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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

ARTIGOS

 

A construção de um aparelho vocal em um adolescente psicótico: resultado terapêutico da Apresentação de Pacientes1

 

 

Ana Lydia SantiagoI; Ana Maria Costa da Silva LopesII

IProfessora do Programa de Pós-Graduação em Educação - Conhecimento e Inclusão Social/FaE/UFMG. End.: Rua Windsor, 60, Vila Castela. Nova Lima, MG. CEP: 34000-000. E-mail: a.lydia@terra.com.br
IIMestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Estudos Psicanalíticos/Fafich/UFMG. End.: Av. Contorno, 5351/1403. Belo Horizonte, MG. CEP: 30110-100. E-mail: anacslopes@terra.com.br, amcslopes@ig.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta os resultados terapêuticos da Apresentação de pacientes em um adolescente psicótico, atendido em um Serviço de Saúde Mental. A Apresentação de Pacientes praticada neste Serviço inscreve-se como metodologia de pesquisa para a análise diagnóstica e intervenção terapêutica de casos de crianças e adolescentes considerados "criança-problema" em função das dificuldades manifestadas para a educação e para o tratamento clínico. Trata-se de um Projeto de Pesquisa, Ensino e Extensão da Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com a Secretaria de Saúde da cidade de Belo Horizonte e o Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. A proposição desse espaço clínico surge como um recurso diante da emergência de uma dificuldade própria à instalação da transferência na psicose, que é a manifestação de fenômenos de caráter persecutório na relação com o analista. O valor clínico da entrevista é atestado pelo surgimento de algo inusitado na busca da emergência do sujeito. A voz áfona do sujeito é convocada para representar o seu eu e isola-se, então, um elemento inicial a partir do qual o paciente constrói uma ficção sintomática para aparelhar o gozo e mobilizar o real do gozo do Outro. O que constitui o efeito terapêutico da Apresentação de Pacientes, nesse caso, é a possibilidade de este sujeito poder se representar por meio da construção de um aparelho vocal mediador, que lhe torna possível a relação com o semelhante.

Palavras-chave: psicose, adolescência, resultados terapêuticos, Apresentação de Pacientes, psicopatologia psicanalítica.


ABSTRACT

This work presents the therapeutic results of Patient Introduction to a psychotic adolescent taken care of in a Mental Health service. The proposal of this clinical case appears as a resource for the emergency of a proper difficulty to the installation of the transference in the psychosis, which is a manifestation of persecutory character phenomena in the relation with the analyst. The clinical value of the interview is certified by the appearance of something unusual in the subject's search for emergency. The subject's aphonic voice is evoked to represent himself and then it is isolated, so, an initial element from which the patient constructs a symptomatic fiction in order to construct the joy and to mobilize the true joy of the Other. What constitutes the therapeutic effect of the patient introduction, in this case, is the possibility of the subject's presentation by means of a vocal mediating device that allows the relation with others.

Keys words: psychosis, adolescent, therapeutic results, Patient Introduction, psychopathology psychoanalytical.


 

 

Introdução

A Apresentação de Pacientes pode ser pensada como um espaço clínico próprio, marcado pelo ato analítico e seus efeitos. Sua diretriz ética consiste em fazer surgir o efeito sujeito, sustentado por um rigor que não questiona as referências clínicas que fundamentam o trabalho dos técnicos em Saúde Mental. Na Apresentação de Pacientes promovida por Lacan, é o paciente quem ensina por meio de seu discurso e espera-se, da investigação que se abre no curso restrito da entrevista, que algo inusitado se manifeste na relação do paciente entrevistado com aquele que o entrevista. No entanto, para que algo possa surgir, é preciso, antes de qualquer coisa, que o entrevistador esteja despojado do saber prévio sobre o que advém ao paciente. O valor clínico da entrevista é atestado apenas pelo surgimento desse algo inusitado, ou seja, pela produção em ato, no curso do próprio exercício da entrevista, de um efeito de surpresa, que permite uma intervenção direta sobre a situação do paciente ou fornece elementos para nortear intervenções no caso. O efeito de surpresa, segundo Jacques Lacan, pode surgir do lado do paciente, do lado do analista ou do público de analistas e não-analistas, que nada sabem sobre o caso, e que se torna testemunha dos possíveis efeitos que decorrem do encontro do analista com o paciente (Santiago, J., 2000)2. A experiência tem demonstrado que o que ocorre é um momento clínico singular e os efeitos serão construídos pelo próprio sujeito, como resultado de um encontro pontual com um analista.

 

O caso

Fausto é segundo filho e nasceu de um romance da mãe com um homem casado. Ele tem uma irmã mais velha, fruto do relacionamento de sua mãe com o primeiro namorado dela. Após a concepção de cada uma dessas crianças, essa mulher foi abandonada pelo companheiro, encontrando-se, segundo suas palavras, "inteiramente só" a cada vez que engravidava. Sua irmã foi registrada como filha de mãe solteira, mas Fausto carrega o nome de seu pai, pois a mãe conseguiu convencer a escriturária do cartório de que se tratava não de um sobrenome, mas do nome próprio de um irmão, já falecido. Seu nome no registro de nascimento é Fausto Alberon da Silva, sendo o Alberon o sobrenome do genitor e o da Silva, o sobrenome paterno da mãe. Ela sabia que seu segundo filho seria um menino e tinha certeza de que esse menino não seria normal. Conforme esclarece a mãe, todos os filhos de seu próprio pai geraram uma criança com problema.

Ao tentar enumerar os 19 irmãos e seus respectivos filhos, ela nem sempre consegue informar a anomalia característica de cada um deles. Pouco importa. A anormalidade é, pois, o que inscreve Fausto na linhagem paterna da mãe e pode ser um fato - como se verifica no relato da mulher -, mas, certamente, é uma ficção, ou seja, um meio de tratamento do real. Os médicos não encontraram nada de errado em Fausto. Nas tomografias tampouco. Saúde normal, desenvolvimento normal, indicou-se, conseqüentemente, pré-escola normal.

Contudo, para sua mãe, a sonoridade de seu primeiro choro, seu reflexo de sucção, quando veio ao seio pela primeira vez, e, mais tarde, a aquisição do andar com 14 meses, bem como seu jeito de brincar, eram sinais evidentes de algum tipo de paralisia. Tudo em Fausto falava de uma deficiência. Durante 19 anos, sua mãe se ocupa dele, sempre reafirmando a anormalidade da criança. Carrega-o para cima e para baixo, determina o que ele quer comer, fazer e dizer. Certo dia, durante um trajeto de ônibus, ela entrega-se a devaneios e, distraída, perde o ponto em que planejava descer. Quando se dá conta disso, levanta em sobressalto, gritando e puxando Fausto pela mão. Este responde aos gritos assustados de sua mãe apertando-lhe o pescoço. Ela tem dificuldade de controlá-lo e, só então, percebe que ele já é um homem grande. Sente medo e inquieta-se com a atitude dele. Finalmente, no entanto, procura uma escola especializada para o filho, que o encaminha, em poucos meses, para um centro de tratamento médico-psicológico.

Assim, Fausto chega ao Centro de Referência da Infância e da Adolescência - CRIA3. A presença dele e de sua mãe no saguão de espera desse Centro, causa impacto a todos os técnicos presentes: um rapaz, de 1,90m de altura, deitado em posição fetal em um banco da sala, tendo a cabeça apoiada no colo de sua mãe. Esta, uma mulher de pouco mais de 1,50 de altura, além de pequena - sobretudo em comparação ao filho -, era muito franzina. Ao ouvirem o chamado, Fausto e a mãe levantam-se e, pela proximidade física, mais parecem um bloco monolítico adentrando na sala de consulta. Sentam-se lado a lado e ele curva-se lentamente, buscando apoio para sua cabeça no colo da mãe. Não responde às perguntas que lhe são endereçadas, não dirige o olhar a quem pergunta. Ouve-se apenas a evocação de um murmúrio muito baixo, sem significado comunicativo, como se falasse para si mesmo. As sessões transcorrem na presença da mãe, que fala o tempo todo. Mesmo diante desse quadro, o analista não deixa de manifestar seu interesse em escutar Fausto, interrompendo, de tempos em tempos, o discurso incessante da mãe, para convidá-lo a se manifestar. Com isso, observa-se uma passagem da mucitação inicial a uma atitude de pararresposta, que, como explicita Henry Ey, é um distúrbio da linguagem característico dos esquizofrênicos, no qual se capta concretamente a discordância, as respostas absurdas, desconcertantes, sem relação com a pergunta (Henry Ey, 1981). Assim, quando interrogado, Fausto responde algo com a inflexão verbal de uma resposta, porém o conteúdo do que diz é disparatado em relação ao que lhe é perguntado. Outras vezes, adota a repetição monótona de palavras ou frases faladas pela mãe: Tô, Não sei, Não sei de nada, Seu burro, Seu nada.

Com o transcorrer do tratamento, Fausto começa a imitar a entonação das vozes de homens eminentes da vida política e dos programas de televisão. Essa atitude começa a ser adotada, também, na escola, onde ele caminha pelos corredores tentando comunicar-se com os colegas por meio da reprodução dessas vozes, sem encontrar, porém, um receptor. No tratamento, esse endereçamento é seguido da introdução de uma outra frase da mãe: Pai tá morto e enterrado. Essa era a explicação dada, por ela, para o desaparecimento do pai dele. Fausto insiste nessa pararresposta, a ponto de sua mãe queixar-se ao analista do fato de ele começar a repetir essa frase a partir do momento em que deixava sua casa em direção ao Centro de tratamento. Sempre que interrogado a esse respeito, repetia a mesma frase: Pai tá morto e enterrado. Na transferência, interroga essa prerrogativa materna, manifestando, ao mesmo tempo, a miséria relativa a esse "direito especial" de ter um pai morto e enterrado. Assim, passa a dizer que não tem nada, que foi roubado e a pedir, insistentemente, um vale-transporte, um dinheirinho ou mesmo um pouquinho de Haldol. Permanece nessa demanda por um tempo, até que, em uma sessão, é invadido por uma alucinação visual, com uma percepção delirante. Mostra-se assustado, repentinamente, fazendo menção a uma santa que o estaria perseguindo e queria devorá-lo. Essa santa seria, também, a assassina de seu pai e, para defender-se dela, Fausto planeja a construção de uma espada. Ele a faria engolir a espada e, assim, aniquilaria, de um só golpe, a santa e o mal que o devorava. Desde esse dia, instala-se o caráter persecutório da transferência na psicose. Você me chamou? Lança a pergunta do nada. Você tá me olhando, afirma. Você tá gozando de mim; acha que sou palhaço. O analista passa a encarnar o outro perseguidor, que também trama a morte de seu pai e a dele próprio.

Até este momento do tratamento, Fausto manifesta uma alteração da estruturação do pensamento e a má coerência de seu conteúdo psíquico se revela em sua expressão verbal. Inicialmente, a interlocução, para ele, é impossível; ele apresenta um mutismo interrompido por impulsos verbais e pararrespostas e uma conversação singular, na forma de um monólogo, inadequado à situação (Henry, Ey, 1981). O tratamento analítico permite a Fausto realizar uma passagem do mutismo e das parrespostas à repetição do discurso de homens eminentes. Este caminho o conduz ao fenômeno de alucinação auditiva. Fausto percebe uma voz que não existe - percepção do objeto inexistente, que é a alucinação propriamente dita -, e a interpreta como sendo a voz do analista chamando-o, querendo gozar dele, achando que ele é um palhaço. Fausto localiza, então, a voz no outro e constrói uma interpretação delirante de conteúdo persecutório. Concomitantemente, instala-se a erotomania4, tal como descrita por Freud, não aquela em que se trata da afirmação da paixão do indivíduo (ele me ama, eu o amo), mas a que o leva, inconscientemente, a se colocar contra o objeto (eu não o amo, eu o odeio) (Freud, 1913).

É preciso, diante da emergência dos primeiros indícios da erotomania de Fausto - que é a forma característica de manifestação da transferência na psicose —, reduzir o número e a duração das sessões e evitar o silêncio prolongado, para não facilitar a projeção do perseguidor sobre a pessoa do analista. Providencia-se, ainda, o encaminhamento do paciente para outros espaços terapêuticos institucionais - como o Centro de Convivência e as Oficinas. Desde o momento em que a relação de transferência precipita o desencadeamento do delírio e revela, no analista, a perturbação da relação do psicótico com o outro, torna-se necessário minimizar esse efeito, e a estratégia adotada, para isso, tem sido o recurso à prática feita por vários (Miller, 1997). Esta estratégia, que consiste em permitir ao paciente psicótico ter, ao mesmo tempo, vários profissionais dedicados a seu caso, cada um seguindo a orientação que é própria à sua especialidade, visa, em última instância, à pluralização da transferência. Ao manter contato com vários profissionais, o sujeito vê-se em um intervalo quanto ao saber consistente que edifica sua certeza subjetiva. Cada um dos diversos técnicos fica situado em uma posição de saber-não-saber, favorável ao quadro do paciente (Baio,1999). Por outro lado, impõe-se uma questão: frente a essa dificuldade característica do tratamento da psicose, como não ceder ao desejo de apostar na existência do sujeito e de garantir o prosseguimento do processo de cura iniciado? Com o espaçamento das sessões, Fausto retorna ao estado em que endereça aos outros a entonação das vozes. Sua permanência decidida nesse estado e a dificuldade que a transferência tinha revelado levam à proposição da Apresentação de Pacientes, que se caracteriza, portanto, como um recurso para intervir no impasse, na direção do tratamento. Fausto aceita, com entusiasmo, participar dessa atividade, em que seria entrevistado por um analista vindo de outra instituição, exclusivamente, para encontrá-lo. Não se opõe à presença de um público nessa ocasião. Ao contrário, aguarda ansioso por esse dia.

Ressalta-se, neste caso, a demonstração clínica da afirmação de Lacan de que o psicótico tem o objeto à sua disposição, no real, e por isso não o demanda, pois ele é o próprio objeto a ser gozado pelo outro. Um gozo explícito, não interditado, em relação ao qual não deixa de existir uma relação com a linguagem que convém escutar. A significação do que se diz depende e está concentrada na voz alucinada da esquizofrenia ou da esquizofrenia paranóide ou da idéia delirante da paranóia. Nesse sentido, a alucinação ou o fenômeno elementar é o mais característico do sujeito, que nos fala do lugar da linguagem. A alucinação é uma resposta que aparece no real, no lugar de uma pergunta impossível de formular: o que sou? O psicótico é sujeito de uma certeza, não há equivoco na alucinação, não há a divisão pelo inconsciente (Miller, 1985). No caso de Fausto, no momento da alucinação, ele é tomado pelo significante — "Tá gozando de mim?", "Acha que sou palhaço?" —, que não remete a um outro significante, mais a um real, surgindo como certeza para o sujeito, que se apresenta, então, como vitima de um gozo sem mediação. A resposta sobre seu ser — "Sou palhaço?" — é para ele insuportável, pois revela sua designação como objeto de gozo. É nesta circunstância que o gozo é projetado no campo do Outro, realizando a formula da transferência. Em outros termos, na psicose o Outro é julgado gozar. Ao analista é oferecido o lugar de suplente, de competidor com as vozes. O lugar de perseguidor, o que sabe e ao mesmo tempo goza do sujeito psicótico. Se o analista aí se instala o que advém é a erotomania mortífera. Nesse sentido, o espaçamento das sessões é uma forma do analista dizer não a esse lugar de Outro do gozo. Ao propor a Apresentação de Enfermos5, o que se visa é introduzir, novamente, a dimensão do não saber, da não compreensão, o que conseqüentemente retira o analista da posição do outro gozador, reabrindo o espaço para a continuidade do tratamento e a possibilidade de estabilização da psicose (Kaufmanner, 1999).

 

A entrevista

Entra na sala conduzido pelo entrevistador e toma assento diante do público. Em seguida lhe é informado, a título de introdução, o que se pretende com a atividade, ao que ele responde, fazendo sinal afirmativo com a cabeça.

- Você pode dizer seu nome completo?

- Fausto Alberon da Silva. (Fala de forma pouco compreensível).

- Você poderia dizer-nos por que veio tratar-se, aqui, no CRIA?

- Eu? (Ele se interroga, batendo os dedos no próprio peito).

- É. Você.

- Eu?

- É. Você. Estamos querendo saber o que lhe acontece.

- Eu?

Segue-se a reprodução da entonação da voz do Presidente da República, até ser interrompido, depois de alguns minutos, por outra pergunta.

- Você sempre responde às perguntas que lhe são feitas com a voz do Presidente?

- Eu?

- É. Você.

- Eu?

A essa segunda pergunta segue-se a reprodução da entonação da voz de um conhecido apresentador de programas de auditório para a televisão, até ser interrompido por uma terceira questão.

Durante toda a atividade, Fausto responde às perguntas do entrevistador sempre da mesma maneira: primeiro, certificando-se de que se queria saber algo sobre ele mesmo - com a interrogação Eu? - e, em seguida, evocando vozes de pessoas de destaque social ou político. Não dizia palavras nem frases com sentido, apenas reproduzia a entonação das vozes dessas pessoas. A entrevista dura pouco tempo e, ao sair, ele agradece sinceramente ao público presente, como se tivesse sido aclamado. Abraça sua analista, beija-a na face, dos dois lados, inclina-se diante do público por duas vezes e, finalmente, deixa a sala com um sorriso enigmático estampado no rosto.

Inicialmente, pensa-se que a atividade tinha sido malograda. Entretanto os resultados terapêuticos que se produzem a partir da entrevista revelam um efeito de surpresa que se manifesta por parte do paciente. Na sessão seguinte, entrando com sua mãe, como de costume, logo que esta começa a falar, ele a interrompe dizendo: Alto lá. Agora, eu tenho a minha voz. Desse dia em diante, o sujeito começa a falar, aparelhado de voz própria. Pouco tempo depois, começa a interessar-se por aparelhos celulares de brinquedo, com os quais irá mediar sua relação com os semelhantes. Anda pelos corredores do Centro de atendimento conversando, a torto e a direito, pelo celular e demonstrando, assim, ter criado interlocutores de verdade. Na seqüência, passa a freqüentar a Oficina de Rádio da instituição com bastante entusiasmo. Depois disso, a cada dia, não se direciona mais para o seu atendimento, sem, antes, passar pela Oficina de Rádio, para reproduzir sua voz ao público dessa Oficina.

Evidencia-se, portanto, a função da voz, que, no início, retornava metonimicamente como alucinação auditiva perturbando o sujeito como um imperativo. Em um segundo momento, a voz localiza-se no outro semelhante, na forma de uma alucinação auditiva associada a uma interpretação delirante, para, finalmente, adquirir um valor de estabilização, na medida em que há uma circunscrição do gozo, ou seja, sua ordenação por meio de um aparelho construído pelo sujeito - que denominamos aparelho vocal - através do qual ele intermedia a relação com os outros, sem ser invadido pelos fenômenos próprios à estrutura psicótica. Na entrevista, verifica-se que a voz áfona do sujeito é convocada para representar seu próprio eu. Surge, então, a tentativa onomatopéica de se representar - representar o homem grande que ele é para a mãe -, imitando, fielmente, os sons do mundo, os sons da voz de homens importantes com seu aparelho fonador, sem, necessariamente, articular a emissão vocal da maneira como é usualmente utilizada na língua. Essa representação do eu inédita, promovida pela situação da entrevista, que coloca em cena um público - receptor da voz - e o próprio registro da voz na fita gravada, isola, para Fausto, um elemento inicial, a partir do qual ele constrói uma ficção sintomática para aparelhar o gozo e para mobilizar o real do gozo do Outro.

Pode-se supor, neste caso, que as próprias condições de realização da atividade de apresentação de Pacientes - uma entrevista com o paciente, diante do público do serviço, em que o paciente tem a oportunidade de fazer um testemunho sobre aquilo que lhe sobrevém, a um terceiro, externo à instituição interessado em seu caso -, operam um distanciamento entre o sujeito e a invasão que ele experimenta em relação ao outro. Na entrevista com Fausto, não passou desapercebido seu interesse pelo pequeno aparelho gravador, com o qual se registrava sua voz. A voz que, anteriormente, se apresentava como alucinação auditiva e retornava no real do corpo, ao ser destacada do sujeito, isolada por meio do aparelho gravador, sofre uma operação que consiste na ordenação da emissão sonora até o símbolo e a inscrição da voz, não mais como órgão invasor, mas como aparelho vocal, capaz de intermediar a relação do sujeito com o outro. Deste modo, o sujeito constrói um nova ficção - "Alto lá, eu tenho a minha voz" - que intervém sobre a relação dual do sujeito com a sua mãe, que o situa à distância do objeto obscuro que ele representa na fantasia materna.

Em relação às psicoses, considera-se, portanto, que a ficção é uma construção fundamental, na medida em que permite conjugar o gozo como real. O sujeito não se encontra aparelhado da significação fálica que se deduz da estrutura simbólica da metáfora patena. Ao contrário do neurótico, que pode produzir uma ficção apoiando-se na estrutura simbólica, aparelhado pela significação fálica, o psicótico deverá inventar uma maneira para tratar o real (Santiago, A.L., 2001). O caso de Fausto é demonstrativo da ficção, na psicose, como um tecido produzido pelo sujeito, para ele dar conta do lugar em que é apreendido no Outro. Portanto, o efeito terapêutico da Apresentação de Pacientes, neste caso, consiste na possibilidade de o sujeito poder se representar por meio da construção de um aparelho vocal mediador, que lhe torna possível a relação com o semelhante.

 

Referências:

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Di Ciaccia, A. (1999). Da fundação do um à prática feita por muitos. Curinga, 13, 60-65.         [ Links ]

Ey, H. (1981). As psicoses delirantes crônicas. In H. Ey, Manual de psiquiatria (P. C. Geraldes, & S. Joannides, Trads., Cap. 7, pp. 506-512). Rio de janeiro: Masson.         [ Links ]

Freud,S. (1974). Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia paranoides) (Obras Completas, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. 12, pp. 15-108). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1911).         [ Links ]

Kaufmanner, H. (1999). Transferência na psicose. Curinga, 13, 112-117.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In J. Lacan, Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro: Zahar. (Originalmente publicado em 1955).         [ Links ]

Miller, J-A. (1985). Esquizofrenia y paranóia, psicosis y psicoanalisis. Buenos Aires, Argentina: Ediciones Manantial.         [ Links ]

Miller, J-A. (1997). L'expérience psychanatytique des psychoses. Actes de l'École de la Cause Freudienne, 36, 74-78         [ Links ]

Santiago, A. L. (2001). A mulher, a mãe, sua criança e outras ficções. Curinga, 15, 94-105.         [ Links ]

Santiago, J. (2000). Notas sobre o fundamento clínico da apresentação de enfermos. Curinga, 14, 80-83.         [ Links ]

 

 

Recebido em 14 de novembro de 2006
Aceito em 1º de fevereiro de 2007
Revisado em 29 de maio de 2007

 

 

Notas

1. Trabalho apresentado no II Encontro Americano, sob o tema "Os resultados terapêuticos da Psicanálise". Buenos Aires, Argentina, julho 2005.
2. Santiago, J. (2000). Notas sobre o fundamento clínico da apresentação de enfermos. Curinga, 14, 80-83.
3. Órgão da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.
4. A erotomania foi descrita por Clérambault como a ilusão delirante de ser amado, colocou em evidência, nesta estrutura típica do delírio passional sistematizado, os postulados fundamentais da paixão amorosa e os temas derivados que definem as três fases da evolução da psicose: estado de esperança, estado de despeito,estado de rancor. Os sentimentos gerados do postulado fundamental são: o orgulho, o desejo e a esperança.
5. A prática da Apresentação tem sido utilizada mensalmente no CRIA, há 8 anos, para fins de diagnóstico e orientação clínica dos casos examinados.

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