Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
ARTIGOS
Por uma clínica do impessoal: articulações entre o corpo e o tempo
Carmen Ines DebenettiI; Tania Mara Galli FonsecaII
IPsicóloga. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Especialista em Psicoterapia da Infância e Adolescência. Especialista em Psicanálise das Configurações Vinculares. Integrante do Grupo de Pesquisa: Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar do PPGPSI-UFRGS. Professora no Curso de Formação em Psicanálise das Configurações Vinculares. End.: Rua Albion, 402 apto. 1110 CEP: 91530-010. Porto Alegre - RS. E-mail: carmen.debenetti@ig.com.br
IIPsicóloga, Doutora em Educação, Professora Titular em Psicologia Social no Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Informática Educativa da UFRGS. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa: Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar. End.: Campos Salles, 262. CEP: 90480-030. Porto Alegre - RS. E-mail: tfonseca@via-rs-net
RESUMO
Este trabalho problematiza a questão da origem na Psicanálise. Se o existente para o psiquismo, no âmbito da representação, tem uma origem única nos primeiros anos de vida ou é possível pensar distintos momentos para a sua inscrição. Articula-se o conceito de "processo originário" de Piera Aulagnier com conceitos de acontecimento e de impessoal da Filosofia da Diferença para dar conta da intervenção do não representável e do novo na constituição da subjetividade. No pré-representativo, figura o originário-gênese, que privilegia o impessoal que tem a característica de não ser pessoal nem individual. Este irrepresentável é uma série de marcas e fatos mentais vinculados ao devir, opera como tendência a completar atos e está à espera de um corpo ou objeto que lhe dê significação. Neste sentido, o momento originário se desloca para entre os corpos como causa que vai fazer congelar, repetir, aparecer. O que se passa entre os corpos é uma novidade radical que reinventa o originário. Neste sentido, a transferência não deve apontar essencialmente para o reencontro com o passado, mas deixar lugar para que se produza o inédito. A interpretação introduz outro trabalho a realizar que começa no entre, em que não há coincidências, no inominável do entre que gera inconsciente e constrói outras origens.
Palavras-chaves: clínica psicanalítica, Piera Aulagnier, irrepresentável do corpo, acontecimento na clínica, Filosofia da diferença.
ABSTRACT
This work doubts the origin matter in the Psychoanalysis. If the existing for the psyche, in the representation scope, has an origin only in the first years of life or if it is possible to think distinct moments for its registration. It is articulated the concept of "original process" of Piera Aulagnier with the happening and impersonal concepts of the Difference Philosophy, to give intervention account of the non-representable and of the new in the subjectivity constitution. In the pre-representative figures the original-genesis that privileges the impersonal, that has the characteristic of not being personal neither individual. Non-represnetable is a series of marks and mental facts entailed to the becoming, it operates as tendency to complete acts and is at the wait of a body or object to give it significance. In this sense, the original moment dislocates among bodies as a cause that it is going to freeze, repeat, appear. What happens among the bodies is radically new that reinvents the original. In this sense, the transfer should not point essentially at meet again it with the past, but to give place so that it produces the unpublished. The interpretation introduces other work to accomplish that starts in the between, where there are no coincidences, in the unnamable of the between that generates unconscious and builds other origins.
Keywords: psychoanalytical clinic, Piera Aulagnier, non-representable of the body, happening in the clinic, difference Philosophy.
Mas há também o mistério do impessoal que é o it: eu
tenho o impessoal dentro de mim e
não é corrupto e apodrecível pelo pessoal que às vezes me encharca:
mas seco-me ao sol e sou um impessoal de caroço
seco e germinável.
Clarice Lispector
Como operar uma clínica do que não pode ser dito, porque não há palavras que expressem um sofrimento que mal pode ser tolerado e que não tem pausa, como um vazio que não pode ser encerrado e em torno do qual nada se inscreve, como hemorragia em que tudo desliza e não se liga a ponto algum?
Vitória, que se trata há oito meses, sente-se desligada do mundo e das pessoas, principalmente das pessoas que mais ama ou amava e, por conta disso, se desliga da vida. Não crê voltar a sentir vontade de viver. Nada toca seu coração e tudo o que acontece parece escorrer e se perder sem fazer conexões com o que está dentro de si. Seu corpo e seus sentidos estão sempre à flor da pele, captam mínimos movimentos e intensidades afetivas. Vitória teme perder o controle sobre sua vida e tentar o suicídio, como já o fez. Pode-se dizer que a loucura de Vitória consiste em não conseguir segurar-se no mundo e afundar-se nele. A saúde, nesta perspectiva, significa a possibilidade de estar em consistência num infinito aberto ao devir.
Na clínica, sabe-se quão intenso é o sofrimento do paciente, quando se depara com processos psíquicos ligados a estados emocionais intensos. Parece estabelecerem-se como um psiquismo corporal marcado por códigos afetivos sem significações e que se furtam ao representacional. Quando a linguagem falta, abre-se um vazio que mantém o sujeito no limite, à beira da fissura, no abismo. Nossa sensibilidade e intuição podem ser nossas únicas ferramentas para trabalhar nesta passagem entre o mundo da comunicação humana normal e o escandaloso e transbordante a-significante que habita o "originário".
A prática clínica sempre excede as teorias que pensam o seu modelo e desafia nosso fazer com o impossível. Pode-se afirmar que a determinação passada não orienta a determinação, senão que existe um estado indeterminado que orienta a determinação. Como pensar, na clínica, um conceito de potencialidade que aponta para a virtualidade que resiste a toda a representação e é invisível e inominável? Como pensar esta problemática? Não se trata de substituir um modelo por outro, mas complexizar e gerar condições para produzir e criar muito além da repetição. Seria produzir uma mudança de ótica na maneira de pensar a clínica, abrir espaços para pensar sobre pontos de impasses, contradições, turbulências em nosso fazer cotidiano, para não fechar a possibilidade de atravessar avatares da investigação, cujo ponto culminante é a singularidade de cada sujeito. Tomar contato com o desconhecido para que não passe de pontos obscuros a certezas, e manter viva a capacidade de assombrar-se diante do inesperado e do complexo, mesmo que o preço a ser pago seja o caos em nosso pensamento e em nossa intervenção clínica. Cabe, então, perguntar como se realiza o inesperado. O inesperado se efetuaria como algo invisível e inominável que já está lá e não se sabe? Ou haveria uma descontinuidade que não se pode prever porque não tem existência prévia? Estas interrogações constroem um dispositivo que implica conceber a presença do analista na produção da relação analista-analisando. Seria, então, um espaço aberto à significação que aponta a nomear o que não tem nome e fazer falar o que não tem palavra. Significa acolher a descontinuidade que marca uma ruptura, porque a exterioridade permite nomear o vazio e o não sabido de onde advém um sentido novo que cria interioridades e constitui um novo corpo. Desde esta ótica, a direção da clínica implica ir além de desvelar sentidos. Implica, antes de tudo, fazer inscrições inéditas que não estavam e irão gerar novos inconscientes que modificarão as significações existentes.
Reconhece-se que intervém na constituição da subjetividade o não representável, aquilo que não tem inscrição prévia, o "novo", isto é, o que se faz, o que está acontecendo e, portanto, ainda sem representação. Há um indizível e invisível no corpo. Os fatos humanos não são óbvios, o estranhamento das certezas vem relativizar a representação como a única forma de conhecimento da mente humana. Há uma outra lógica que constrói o corpo que é a da processualidade; nela o conhecimento do corpo não é dado, ele se engendra configurando-se num plano de imanência e não muda por um ideal abstrato ou por um modelo ao qual deveria se conformar.
Gil (2002) constrói a hipótese de que o vivido do espaço do corpo está além do vivido da consciência; está nas fronteiras entre o sentido e o pensado. Faz-se por meio do corpo paradoxal como fonte do paradoxo da presença e da ausência, que diz respeito à articulação psyque/soma. As percepções de movimentos ínfimos, mas de forças poderosas do corpo, sobem à superfície da consciência, infiltram-se nela e tornam-se consciência do corpo que desencadeia a percepção de movimentos virtuais. O pensamento não pode compreender os movimentos paradoxais do corpo, sem que estes se tornem eles próprios movimentos do pensamento. Assim, percorrendo as mesmas vias dos movimentos do corpo, visto do interior, o pensamento se faz corpo.
Desde este ponto de vista, o corpo se faz corpo com o que acontece a ele. Além disso, com o que acontece entre ele e o outro. Para Espinosa, o que há são corpos que se ligam e se desligam e produzem marcas que formam signos que falam dos efeitos produzidos pelos encontros. Encontros que produzem marcas nada explicam sobre a natureza de um corpo, apenas expressam sua potência de afetar e ser afetado. Portanto, trata-se de como o corpo funciona e não o que significa, como ele se expressa num determinado encontro é o que as marcas informam. Sempre se está no meio de algo e o meio é o encontro dos corpos, todo corpo dotado da capacidade de afetar e ser afetado. Sendo assim, o que subjetiviza o sujeito é o encontro com o outro.
A questão clínica que se coloca refere-se a inventar uma rede conceitual que dê sustentação à problematização da clínica como um processo. Trata-se de pensar o ato clínico direcionado ao meio que cresce e transborda como um campo do invisível, do não-saber que faz parte do processo de constituição dos corpos. Ato para além da representação. O que quer dizer trabalhar a produção de deslocamentos e de intensidades dando corpo ao que ainda não existe como próprio a um ato de criação. Buscar formas de liberar a vida ali, onde ela está aprisionada numa forma constituída que parou seu processo de transformação.
Na Psicanálise, esta questão se relaciona com a origem; se o que é existente para o psiquismo, no âmbito da representação, tem uma origem única nos primeiros anos de vida ou é possível se pensar distintos momentos para a sua inscrição. Neste sentido, o originário desafia permanentemente nossa clínica que toma a idéia da linguagem representacional ou da concepção de uma cadeia significante, que vê na interpretação um meio privilegiado para a cura e se liga a uma busca de sentido na origem. Aqui, as dimensões do originário do corpo, no que concerne aos registros arcaicos da corporeidade e seus desdobramentos, nos faz ampliar o campo da escuta clínica.
O que Vitória apresenta se parece muito ao que está no domínio do que se chama "processo originário" (Aulagnier, p. 1979). Antes mesmo que se lhe diga alguma coisa, Vitória expressa sua contrariedade em buscar em sua dramática história infantil um significado para o sem sentido de sua vida. Vive um excessivo desligamento afetivo de sua família de origem. Pouco fala de seus familiares e quando o faz conta episódios dramáticos. Localiza seu desejo de morte nas vivências atuais com o marido que, segundo ela, não a entende, e com a irmã que, se por um lado é a responsável por parte dos agravos que sofre ou sofrera nos últimos anos, por outro, é a única pessoa da família com a qual mantém um laço afetivo estreito. Que Vitória teve um passado dramático é incontestável, mas é por outro caminho que Vitória mostra saídas, aquele em que os laços atuais são decisivos para impedir que a mais antiga história dos primórdios jorre como hemorragia que encobre e faz impossível outras possibilidades que façam modificações em sua subjetividade. Não se pode dizer que este tempo antes é o tempo de uma verdade, mas, antes, que é uma construção do presente.
O originário concerne a efeitos que se referem a impressões precoces da pré-história da constituição psíquica, mas que não são acessíveis à recordação, dado que aconteceram em um período prévio à aquisição da linguagem. Pode-se inferir uma complexa articulação do vivenciado precocemente em que se combinam marcas e restos de acontecimentos que não tiveram uma representação psíquica e são como forças que pulsam e se manifestam como tendência a completar atos, um sem significado que se constitui como potencialidade. Em outras palavras, nestas marcas que constituem o núcleo inassimilável próprio do que não pode ser simbolizado, aninha-se um efeito potencial da ordem inconsciente do não realizado. Trata-se de uma reserva disposta a entrar em jogo, conforme certas combinatórias possíveis inerentes ao vínculo com o outro. É, então, no marco de uma determinada relação que este núcleo inassimilável cobrará uma forma absolutamente singular. É possível conceber o entre como uma convocatória que se produz desde essas marcas pré-subjetivas, desde este vazio de significação que atrai e cria combinações inéditas.
Deste modo, é possível tomar o originário como um fundo que não acede à simbolização, faz combinações ao azar e desenha a trama sobre um fundo pré-subjetivo e pré-representativo. Pré onde figuram o texto primitivo e o originário, num indizível e invisível porque é um campo de forças. Um pré-formado como uma força viva que ligada aos primórdios faz efeitos no presente e, assim, passa a ter existência para a psique. Assim, se diz que o passado se constrói no presente.
Por este caminho, se reconhece uma outra lógica, uma outra forma de pensar em que o originário está sempre reescrevendo o corpo a partir das combinações que faz. Neste sentido, a tônica se desloca do momento originário para o entre os corpos como causa que vai fazer congelar, repetir, aparecer. O que se passa entre os corpos é uma novidade radical que reinventa o originário. Os diferentes estados vivenciados no entre modificam o corpo que se constrói outro a partir das conjunções de cada encontro.
Este núcleo primitivo, que corresponde à singularidade do sujeito, é possível de ser pensado desde seu potencial de criação, caracterizando-se como acontecimento (Deleuze, 2003), como emergência de um fato novo que não tem lugar nem representação prévia, porque recém apresentado ao psiquismo. É algo que é apreendido depois de produzido e abre caminho para o que não existia. Não havia um lugar esperando o novo e quando se lhe faz um lugar, muda a significação do que existia até então, mudando a subjetividade.
Isto significa que o acontecimento é indiferente e neutro às determinações do interior e do exterior do corpo. Caracteriza-se como impessoal, composto de singularidades que não são aprisionadas à individualidade fixa do ser nem aos limites do conhecimento. Alguma coisa que não é nem individual nem pessoal. Comporta um potencial que produz e atualiza a unidade que era até então, produz um novo discurso e trata o sentido não como representação, mas como signo.
O acesso ao novo caracteriza o plano dos impessoais, do irrepresentável, em que o corpo se faz no ultrapassamento das camadas localizadas e estratificadas de um eu e da identidade. Aquilo que não remete a nenhum significado, aquilo que está no campo das intensidades, que "aquilo quer permanecer mudo" requer uma outra relação com a clínica que não se daria naquilo que temos para pensar, mas, antes, dando passagem ao que não tem nome, aos invisíveis que buscam passagem e que ao fazê-lo produzem rachaduras no identitário.
Sendo assim, reconhece-se que as marcas originárias colocam-se como escritos do corpo, signos que não são representações psíquicas inconscientes. Não se trata de formas, mas forças, tendências e intensidades do corpo do sujeito. O ser sofre as conseqüências dessas marcas, mas não as reconhece por não estarem metabolizadas em matéria comum ao que lhe é existente, ou seja, um "pensável". Esses signos são singularidades impessoais e pré-individuais que se potencializam nas conjunções do entre.
A Psicanálise edificou-se sobre a representação inconsciente derivada das marcas da memória representadas no psiquismo, as quais se associam a continuidade psíquica. A origem e o encontro com os outros são conhecidos desde os primeiros anos de vida, e remetem ao significado dessa origem fantasiada. No entanto, como estamos vendo, existem marcas e traços a-significantes alojados no aparelho psíquico que só podem adquirir uma significação e serem transformados em pensamento, quando permite o contexto. Estes impessoais estão à espera de um corpo ou de um objeto que lhe dê significação. Esse existente não inscrito e irrepresentável opera como uma potencialidade capaz de produzir um novo que obrigará a um trabalho psíquico, que levará a uma inscrição e, por conseguinte, passará à representação. O irrepresentável é, portanto, uma série de fatos mentais vinculados ao devir que caracteriza uma descontinuidade a respeito da origem infantil; não tem inscrição inconsciente ou estão à espera de uma inscrição e, portanto, não existem sob o império da representação.
O lugar privilegiado do sentido é no vazio em que há o irrepresentável, o não-saber de uma linguagem constitutiva do corpo. O vazio recai num ponto invisível que obriga um fazer incessante em torno de um lugar vazio, do insignificável, em que a escrita de um corpo se faz sempre pelo contorno de um vazio. No vazio, instala-se um diálogo entre o representável e o irrepresentável, que produz um estranho efeito de inquietude exatamente pela dificuldade de se estabelecerem as fronteiras entre ambos.
Uma clínica, nesta zona de indeterminação, privilegia o impessoal, irrepresentável e inominável. Não os indivíduos, mas aquilo que passa entre eles, no que passa entre os corpos, aquilo que sempre faz devir os seus corpos. O que significa que o impessoal irrepresentável é o motor da constituição do sujeito. É assim que tudo muda de sentido numa operação no entre; o sujeito deixa de ser o que era até então quando se vincula com outro. Há a impossibilidade de dizer o significado de uma origem única, quando é o entre que determina. Esse eu que pensa, que comanda e fala não existe, perde o sentido nessa operação. Equivale a dizer que o eu é igual ao outro com outros e com o mundo.
É evidente que a dimensão do irrepresentável instala na análise um trabalho que não é propriamente a revisão do passado. Algo está à espera de uma inscrição e requer uma modificação no pensar, porque a forma anterior de pensar não abarca o novo. O trabalho com o irrepresentável, neste sentido, é fazê-lo inscrever-se e, assim, passar à representação. Para esta tarefa, não se encontrarão referências no passado. Trata-se do que o sujeito vai fazer com o novo que se apresenta. Não tolerar o devir instala a repetição. Estamos então, na clínica, diante de um trabalho que parte do que ainda não existe, num processo que propicia construir, reconstruir, significar desde as mais obscuras marcas que se sedimentaram como verdadeiras possibilidades de criação para o funcionamento psíquico. Trata-se de uma tarefa de inscrição própria da clínica em seu caráter de novidade que interroga combinatórias capazes de iluminar simbolizações e ligaduras, de abrir perguntas e possibilidades, ali, onde opera a mudez e faz conceber uma outra produção de subjetividade.
Isto nos faz reconhecer que o irrepresentável problematiza o sujeito e a clínica, porque traz o devir e o mundo dos outros. Fundamenta-se no novo que toda relação com o outro comporta e excede as dimensões existentes, implicando uma ampliação da constituição do sujeito e de nossa clínica.
Devir-outro naquilo que se pode experimentar de composição com outros modos de afecção e de subjetivação, de tal forma que combinações entram em relação de movimento e repouso em zonas ainda não conhecidas. No entre se cria uma zona de indiscernibilidade na qual se encontram movimentos, forças e combinações que se dão pelos vazios entre as coisas e como ressoam umas nas outras. O entre é movimento transversal, fluxo incessante, devir e, como tal, só pode ser definido fragmentária e provisoriamente a partir da relação entre dois, que significa não ser um nem outro, não ser ninguém. Estar no meio é não ter concluído, não ter nada, não ter chegado. E no meio há apenas o vazio, o não-ser. O corpo não seria mesmo algo que se tece em torno de um vazio, cujas maneiras de se lidar com este vazio produziria um corpo cujo tom, cujo ritmo se marcaria por um efeito que se tornaria a cicatriz, a marca-ferida como grafia da dor?
Quanto vazio há ao redor dos objetos e de uma época, quanto espaço entre para outras subjetivações ainda não imaginadas que não são de um ser, de uma substância, mas de relações de intensidade que têm o poder de afetar e serem afetadas. Ali a vida pode expandir-se como ato resultante de interações de indivíduos. Lispector (1973, p. 109), com suas mil linguagens, diz do lugar do invento: "E acima da liberdade, acima de certo vazio crio ondas musicais calmíssimas e repetidas. A loucura do invento". Assim, é que nos inspiramos em Lispector para retratar aqui o novo, o que está sendo construído. Isto porque pensamos que a "boa literatura", aquela que deixa pontos de incertezas e possibilidades para o surgimento de algo inédito, aquela que, colocada do lado do informe e do inacabado, e por isso mesmo, descobre a potência de um impessoal que liberta a vida na qual ela está aprisionada; esta literatura é geradora de possibilidades de vida. Para escritores como Lispector, as palavras não estão ali para classificar e abstrair a realidade nem representá-la, mas, antes, para construir uma realidade que antes delas não existia. As palavras rearranjam-se num jogo sem fim que a princípio nos põem um universo desconhecido e incompreensível numa tentativa de captar o impossível da natureza.
Desde este ponto de vista, a gênese do sujeito se dá numa fissura que é indeterminação, há, antes, um devir que se move entre as coisas, pelas combinações no vazio entre os corpos e os movimentos. Esta concepção da constituição do sujeito requer outra noção para pensar um tempo que comporta estratos que se cruzam e se encontram e configuram-se no domínio do pré-representativo. É um tempo consentâneo à força do novo, que é um tempo em sua máxima potência. Um tempo que sabe impossível chegar à origem, à fonte, à verdade. Um tempo construindo-se como texto, construção do vivido. Equivale à concepção de tempo que refere Pelbart (2000), como duração do fundo que faz uma abertura ao infinito ao pré-individual do entre que possibilitará o inédito. O tempo como co-existência de tempos encadeados numa lógica impessoal que se coloca como potencialidade que não pára de fazer devires e cria a origem a cada vez. Lispector (1973, p. 23) dirá dos tempos que engendram: "À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro...".
Estamos no que Maldiney (Pelbart, 2000) chama de ritmo que não comporta uma extensão temporal, nem duração contínua, mas o que poderia se chamar na linha de Bergson de "tensões de duração". Ritmo é o meio em que as coisas são na sua natureza, é a forma da presença, do que se impõe. É um existencial como fundo do mundo no qual estamos imersos. O ritmo como um fundo que eclode na mais íntima sensação de surpresa em relação ao real, que não é o que se esperava e que, no entanto, "está sempre já aí".
Neste fundo, a emergência está na entrada em cena das forças em erupção que fazem as marcas de um originário impessoal, que não é pessoa ainda, saltar ao primeiro plano. A história e o tempo não percorrem caminhos lineares. Há um jogo que mostra um combate de forças frente a circunstâncias adversas, em que irrompem acontecimentos que destroem o que era até então para formar-se outro sujeito distinto.
Assim, vê-se que os objetos não se esgotam naquilo como se apresentam; em torno deles, há todo um campo do possível a ser efetuado que implica outras formas de se constituir. O sujeito é descentrado, não é ele quem fala e vê as coisas do mundo, mas é visto e falado pelas condições do seu estrato histórico. Não há nenhum oculto a ser revelado, há incisões a serem feitas nos estratos históricos para que o invisível "já-presente" busque passagem e ao fazê-lo produza rachaduras. Nesta perspectiva, o que há a ser feito, na clínica, é investir no irrepresentável que desestrutura o ser ao invés de confirmar a identidade. Tarefa que se inicia onde não há nada, a não ser possibilidades de criação do que ainda não existe.
Em outras palavras, busca-se uma linguagem para dizer o corpo impregnado de tempo que remete à origem escondida simultaneamente no irrepresentável do corpo e nessa zona de indistinção, que é o entre. Aí o mais primitivo vive em contínuo vivo com as coisas, imerso num fundo invisível das zonas indecidíveis e indizíveis que revelam forças capazes de produzir atos na superfície.
Este originário informe do corpo é o que faz a ligação entre a linguagem, o representável e o irrepresentável que, articulados, produzem o sentido sempre originário. Sendo assim, o irrepresentável é a condição de um campo mental distinto que supõe outra origem e abre o caminho para pensar o não-conhecido da constituição da subjetividade. Um campo transcendental impessoal no qual a vida do sujeito se apaga em proveito da vida singular imanente. Assim, a vida do sujeito dá lugar a uma vida que vem do primitivo, se abre à superfície e libera singularidades impessoais e pré-individuais que ele aprisiona e solta-as como potências nas conjunções que faz com os outros corpos e o mundo.
Toma-se, então, o originário como gênese no sentido de um fundo em que os indivíduos se constituem e que diz do fundo dos indivíduos e do próprio mundo. Um mundo originário que tem caráter de informe como um fundo feito de matérias não-formadas, fundo indeterminado e virtual qual faz referência Deleuze (Pelbart, 2004). Um fundo como memória constituída de passados que se comunicam entre si e que se exercem sobre uma ponta de presente. A memória deixa de ser uma faculdade interior ao homem para ser uma memória-mundo em que o homem habita. Um tempo que dura num fundo indeterminado capaz de fazer combinações inesperadas, no qual a origem de tudo desloca-se para o entre.
É por esses caminhos que se toma o "fundo representativo" do processo originário de Aulagnier como um "fundo indeterminado", como mundo originário indeterminado e virtual. Fundo forcluído do poder de conhecimento do sujeito e que se diz de estados do corpo, sensações e percepções inconscientes que se abrem a múltiplas possibilidades e, se apenas uma se mostra visível para o sujeito, não quer dizer que elas não se multiplicam infinitamente. Pensa-se este fundo funcionando como uma tendência, marcas e traços dos sujeitos; o tempo como duração que potencializa as virtualidades. É um reservatório de potencialidades, antes que um fundo representativo.
Desde este ponto de vista, o devir do ser que supõe uma multiplicidade de singularidades pré-pessoais requer uma concepção de estrutura como uma espécie de "reservatório" em que tudo coexiste virtualmente, em que a atualização se faz segundo direções exclusivas, implicando combinações parciais e escolhas inconscientes. No meio não há identidade que se sustente, a não ser na sua evidente provisoriedade. Não se pode, portanto, falar de estrutura como disposição ordenada de partes que compõem um todo. O plano do qual se fala é de fluxos, de deslocamentos, de energia em processo de transformação. Uma lógica do sentido que escapa do que identifica e se afirma na multiplicidade. Detectar a estrutura de um domínio é, portanto, determinar toda a virtualidade de co-existência que pré-existe aos seres. Fala-se antes de uma estrutura da relação que contingentemente configura os termos. Se há estruturas, elas são provisórias, fragmentárias, fluídas, sem limites precisos e ainda nada explicam, devem ser explicadas pelos agenciamentos que as estão constituindo.
De modo análogo, em Aulagnier (1979), encontra-se o conceito de potencialidade, ao invés de estrutura, para caracterizar uma forma de conceber a mente aberta a múltiplos e diversos cruzamentos possíveis, o que parece dar conta de uma abertura ao meio, ao invés de uma busca no início para as determinações da vida. O "efeito de encontro", resultado de marcas que determinam a constituição do sujeito e o acontecido, é decisório. Potencialidade pode ser definida como um modo de "encarnar-se" um drama em cada sujeito; é aquilo que espera entrar em jogo a partir de certas combinatórias possíveis, ou seja, o efeito de intersecção entre singularidades de cada sujeito e a combinação entre o predizível e o imprevisível.
Desta forma, não se pode dizer que a compreensão do sujeito passa exclusivamente por uma concepção do inconsciente que incide sobre pessoas e objetos, mas, sim, que há rearranjos incessantes mobilizados por deslocamentos e intensidades. Não há uma verdade nas profundezas, mas deslizamento na superfície; criação de caminhos sem memória em que se atingem as velocidades e as forças, em que os tempos se comunicam e se cruzam. O que significa dizer que o inconsciente sai da problemática do encadeamento passado-presente e arrasta-se em direção à lógica virtual-atual que abandona a concepção reativa da vida. É como dizer que o passado é um virtual que insiste, que dura, aparece, desaparece, faz o sintoma aparecer como uma ferida.
Essa forma de entender o corpo como algo em processo de devir marcado por uma lógica da criação instala na clínica uma inversão da linha de pensamento que leva o sujeito representativo, subjetivo e identitário para o campo pré-subjetivo e pré-objetivo que amplia a subjetividade. Subjaz ao saber um saber que só pode ser compreendido a partir desse campo prévio. Constitui-se num diálogo com o virtual, tomando o invisível do fato em que a coisa se toca com o pensamento, em que a coisa se faz dando lugar a uma visão que ilumina o instante e produz a diferença; a sensação que desafia qualquer opinião, qualquer estrutura.
Na clínica, é colocar em ação o histórico em suas relações com o a-histórico, ou seja, pela via da história contatar o a-histórico. Pinçar, nunca deliberadamente, aquele fragmento, em especial os a-significantes, para colocá-los no dispositivo, intercalando-se nele como uma peça a mais cujo desejo seja fazer funcionar. Algo vem do passado que não coincide exatamente com o que foi vivido. A história não é a via privilegiada da clínica, mas, sim, a via dos afectos intensivos que alojam os impessoais. Desde este ponto de vista, a abordagem da repetição deixa de lado a produção desejante que é essa denominação do a-histórico. Não é a origem a razão da história, mas a afirmação da criação que habita o acaso. A origem localiza-se num tempo em que houve uma experiência inédita que remete os sujeitos a um ponto de partida enquanto experiências posteriores que inscrevem uma marca. Essa experiência que altera e estabelece outra subjetividade considera-se origem. Logo, trata-se antes de criar a origem sempre provisoriamente que curar marcas traumáticas da origem.
Voltando, então, ao originário de Aulagnier, entrevê-se nele um domínio equivalente à região do pré, que diz respeito às sensações primitivas, aos estados vividos mais originários pré-conceituais. Antes mesmo de um ser no mundo, há um sentir sem referência ainda a algum objeto percebido. É nesse nível que o engendramento de uma forma é possível. Passa-se antes da obra; é o aberto no vazio que aciona outras possibilidades e no qual a obra se engendra. Ocorre uma conjunção de processos e movimentos como condição para a emergência de configurações diversas que produzem o novo.
Oury (Pelbart, 2000) refere que na psicose o que conta é esse espaço pré-representacional, pré-intencional, pré-perceptivo, constituindo toda uma zona do pré, "região do pré", que pode ser chamada de relação pática. Para Oury, o que não ocorreu na psicose foi o recalque originário, porque não houve o esquecimento do vazio do "inteiramente outro", hostil, sempre ameaçador, contra o qual não há proteção alguma. Trata-se de um vazio que não pode ser encerrado e em torno do qual algo poderia ter sido inscrito e, portanto, provoca uma hemorragia.
Deleuze (1966) toma a esquizofrenia como personagem conceitual para situar esta região do pré portadora de fluxos que escapam aos códigos, que correm por toda a parte, que deslizam sobre o corpo do socius. É o lugar onde os corpos e as palavras são ao mesmo tempo separados e articulados por uma fronteira incorporal em que o expresso puro das palavras e o atributo lógico dos corpos se tocam. Trata-se do impessoal dos corpos, este fundo indiferenciado, que misturado a outros corpos e seus incorporais produz o sentido.
Essa profundidade psicótica dos corpos não é privilegio dos psicóticos. Todos os seres podem contatar com esta região do pré através de um corpo sensível que se pode entender como possibilidade de acessar ao não-ser. Ele é impessoal e irrepresentável e, por isso, não submetido às regras da organização do eu. Mergulha no caos e é a partir das forças que daí retira que ele traça na superfície sua singularidade para além da configuração visível. Um inconsciente em que o fundo dos corpos sobe à superfície e nela se envolve, constituindo um movimento que vai da profundidade à superfície e aí faz conexões.
É importante observar que não se trata do frágil a ser tomado como forte, mas como singularidade do corpo. Não é apenas do domínio da positivação de um impasse, um obscuro, um negativo que pode paralisar as modificações do sujeito, em que se reacomodariam e se desprezariam uma série de noções prévias que funcionam como obstáculo do surgimento do novo ou que tendem a encobri-lo de sua significação anterior. Em Lo representable, lo irrepresentable y la presentación, Berenstein (2004) nos faz compreender que, para além de um negativo, encontra-se um valor fundante como suporte de uma modificação, de um ponto de partida que supõe uma nova origem.
Desta forma, o corpo não se constitui num controle sobre o tempo sob a forma de rememoração de um passado ou pela promessa de um futuro. Mas também não é a manifestação de um vazio. Quando algo se produz, está se construindo a partir do pático, esse tempo do pré, tempo como matéria fluída do narcisismo originário. Ali, o informe do corpo e a tendência a agir evocam o esquecimento e a espera, em que há a possibilidade de uma apreensão que constitui sujeito e objeto. Daí o estabelecimento de uma relação no entre que não é dissolvida por uma interioridade, mas relação com o entre que faz nascer um novo corpo.
Assim, num mundo que se configura no domínio do pré-representativo, a tarefa analítica é agenciar o inominável, aquilo que ainda não é. Lispector (1973, p. 97) retrata isto que ainda não é, não tem nome e que evoca reinos incomunicáveis do espírito em que o traço se torna existência: "Minha história é de uma escuridão tranqüila, de raiz adormecida na sua força, de odor que não tem perfume. E em nada disso existe o abstrato. É o figurativo do inominável". O que deseja Lispector é a pureza que consiste na idéia de coisa-se-fazendo, o sangue fervilhando nas entranhas do que um dia será. Formas para alcançar o "figurativo do inominável"? Parece ser o que insiste na tarefa de captar o que escapa ao que não tem nome e figuração. Trata-se de recomeçar do início, do que ficou em aberto, do vazio em que a palavra cai, no silêncio, e suscita sua retomada mais adiante.
O campo do inominável implica suportar o não-saber e buscar o caminho inverso, aquele que inicia a investigação pela superfície. Estar na superfície é estar presente, assumir o fundo, tomar pé num ilimitado, numa abertura ao inesperado que faz possível aquilo que a princípio é impensável. No fundo não há uma página vazia, há o irrepresentável do pré-individual, o impessoal. Este estrangeiro desconhecido que é o primeiro e faz possível o encontro. Coração selvagem como o denomina Lispector (1973, p. 27) "Minha selvagem intuição de mim mesma. Mas o meu principal está sempre escondido. Sou implícita". A natureza do impessoal é, assim, feita de impulso vital e intensidade, traços que vão se relacionar com outros produzindo devires constantes. O vivido surge como se saltasse da obscuridade criadora fazendo operar transformações.
A superfície é o lugar da inscrição; não um lugar povoado de falas e atos com significados a serem descobertos para encontrar o oculto, o mais profundo. Na superfície, montam-se as relações que os corpos criam entre si, que possibilitam múltiplas direções porque está aberta a conexões e se põe um catalizador poético existencial de devires que insistem em se expressar. Assim se diz que o que se pode saber de um corpo é aquilo que se expressa no encontro. Em outras palavras, experimentar na superfície é perguntar o que está se passando naquele modo de subjetivação, pontuar cadeias discursivas em ruptura de sentido, perguntar se linhas sedentárias ou linhas de fuga estão compondo aquele território existencial.
Para pensar este movimento de subida do pré enterrado no fundo à superfície do corpo, toma-se o conceito de corpo sem órgãos, de Deleuze e Guatari (2004). Este movimento faz desaparecer a dimensão interior do corpo. O corpo sem órgãos entra em contato com singularidades não-individuais em que cada gesto, cada palavra, cada som possa ser como um rizoma em que qualquer ponto se liga com qualquer ponto e faz sempre novas combinações. É o corpo feito de intensidades e tensões, de matéria informe, por isso irrompe na história e produz fraturas naquilo que estava congelado, colocando em análise modos de viver e existir. Opõe-se a funções predeterminadas a cumprir e nele se dá a experimentação que ousa novas construções, em que os agenciamentos se dão em busca de outros modos de expressão, e se engendra a criação e movimentos de singularização. Define-se como um movimento para a experimentação e não o resultado de um saber que não deixa a ninguém o poder de colocar questões e criar. Algo que nos aproxima de uma experiência clínica que toca a história, os corpos e o devir. Devir não é ajustar-se a um modelo em que se fala de um pessoal ou universal, em que se encontra um ponto de partida ou um ponto de chegada, mas capturar o mais imperceptível dos atos que pode estar contido em uma vida expressa em um estilo. Devir-outro é desmanchar o eu e fazer contato com fluxos informes que habitam o terreno da multiplicidade pré-individual.
Birman (2000) refere que o corpo sem órgãos é um modo de enunciar uma outra interpretação possível do conceito de recalque originário. Pode-se fazer uma equivalência entre o recalque originário e o "processo originário", não como corpo que contenha a potencialidade para a patologia, mas como uma potencialidade virtual cuja fragmentação e vazio de significados potencializam devires. Assim, é possível correlacionar este "corpo originário" com o conceito de corpo sem órgãos para fundamentar a tese de uma clínica fundada no impessoal, numa concepção de subjetividade centrada na idéia de singularidade. Tomar o corpo sem órgãos como um intercessor, como um vir-entre, que procura se conectar aos movimentos invisíveis, às composições de fluxos que ainda não se atualizaram, para criar outras histórias, outras conquistas, outras vidas.
Assim, o corpo torna-se forma com a "encarnação" dos conjuntos de fluxos mudos e informes da superfície, através do corpo sem órgãos. Os fluxos se conectam incessantemente produzindo signos em suas composições. Ao afirmar-se que o desejo é um sistema de signos a-significantes, está-se marcando no signo seu caráter de ser aberto à criação de sentido e, enquanto elemento a-significante, uma diferença que está se engendrando, um elemento virtual que atrai partículas dispersas de modos de subjetivação e, assim, produzindo modificações no sujeito.
O que vimos até agora significa que o corpo sem órgãos da profundidade trazido à tona é capaz de potencializar-se na superfície ao fazer funcionar a lógica dos afectos que provoca diferença e turbulência, criando-se, assim, um vazio por onde as potencialidades virtuais podem exercer-se fora dos modelos que enclausuram o corpo. O caos que emerge a partir desse vazio suscita a visão e faz descobrir o "individuo primordial". Abolindo-se, portanto, o demasiado humano, o demasiado vivido, encontra-se o impessoal que ganha forma quando se acopla numa conexão, desdobrando o que permaneceria nas dobras secretas de uma experiência interior. Ninguém está na alma daquele que é desprovido de sujeito e de eu, nem Édipo, nem Narciso. Precisa-se da função do impessoal para livrar-se desses conhecimentos prévios que querem dizer o que já seria, para favorecer e abrir caminho para esta presença na superfície. É essa "(...) quarta pessoa pela qual ninguém fala, da qual ninguém fala e que, todavia, existe", segundo Ferlinghetti, L. (Schérer, 2000, p. 25). Não submetido às regras de organização do mundo e do eu, é a partir das forças da superfície que o impessoal traça suas linhas de fuga e devires.
Se o corpo dá passagem ao impessoal para reencontrar um inconsciente pré-individual, pura imanência que destrói o eu para torná-lo outro, trata-se, então, de devolver ao homem seu texto primitivo e selvagem, para num movimento inverso, torná-lo civilizado. Stiegler (2005) expressa que é pelo caminho que se confirma o enraizamento do sujeito na vida, na carne, na animalidade que se deve andar. A missão do homem é, então, religar os signos os quais herdou que fazem dele o único ser falante e a ter o mais alto grau de individuação.
Em outras palavras, implica voltar ao primitivo que reencontra um tempo perdido, esse tempo antes que não é falar ao homem para dominar sua barbárie. Mattéi (2002) centra sua tese de que a violência não vem do exterior, consiste, sim, nesta interioridade do sujeito que, privada da luz do exterior, do mundo e dos homens, corre o risco de sujeitar o homem a si mesmo e petrificá-lo diante de seu próprio espelho em puro objeto de representação. Recusando seu enraizamento em sua própria barbárie interior, deixando embaixo a desordem das pulsões, o homem abandona-se à solidão e ao vazio. Males da intimidade no momento em que se recusa à presença do outro.
Estamos, portanto, frente a um outro modo de conhecer a potência de um corpo. Se há um não-saber do corpo resta, para a escuta clínica, tomar o corpo, potencializar o acesso ao impessoal, abrir o olhar ao sensível e às pequenas coisas para compor novos saberes e novas transformações que significa ultrapassar seus contornos visíveis. Seu foco é atingir uma linguagem constitutiva que ultrapassa a linguagem representacional que atribui ao sujeito o poder de chegar à verdade sobre o corpo. Logo, voltar ao texto primitivo para reconhecer a necessidade de realizar por si-mesmo suas próprias interpretações.
Porque não se sabe antecipadamente os afectos de que o corpo é capaz, trata-se de uma longa história de experimentação, uma sabedoria que implica a construção de um plano de imanência. O encontro entre as partes expressivas no nível dos corpos é o que mobiliza a cena e, neste sentido, o impessoal livra-se de conhecimentos prévios para engendrar a vida cujos valores estão sempre se reescrevendo. O impessoal opera transformações muito delicadas na experiência corporal que leva ao surgimento de um outro corpo. Essas transformações não se fazem imediatamente com significações delimitáveis como uma nova organização, como um resultado determinado e fixo, algo definitivamente conquistado que se alcança ou se passe a ter sob domínio. Ao contrário, é algo a ser continuamente feito e refeito que se repete e se retoma, como um processo de expressão do que está se formando. A passagem pelo corpo sem órgãos é, portanto, lidar com o corpo como invenção em constante devir.
Seguindo por este caminho, o corpo sem órgãos, na clínica, é pensado como uma prática que se faz a partir de uma escrita de seus potenciais. Abre-se às sensações e aos afetos, que são as sensações do texto primitivo, instrumentos para um processo inventivo que autorizam a criação do novo. É, portanto, como um campo de experimentação na lógica dos afectos e perceptos, que são as memórias intensivas e memórias do corpo no nível das sensações que produzem a diferença. A maneira de a sensação responder ao fundo indiferenciado é contemplando os elementos da matéria, contraindo-os e enchendo-se deles. Contemplar é criar. A sensação preenche o plano de composição e preenche a si mesma com aquilo que contempla. O ato clínico pressupõe, deste modo, sair do plano do significado, do conteúdo, e evidenciar o vazio do entre as coisas para ser imantado novamente. Dar condições ao corpo para essas sensações-coisas que nos tocam nesta capacidade de viver o atual e virtualizar o presente. Sair do mundo cheio de marcas do fundo e da interioridade para fazer as próprias marcas.
Isto nos faz reconhecer que a primazia do impessoal e o primado da relação recolocam a necessidade de uma outra concepção para a intervenção analítica, não como um novo modelo, mas como um ponto de vista, uma nova maneira de pensar. Um modo diferente de caracterizar a problemática que escutamos, que implica uma tolerância à diferença e a adoção de uma estratégia de desconstrução para possibilitar o advir do inconsciente em sua potencialidade desejante e produtiva. Mobilizar um pensamento que possibilita os processos de afecção em curso, numa atitude como um estilo que reflete, fundamentalmente, o modo de pensar o que se produz nos encontros.
Estamos, então, sempre no meio de algo e o que os encontros produzem não é nenhum nem outro, está no entre. O meio é feito de qualidades, substâncias, potências e acontecimentos que interferem em situações dadas. Logo, a cada configuração de forças o mundo organizar-se-á de uma determinada perspectiva. As interpretações expressam certas relações de forças que se relacionam de modo singular. Nesta perspectiva, a interpretação deve levar em conta não de onde vem, mas como está operando a produção dos agenciamentos e conexões.
O inconsciente já não lida com pessoas mas com trajetos e devires. É, portanto, um inconsciente de mobilização cujos objetos, mais do que permanecerem afundados nas profundezas, levantam vôo. Assim, o diz Deleuze (1997). As crianças o demonstram quando não param de dizer o que fazem ou tentam fazer. Elas exploram os meios por trajetos dinâmicos e traçam o mapa correspondente. Os mapas não são só entendidos em sua extensão mas também na intensidade que diz respeito ao que preenche o espaço, no que tem de devir. Cada mapa é uma redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras que vai da profundidade para a superfície.
Retomando-se, então, a produção do encontro torna-se uma criação tipo rizoma que procede por cruzamento de linhas, pontos de encontro no meio em que não há sujeitos, mas um deserto povoado de almas e agenciamentos com suas substituições, seus ecos, suas interferências. É esse o lugar em que o foco é a criação. E o que se cria toma o primeiro plano.
Se estamos frente a outro modo de conhecer o sujeito segundo o qual ele se constitui nos movimentos imperceptíveis da superfície, a interpretação e a transferência implicam outras dimensões. Ambas não são, essencialmente, alguma coisa que fala por ou aponta o que falta, mas, ao contrário, um excesso, algo que está continuamente se fazendo, refazendo, construindo territórios e desfazendo outros, enfim, algo que funciona como um processo. Estamos condenados a viver num mundo infinito que encerra questões sempre infinitas.
Neste sentido, a transferência também produz agenciamentos, busca conexões e formas de se expressar. Coloca-se como lugar de emergência do que antes não existia nem poderia existir, porque produz um fato novo da relação com o outro. Pensar a transferência a partir do uno leva a totalizar o conceito de transferência e incluir nela tudo o que acontece na situação analítica. Berenstein (2004) em suas construções do novo, demonstra que o que vem do outro brinda um conjunto de impressões novas e inapreensíveis totalmente pela representação e, portanto, insistem como apresentação. O autor chama interferência isso que se produz entre analista/analisando, pela ação do encontro-desencontro, da presença real do outro e depende da singularidade dos sujeitos.
Interferência é o que se produz na sessão como uma qualidade que não é possível de ser pensada desde um reencontro com o passado, por não se tratar de um perdido, mas de um achado inédito. Não se trata, então, de ampliar as fronteiras do campo da transferência para dar lugar a tudo que ocorre nas sessões, mas começar a deixar um lugar para que se produzam outras situações. É o que não se espera, mas ocorre nessa zona do indecidível, no meio. Inaugura uma outra zona de relação e deve estabelecer uma concepção conceitual diferente da instituída, porque o que se produz tem um efeito de excesso, decompõe a transferência e introduz outro trabalho a realizar que começa ali, no entre, onde não há coincidências, no inominável do entre que gera inconsciente e, assim, constrói outras origens.
Desde esta perspectiva, uma análise vai além da representação. Seus dias de histórias revelam uma narrativa infinita, criando o novo ali, onde estão inscritas vivências que se repetem. Conversas que produzem uma linha de fuga em sua narrativa, que abrem espaço para uma relação intensa de corpo e fala que faz aparecer o antes impensável. Aprende-se tendo um corpo que tem uma potência que afecta e é afectado. O analista se coloca nesta configuração através da experiência sensível do mundo, de como o mundo o afecta. Ele fala a partir da alteridade do mundo que se presentifica, e não apenas como um corpo materno, mas como um outro corpo com alteridade, fazendo do encontro com o outro uma abertura. Vivendo o fato entre, ali onde há a possibilidade de surgimento de um devir mais além de reproduzir a situação passada.
Referências
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Recebido em 04 de abril de 2006
Aceito em 16 de maio de 2006
Revisado em 20 de junho de 2006