual instaura-se a partir da constatação do desamparo, uma cultura que fracassa na criação de formas de acolhimento e minimização do desamparo irá produzir mais sujeitos vítimas desse mal.

O transtorno do pânico é definido no CID 10 a partir das seguintes características:

Os aspectos essenciais são ataques recorrentes de ansiedade grave (pânico), (...) os sintomas dominantes variam de pessoa para pessoa, porém início súbito de palpitações, dor no peito, sensação de choque, tontura e sentimentos de irrealidade são comuns. Quase invariavelmente há também um medo secundário de morrer, perder o controle ou ficar louco (Organização Mundial da Saúde, 1993, p. 137).

Parece-nos interessante que essas pontuações do CID 10 correspondam à descrição freudiana da sintomatologia clínica da neurose de angústia em 1894-1895. Ao descrever a ansiedade que assola o sujeito com neurose de angústia, Freud (1894-1895/1996a) revela que os ataques de angústia podem estar ou não associados a outras representações, tais como de morte, ameaça de enlouquecimento, parestesia, algum tipo de distúrbio de função corporal, como na respiração, atividade cardíaca, inervação vasomotora ou atividade glandular. Assim, o paciente pode se queixar de espasmo do coração, palpitação, arritmia, taquicardia, dificuldade de respirar, sudorese, inclinação ao vômito e náuseas. Segundo Pereira (2003):

Cabe, portanto, a Freud o mérito de ter realizado, pela primeira vez, a descrição clínica específica do quadro da neurose de angústia. Sua contribuição foi essencialmente de ordem nosológica e nosográfica, ao propor um novo quadro clínico que seria posteriormente assimilado pelas nomenclaturas psiquiátricas (Pereira, 2003, p. 60-61).

Salles e Morais também anunciam a proximidade entre a sintomatologia do transtorno do pânico, assim como descrito pelo CID 10, e a discussão freudiana sobre neurose de angústia. Mas as autoras apontam ainda para outra interessante vinculação entre o transtorno do pânico e a neurose traumática. Em ambas as situações, ocorre a revivência de uma situação traumática primitiva, que se refere à condição primordial de desamparo. Entretanto, a sociedade atual, em seu processo de fragilização do eu, anunciaria uma situação de perigo real que poderia desembocar em aumento de "neuroses traumáticas" na forma de transtorno do pânico. A idéia é que a sociedade contemporânea, em suas afecções narcísicas e performáticas, apresentariam um perigo real ao eu, uma invasão do escudo protetor, pelo excesso de estímulos externos. Como revelam Salles e Morais:

(...) a sociedade contemporânea, com sua violência, competitividade, e culturalmente neonarcísica, tem contribuições para o aumento da incidência de transtorno do pânico nos dias de hoje, onde o homem não se sente amparado pela justiça, às leis são transgredidas (Salles & Morais, 1997, p. 88-89).

A sociedade pós-moderna coloca um perigo real para o sujeito, possibilitando a aproximação entre neurose de angústia e transtorno do pânico, assim como do último com a neurose traumática.

Costa (1988) denuncia a violência da cultura narcísica, que eleva a experiência de impotência/desamparo a níveis alarmantes, colocando a instância imaginária do ego narcísico incapacitada de exercer sua função de anteparo contra a angústia. Nas palavras do autor:

A cultura da violência mostra como a falência dos ideais, acenando com o "pânico narcísico", desequilibra a economia egóica e compromete seriamente o bem-estar do sujeito e de sua sociedade (Costa, 1988, p. 172).

Birman (1999) realiza outra leitura sobre a violência da sociedade narcísica, refletindo, principalmente, sobre os modos de subjetivação pós-modernos que anunciam um autocentramento descentrado. Os sujeitos são narcísicos, centrados em si, mas buscam o olhar do outro para confirmar sua cena estetizante. O autor revela que "na cultura da estetização do eu, o sujeito vale pelo que parece ser" (Birman, 1999, p. 167). A cultura narcísica e do espetáculo exige do sujeito exaltação e glamour, mas, quando o sujeito fracassa em responder a esse ideal pós-moderno, encontra a depressão, o pânico e o universo das drogas. Assim, o sujeito com transtorno do pânico pode ser aquele que "não consegue exercer o fascínio de estetização de sua existência" (Birman, 1999, p. 167).

Mas, na forma de neurose traumática ou de neurose de angústia, o elemento decisivo no transtorno do pânico é o encontro com a situação de desamparo, seja na sua forma de perigo real iminente ou na forma primitiva.

O termo alemão Hilflösigkeit pode ser decomposto em três partes: Hilfe significa socorro, los pode ser definido por sem, keit é uma terminação substantivadora; assim, podemos traduzir Hilflösigkeit por "insocorribilidade". O desamparo coloca o sujeito humano em uma condição de insocorribilidade, portanto, de dívida eterna.

Segundo Lévinas, a primeira experiência do ser está situada ao nível da passividade. "O sujeito encontra-se assim diante da exterioridade à qual está entregue", e essa entrega determina seu curso, mesmo antes da afirmação identitária (Lévinas, 1957, p. 77). Assim, o filósofo entende a condição humana de desamparo como constitutiva do sujeito. Pascal também partilha dessa concepção trágica que pensa a condição humana como miserável, no sentido do desamparo irremediável. Pascal revela que o verdadeiro estado do homem é a incerteza, mas, paradoxalmente, nada é mais contrário à inclinação humana. Ardemos no desejo de encontrar certezas, de solucionar nossa situação de desamparo, mas a condição de insocorribilidade é intransponível. Pascal revela:

Eis o nosso estado verdadeiro, que nos torna incapazes de saber com segurança e de ignorar totalmente. Nadamos num meio-termo vasto, sempre incertos e flutuantes, empurrados de um lado para outro. Qualquer objeto a que pensamos apegar-nos e consolidar-nos abandona-nos e, se o perseguimos, foge à perseguição. Escorrega-nos entre as mãos numa eterna fuga. Nada se detém por nós. É o estado que nos é natural, e, no entanto nenhum será mais contrário à nossa inclinação. Ardemos no desejo de encontrar uma plataforma firme e uma base última e permanente que se erga até o infinito; porém, os alicerces ruem e a terra se abre até o abismo. Desde que compreendamos isso, creio que nos manteremos tranqüilos (Pascal, 1670, frag. 72, p. 54).

Assim, a teoria freudiana sobre o desamparo humano encontra larga fundamentação na filosofia. Mas Freud construiu sua teoria a partir da clínica. Nesse sentido, o psicanalista se depara com fenômenos que permitem avançar nos estudos sobre o desamparo. Em sua segunda teoria sobre a angústia, Freud difundiu a idéia de uma angústia originária (Urangst), que pode ser assimilada à idéia de desamparo. Devido à imaturidade biológica do ser humano, o nascimento é vivido como uma experiência de desamparo (Hilflösigkeit). Freud revela:

O fator biológico é o longo período de tempo durante o qual o jovem da espécie humana está em condições de desamparo e dependência. Sua existência intra-uterina parece ser curta em comparação com a maior parte dos animais, sendo lançado ao mundo num estado menos acabado. (...) os perigos do mundo externo têm maior importância para ele, de modo que o valor do objeto que pode somente protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-uterina é enormemente aumentado. O fator biológico, então, estabelece as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança durante o resto de sua vida (Freud, 1926/1996b, p. 179. Grifos nossos).

A situação de prematuridade anuncia uma experiência de angústia e acentua a importância do outro como fator decisivo na vida do sujeito. A angústia originária de desamparo é traduzida no tempo como angústia de separação, sendo que na fase fálica teremos uma nova modalidade de angústia, a nomeada angústia de castração. Na concepção freudiana, a distinção entre o bom e o mau comportamento, bases da moralidade, é construída a partir da angústia da perda do amor, ou seja, da angústia social. Assim, a angústia de castração, que é manifestação da angústia de separação, que por sua vez é manifestação da angústia originária do desamparo, evolui para angústia social e moral. Provavelmente, no transtorno do pânico, o sujeito vivencia um deslizamento regressivo da angústia social até o desamparo, passando pela angústia de castração e de separação.

O pânico, seja individual ou coletivo, é ativado frente a uma situação de desamparo, na qual o sujeito ou os sujeitos vivenciam o aproximar de um perigo, que pode corresponder ao aumento real de perigo ou à irrupção de um perigo imaginário. Mas "(...) a magnitude do perigo não pode ser a responsável (...)" pelo pânico (Freud, 1921/1996c, p. 122). No único ponto de sua obra em que se dedica explicitamente a comentar o fenômeno do pânico, Freud (1921/1996) defende a tese de uma continuidade estrutural entre o pânico da multidão e o do indivíduo. Ele revela:

No indivíduo o medo é provocado seja pela magnitude de um perigo, seja pela cessação dos laços emocionais (catexias libidinais) (...) Exatamente da mesma maneira, o pânico surge, seja devido a um aumento do perigo comum, seja ao desaparecimento dos laços emocionais que mantêm unido o grupo (...) (Freud, 1921/1996c, p. 123).

Pereira, reconstruindo o argumento freudiano, revela que o pânico, em sua forma individual ou coletiva, pode ser interpretado como "um fenômeno de liberação repentina de uma grande quantidade de investimentos libidinais até então organizados em torno de uma instância suprema erigida em ideal" (Pereira, 1999, p. 78). Acreditamos que o processo do transtorno do pânico individual inicia-se com a perda de um ideal que funciona como referencial organizador do sujeito. Frente ao colapso dessa organização, o sujeito é tomado por um excesso pulsional, que se apresenta como angústia automática referente ao desnudamento da situação de desamparo. Como o sujeito apresenta uma precariedade diante dos perigos do mundo interno, ele projeta os perigos no mundo externo, como forma de defesa e tentativa de reorganização.

Freud (1915/1996d) revela que a diferença entre um estímulo externo e um interno, ou estímulo pulsional, é que o aparelho psíquico não tem como fugir do último. Contra os estímulos externos, o aparelho tem como defesa o afastamento, a fuga. O sujeito não possui muitos recursos para amenizar o aumento do estímulo interno. Entretanto, o princípio de constância exige que se mantenha o nível de excitação, e assim será necessário criar um mecanismo para diminuir o excesso pulsional. Freud (1915/1996d) anuncia quatro modalidades de defesa contra os estímulos internos: reversão ao seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, repressão e sublimação.

Interessa-nos a reversão ao seu oposto, que se refere à mudança do conteúdo. Podemos pensar que no par de opostos - sujeito (ego) versus mundo - encontraremos uma possibilidade de reversão ao seu oposto. Assim, frente ao aumento do estímulo interno, o aparelho psíquico pode usar a modalidade de defesa denominada reversão ao seu oposto e projetar o excesso no mundo externo. O ego "expele o que quer que dentro de si mesmo se torne uma causa de desprazer" (Freud, 1915/1996d, p. 157). Em seus Suplementos Metapsicológicos à Teoria dos Sonhos, Freud (1917[1915]/1996e) descreve o mecanismo da projeção como um mecanismo de defesa contra o excesso energético interno, no caso da fobia histérica.

Podemos recordar que já encontramos a projeção em outra parte, entre os meios adotados para defesa. Também o mecanismo de uma fobia histérica culmina no fato de que o indivíduo é capaz de se proteger mediante tentativas de fuga contra um perigo externo que ocupa o lugar de uma reivindicação instintual interna (Freud, 1917[1915]/1996e, p. 255).

No texto O Inconsciente (1915/1996f)2, Freud já havia anunciado a projeção como mecanismo de defesa da fobia histérica. A fobia histérica difere do transtorno do pânico, pois, no primeiro caso, na maioria das vezes, o sujeito localiza seu medo em um dado objeto, e no pânico a fobia é generalizada. Mas acreditamos que essa utilização defensiva da projeção pode aparecer em outros quadros. O mestre de Viena anuncia que o indivíduo "gostaria de estar equipado com um poder semelhante contra as reivindicações muitas vezes implacáveis de seus instintos. Eis por que se dá ao trabalho de transpor para fora o que se torna problemático dentro dele - isto é, a projetá-lo" (Freud, 1917[1915]/1996e, p. 265). Assim, a angústia automática que irrompe no sujeito no momento de perda do ideal e o confronto com a condição de desamparo tornam-se, do ponto de vista econômico, insuportáveis para o aparelho psíquico. Este se defende da dor implacável projetando o conflito na forma de fobia, de angústia sinal, mas fracassa conduzindo o sujeito ao pânico.

O ego, fragilizado pelo desamparo, fracassa no processo de transformar uma angústia automática em angústia sinal, produzindo o pânico, mas um sucesso foi alcançando. O perigo não se inscreve somente no mundo interno, ele situa-se no mundo externo: medo de multidões, medo de sair, medo de lugares abertos. Essa estratégia confunde o sujeito, fazendo-o pensar que o perigo está no mundo externo. Freud nos fornece subsídios para levantar a hipótese de que mesmo os sintomas corporais, como taquicardia, dispnéia, sudorese e contrações musculares, que não se situam no mundo externo, também representam formas projetivas ou deslocamentos do conflito interno, do excesso pulsional presente na angústia automática, pois, segundo o autor, "o sonho é, entre outras coisas, uma projeção" (Freud, 1917[1915]/1996e, p. 255).

Se o sonho é uma projeção, podemos pensar nos sintomas corporais como projeções, ou como deslocamentos ou deslizamentos do excesso de energia; o excesso de angústia que enlouquece o equilíbrio econômico do aparelho. Assim, no transtorno do pânico, os distúrbios das funções corporais e as fobias de situações cotidianas podem representar projetivamente a angústia automática que assola o sujeito desamparado. Formas de camuflar as questões, distrair o sujeito, centrando sua atenção no corpo.

Existem quadros psíquicos que produzem sintomatologia corporal e, por isso, possuem grande apelo ao saber médico. Podemos citar cinco: somatizações, fenômenos psicossomáticos, hipocondria, conversão e pânico. Os sintomas orgânicos no transtorno do pânico e no fenômeno psicossomático não apresentam um sentido simbólico; representam formas de descarga do excesso pulsional. Elemento que os difere das conversões e somatizações, pois nestas encontramos mediação psíquica. Volich (2000) revela que os sintomas orgânicos do fenômeno psicossomático não se tornam expressão simbólica.

Nessas manifestações, o sintoma somático possui uma função econômica de gestão das excitações e da angústia, sem possuir uma significação simbólica, o que o torna refratário à cura analítica (Volich, 2000, p. 63).

Os sintomas corporais do transtorno do pânico também aparecem como resposta econômica ao excesso pulsional sem mediação simbólica. Parece-nos que os sintomas corporais apresentam-se como forma defensiva de um ego enfraquecido que não encontra o caminho da simbolização, buscando, pois, o caminho da descarga da angústia no corpo e no mundo externo.

Mas por que o sujeito sustenta essa construção imaginária de que o mundo externo é que é hostil? O ego é o primeiro anteparo imaginário contra a angústia avassaladora do desamparo. Segundo Costa, o ego narcísico, "de acordo com sua constituição imaginária, tenta historicizar o início imprevisível" (Costa, 1988, p. 164). O ego do sujeito em situação de pânico encontra-se arruinado, perdendo importante anteparo contra a angústia do desamparo e, conseqüentemente, a capacidade de historicizar sua vida, perdendo-se no caos do excesso pulsional, que encontra vazão nos sintomas corporais e na projeção da angústia na forma de fobias generalizadas.

Acreditamos que o sujeito com transtorno do pânico apresenta uma lacuna em sua história. Parece que ele "não quer saber" de algo em sua história. O pânico parece uma defesa contra essa lacuna. Enquanto o sujeito fica em torno de seus diversos sintomas presentes no transtorno, ele se esquece de partes de sua história. A energia é deslocada para o corpo, desviando a atenção das questões crucias da dinâmica psíquica.

Assim, ao mesmo tempo que o pânico se apresenta como possibilidade de lidar com a angústia automática, através da projeção, ele também funciona como ardiloso mecanismo de camuflagem para a cena que se quer esquecer. Essa cena provavelmente se refere à perda da instância ideal organizadora do psiquismo, ou seja, do confronto direto com a situação de desamparo que anuncia a condição humana de insocorribilidade. Mas seria o pânico um grito de socorro? Uma modalidade de comunicação?

A vivência de satisfação abre caminho para uma nova perspectiva psicológica, mais precisamente para a dimensão psicológica da comunicação. Existe comunicação anterior à constituição de um eu; o choro do bebê é uma expressão comunicativa que invoca o outro, mas sem a intencionalidade de um eu constituído. Nesse sentido, parece pertinente a pergunta de Lévinas: a razão é a condição de possibilidade da linguagem? "A linguagem não está fundada numa relação anterior à compreensão e que constitui a razão?" (Lévinas, 1951, p. 25).

Parece-nos que a linguagem é um acontecimento que antecede a compreensão; a racionalidade compreensiva seria, portanto, posterior ao evento da linguagem. A idéia de pré-compreensão, ou de compreensão pré-lógica, pode representar uma forma de pensar e designar esse evento originário da linguagem. A compreensão racional, o saber, a linguagem como manifestação da razão supõem duas identidades. A linguagem racional pressupõe um eu intencional como emissor e uma consciência no pólo da recepção.

A comunicação racional transita na realidade conceitual, exigindo, pois, consciências em plena atividade, várias identidades portadoras de uma intencionalidade. A linguagem como forma de expressão pode ocorrer sem a presença de consciências; parece-nos que esse é o acontecimento do processo analítico. Assim, pensamos o transtorno do pânico como uma forma de comunicação, mas que não segue, necessariamente, a lógica racional formal.

Voltando a nossa hipótese: o sujeito em pânico sofre com o objetivo de preencher a lacuna em sua história, o ataque de angústia aparece frente ao indizível da perda do ideal. Assim, concordamos com Fédida, quando este revela que "o sofrimento porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno" (Fédida, 1988, p. 29). O autor defende a idéia de que o psicanalista cuida do eros doente pelo excesso; assim, a palavra transferencial oferece a escuta e a nominação desse afeto, possibilitando um novo destino para este último (o afeto). Ele revela que "o psicanalista existe lá onde falhou a linguagem" (Fédida, 1988, p. 52). Em certo sentido, todo sintoma no universo psi aparece onde falhou a linguagem, mas acreditamos que, no caso de ataques de pânico o sujeito quer apagar uma parte de sua história. Como revela Pascal

É preciso conhecer-se a si mesmo; se isso não servisse para encontrar a verdade, serviria para regular a vida, e não há nada mais justo (Pascal, 1670, frag. 66, p. 50).

Essa é a idéia que tentamos defender na construção do caso que relatamos a seguir.

 

Caso clínico

Roberto tem 40 anos e foi indicado para o processo terapêutico pela médica que o atendeu. Faz uso de Prozak e Frontal. Nunca se casou, mora sozinho, tem uma namorada e um filho com uma ex-namorada. Possui um péssimo relacionamento com a mãe de seu filho. Este tem cinco anos e não conhece a avó paterna. Roberto parece deprimido e tem muita dificuldade para falar, para articular palavras e frases. Na primeira seção, dedica-se a descrever seus sintomas, parece prisioneiro destes. Descreve sensações táteis nas pernas que aparecem como um movimento de fluidos e de contração da musculatura. Revela dificuldade de ficar em lugares, a não ser em seu apartamento. Foi perguntado a Roberto se ele poderia localizar o início dos sintomas, e ele foi preciso: "Os sintomas começaram no meu aniversário de 40 anos". Essa precisão de data pareceu revelar algo de uma contabilidade em relação à vida. Assim, fugindo da sedução aprisionante dos diferentes sintomas, Roberto foi convidado a falar de sua vida. Nesse momento, aparece um dado interessante: ele desconhece vários episódios de sua vida. Não sabe direito falar da morte do pai, que ocorreu quando Roberto já era adulto. Comenta sobre um episódio obscuro de sua infância, quando foi morar com sua tia, que parece estar relacionado com seu nascimento. Segundo Roberto, ao nascer, ele apresentou uma doença, diz ter nascido envolto em uma membrana. Tudo parece onírico. Roberto apresenta grandes lacunas em sua história, que parecem vinculadas à condição de desamparo e que foram confrontadas diante da data significativa dos 40 anos. O processo de análise, através da transferência, ofereceu suporte para Roberto dialetizar a tensão entre o dizível e o indizível, para oferecer um lugar no campo da linguagem para o terror do desamparo. O confronto com a situação de desamparo e a perda do ideal são elementos decisivos no transtorno do pânico. Mas parece-nos que a lacuna na história também aciona o processo do pânico.

 

Conclusão

O mundo moderno não oferece ao sujeito formas eficazes de contornar a condição estrutural de desamparo, criando um ambiente propício ao aumento de casos de transtorno do pânico. A situação de desamparo pode ser atualizada na vida de um sujeito, quando este se depara com a perda de um ideal que funcionaria como referencial organizador de sua estrutura psíquica. A perda desse ideal organizador produz um enlouquecimento da cadência pulsional e, frente ao grande perigo interno, o aparelho psíquico, numa tentativa defensiva, projeta o perigo no mundo externo na forma de pânico. O ego será o agente dessa projeção, pois é o primeiro anteparo contra a angústia.

Assim, o transtorno do pânico é uma tentativa patológica do psiquismo de lidar com o enlouquecimento produzido pela perda do ideal. O ego perde sua capacidade de retecer a história do sujeito que se refere à relação com a instância ideal. Essa lacuna dialetiza o campo do dizível e do indizível. O último aparece, sobretudo, na fixação do sujeito aos seus sintomas corporais e fóbicos e em sua relutância em retecer o fio e a trama de sua história.

O caso clínico confirma a perda da instância ideal como fator desencadeante do transtorno do pânico. O sujeito, ao se confrontar com os 40 anos, experimenta uma quebra narcísica de sua imagem de potência. O cliente em questão parece representar o modelo pós-moderno de subjetivação que organiza sua vida em torno da imagem narcísica. A queda desse ideal organizador produz o enlouquecimento pulsional, que representa grande perigo interno. Esse perigo é projetado no mundo externo na forma de pânico.

Mas, nesse movimento defensivo e patológico, Roberto perde a capacidade de historicizar sua vida e compreender as condições que o levaram a essa construção narcísica como sede e centro da existência. Roberto não sabe de sua história. É nesse campo do indizível que se situam as "palavras" transformadas em pânico. A partir do laço transferencial, Roberto tenta retecer sua história, inclusive busca informações com sua irmã mais velha. No momento em que a história é reescrita, os sintomas do pânico vão desaparecendo, pois o movimento pendular entre o dizível e o indizível tende para o campo do dizível.

 

Referências

Costa, J. F. (1988). Narcisismo em tempos sombrios. In. J. Birman, Percursos na história da psicanálise (151-174). Rio de Janeiro: Taurus.         [ Links ]

Fédida, P. (1988). Clínica psicanalítica: Estudos. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (1996a). Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada "Neurose de Angústia" (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 3, pp. 91-118). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1895 [1894]).         [ Links ]

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Recebido em 18 de abril de 2005
Aceito em 09 de maio de 2005
Revisado em 14 de novembro de 2005

 

 

Notas

1 Não existe consenso sobre a utilização da expressão "pós-modernidade", mas, para alcançar os objetivos deste artigo, optamos por tal nomenclatura.
2 Freud revela: "o ego comporta-se como se o perigo de um desenvolvimento da ansiedade o ameaçasse, não a partir da direção de um impulso instintual, mas da direção de uma percepção, tornando-se assim capaz de reagir contra esse perigo externo através das tentativas de fuga representadas por evitações fóbicas". (Freud, 1915/1996f, p. 211)

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