Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
ARTIGOS
Realidade social: a violência, a segregação e a falta de vergonha
Ilka Franco Ferrari
Professora do Programa de Mestrado em Psicologia da PUC-Minas. Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais. Membro do Colegiado de Coordenação Didática do Mestrado em Psicologia. Membro da Comissão de Ética da ANPEPP. End.: Rua Professor José Renault, 526, São Bento. Belo Horizonte, MG. CEP: 30350-760. E-mail: francoferrari@terra.com.br, ilka@pucminas.br
RESUMO
O texto tem como eixo condutor a noção de realidade social, que, na psicanálise, é dita transindividual. Jacques Alain-Miller é um dos críticos daquilo que atualmente se discute no âmbito da corrente filosófica norte-americana conhecida como filosofia analítica, na qual a noção de realidade social, considerada novidade, é estruturada na vertente simbólica. Miller mostra que esse terreno já era conhecido desde a atualidade freudiana. Abordar fenômenos como violência e segregação supõe não desconsiderar a realidade social e suas particularidades. E assim se desenvolve o texto, que também recorre às ricas contribuições da filosofia política, com Hannah Arendt. É por meio dessa interlocução entre psicanálise e filosofia política que a violência e a segregação são consideradas sintomas, tendo como referência conceitos de sintoma que permaneceram, em Freud e Lacan, na atualidade em que a vergonha e a honra perderam espaço. A vergonha é diferenciada da culpabilidade e considerada um afeto primário da relação com o Outro, algo bem íntimo do sujeito. A culpabilidade é demarcada como o efeito, no sujeito, de um Outro que julga, já que é guardião de valores que o sujeito transgride. Em nosso mundo, como diria Arendt, que até demarcou um conceito de mundo, há falta de vergonha. Torna-se difícil morrer de vergonha, pois o Outro, necessário para que esse afeto se instale, "não existe". "O Outro que não existe" é um modo milleriano de referir-se à atualidade que comporta um Outro não-todo, também conhecida como atualidade líquida, como hipermodernidade e pós-modernidade. Os praticantes da psicanálise defrontam-se com os sujeitos dessa época e são inventivos, não se deixando tombar ao peso do saudosismo ou do humanitarismo. A parte final do texto traz, então, algumas considerações sobre os impasses dessa prática e o desejo do analista que a sustenta.
Palavras-chave: realidade social, violência, segregação, vergonha, honra.
ABSTRACT
This study has as conductive axis the notion of social reality, which, in psychoanalysis, is named trans-individuality. Jacques Alain-Miller is one of the critics of what nowadays is discussed on the environment of the North-American group called analytical philosophy, in which the notion of social reality, considered a novelty, is structured on symbolic terms. Miller shows that this field was already known since Freud's time. To approach phenomenons such as violence and segregation it is necessary not to disregard the social reality and its particularities. Therefore, this research is developed taking these facts in consideration, and it also turns to the rich contributions of the political philosophy, by which the violence and segregation are considered symptoms, having as reference concepts of symptom that are still present, in Freud and Lacan, until today, and in which the shame and honor have lost space. Shame is differentiated from culpability and considered a primary affection of the relation with the Other, something quite intimate to the individual. Culpability is delimited as the effect, on the individual, of an Other the judges, since he or she is guardian of values that the individual trespasses. In our world, as Arendt would say, which even delimited a concept of 'world', there is a lack of shame. It is difficult to be ashamed because the Other, needed in order for this affection to happen, "does not exist". "The Other which does not exist" is a Millerian way of referring to the modern times, which conceals a non-whole Other, and it is also known as hypermodernity and post-modernity. The believers of psychoanalysis are faced with the individuals from this time and are creative, not crumbling to the weight of nostalgy or humanitarism. The final part of the present text brings some considerations about the obstacles of this practice and the wishes of the analyst that supports it.
Keywords: social reality, violence, segregation, shame, honor.
Introdução
Freqüentemente a violência é considerada como um ato isolado, irracional, impulsivo ou até mesmo voluntário do sujeito. Vê-la como tal tem como conseqüência a entrada no circuito do que se conhece como "ação-reação" (Gras, Larena, Ramo, Sebastián e Visacasillas, 2003). Alguns efeitos desse circuito são encontrados nas medidas de controle e nos movimentos segregativos. Há todo um social em jogo que não pode ser ignorado, se não queremos ser simplistas, ao abordarmos o tema. Constata-se certo consenso nesse modo de proceder, ao percorremos alguns pensadores que se debruçaram sobre o tema, ainda que em campos de orientação teórico-prática diferentes.
Hannah Arendt, por exemplo, via a era moderna representada pela alienação dos homens em relação ao mundo. Segundo Figueiredo (2004, p.133), Arendt considerava o mundo "como algo que é comum a muitos", que está entre estes muitos, separando-os e unindo-os. Ele se mostra de modo diferente para cada um e, por isso, só se torna compreensível na medida em que muitos falam sobre ele, trocando opiniões, falando um com o outro e contra o outro. "É na liberdade do falar um com o outro que nasce o mundo em sua objetividade visível de todos os lados". A conservação da vida humana não pode prescindir, então, da política, solo da liberdade. Por essa razão, sempre criticou as políticas de seu tempo.
Algo sobre política
Os psicanalistas não deixam de pensar a importância do social, diferentemente do que se costuma dizer. Alguns praticantes da psicanálise se trancaram na vida privada de seus consultórios, mas essa conduta é evidentemente um desvirtuamento da orientação psicanalítica, já estabelecida na época de Freud. Freud (1919 [1918]/1976a) já havia percebido que a prática analítica precisaria ser ampliada e que eles eram poucos diante do número de "doentes" que precisavam de ajuda em decorrência da miséria neurótica da qual o mundo padecia. Mesmo que o número de praticantes aumentasse, Freud considerou que seria preciso despertar a consciência da sociedade, do Estado, adverti-lo de que os pobres têm direito ao auxílio psicoterapêutico tanto quanto do médico, já que as neuroses ameaçavam tão gravemente a saúde do povo quanto a tuberculose.
Ainda que tenha a política do inconsciente como referência fundamental, a psicanálise não pode desconsiderar a realidade social, como ensinou seu inventor. Conseqüentemente, não pode ignorar a questão das políticas públicas. Cevasco (1994), psicanalista de orientação lacaniana, em certo momento, se pergunta o que é a política e conclui que esta é um fenômeno de linguagem que precipita a identificação dos sujeitos no social, construindo sujeitos estandardizados. Nesse sentido, a política tem uma função pacificadora, socializadora, muito similar ao proposto por Arendt, pois aglomera os semelhantes, funda uma coexistência e constitui, para os sujeitos, uma realidade transindividual, assegurando permanência do mundo. A coletivização, lembra Tizio (1994), também psicanalista de orientação lacaniana, supõe conjuntos reunidos sob identificação, ou seja, a partir de um traço, espécie de relação parte/todo a definir o ser. Acontece que o discurso político tem outra face, e Cevasco (1994) o traz à cena. Se ele pacifica, socializa, sua singularidade supõe, exatamente, uma guerra contra o semelhante, pois, ao fabricar um Outro que pode garantir a identidade, acaba por segregar pela via da homogeneização.
O social não é uma ilusão subjetiva: a realidade social
Se é possível na ação humana, a violência não se separa do contexto social em que a ordem humana se insere. Miller e outros têm utilizado bastante a expressão "realidade social" para aclarar que a psicanálise não a desconsidera, como pensam os que a acusam de se preocupar exclusivamente com o particular dos sujeitos. Utiliza o termo, por exemplo, no livro O outro que não existe e seus comitês de ética (2005, p.166), em nítida referência ao que se discute na atualidade da filosofia norte-americana, especialmente em The construction of social reality, do filósofo anglo-americano John Searle. Representante da filosofia analítica, uma das principais correntes de reflexão no mundo atual, Searle sustenta que a realidade social está estruturada na ordem simbólica, algo que Freud já conhecia e respeitava, e que agora é apresentado como novidade, critica Miller. Para os interessados na filosofia analítica e naquilo que chamaram de "atos da fala", fica a referência do livro de Miller citado acima. Agora importa-nos enfatizar que, em Freud e Lacan, o social está presente na forma de realidade social.
O que isso implica? Implica admitir uma objetividade social, admitir que o social não é uma ilusão subjetiva, pois não se trata de uma trama de posições e decisões individuais, conforme escreve Miller (2005). A realidade social é construída, é transindividual e se impõe ao sujeito. Desse modo, não sem razão, Lacan, um leitor cuidadoso de Freud, foi contundente ao afirmar que deveriam desistir de praticar a psicanálise aqueles que não considerem a subjetividade de sua época (Lacan, 1953/1998, p. 322). Para Miller (2005), Freud partiu do que chamou de "mental", tendo como referência a biologia, e logo chegou ao grupo, ao coletivo. A partir do funcionamento do aparelho psíquico, descrito no Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]/1976b), Miller e nós, que nos interessamos pela questão, observamos que Freud criou muitas "categorias" que só encontram sustentação na realidade social. São bons exemplos a identificação - como inscrição psíquica de uma realidade constituída na sociedade, a relação de objeto e a transferência. Há em Freud, como adverte Miller, uma pregnância do social sobre o mental, pois é no meio da oposição entre natureza e sociedade, entre o natural e o social, que acontece a experiência freudiana.
Lacan, por sua vez, desde sua tese de doutorado, em que se preocupa com a "personalidade", já distinguia as relações sociais como construtoras de uma ordem original de realidade, na qual as instâncias culturais prevalecem sobre as naturais, recorda Miller (2005) aos incautos. Para ele, as formulações lacanianas sobre o Outro socializaram o mental, uma vez que o estruturalista Lévi-Strauss representa, na vida de Lacan, uma segunda edição de Durkheim. No lugar do Outro lacaniano há muitas instâncias: a palavra, a linguagem, o discurso universal, a realidade social, cultural e institucional. Na sua primeira definição de inconsciente, Lacan o situa como discurso do Outro, como transindividual, cuja condição é a linguagem. Essa posição o levou, mais tarde, a dizer que a psicanálise, "como prática, é da ordem do social, é um laço social" (Miller, 2005, p.166). A localização do sintoma na relação com o Outro da transferência, envolvendo formalização sobre o Sujeito suposto Saber (SsS), sua forma de pensar a família como uma instância social, a ênfase no complexo como algo da instância da cultura, suas formalizações sobre os discursos, sobre o sinthome, já mais no final de sua vida, estavam na trilha em que o social é considerado parceiro.
O que dizer sobre nossa realidade social? Sem esgotar a questão, José Ramón Ubieto1, em debate na cidade de Barcelona sobre a violência, fez eco ao que muito se discute no Campo Freudiano: no lugar antes ocupado pela autoridade está aquele que garante a segurança e que, como tal, é paranoizante; proliferam os vitimados e, portanto, os reivindicadores de direitos; o gozo, além de prevalente, necessita colocar-se na cena pública em que há o "dar-se a ver", forma de satisfação a mais; as crises de identidade sexuais são, cada vez mais, construídas por traços de gozo e não por ideais; presença de solidão exacerbada, mostrando modos de satisfação sem laço social, pois o que se compartilha, muitas vezes, não é um vínculo, mas um espaço do qual convém não ficar fora, elegendo por isso o aplauso ou o silêncio, em situações críticas, para evitar ser vítima. Nesse mesmo debate, Francesc Vilà propõe que convém sentir nosso corpo contra o sopro do vento. Ante as cenas da vida contemporânea, em que os sujeitos estão, cada vez mais, no lugar de objetos, aqueles que se julgam invisíveis tendem a fazer fogueiras, iluminando seus corpos como forma de voltarem a integrar a sociedade, a exemplo dos muitos ônibus queimados nas cidades.
Assim, nossa sociedade parece orientada, pode-se até dizer que de forma perversa, para um gozo desenfreado, em que imperam as exigências sem lei, em que comumente um poder se faz autoridade, um significante mestre defende um saber e expulsa o heterogêneo. Trata-se de processos comuns à segregação e que encontram terreno fértil no sistema capitalista. Lacan dizia, em "RSI" (1974/1975), que o gozo é aquilo que não se submete à lei. No Seminário 4, "A relação de objeto" (1956-1957/1995), afirmou que a frustração é o domínio das exigências desenfreadas e sem lei. O mundo em que vivemos é farto de exigências para gozar disso ou daquilo, na roda do mais de gozo, alimentada pela frustração que o capital não elimina. E a segregação mostra sua careta, como a vingança do deus da globalização, da classificação, corrompendo amores e aumentando a solidão dos sujeitos (Leguil, 1998).
A vingança do deus que ama a globalização: a segregação
François Leguil (1998), em conferências na cidade de Belo Horizonte, por ocasião da Terceira Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais, intitulada "Formas de desencontro: segregação, solidão, amor", recordou que, etimologicamente, segregar significa separar algo que se torna heterogêneo a um todo e supõe, inclusive, classificação. Até o século XIV referia-se a separar um animal de uma tropa, mas, após a descoberta da América, afirma Leguil (1998), o termo passou a ser aplicado a fenômenos humanos, em diferentes situações culturais.
Contudo, o fenômeno da segregação sempre existiu. Basta lembrarmos cenas da vida de Cristo como sua visita aos leprosos afastados do convívio social. Parece não haver dúvidas, no entanto, de que, nos últimos tempos, ela se acentua.
Também para Hannah Arendt, conforme Correia (2001), a chegada dos europeus à América contribuiu para mudanças no mundo. Ampliou a noção de espaço e encurtou as distâncias, constituindo um dos três eventos que marcaram o limiar da era moderna, ao lado da invenção do telescópio, que lançou a humanidade para além dos limites da terra, e da Reforma protestante, que promoveu novo modo de alienação no mundo interior. Esses eventos levaram o homem, na era moderna, a perder a certeza oriunda dos sentidos e da razão. Restou-lhe na consciência a dúvida como única certeza confiável. Os segredos do universo, perscrutados pelo telescópio, e a pressuposição de que o movimento dos corpos na terra correspondia ao movimento dos corpos celestes, construiram uma lei universalmente válida para os fatos, tornando a matemática a principal ciência no interesse da época. A ciência foi, assim, a responsável pelo advento da era moderna, já que, para Arendt, como bem sabem seus leitores, são os eventos e não as idéias que mudam o mundo. A atividade de pensar passou a ser serva da ação, moldando o homo faber. A ação passou a ser determinada pelo uso de instrumentos e avaliada por meio de critérios fornecidos pela relação meios/fins. Dessa forma, o homo faber inventou instrumentos para construir um mundo e não para servir ao processo vital, julgando tudo em termos de "para que" e desconsiderando o "em nome de quê". Afastou-se, cada vez mais, da importante tarefa humana no mundo, a de "oferecer aos mortais uma morada mais permanente e estável que eles mesmos" (Correia, 2001, p. 242). Surgiu, então, uma sociedade que impõe conformismo, previsibilidade de comportamentos e isolamento, já que não resultou da emancipação dos trabalhadores, mas da emancipação do trabalho e seu predomínio sobre outras atividades da vida. Sociedade segregativa, diríamos, porque, diante da inconsistência do Outro e imersos em falta de esperança, já que não podemos mais nos sustentar no Outro, somos enviados ao terrível real da segregação.
Em suas conferências, Leguil (1998) enfatiza a segregação como um sintoma de nossa época, tanto na vertente lacaniana quanto freudiana. A segregação é uma emergência da verdade que concerne ao gozo, tal como Lacan abordou o sintoma em sua leitura de Marx. Ela é uma solução de compromisso e um erro lógico, maneira de Freud situar o sintoma. Um compromisso entre o desaparecimento dos ideais e um lugar crescente de mais de gozo, um erro lógico porque se trata do que não nos convém, mas do que acontece. Não nos convém a degradação da coletividade diante do real e a covardia diante da verdade que é preciso assumir, próprias à segregação. Pode-se até considerá-la como um sintoma que autoriza o saber a tratar o sujeito como objeto de estudo, conforme Leguil. Autoriza o saber a apagar o sujeito e a construir os indivíduos (sujeito mais corpo de gozo) que, como tais, nada têm para fazer laço social.
A segregação está intimamente associada ao processo de identificação, conforme escreveu Correia (2001), a partir da leitura de Hannah Arendt. Nos processos identificatórios, uma fraternidade se estabelece por meio de certos traços e constitui o conjunto dos "bons", dos "maus", dos "ricos", dos "pobres", dos trabalhadores, etc., assegurando certa paz interna à vida em uma comunidade, mas guerra permanente contra os estrangeiros ao conjunto. Há, inclusive, entre os membros de uma comunidade criada pelos processos identificatórios, a solidariedade quanto às formas de transgressão das regras. Exemplo atual extrai-se do Senado brasileiro, cujos integrantes evitaram a saída do presidente, ainda que envolvido em uma série de atividades suspeitas. Se esse mecanismo de deixar os estrangeiros, os "inimigos", do lado de fora de um determinado conjunto, pode evitar o encontro com a angústia, com aquilo que o sujeito não quer saber, essa tentativa de unificação dos sujeitos trará, no entanto, como retorno, o pior. No caso de nossa sociedade, com tanta exclusão, uma das formas do pior que retorna está no crescente aumento da violência, com conseqüente crescimento da criação de instituições zelosas em calar os sujeitos. Nessas instituições é muito comum a tentativa de unificação de condutas, que deve ser preservada por todos, com a justificativa da exigência de coerência interna, favorecida pela ilusão, pelo mito do "um". Nesse apagamento do sujeito, o que essa situação traz para os membros da instituição são, freqüentemente, sentimentos persecutórios, paranóicos.
O retorno do pior: violência integrada no discurso
A violência, fenômeno presente em todos os tempos, é também considerada sintoma atual (Ferrari, 2006), segundo as coordenadas anteriormente traçadas sobre o sintoma. Nossa época se caracteriza por seu crescimento avassalador, mas também pela existência de um discurso próprio à violência. Integrado na ordem discursiva, esse fenômeno, que parece tão anti-social, tornou-se forma de estabelecer laços sociais. É fundamental considerar a violência como inserida em determinada realidade social, com um discurso que a orienta, pois isso significa reconhecer que ela comporta uma lógica a decifrar.
Nessa orientação, podemos entendê-la como interrupção da ordem discursiva ou como modo de minar a ficção inerente à narrativa simbólica, que garante a coerência da comunidade. Em sua vertente real, a violência é um "culturocídio" (iek, 1998), uma forma de dizer que a vida em comunidade está em perigo. O imaginário é o locus em que alguns profissionais anulam a diferença entre violência e agressividade, fazendo-as equivalentes. Em Freud e Lacan, a agressividade porta estatuto de conceito, mas isso não acontece com a violência (Ferrari, 2006). Eles a situam no eixo "a Ò a'", posição especular do eu com sua imagem ou com a imagem do outro. Nessa posição, o outro aparece como rival, ou seja, lugar de luta entre o eu e o outro, que ameaça o lugar do sujeito no Outro. Ela seria, portanto, constitutiva do sujeito, o que levou Freud e Lacan a discernirem uma hostilidade própria à condição humana e a buscarem, sempre, o que poderia apaziguar essa agressividade ou paranóia constitutiva. Violência, por outro lado, é um significante que, na atualidade, comporta tudo e mais alguma coisa.
É o simbólico, a via da linguagem, que aparece no papel de mediador, apaziguador dessa paranóia constitutiva. Ele é o que possibilita vivermos juntos, estando separados. No entanto, Lacan distingue outro lado do simbólico: o de promotor de agressividade. Há o lado do significante em seu efeito de violência para o vivente, efeito mortificante, já que a estrutura da linguagem sempre exige que o sujeito sacrifique algo de si. Mas há, principalmente, seu efeito de vida para o falasser2. Foi a partir da noção do simbólico como pacificador de um imaginário paranóico que Lacan pôde abordar o peso das palavras violentas, do insulto ou da injúria, como ponto-limite da relação simbólica com o outro. Pensar a violência no registro simbólico é indagar-se sobre a violência presente na base do laço social, já ensinada por Freud em Totem e tabu (1913[1912-1913]/1976c). É constatar que a própria noção de contrato social, ato simbólico, supõe uma violência ao real, pois seu princípio é o de uma ordem universalizante. É considerar sua incidência sobre o vivente que, ao nascer, encontra o Outro do discurso. Nesse encontro ocorre a violência de alienar-se na lei dos significantes do Outro, própria à separação do Outro, que o afasta da alienação significante.
A partir dessas construções sobre imaginário e a tensão agressiva que o caracteriza, mas também sobre as distorções provocadas, a partir do lugar que o sujeito ocupa no Outro, resulta fácil entender o acting-out e a passagem ao ato, duas formas distintas de constatar que ali há um sujeito que pergunta: o que valho para você?
No acting-out ocorre uma atuação inconsciente, sob o olhar do Outro, assim como um endereçamento ao Outro, uma necessidade de que a mensagem chegue a algum lugar e seja significada. Já a passagem ao ato diz de um não ao Outro, modo de separação radical desse Outro que aprisiona o sujeito. O sujeito está à mercê de um Outro completo e, assim, qualquer palavra ou olhar que advenha desse Outro absoluto leva o sujeito a um imperativo de resposta, com um ato radical, sem cálculo, mas forma de separação.
O que nos resta neste tempo que anula a função da vergonha e da honra?
Como cidadãos, resta-nos, entre outras soluções, o esforço de fugir à cumplicidade da banalização da violência que assola nosso dia-a-dia, recusando a postura de Otto Adolf Eichmann, tão bem comentada por Hannah Arendt (2000). Resta-nos a luta contra o "efeito sapo", mencionado por Maurício Tarrab e comentado por Ana Figueiró3, na IX Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise. Efeito exemplificado pelo cruel experimento de se colocar o sapo diretamente em água quente e se comprovar que ele salta fora de imediato. Mas, se colocado numa água cuja temperatura aumente pouco a pouco, o sapo vai se acostumando, acostumando, até ser tarde demais. Resta-nos a condição de pensar, fugindo do paradigma da idiotice normal representada por Homer Simpson e seu imperativo de que "nunca diga alguma coisa a não ser que tenha certeza de que todo mundo pensa o mesmo". Resta-nos considerar que ainda se pode morrer de vergonha e sustentar o valor da honra.
Como praticantes da psicanálise, não desconhecemos a advertência de Lacan de que a psicanálise não pode se prestar a ser uma espécie de remédio social, mas, diante do desaparecimento da vergonha na sociedade, não podemos ser indiferentes. Ao encerrar o Seminário XVII, o próprio Lacan afirma que "morrer de vergonha é um efeito raramente obtido" (Lacan, 1992, p.172). Diz isso ao discutir a perda de prestígio dos significantes mestres na civilização, mostrando, de forma contundente, um caminho aberto para "aquilo que não merece a morte", ou seja, "a vida como vergonha a engolir porque não merece que se morra por ela" (p.173).
Miller (2003), ao reler as considerações lacanianas sobre a vergonha, enfatiza que o desaparecimento desta deve mobilizar os analistas, porque, ao mudar o sentido da morte, esse desaparecimento muda também o da vida. A morte pela honra deixa de acontecer e se instaura o primum vivere, a vida pura e simples, em que se trata de primeiro viver para depois se ver por quê. A vida ignóbil, sem honra, ocupa os espaços, dado que o sujeito já não se representa por um significante que valha. Quando utiliza a expressão heideggeriana "ser-para-morte", Lacan mostra o valor do simbólico. É importante que um significante, tal como cartão de visita, represente o sujeito para outro significante. Aí a morte é condicionada a um valor que a torna superior. Ela já não é mais pura e simplesmente. Supõe uma segunda morte, que implica relação com o sujeito representado por um significante no universo simbólico. Quando se chega ao ponto em que quase todos rasgam seu cartão de visita, a vida na civilização tende a se dissolver, lembra Miller. Morrer de vergonha se torna praticamente impossível no sistema que produz a impudência e anula a função da vergonha, esse afeto primário da relação com o Outro, o mais íntimo do sujeito, diferentemente da culpabilidade, um efeito, sobre o sujeito, de um Outro que julga, já que guardião de valores que o sujeito transgride.
Alberto Cabral4, durante a discussão provocada pelo trabalho "Realidade social e violência"5 (Ferrari, 2007), falou de forma simples o que muitas vezes parece complicado, a respeito do desaparecimento da vergonha na sociedade atual. Posicionando-se sobre a orientação lacaniana, enfatizou a perda dos significantes mestres na atualidade, "progressivo eclipse do Outro, Outro de cujo olhar surge a vergonha". Eclipse que, segundo ele, "a perspectiva sociológica aborda como a perda dos grandes relatos ou apagamento, esfumaçamento dos ideais que até meados do século XX propiciavam um respaldo simbólico importante para o sujeito". Comenta como Lacan reconduziu essa questão pela via discursiva, mostrando o discurso do mestre se retirando e deixando seu lugar cada vez mais disponível para o discurso capitalista. Cabral segue suas claras articulações, observando como Lacan foi irônico ao dizer que o discurso capitalista é uma pequena modificação do discurso do mestre. O lugar do S1, significante mestre, "é ocupado pelo sujeito barrado, desidentificado, despojado das fortes amarras simbólicas que representavam as identificações". É nesse contexto, lembra ao público, que podemos dizer do "Outro que não existe e que também podemos dizer de sujeitos com falta de vergonha, bem como compreender a crescente capacidade do sujeito contemporâneo para acting e passagens ao ato".
Miller tem até um seminário intitulado "O Outro que não existe e seus comitês de Ética" (2005), cujo leitor cuidadoso não se equivocará ao deduzir que já não há mais o Outro. Miller, na leitura da questão colocada por Lacan, enfatiza que essa é uma forma de dizer que há um Outro, não-todo. O Outro atual é um todo que é não. Há no meio lacaniano a busca de formalizações sobre os novos modos de funcionamentos dos sujeitos, também cidadãos. É nessa busca de algo que dê suporte ao que vivemos, algo que possibilite formalizações conceituais para nosso caos social, que se forjam significantes como pós-modernidade, de Lyotard, hipermodernidade, de Lipovetsky, capitalismo tardio, de Jameson, alta modernidade, de Giddens, modernidade líquida, de Baumann. Associam-se a eles noções para funcionamento pessoal, tais como desencaixe, reflexibilidade, corrosão de caráter, entre outras, segundo Vieira (2005).
Perder a vergonha não é, portanto, sem conseqüências. E, diferentemente de Freud, que dizia em Moisés e o monoteísmo (1939 [1934-38]/1976d) que só a morte é sem conseqüências, Lacan nos ensinou que viver e morrer supõe conseqüências e não nos isenta de responsabilidades.
Hannah Arendt (2000) também mostrou a importância da vergonha humana. Diante do fato de Eichmann oferecer-se para ser enforcado, objetivando aliviar a culpabilidade que captara nos jovens alemães, inocentes do que seus pais haviam feito na Segunda Guerra, Arendt não só considerou essa oferta como blefe, mas também mostrou que o sentimento de culpa dos jovens era suspeito e inútil. Para ela, a vergonha seria moral e politicamente mais relevante na situação, porque por meio dela o arrependimento poderia surgir.
Ao seu estilo, Arendt também ensinou que as crises são oportunidades para que se aumente o saber e não o mal-estar, para que sejam destruídas as aparências e esquecidos os (pre)juízos, ou seja, precipitações que anulam o tempo de compreender. As crises são ocasiões para se explorar o que estava velado da essência do problema e não dispensam juízos diretos, isto é, que cada um se situe frente aos fatos. As crises só serão um desastre quando as respostas exigidas surgirem dos (pre)juízos que impedem a reflexão sobre a nova realidade.
Sobre a experiência analítica
A experiência analítica supõe um mais além do primum vivere e, como se observa, a prática analítica tem contribuições a dar. Modelar o eu ou querer restituir suas funções de controle e domínio, a partir de posição de mestria, já mostrou ser um fracasso. Apresentar-se como modelo de identificação não é a melhor saída profissional, principalmente porque posicionar-se como aquele que sabe o que interessa ao sujeito significa retirar-lhe a responsabilidade de suas decisões. Preferir o caminho do "não saber", que implica não ser agente de discurso instituído e, conseqüentemente, de juízo prévio diante do outro, é o que possibilita localizar a verdade do sujeito, na psicanálise pura ou aplicada.
Na atualidade, por exemplo, como se deparam cada vez mais com sujeitos sofredores que não dispõem de um sintoma que se presta ao trabalho de decifração, nos moldes freudianos, os praticantes da psicanálise fazem disso uma invenção. Encurralados pelo sintoma como real, disjunto de uma suposição que faça existir o Sujeito suposto Saber, não desistiram da tarefa analítica, embrenhando-se em campos antes tão adversos como favelas, periferias da cidade e instituições variadas. Sem ocuparem posição sacrificial ou humanitária, sem saudosismos, deparam-se com os sujeitos dessa realidade social violenta. Em várias formalizações sobre o que lhes ensina esse novo mundo do trabalho, observa-se a convicção de que o desejo que os move pode ter efeitos de responsabilização do sujeito por seu gozo, levando-o a encontrar novas soluções, novos modos de fazer com o sintoma. Não se trata de mágica ou de onipotência, mas da humildade própria de uma ignorância sábia, que pode servir para que alguém tenha idéia do enredo que tece em seus modos de funcionamento, gozando ativamente de sua desgraça. E, assim, diante da pergunta própria do sujeito - "O que quer de mim?" -, que esse alguém possa encontrar outra resposta, diferente daquela que o obriga a um gozo mortífero.
Referências
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Recebido em 2 de agosto de 2007
Aceito em 4 de setembro de 2007
Revisado em 28 de setembro de 2007
Notas
1. Aconteceu em janeiro de 2006, na Escuela Lacaniana de Psicoanálisis, Barcelona, Espanha.
2. Quando Lacan desenvolveu sua formulação sobre o parceiro-sintoma, substituiu o termo "sujeito" (marcado pela falta-a-ser) por falasser, para introduzir o sujeito mais o corpo vivo, substância gozante, o que supõe que o corpo é sexuado.
3. Ana Figueiró é psicanalista, membro da EBP, seção Minas Gerais. Apresentou a questão que se menciona no seminário preparatório para a IX Jornada da EBP-MG, que aconteceu em 2003, com o título "A clínica do consumo".
4. Psicanalista argentino, membro da APA, que esteve em Fortaleza para o "I Congresso Sul-americano: violência, culpa e ato", realizado de 19 a 22 de setembro de 2007, na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), promovido pelo Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto (LABIO).
5. Trabalho apresentado no "I Congresso Sul-americano: violência, culpa e ato", realizado de 19 a 22 de setembro de 2007, na Universidade de Fortaleza (UNIFOR), promovido pelo Laboratório sobre as novas formas de inscrição do objeto (LABIO), disponível na página do evento.