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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

A escrita adolescente como cena dos impasses do feminino

 

 

Maria Celina Peixoto Lima

Psicanalista. Doutora em Psicopatologia e Psicanálise pela Universidade Paris 13. Professora do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza. Membro correspondente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. End.: Rua Carlos Vasconcelos, 590, ap. 201. Meireles. Fortaleza, CE. CEP: 60115-170 E-mail: celina.lima@terra.com.br

 

 


RESUMO

A questão da mulher, para Freud, não é solucionada, e o desejo feminino persiste até o fim de sua vida como um enigma: o que quer uma mulher? Lacan, no artigo La signification du phallus, retoma o conceito de "mascarada" de Joan Rivière para indicar a tentativa de elaboração da posição feminina pelo estabelecimento de uma ficção fálica, no velamento de um vazio insuportável. Trata-se aqui de analisar a escrita do diário adolescente como uma versão do véu que situa o feminino. Haveria na escrita do diário uma demanda, ao mesmo tempo, de exibição e de camuflagem, assim como uma espécie de promessa da possessão de algo precioso, guardado em segredo, a questão mesma do semblante, tal como é tratada por Lacan; jogo que testemunha o caráter simbólico do falo, pois ele se apóia justamente sobre o artifício do véu, que consiste em esconder para fazer existir. Este trabalho interroga a vocação da escrita a servir de cena à trama da feminilidade, na qual o apelo sedutor ao olhar sugere a insistência da imagem, e a expressão de elementos heterogêneos (desenhos, colagens, letras) revela o transbordamento do feminino além do contorno do texto.

Palavras-chave: psicanálise, adolescência, escrita, feminino, letra.


ABSTRACT

For Freud, woman's issue has not been solved, and the feminine desire persisted until the end of his life as an enigma: What does a woman want? Lacan, in the article La signification du phallus, takes up Joan Rivière's concept of "masquerade," once again, to indicate an attempt at the working out of the feminine position through the construction of a phallic fiction, in the concealment of an unbearable emptiness. This text deals with analyzing the writing in a teenage diary as a version of the veil which situates the feminine aspect. In the diary writing there would be a demand for exhibition, while at the same time, a demand for camouflage, like a type of promise of possession of something precious, kept in secret, an issue itself of countenance, such as is dealt with by Lacan. A game witnesses the symbolic character of speech, since it supports itself, precisely on the artifice of the veil, which consists of hiding in order to make it exist. This paper questions the vocation of writing to serve as a setting for the intrigue of femininity, where the seductive invitation in the look comes from the insistence of the image, and the expression of heterogeneous elements (drawing, pasting, hand-writing) revealing the overflow of the feminine aspect, outside the shape of the text.

Keywords: psychoanalysis, adolescence, writing, feminine, letters


 

 

Introdução

A escrita do diário nos interpela pela sua persistência como uma prática escritural adolescente, mais especificamente, da menina adolescente. Sua versão contemporânea, a agenda, e mais recentemente os blogs, transformaram-se em um dos emblemas da adolescência. Rapidamente desviada de suas funções originais, a saber, o registro dos rituais cotidianos, a agenda torna-se um recurso interativo que encontra seu lugar nas relações entre adolescentes. A redaçao desses escritos, feita ao longo dos dias, revela uma originalidade gráfica que nos chama a atenção pela multiplicidade de recursos, tais como dobraduras, colagens, desenhos e recortes. Texto híbrido, resultado de uma composição de "restos" do dia, a agenda se apresenta como algo a ler, mas também como algo a ver, a tocar, a desdobrar, um quase-objeto. Os desenhos e os arabescos preenchem as margens das páginas, contornando não só as letras do texto, mas também as letras soltas, de todas os tamanhos e formas, os traços que cortam, que sublinham, que barram. Traços firmes, nervosos, atormentados. O texto é limitado pela superfície restrita da página impressa. Nesse espaço imposto utilizado ao máximo, no entanto, aparece uma escrita superdimensionada, criando um estilo evidenciado nas letras maiúsculas, nos acentos, nos pingos dos "is", nos pontos de exclamação ou de interrogação.

Este trabalho interroga a vocação desses escritos, a pôr em cena algo próprio à condição feminina. A questão de por que os adolescentes escrevem diários, agendas ou blogs, leva-nos a pensar essa passagem à escrita como um esforço para escrever aquilo que busca representação além da palavra. Trata-se, portanto, de articular a prática da escrita à questão do feminino. O acento da nossa análise recai no estilo particular desses textos, mais do que no seu conteúdo propriamente dito. Se, de um lado, a exuberância do estilo denuncia o apelo sedutor ao olhar do outro pela imagem, de outra parte, a multiplicidade dos recursos utilizados sugere a impossibilidade do esgotamento da questão do feminino no registro do simbólico. A cada página as letras transbordam o texto, indicando o engajamento do corpo pulsional para além da possibilidade de representação. Trata-se, com efeito, de tapar os buracos, preencher os espaços em branco do papel ou da tela com o que resiste a se tornar texto.

A escrita pode vir, dessa forma, como cena possível ao irrepresentável, assim como às estratégias de uma montagem fálica na qual se inscreve a palavra. Letra isolada, letra ligada, jogos de escrita que trazem o rastro da paixão da mãe e a marca da passagem pelo pai; expressão, sem resolução, de elementos heterogêneos que contêm a marca do infantil, de um gozo perdido que persiste além do sujeito.

Partindo da concepção freudiana de traço mnêmico, reconstruiremos os principais passos do desenvolvimento da noção de letra em Lacan, destacando o recurso à imagem como efeito do transbordamento do corpo das margens do texto.

 

O corpo na escrita

O tema da escrita aparece, insistentemente, tanto em Freud quanto em Lacan, seja pelo viés da literatura ou como inscrição do sujeito. O uso que Freud faz da escrita para explicar a estrutura do aparelho psíquico já serve como argumento para a defesa de uma hipótese sobre a afinidade de tal prática com o campo da Psicanálise. Em Esquisse d'une psychologie scientifique, escrito em 1895, Freud propõe seu primeiro aparelho psíquico sob uma analogia de um sistema neuronal. Não se trata de uma compreensão do psiquismo como uma estrutura neurológica. Na verdade, Freud se serve de sua construção como um sistema de signos, como uma machine d'écriture, segundo a expressão de Derrida (1967, p. 297).

Para ilustrar sua concepção de psiquismo como engrenagem, ao mesmo tempo aberta à experiência perceptiva e capaz de estocar lembranças, Freud propõe a noção de traço mnêmico como uma espécie de unidade básica do psiquismo. É a partir de 1900, porém, quando publica A interpretação dos sonhos, que ele radicaliza a afinidade entre escrita e inconsciente, comparando, assim, as imagens do sonho com hieróglifos, numa evidente alusão ao caráter de escrita, próprio ao material inconsciente.

É no rastro deixado por Freud que Lacan (1957/1966a) inicia a sistematização da idéia de letra como formação inconsciente. Nesse período de sua reflexão, ele, assim como Freud, defende a possibilidade de decifrar os sonhos e os sintomas em elementos de linguagem. Trata-se na ocasião de reforçar a posição freudiana do sonho como escrita, como rébus. Da sua leitura da Interpretação dos sonhos, Lacan insiste sobre a dimensão do sonho como trabalho de escrita, constituído à revelia do sonhador, ordenado segundo as leis da linguagem, das quais também se serve o trabalho de censura. A letra é aquilo que constitui o conteúdo manifesto do sonho. Ela veicula o significante, mas, da mesma forma, ela é o efeito de censura sobre o inconsciente.

Esse período do pensamento lacaniano apresenta a noção de letra em relação direta com o significante. Essa ligação letra-significante já é sugerida no Séminaire sur La Lettre Volée, de 1955. Esse texto, baseado em um conto de Edgar A. Poe, é uma demonstração do poder do significante cujo papel a letra assume. O que Lacan tenciona destacar são as tramas simbólicas ocasionadas pela circulação da carta e a importância primordial que estas assumem na constituição do sujeito, tese que marcou seus trabalhos nesse momento (1966b).

A abordagem lacaniana da letra, de início identificada como instância do inconsciente, aos poucos vai se dirigindo no sentido de uma interrogação de sua função como escrita, em particular, como escrita literária. Enquanto Freud era atraído pelo enigma do ato de criação, Lacan, munido dos ensinamentos da Lingüística, propõe uma análise da escrita no seu aspecto de estrutura e dos problemas da literalidade. Na verdade, Lacan se interessa pelo uso da letra pelos escritores com o intuito de apreender aquilo que escaparia à ordem da palavra. Esse é o momento em que Lacan escreve Lituraterre (1971), e em que significante e letra passam a ser claramente distintos. As idéias esboçadas nesse artigo são inspiradas, em parte, pela caligrafia chinesa, encontro da pintura com a letra. Os caligramas chineses e a escrita egípcia são testemunhos da origem pictográfica dos sistemas de escrita. Nesses dois casos, o ponto de apoio sobre a imagem persiste, apesar da descoberta do foneticismo.

Gerard Pommier (1993), na sua análise da gênese da escrita, feita mediante analogia entre esse processo como aprendizagem individual e como evolução histórica, propõe o advento do recalcamento como marca do aparecimento da escrita. Tal recalcamento que, no plano do sujeito, vem inaugurar um universo simbólico, o acesso à metáfora paterna, seria localizado na história da humanidade na invenção do monoteísmo. Assim, a "lei do pai" aparece como a condição de uma passagem à escrita, a qual assinala o apagamento da imagem como marca de uma identificação do objeto do gozo materno.Trata-se de desvencilhar-se dos efeitos sedutores da imagem, de não se deixar surpreender pela forma dos signos, para poder aceder à literalidade. A escrita fonética representa o sucesso de uma tal operação, ou seja, para ler e escrever, é preciso desligar-se daquilo que a forma das letras do alfabeto pode apontar como imagem, considerando as letras pelas suas sonoridades. É preciso, no entanto, lembrar que essa sonoridade da letra só pode ser lida se ligada ao som de outras letras, isto é, nas palavras. A letra isolada não tem o mesmo efeito de sentido, resultado do recalcamento, mas ela retoma seu valor originário de imagem cuja presença denuncia um retorno do recalcado.

Lacan, no seu seminário sobre a Identification (1961-1962), desenvolve toda uma teoria do nascimento da escrita. Ele sustenta a idéia da origem comum da letra da escrita e da instância da letra no inconsciente. Retomando a noção freudiana de identificação a um traço, Lacan conceitua o traço unário como significante elementar, suporte da identificação simbólica do sujeito.

Se, para Freud, o traço de identificação é a marca do objeto perdido, para Lacan, esse traço é possível graças ao próprio apagamento do objeto, ruptura, portanto, com o imaginário e fundação do sujeito no registro simbólico. O Um do traço não aponta para a unidade, já que ela é imaginária, mas para a possibilidade de contar-se um entre os semelhantes, assim como de marcar sua diferença pelo seu traço, que é um conseqüentemente, singular. Produto do apagamento de um modo de figuração, o traço unário funda a escrita em um núcleo essencial da letra e da imagem. O que está em causa, e que Lacan ressalta, é a possibilidade simultânea, na escrita ideográfica, de um emprego dito ideográfico e do uso fonético do material. Conclui, dessa forma, que o foneticismo não pode ser confundido com a escrita mesma, mas que ele aparece, em um certo momento, como aquilo que permite a passagem a uma escrita funcional. A escrita, diz Lacan, esperava ser fonetizada.

A partir do papel fundamental que desempenham os nomes próprios na operação de deciframento de uma escrita desconhecida, como foi o caso da escrita hieroglífica, Lacan defende o laço fundamental entre nome próprio, traço unário e o sujeito. O advento da escrita inscreve-se, portanto, nesse encontro de alguma coisa que já é escrita, no sentido do isolamento do traço significante no nome e, em particular, no nome próprio, com o foneticismo feito suporte necessário a sua sonorização.

Jean-Allouch (1994) propõe, por meio de seu conceito de transliteração, uma reflexão original sobre as relações entre Psicanálise e escrita. Esse autor distingue três modos de abordar o escrito, a saber, pelo sentido, pelo som, ou ainda, pela letra. A transliteração concerne à terceira operação; a primeira define a tradução e a segunda consiste naquilo conhecido como transcrição. Allouch defende que, no caso do trabalho de leitura que corresponde à Psicanálise, somos confrontados à operação de transliteração cuja prevalência encontra-se no textual. O trabalho de análise dos sonhos, tal como Freud nos apresenta, constitui uma ilustração por excelência de uma abordagem do escrito pela transliteração, ainda que seja dito um trabalho de interpretação. O sonho, segundo a posição freudiana, é uma escrita em imagens, comparável a um rébus. Sabe-se que a figuração é um dos mecanismos operantes na formação do sonho, o que significa a transformação dos pensamentos portanto, de elementos literais em imagens. Trata-se então de ler o sonho pelo deciframento de cada um dos seus elementos, segundo nos ensina Freud, para assim apreender a operação no sentido inverso, ou seja, o "ciframento" pelo qual o sonho é construído.

Allouch desenvolve a idéia da origem da escrita como a retomada de um material previamente existente, partindo do que ele chama a conjetura de Lacan. Utiliza a metáfora de um balé para ilustrar os movimentos dos três pólos em jogo na escrita: a linguagem, os objetos e os signos.

O desenho, dentro dessa lógica, é da ordem do signo, aquilo que representa uma coisa, mas que já não é essa coisa. O desenho é sempre infiel, figurativamente, ao objeto. A diferença dos registros aos quais pertence cada um desses dois pólos é o que permite o estabelecimento da relação, tal como uma leitura do signo. Trata-se efetivamente de um certo "ler" que precede o escrito, ainda que essa leitura ainda não seja deciframento, letra lida. É na passagem entre esses dois níveis de leitura que Lacan situa a origem da escrita. Essa passagem à escrita não é dada por si mesma, mas deriva de um ato do sujeito. Se o estatuto primordial do signo é o de representante de coisa, ele só adquirirá seu estatuto de letra, ao abandonar sua relação ao objeto. Haveria, portanto, um segundo tempo que se segue à leitura de signo, sem o qual o escrito não pode se constituir. Esse tempo corresponde à reversão da relação estabelecida pela leitura do signo efetuada pela colagem do signo ao nome que designa o objeto, de forma que ele perde sua função primordial para se tornar suporte de letra. O signo, ao suportar a letra, escreverá assim o nome, independentemente do objeto.

Ora, a operação de transliteração permite, de forma efetiva, a constituição de uma relação entre os dois tipos de leitura, a do signo e a das letras. O rébus testemunha essa operação, já que a ligação do signo com o objeto é mantida nessa forma de escrita, mesmo que sua presença só seja explicada pela evocação do nome, homófono, de outro objeto. A entrada no registro da letra, a alfabetização, supõe um corte do vínculo com o objeto, sem o qual permanece no domínio do signo. Esse trabalho de literação do signo produz uma clivagem do registro simbólico e do imaginário, o que é confirmado pela afirmação de Lacan, quando exprime que a letra se encontra desarrimada da imagem.

A idéia de continuidade entre desenho e escrita encontra-se também problematizada por Jean Bergès (1998). O desenho, diz ele, não tem qualquer relação com a escrita. Enquanto o desenho está relacionado com o corpo imagético, no caso, o corpo da mãe, a escrita, propriamente dita, é um ato intencional. Ela está destinada à leitura e inscreve-se, portanto, no registro simbólico. Ressaltando essa separação entre desenho e escrita, Bergès sustenta, no entanto, o argumento de que o trabalho da escrita começa impregnado do imaginário da letra. Esse imaginário que, segundo ele, liga a letra a uma imagem, é o próprio corpo da letra. As crianças, antes de saberem escrever, desenham letras. O futuro da letra depende desse gesto inicial, de seu traçado figurativo, de sua inscrição como imagem. A imaginarização da letra traz, assim, a ilusão de ser o objeto do desejo do outro, o desejo materno. A escrita figurativa é a marca dessa imagem reenviada pelo espelho, daquilo que o olhar da mãe assegura como lugar para a criança, o de um falo imaginário.

A distinção entre desenho e letra não é tão evidente se considerado o caráter figurativo das escritas ideográficas. Já observamos como Lacan desenvolve sua conjetura sobre a origem da escrita a partir do reconhecimento de uma etapa anterior à letra propriamente dita. Trata-se de uma leitura do signo como representante do objeto, a qual implicará, somente a posteriori, a ordem da letra.

Os sistemas de escrita ideográfica, assim como os sonhos, guardam a marca de uma cenografia que resiste à "epuração"1 do alfabeto. Sonho e ideograma, ou, como nos sugere Eliane Formentelli, sonhar o ideograma: "Sonha-se o ideograma, ele faz sonhar porque existe sonho nele" (1982, p.211).

Formentelli ressalta o fato de que a evocação figurativa apresentada no ideograma das escritas arcaicas não guarda a memória da coisa, mas sim o próprio signo como coisa. Signos sagrados, ícones da representação do mundo, capazes de reinventar a origem. O antropomorfismo, característico das primeiras representações gráficas infantis como, por exemplo, o desenho de uma casa, em que as janelas representam olhos poderia ser interpretado como o resultado da fascinação produzida pela imagem, primeira ancoragem do sujeito e de seu universo, encarnada no Outro materno.

O ideograma guarda em si o estatuto da letra apontado por Lacan em Lituraterre. Como vimos, a concepção nesse momento se diferencia com relação à L'instance de la lettre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud. A letra já não coincide com o significante, mas imprime os efeitos de língua nesse último, pelo ressurgimento do gozo. O gozo como elemento não absorvível, como resto da operação significante, será justamente aquilo que vai ser recuperável por um certo uso da letra, em que algo do registro do imaginário e do real se encontra articulado.

A insistência do desenho e as colagens na escrita adolescente revelam a presença do corpo pulsional, além do corpo do texto desvelado pela impregnação da imagem na escrita que, à semelhança do gesto ideogramático, evoca uma dinâmica do vazio e do pleno, num exercício de simbolização sempre incompleto.

 

A escrita e o véu

Essa passagem pelo conceito de letra em Psicanálise, em particular no ensino de Lacan, e pelas leituras que daí foram suscitadas, leva-nos a interrogar a aptidão da escrita a sustentar o que escapa ao sentido, a saber, o feminino.

Veremos como Freud, pela sua impossibilidade de compreender o feminino, transforma a mulher em enigma, continente negro ou terra proibida. Ele nos confessa sua dificuldade e, em alguns momentos, tenta se desvencilhar de tal tarefa; então nos remete aos poetas. Não existirá nessa sugestão uma indicação da vocação da escrita a resolver o que a psicanálise fracassa em solucionar?

Se Freud não responde à questão do que é uma mulher, ele arrisca apontar como se pode vir a ser uma. No terceiro dos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1987), Freud ressalta o encontro com o real do corpo que se modifica, marcado pelas transformações dadas pelo aparecimento dos caracteres secundários. Já na introdução desse ensaio, encontramos ressaltada a singularidade do desenvolvimento sexual feminino que, até então sustentado na primazia do falo, será objet, na puberdade, de uma "espécie de involução". Ainda nesse texto, Freud acentua, mais adiante, que, para a menina tornar-se mulher, uma nova onda de recalcamento deve incidir sobre a atividade clitoriana, ou seja, que uma parte da sua vida sexual masculina sucumba, nessa ocasião, ao recalque. Trata-se nesse momento de justificar a necessidade de a menina, a partir de então, organizar sua sexualidade em torno da vagina, condição, nos assinala Freud, ligada à "essência da feminilidade". A diferença sexual parece dessa forma estar atribuída à troca de zona erógena operada no caso da mulher. Só tardiamente, nos seus artigos de 1931, Sur la sexualité féminine, e 1932, La féminité, é que Freud indicou a impossibilidade de uma simetria dos complexos de Édipo masculino e feminino. É o momento da definição freudiana de feminilidade em termos de maternidade.

Se a ameaça da castração faz o menino renunciar ao objeto incestuoso, permitindo a identificação ao pai e a saída do Édipo, a castração para a menina não é da ordem de uma ameaça, mas de uma privação real, condição mesma de sua entrada na situação edipiana.

A feminilidade, de acordo com Freud, só se instaura quando o desejo do pênis é substituído pelo desejo de um filho, um filho do pai. Ele nos diz, assim, que a posição feminina equivale à posição da mãe, deixando a saída do complexo de Édipo feminino sobre um impasse, no qual , afinal de contas, ser mulher, ser mãe e o complexo de masculinidade praticamente se equivalem.

Lacan reafirma, no primeiro período do desenvolvimento de suas idéias, a saída do Édipo feminino pela via freudiana. Tendo passado, da mesma forma que o menino, pela fase fálica da castração, a menina não herda, no entanto, o reconhecimento simbólico do pai, a marca da pertensa a uma classe, a uma filiação. Desse sentimento de ter que suportar esse prejuízo, suas queixas traduzirão, assim, uma demanda perpétua de reconhecimento dirigida ao pai. Disso se estabelece uma posição estrutural histérica. Desse modo, a histeria parece ser o destino feminino, ditado pelo ideal fálico.

O tempo da adolescência é aquele em que a menina é confrontada ao real do corpo que se modifica, momento da puberdade marcada pelas transformações do corpo dadas à aparição dos caracteres sexuais secundários. Essas modificações corporais serão acompanhadas de um novo discurso: é dito à menina que ela não é mais uma criança, que "se tornou" uma mulher.

Esse "tornar-se mulher" implica uma modificação de uma imagem do corpo, uma acomodação necessária desse real no registro do imaginário. Sabemos do valor que adquire a aparência corporal na adolescente. O investimento da imagem, a vaidade corporal, é o efeito, de acordo com Freud, da falta fálica. O pudor é, de certa forma, uma estratégia do velamento da falta, do "defeito do órgão genital". Por não ter o pênis, como marca de uma identificação sexuada, a menina, tornando-se mulher, vai investir sua imagem corporal. O pudor do corpo, tão característico de adolescentes, denuncia o deslocamento do valor do pênis que falta, no investimento fálico sobre o corpo todo. Ser o falo dá à mulher a garantia de uma identificação possível.

A tarefa da menina em tornar-se mulher parece exigir um trabalho mais complexo que o do menino, este assegurado pela identificação ao significante fálico. Confrontada à ausência de um traço especificamente feminino, a menina se volta em direção ao significante viril, só lhe restando a saída de uma feminilidade como mascarada, na qual o sujeito feminino mostra sua falta de uma maneira a provocar o desejo do homem. "Ser o falo" constitui, de acordo com Lacan, não uma farsa mas uma estratégia da posição feminina ante a castração. Tal posição passa, então, a se diferenciar da maternidade, ainda que permaneça definida relativamente à função fálica. O conceito de mascarada, termo retirado de um artigo de Joan Rivière, de 1929, aparece pela primeira vez em Lacan, no seu trabalho La signification du phallus (1958/1966).

Marie-Helène Brousse (1996) apresenta o conceito lacaniano de mascarada como uma saída à impossibilidade da identificação do feminino no plano do significante pela via da ficção fálica.

A autora aponta o conceito de mascarada como uma solução lacaniana compatível à universalidade do complexo de castração, mas oposto à definição freudiana de feminilidade em termos de maternidade.

Mesmo que esse lugar do feminino permaneça vazio, tal não nos impede, como sublinha Miller, de encontrar aí alguma coisa. "Nesse lugar, só se encontram máscaras, máscaras de nada, suficientes para justificar a conexão entre as mulheres e os semblantes" (1997, p. 7).

A noção de semblante, no ensino de Lacan, refere-se àquilo que tem a função de velar o nada. Freud pensava o vínculo das mulheres com o nada, a partir do nada anatômico. No seu artigo La féminité, de 1932, ele enumera algumas particularidades psíquicas da maturação feminina, entre as quais destaca o pudor, cuja função é de velar a ausência do genital.

Que relação existe entre o pudor e o segredo que sustenta a escrita da agenda adolescente? Podemos indicar que tanto em um como no outro há uma demanda, ao mesmo tempo, de exibição e camuflagem, alguma coisa que, ao se esconder, se revela. Existe igualmente um tipo de promessa de possessão de algo precioso, guardado veladamente. Como o pudor, o segredo aqui visa à castração, ergue-se para resguardar o sujeito da experiência do desnudamento de sua verdade.

O pudor, como Freud propunha a partir da intenção de encobrir a falta fálica, nos envia a sua relação com o véu e o olhar, e à forma como esse véu permite uma solução à feminização. O véu traz a marca da sedução: o que ele busca obter é a captura do olhar do outro, sua fascinação. Sendo uma forma de jogo com a falta, ele carrega uma dimensão lúdica na sua mobilidade, provocando-nos, incitando-nos ao desvelamento.

A escrita do íntimo, ao permitir a constituição de um espaço secreto, inscreve-se como outra vertente do véu, esse artifício inventado para contornar a mulher, para fazê-la existir além do vazio que situa o feminino. Na escrita cotidiana do diário, a adolescente tece seu texto com o cuidado de, ao mesmo tempo, subtrair e atrair o olhar do outro, num exercício que permite liberá-la da armadilha do corpo materno, e formula uma solução à feminilidade. A escrita se apresenta como espaço onde a adolescente desempenhará a comédia fálica, uma das múltiplas facetas daquilo que Serge Lesourd (1994) chama de histerização adolescente. Segundo ele, a adolescência é o momento, para os dois sexos, da irrupção do feminino, como algo além do registro fálico; e da histerização como um meio de defesa contra esse reencontro. Meninos e meninas irão, cada qual, evidenciar a sua masculinidade e a sua feminilidade, mediante o exercício da reivindicação fálica, que assegura ao mesmo tempo uma defesa contra a falta do falo imaginário e uma resposta à necessidade de elaboração de uma identidade sexuada. Do lado da mulher, há uma reativação do valor da imagem do corpo segundo a lógica narcisista do estádio do espelho.

O corpo do adolescente parece encontrar-se ameaçado no seu valor de traço dado que seus antigos contornos se modificam, ocasionando o sentimento de estranheza experimentado freqüentemente pelo sujeito adolescente. Há, dessa forma, uma espécie de retorno da atração da imagem da letra como um paliativo da desestabilização da imagem corporal como efeito das transformações da puberdade, situação ainda mais evidente, como foi apontado anteriormente, no caso da menina adolescente.

Compreende-se, portanto, que a persistência da letra no seu valor de imagem na escrita seja uma evidência desse íntimo da mulher, a saber, o ressentimento da ausência de um significante feminino e a necessidade de se constituir um artifício fálico substitutivo da falta. Incorporar o falo por meio da comédia histérica, iniciar-se na arte do velamento, isso seria a via de acesso à feminilidade. A escrita do diário apresenta-se, com efeito, como um lugar de elaboração de uma silhueta feminina cujos contornos supõem o olhar do outro. Sem tal suposição, o sujeito da feminilidade encontra-se na impossibilidade de existir. Testemunha ainda os restos dessa operação simbólica no estilo da escrita, nos objetos acoplados ao texto, que guardam a memória da coisa, ou nas letras-ícones que, à semelhança de um ideograma, constituem o signo como coisa; escrita cujos elementos apontam, simultaneamente, para o véu e para o objeto que situam o feminino.

 

Referências

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Recebido em 22 de fevereiro de 2006
Aceito em 19 de dezembro de 2006
Revisado em 23 de janeiro de 2007

 

 

Notas

1. Referimo-nos aqui à idéia de uma espécie de purificação da letra do alfabeto ao se desvencilhar do seu valor de imagem.

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