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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

Trabalho na pós-modernidade: crenças e concepções*

 

 

Marli Appel-SilvaI; Kátia BiehlII

IAluna do Programa de Pós-Graduação de Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do RS. Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do RS. End.: Av. Protásio Alves, 2224, ap. 201 - cep. 90410-006, Porto Alegre - RS. E-mail: mappel@uol.com.br
IIAluna do Programa de Pós-Graduação de Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do RS. Mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do RS. End.: R. Imperatriz Leopoldina, 22, ap. 402 - cep. 93310-060, Novo Hamburgo-RS. E-mail: katiabiehl@terra.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo, objetivamos refletir a respeito de implicações das crenças e concepções em relação ao trabalho flexível na subjetividade humana. Mudanças na estruturação do trabalho, na contemporaneidade, foram conseqüências de modificações no sistema de valores, ou seja, nas crenças e concepções que pautaram a idéia da flexibilização do capital e dos processos de trabalho como mais propícios às reestruturações necessárias à manutenção do sistema econômico capitalista. Entretanto, o trabalho flexível engendrou uma série de concepções contraditórias e impeditivas de os sujeitos apresentarem um trabalho satisfatório e exitoso, colocando-os à mercê do desemprego e da culpabilização pela própria empregabilidade. Desse modo, o trabalho flexível tornou-se uma possibilidade constante de fracasso em uma época histórica em que o valor do sujeito passou a ser baseado nas idéias sobre sucesso-fracasso, aplicadas aos mais variados âmbitos da vida. A possibilidade de fracasso no trabalho instigou uma subjetividade marcada por um medo contínuo. Aspecto que se revelou como impeditivo da elaboração de um sentido complexo e analítico em relação ao contexto. Concomitantemente, a internalização dos valores hedônicos, próprios da contemporaneidade, estimulou os sujeitos a procurarem práticas lúdicas como meio de adquirirem satisfação pessoal, como compensação à insatisfação com as práticas do trabalho, distinguindo uma vivência dividida entre uma "vida séria do trabalho" e uma "vida das festividades lúdicas". Como conseqüência, os sujeitos revelaram, como fuga do medo do fracasso, uma relativa indiferença em relação ao trabalho e uma busca onipotente dos prazeres e das sensações, através das atividades lúdicas. O sentido do trabalho passou a ser o de financiar o consumo hedônico, gerando sujeitos com tempos e espaços cindidos entre sujeito-trabalhador e sujeito-consumidor, ou seja, tempos-espaços de sofrimento e tempos-espaços de prazer.

Palavras-chave: trabalho flexível, pós-modernidade, crenças, concepções, subjetividade.


ABSTRACT

The purpose of the present article is to reflect upon the implications of flexible labor-related beliefs and conceptions upon human subjectivity. Contemporary changes in labor structure were generated by modifications in the value system, that is, in the beliefs and conceptions that gave rise to the idea of flexibilization of the capital and labor processes as being more suitable to the reorganization necessary to maintain the capitalist economic system. However, flexible work generated a series of contradictory conceptions that prevented workers from rendering satisfactory services and made them subject to dismissal and blamable for being unemployed. Therefore, flexible work was thought to be very likely to fail at a time where the subject value was based on the ideas of success-failure applied to the most varied aspects of life. The possibility of failure at work aroused a subjectiveness characterized by a continuous fear. Such aspect was found to prevent the elaboration of a complex and analytical sense concerning the context. Concomitantly, the internalization of hedonic values, common in contemporary times, has stimulated the subjects to adopt ludic practices as a means to obtain personal satisfaction, so as to make up for the dissatisfaction with labor practices. Thus, life was to be divided into two parts: a "life of hard work" and a "life of ludic events and pleasure". Consequently, in order to overcome the fear of failure, subjects have shown a sort of indifference toward labor and started to seek pleasures and sensations by means of ludic activities. Work has become a way to finance the hedonic consumption, generating subjects with times and spaces divided into subject-worker and subject-consumer, that is, times-spaces of suffering and times-spaces of pleasure.

Keywords: flexible work, post modernity, beliefs, conceptions, subjectivity


 

 

Introdução

Neste artigo, objetivamos refletir a respeito de implicações na subjetividade humana ocasionadas pelas crenças e concepções em relação ao trabalho flexível. Esta forma de trabalho é peculiar à pós-modernidade, momento histórico contemporâneo que teve início nos anos 70/80, com transformações socioculturais e político-econômicas incidentes, principalmente, nas sociedades ocidentais.

A expressão "pós-modernidade" foi utilizada, pela primeira vez, no livro A condição pós-moderna, publicado, em 1979, por Jean-François Lyotard, com a conotação de categorizar o momento histórico acompanhado de mudanças gerais nas condições da vida humana, porém em continuidade à modernidade ao adotar paradigmas em contraponto a essa época anterior (Anderson, 1999). Na modernidade, o paradigma principal era o da ordem, regente de crenças, concepções e práticas pautadas pela racionalidade, hierarquia, cientificidade e diferenciação (Bauman, 1999a).

Entretanto, devido à descrença no paradigma da ordem, os sujeitos tenderam a acreditar em um contexto conduzido pela irracionalidade e pelo subjetivismo, fundando a época histórica denominada de pós-modernidade. Os fenômenos foram percebidos pelos sujeitos como atravessados pela ambigüidade, pela polissemia, pela diversidade, pela contingência, pelos limites flexíveis e tênues. Igualmente, os controles rígidos adotados na modernidade foram abandonados em prol da emocionalidade, das paixões e dos impulsos irracionais, de acordo com Bauman (1999a).

As mudanças na maneira de os sujeitos compreenderem o contexto, na pós-modernidade, transformou os vínculos entre os sujeitos e destes com as práticas culturais, que são atividades humanas atribuídas de valores e inscritas em uma determinada sociedade. Transformações nas práticas culturais significam mudanças na própria cultura, nos valores de determinada sociedade e na subjetividade dos sujeitos inscritos nessa sociedade (Vygotsky, 1999).

Segundo Geertz (1997), a cultura pode ser compreendida como um sistema de valores formado por crenças e concepções de uma sociedade específica, em determinado momento histórico, compartilhado entre os sujeitos através da linguagem, de modo a formar um conjunto de mecanismos de controle, que correspondem a leis, regras, instruções, entre outros, regentes das relações sociais das comunidades humanas.

De acordo com Araújo (2002), "contemporaneamente, a subjetividade é compreendida como o modo de organizar as experiências do cotidiano, os universos de sensações e representações", pois "a subjetividade não mais se reduz à coincidência consigo mesmo, nem tampouco a uma interioridade acessada pela reflexão" (p. 3).

Desse modo, as transformações das concepções dos sujeitos, na pós-modernidade, representam alterações desde um âmbito da subjetividade ao da intersubjetividade, delineando os fenômenos sociais.

 

Mudanças nas concepções sobre o sujeito-trabalhador

O trabalho começou a sofrer alterações, no início da pós-modernidade, devido à adoção de concepções com relação à flexibilização do capital e dos processos de trabalho por parte dos detentores do poder econômico nas sociedades ocidentais. A flexibilização foi aceita como propícia às reestruturações necessárias à manutenção do capitalismo, de acordo com Harvey (1996), por ocorrer em prol da sustentação do capital, ou seja, por manter as mesmas premissas com vistas à lucratividade.

A partir das concepções sobre a flexibilidade dos processos produtivos, surgiu uma nova estruturação: o trabalho flexível. Este se caracterizou pela produção e colocação de mercadorias nos variados mercados mundiais a partir de empresas transnacionais, que vieram a atuar em diversos nichos de mercado. Foi a inovação tecnológica que, em grande parte, propiciou o surgimento da especialização flexível de produção (Ferrer, 1998).

O processo produtivo tornou-se conduzido pela demanda e com foco no atendimento individualizado ao cliente. Para atender essas premissas, o trabalho passou a ocorrer por processos. Um processo de trabalho é uma seqüência de atividades que tem início, meio e fim. Os sujeitos tornaram-se multifuncionais, realizadores de todas as tarefas do processo de trabalho (Antunes, 1998).

O trabalho flexível descentralizou o poder, outrora centralizado no papel do líder, ao instituir o trabalho em equipe e eleger lideranças apenas situacionais, atribuindo aos sujeitos um maior controle e responsabilidade sobre o próprio trabalho. Porém, eles tornaram-se visíveis em qualquer parte da rede, estabelecendo novas formas de poder e controle a partir de metas de produção e resultados.

Entre as concepções que acompanharam o trabalho flexível, surgiu a noção aparente de liberdade para cumprir metas, mas estas tendiam a ser de difícil execução e cumprimento, exigindo substancial empenho por parte dos sujeitos para alcançarem os resultados exigidos (Sennett, 2000), além de as equipes de trabalho contarem, em geral, com um número reduzido de pessoas, originando uma sobrecarga de trabalho e a realização de horas-extras (Antunes, 1998).

As concepções sobre o trabalho começaram a se alterar entre os dirigentes organizacionais, através da transmissão de ideários sobre a necessidade de mudanças profundas das empresas, sob pena de falência, desenvolvendo crenças na necessidade de transformações radicais nas organizações, devido ao acirramento da concorrência entre as empresas. Esses ideários foram disseminados, principalmente, pelos considerados "gurus" da administração de empresas, tais como Naisbitt (1994) e Toffer (1987), teóricos seguidos por muitos dirigentes. Toffer (1999) comenta: "Muitos empresários têm uma visão estrita de seus negócios, e sabemos que, nesta época de turbulência, muitas companhias serão simplesmente eliminadas pela concorrência, não apenas vinda do exterior, mas de outros setores de atividades em seu país" (p. 8.).

Com as modificações dos processos de trabalho, o perfil profissional para a inserção dos sujeitos nas empresas e permanência no mercado de trabalho foi reformulado pelos dirigentes das empresas. As características principais, entre outras, englobadas nesse perfil, foram: uma postura maleável, ágil, aberta a mudanças em curto prazo e passível de assumir riscos, além de maior capacitação, principalmente tecnológica (Ferrer, 1998). Esse perfil foi estipulado de maneira a continuar a atender os objetivos empresariais e a permitir a internalização destes como se fossem dos próprios sujeitos (Antunes, 2000). Internalização é um processo psíquico de apropriação dos valores e regulamentos, ou seja, dos significados socioculturais (Vygotsky, 1999).

Segundo Baztán (2002), cada empresa conta com uma cultura formada por um conjunto de crenças, valores, concepções e informações que deve ser internalizado pelos sujeitos. A função da internalização dos valores organizacionais é a coesão em prol do atingimento dos objetivos da empresa pelos trabalhadores. Esses objetivos são, de fato, a razão da existência da empresa.

De acordo com Antunes (2000), na modernidade, os sujeitos deveriam internalizar os valores organizacionais pautados pelo paradigma da ordem, regente da hierarquia, eficiência e organização no trabalho. Na pós-modernidade, os valores organizacionais tornaram-se regidos pelo paradigma do caos. O foco do trabalho passou a ser a eficácia e os resultados dele, não tendo importância a maneira como esses resultados viessem a ser alcançados. Assim, o trabalho flexível foi estruturado com concepções, normas e regras contraditórias, dificultando uma internalização consistente dos valores organizacionais.

Uma das contradições nas concepções sobre o trabalho flexível estabeleceu-se em relação ao próprio perfil profissional. Uma postura maleável, ágil, aberta a mudanças em curto prazo demanda baixo apego emocional ao trabalho e não envolvimento pessoal por parte dos sujeitos, de acordo com Bauman (1999a). Em contrapartida, a exigência da apropriação dos objetivos empresariais exige alta dedicação ao trabalho, apego emocional e envolvimento pessoal pelos sujeitos. Os sujeitos ficaram a serviço de serem avaliados como incompetentes, se falhassem em qualquer uma das exigências, permanecendo sob o risco da demissão (Dejours, 2000).

Outra contradição foi o estabelecimento da idéia de liberdade e autonomia para a realização das atividades de trabalho. Os sujeitos teriam apenas metas e resultados a serem alcançados, realizando as atividades da maneira como quisessem. Contudo, a idéia de liberdade e autonomia não encontrou respaldo no cotidiano do trabalho; as metas e os resultados foram instituídos para serem de difícil consecução, a partir de uma equipe de trabalho com menos membros do que o necessário. Para que as tarefas fossem cumpridas, houve uma tendência de que os sujeitos mantivessem uma jornada de trabalho com um ritmo incessante e com muitas horas-extras, com prejuízo ao atingimento sistemático das metas e dos resultados, o que passou a ser outro motivo do risco de demissão (Sennett, 2000).

Além do mais, devido às contradições vivenciadas, o ambiente social do trabalho tornou-se muitas vezes de difícil convivência entre os sujeitos. "Colegas criam-lhe obstáculos, o ambiente social é péssimo, cada qual trabalha por si, enquanto todos sonegam informações, prejudicando assim a cooperação etc." (Dejours, 2000, p. 31). Porém o perfil profissional do trabalho flexível incluiu um adequado relacionamento interpessoal para propiciar o trabalho em equipe. Assim, a convivência conflituosa tornou-se outro fator para o risco da demissão.

Como se não bastasse, de acordo com Dejours (2000), devido ao desemprego estrutural, que fez com que houvesse um contingente de pessoas desempregadas no mercado de trabalho, surgiu, por parte dos dirigentes empresariais, a noção de que as pessoas eram facilmente substituíveis em suas atividades. Estes puderam tanto recorrer de eventuais ameaças de demissão, até da demissão propriamente dita, quanto substituir sujeitos considerados com perfil inadequado, ou mesmo contratar profissionais com remunerações menores. O medo foi adotado como estratégia de controle com conseqüências positivas para os resultados das empresas, e a noção de risco tornou-se presente no cotidiano do trabalho dos sujeitos (Dejours, 2000).

Giddens (2000) comenta que, em todos os tempos, os sujeitos tiveram a percepção dos riscos a que estavam expostos, principalmente, diante dos fenômenos da natureza. Entretanto, na pós-modernidade, surgiu o risco fabricado. Aquele que o próprio ser humano produz para ele mesmo, no âmbito de idéias e concepções, ou mesmo, devido à alteração na natureza.

De acordo com Dufour (2001), o risco fabricado surgiu com base na crença na "autonomização do indivíduo" como ideal máximo, ou seja, na premência do "eu" individualizado e livre para tudo. A partir dessa crença, os sujeitos tenderam a uma percepção deles mesmos como "autofundadores" (s.p.). Porém essa percepção gera, contraditoriamente, um sentimento de impotência, uma vez que possuir autonomia e liberdade para tudo é um ideal inalcançável. Os sujeitos ficam à mercê do fracasso, já que não alcançarão tudo o que almejam para as suas vidas. A vergonha do fracasso tornou-se o sentimento recorrente na pós-modernidade, substituindo a culpa na modernidade.

Decorrente da crença da autonomização do sujeito, surgiu a idéia do sucesso pessoal como representação de um indivíduo que consegue usufruir sua autonomia e liberdade. Segundo Pahl (1997), a concepção de sucesso surgiu no Iluminismo; estabeleceu-se na modernidade como uma idéia de status, poder e conformidade com os valores das culturas de classes, relacionando-se diretamente ao compromisso com o trabalho. Na pós-modernidade, devido às inseguranças causadas pela flexibilização do trabalho, a noção de sucesso veio a representar "um estilo de vida diferente e individualizado" (p. 35), deslocando seu foco do trabalho para o consumo.

O sucesso alcançado através do prestígio de um estilo de vida diferenciado, representado pelos bens de consumo, tornou-se amplamente valorizado pelos sujeitos nas sociedades ocidentais e foi considerado como uma característica de personalidade, pela qual os sujeitos passaram a ser avaliados para a inclusão social. Entretanto, o sucesso para sujeitos autofundadores deles mesmos não pode ser inteiramente alcançado, porque não há limite para o sucesso, e sempre haverá novos bens de consumo a serem adquiridos. Os sujeitos ficaram, assim, passíveis de insucesso. Além do mais, o risco fabricado em relação ao trabalho flexível caracterizou-se pela possibilidade da incompetência, conseqüentemente, o da demissão e do insucesso profissional.

Portanto, devido à crença da autonomização do indivíduo, surgiu uma tendência de os sujeitos se responsabilizarem pelo próprio emprego-desemprego, sucesso-fracasso e inclusão-exclusão social, percebendo-se em contínuo risco.

 

Mudanças na subjetivação do trabalho flexível

De acordo com Sennet (2000), o risco que coloca as pessoas em situações em que elas não podem resolver, sentindo-se impotentes diante dos fatos, aciona uma "atenção focal" sempre ativa. Essa "é uma reação traumática encontrada em todos os animais superiores" (p. 107). Esta definição assemelha-se ao que se denomina de "estresse" pelas abordagens que estudam esse fenômeno.

De acordo com Ballone (2002), o estresse é uma resposta natural do organismo na busca de enfrentamento e adaptação a novos e desafiadores eventos da vida. Entretanto, se a vivência do estresse ultrapassar os limites de tolerância das pessoas, surge o esgotamento físico-emocional. "Psiquicamente a ansiedade crônica ou esgotamento leva a um estado de apatia, desinteresse, desânimo e a uma espécie de pessimismo em relação à vida" (p. 1).

Pesquisas realizadas ao longo de mais de duas décadas revelam que altas exigências no trabalho vinculadas à baixa possibilidade de controle e autonomia por parte dos sujeitos representam variáveis que, associadas, geram alto nível de estresse e risco à saúde psíquica do sujeito (Chirkov, Ryan & Chelsea, 2005). O risco do fracasso na prática do trabalho, sem a possibilidade de controle sobre as condições envolvidas, é um fator que pode funcionar como coerção interna através do medo. Este é alienante, quando vivenciado de modo contínuo, à medida que causa uma atenção focal sempre ativa e uma consciência fragmentada, com pensamentos que não se associam adequadamente para permitir uma compreensão complexa e analítica do contexto. Porém tende a promover a produtividade no trabalho por parte dos sujeitos, fazendo com que os objetivos empresariais sejam alcançados, mesmo que estes objetivos não tenham sido inteiramente internalizados pelos sujeitos.

Embora, historicamente, o termo alienação possa ter uma conotação controversa, ainda cabe utilizá-lo quando subtende um nível de coerção externa com base em normas e regras que, internalizadas pelos sujeitos, tornam-se coerção interna, dificultando a aquisição de uma consciência crítica em relação a aspectos do próprio contexto (Medina, 2002).

No estilo de trabalho da modernidade, denominado de taylorismo-fordismo, os sujeitos, ao internalizarem os objetivos empresariais em detrimento dos próprios objetivos, adquiriam uma "existência inautêntica", de acordo com Antunes (2000, p. 222). Passavam a agir em função de objetivos que não eram seus, mas heterodeterminados pelo poder empresarial, o que lhes causava conflitos, sofrimento e cisão dos conteúdos psíquicos, em um processo de alienação.

Desse modo, a alienação do sujeito-trabalhador, na modernidade, era sedimentada por uma consciência que, ao se formar, acabava por destituir de valor aspectos do contexto, pela cisão e negação de conteúdos psíquicos. Esse processo ocorria em benefício de aliviar o sofrimento gerado como causa da apropriação de objetivos da empresa em detrimento dos próprios, devido à necessidade da manutenção do emprego. "Assim, o trabalho passou a se tornar estranho aos desejos e aos interesses de uma imensa parte das pessoas que o executam" (Selligmann-Silva, 1994, p. 93).

Porém, na pós-modernidade, surgiram novos tipos de alienação (Antunes, 2000). Sennett (2000), em pesquisas realizadas sobre o trabalho flexível, encontrou como forma de alienação uma relativa indiferença por parte dos sujeitos em relação ao trabalho, uma falta de vínculo com as tarefas desenvolvidas e um compromisso parcial em relação aos resultados alcançados, como expressão de uma consciência sobre o contexto que não se formava de maneira completa. A consciência apresentava-se fragmentada e a compreensão simplificada, pois os pensamentos não se associavam a ponto de estabelecer um sentido complexo e analítico ao contexto do trabalho.

A sobrecarga de trabalho foi outro fator prejudicial às condições necessárias para a reflexão e a elaboração do pensamento (Antunes, 2000). À medida que a vida cotidiana do trabalho tornou-se tarefeira, houve a tendência de os sujeitos não atribuírem sentido ao trabalho. Assim, a vivência do risco no trabalho flexível fez com que este não trouxesse realização pessoal para um contingente de sujeitos.

 

Mudanças na concepção de sujeito: sujeito-trabalhador e sujeito-consumidor

A vivência do risco perene no trabalho, associada à conseqüente falta de realização pessoal e à fragilização dos regulamentos que pautaram as sociedades, formou as bases para o surgimento dos valores hedônicos na pós-modernidade, ou seja, da busca do prazer pelo prazer (Maffesoli, 2001). O trabalho, ao não trazer realizações, foi considerado uma necessidade por muitos sujeitos, adquirindo o sentido de financiar a vida vivida com avidez, gerando um presenteísmo, ou seja, uma percepção focada no presente (Maffesoli, 2004).

De acordo com Martins (2002), historicamente, o trabalho foi compreendido como uma prática "séria", pela qual foram esquecidos aspectos importantes para uma integração social, como a concepção de "festa" ou das "festividades lúdicas". Sem essas festividades, o trabalho provoca fadiga psíquica e física. "Talvez, o que entendemos por trabalho é um tanto contrário à própria natureza humana, e mais relacionado com a escravidão. Assim, não conseguimos ver, impossibilitados por nossos próprios paradigmas, conceitos paralelos necessários, inclusive para que o trabalho tenha sua significação para o homem" (Martins, 2002, p. 3).

Portanto, as concepções implicadas no trabalho flexível não atenderam, necessariamente, o desejo característico dos sujeitos da pós-modernidade de emoções instantâneas e intensas. Como "remédio" aos sofrimentos causados por essa estruturação de trabalho, os sujeitos instauraram práticas lúdicas e prazerosas como contraponto (Maffesoli, 2001). A prática do trabalho marcou, assim, uma cisão entre as concepções "dever-prazer". Esta cisão foi oriunda da modernidade. Porém, nesta época, era prioritariamente permitido socialmente aos sujeitos o exercício das práticas do dever, sendo o prazer considerado como um valor proibido. Na pós-modernidade, houve uma liberalização das práticas lúdicas e a vivência do prazer.

Essas práticas lúdicas, ao serem abarcadas pelo mercado de consumo, através de uma indústria cultural potente, criaram um novo papel para os sujeitos: o do consumidor. Os sujeitos tornaram-se ora trabalhadores, ora consumidores. Aos trabalhadores couberam os deveres e as obrigações; e aos consumidores, os prazeres e as sensações.

De acordo com Bauman (1999b), o sujeito no papel de consumidor não almeja o acúmulo de riquezas, mas a vivência de prazeres e novas sensações a cada novo consumo. A vida sem sentido adquire um novo sentido: "desfrutar o melhor que esse mundo tem a oferecer" (p. 93). O sujeito autofundador de si-mesmo pode vivenciar a impotência e a onipotência concomitantemente. A impotência vivenciada no trabalho se transforma na onipotência das atividades lúdicas, em que o sujeito individualizado pode tudo. O risco vivenciado no trabalho pode levar ao sentimento de vergonha e, nas práticas de consumo, às sensações máximas.

O fenômeno da plebeização da cultura, que é a disseminação de informações rápidas e descartáveis para todos os segmentos das sociedades ocidentais, também promoveu a diminuição de características críticas e educacionais ao conhecimento por oferecer espetáculos baratos com o objetivo de estimular o prazer imediato. As mídias, em especial a televisão, tiveram uma contribuição significativa para o estabelecimento da cultura plebeizada (Anderson, 1999).

Além das mídias, o turismo e a festa se tornaram as práticas culturais mais procuradas para a busca de novas sensações por parte dos sujeitos nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas. O turismo não veio a ser uma prática abarcada por todos os segmentos socioeconômicos. Inclusive, tornou-se a única atividade que, de fato, pôde representar uma diferenciação dos segmentos socioeconômicos através da possibilidade de participação e da qualidade de participação no turismo (Bauman, 1999a).

Entretanto, a festa sempre foi uma prática encontrada em todos os segmentos socioeconômicos (Maffesoli, 2004). Desse modo, as festividades atingiram todos os segmentos socioeconômicos das sociedades ocidentais e tiveram como conseqüência uma separação na vida dos sujeitos entre "vida no trabalho" e "vida na festa" ou "vida séria" e "vida lúdica".

Na pós-modernidade, o trabalho continuou central para a estruturação da vida dos sujeitos de modo a invadir outras dimensões dela e, entre outros aspectos, organizando a utilização do tempo e do espaço ocupado por parte dos sujeitos contemporâneos (Antunes, 2000). Segundo Castells (1999), o "espaço é o suporte material de práticas sociais de tempo compartilhado" (p. 436, grifo do autor). Desse modo, a cisão da vida dos sujeitos representou também a cisão dos espaços e tempos: surgiu o "espaço de trabalho" e o "espaço festivo", tal qual o "tempo do trabalho" e o "tempo lúdico". Assim, nesse compartilhar do tempo, as relações frágeis entre os sujeitos tornam-se também "relações de trabalho" e "relações lúdicas", "relações sérias" e "relações fugazes".

Sintetizando, o trabalho flexível, por ser central na vida da maioria dos sujeitos, colocou-os sob o risco do desemprego e do fracasso profissional. Esse medo do fracasso pode redundar em uma coerção interna que se torna alienante ao sujeito quando causa a ele uma consciência fragmentada, com pensamentos que não se associam e uma compreensão simplificada do contexto. Como expressão dessa forma de alienação, um contingente de sujeitos-trabalhadores revelou relativa indiferença em relação ao trabalho, uma falta de vínculo com as tarefas desenvolvidas e um compromisso parcial em relação aos resultados alcançados. Além do mais, é no lugar de sujeitos-consumidores que os sujeitos buscam o prazer pelo prazer nas práticas lúdicas e a fuga do fracasso profissional e do insucesso social.

 

Considerações finais

Ao longo deste artigo, pudemos discutir sobre a centralidade do trabalho para os sujeitos, marcando uma cisão entre concepções relacionadas ao "dever" e ao "prazer", com conseqüências para a vivência e para a subjetividade dos sujeitos. Essa cisão de concepção é percebida como tão natural na pós-modernidade que é tratada dessa maneira, inclusive nas ciências sociais. Muitas vezes, quando se estuda o sujeito no trabalho, ele se transforma em "trabalhador"; nas relações de consumo, em "consumidor".

Amplas discussões foram realizadas nas últimas décadas sobre as concepções de "indivíduo" e "sujeito"; mesmo assim, consideramos que ainda é necessária uma maior discussão a respeito do sujeito que se cinde em vários papéis nos espaços e tempos.

Cabe, assim, perguntar sobre a possibilidade de desalienação dos sujeitos contemporâneos. Medina (2002) define não-alienação como "o controle consciente e livre, quando se refere ao sujeito; e democrático, quando se refere a uma comunidade (que quer dizer, autogestionado em todos os casos), dos processos de subjetivação, práxis e objetivação da realidade que realizam os sujeitos em seus vínculos sociais" (p. 144).

A não-alienação é, portanto, uma construção que se processa na intersubjetividade, no compartilhamento de crenças e concepções entre os sujeitos, ao terem um relativo controle consciente das atividades que realizam, ou seja, a autogestão de objetivos e meios. Nesse sentido, a não-alienação é a autogestão do vínculo com o contexto, com as práticas culturais e com outros sujeitos.

Mas o que significa um controle do vínculo com o contexto, com as práticas culturais e com outros sujeitos na vida cotidiana dos sujeitos da pós-modernidade? Podemos dizer que essa questão merece ampla reflexão a partir de outros estudos, pois tanto as práticas do trabalho como as lúdicas podem participar do processo de heterodeterminação e alienação do sujeito, tal como de uma consciência complexa e analítica.

Pensamos que um sujeito que venha a aprender a se autogestionar em um determinado contexto poderá também se autogestionar em outros. Torna-se importante repensar a prática do trabalho flexível para além de uma prática séria.

 

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Recebido em 02 de março de 2006
Aceito em 16 de abril de 2006
Revisado em 20 de junho de 2006

 

 

* As autoras agradecem à Profa. Dra. Maria Lucia Tiellet Nunes pela cuidadosa leitura e inúmeras sugestões.

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