Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
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ARTIGOS
O psicanalista como crítico cultural: o campo da linguagem e a função do silêncio1
The psychoanalyst as cultural critic: the field of the language and the function of silence
Maria Cristina Poli
Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Université Paris 13. Pós-Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do CNPq. End.: Rua Augusto Pestana, 146/302. Porto Alegre, RS. CEP: 90040-200. E-mail: crispoli@plugin.com.br
RESUMO
A pressa do mundo contemporâneo já foi indicada por Freud como um dos componentes modernos do mal-estar na cultura. Ela tem como corolário a produção incessante de imagens, na virtualização da vida. Esse trabalho problematiza a incidência da virtualidade nas condições constitutivas da experiência, tal como a psicanálise permite compreendê-la. Retomando a distinção inaugural do ensino de Lacan entre fala plena e fala vazia, propomos a função crítica do silêncio como necessária ao ato singular de "tomar a palavra".
Palavras-chave: psicanálise, crítica cultural, linguagem, ato de fala, experiência.
ABSTRACT
The haste of the world contemporary already was indicated by Freud as the modern components of the malaise in the culture. It has as corollary the incessant production of images, in the virtualization of life. This article discuss the incidence of the virtual in the constituent conditions of the experience, such as the psychoanalysis allows to understand it. Retaking the distinction original of Lacan it enters full and empty speech, we consider the critical function of silence as necessary to the singular speech acts.
Keywords: psychoanalysis, cultural critic, language, speech acts, experience.
Um minuto de silêncio
"Um minuto de silêncio", prática ritualística que convoca ao compartilhar respeitoso de uma perda. Perda essa que é, então, situada como equivalente à ausência de palavras, ou de uma palavra que possa denominá-la. Escansão contrastada à produção sistemática, automática e midiática de uma palavra-imagem que venha a suturar a experiência da falta ao nominá-la.
O espaço e o tempo necessários para o trabalho psíquico do luto são paradigmáticos para pensarmos as condições da experiência hoje. O termo "experiência" tal como recuperado por Agamben (2005) da tradição filosófica, não é simples de ser definido, dando-se a conhecer antes pelo que "não é". Assim, não são experiências os eventos, mais ou menos banais, mais ou menos intensos, que nos acometem cotidianamente. Desses cuidaremos que não se percam, descrevendo-os minuciosamente em nossos diários ou blogs. Também não se trata de situar a experiência pelo caráter excepcional de um dado acontecimento. Uma viagem, por exemplo, pode ser um acontecimento desse tipo que não deixaremos de registrar para sempre em nossas máquinas digitais. Seria, então, "experiência" aquele tipo de insight que nos torna mais sábios pelo encontro inusitado de uma dada estratégia mental que ensina a não cometer amanhã os mesmos erros de ontem? Esse é o modelo almejado pelos cientistas que encontram as fórmulas para nos dar a conhecer o resultado de tais experimentações.2
Agamben insiste: nada disso faz "experiência". Isso porque o que a define não está na qualidade ou intensidade do acontecimento; ela se refere antes a posição daquele que está a ele sujeito. Essa posição, contudo, não é determinada pela disposição de seu agente; ela é antes decorrente de um certo desencontro, de um certo descompasso, de uma certa incompatibilidade lá onde, diríamos, as palavras demonstram sua insuficiência nomeante, as imagens sua impossível visibilidade, os corpos sua inapreensível materialidade (Didier-Weill, 1998). A experiência, que Agamben convida a nos aproximarmos por intermédio de Heidegger, é circunscrita ao campo da linguagem: "onde os nomes nos faltam, onde as palavras se partem em nossos lábios". Campo inescapável do humano, cuja condição, escreve Agamben, está na in-fância (sem fala), tempo de uma "experiência muda"; tempo que na psicanálise situaríamos entre o "não-ainda" (da inter-dicção auspiciosa) e o "só-depois" (da significação traumática).
Lembremos que Freud começou os estudos que o conduziram à psicanálise pelo tema das afasias, o que talvez não seja casual (Freud, 1977). Antes mesmo de abordar a palavra fora de lugar, nos lapsos, ou as narrativas desordenadas, nos sonhos, foi a falta da palavra e a ausência da narrativa que o interrogou. Condição primeira que tornou possível a pergunta pela implicação do sujeito no seu ato de fala, para além do domínio egóico. Nada casual, portanto, que na época da ciência e da técnica, da profusão de saberes e objetos, seja pela subtração da fala que a questão sobre o sujeito possa se colocar. Sujeito da experiência, justamente, que não se confunde com o objeto do experimento.
O silêncio da histérica afásica, do mesmo modo que a cãibra dos escritores, são ilustrativos da recusa à posição outorgada pelo Outro ao sujeito, na antecipação promovida pelo discurso. Diríamos que a afasia, de cunho histérico, se obstina a não repetir o que o mestre lhe ordena a falar, assim como o escritor inibido do ato da escrita procrastina o gesto que inscreverá uma palavra nova num estilo que lhe seja peculiar. "Sintomas-símbolo", conforme designação de Lacan (1998), que situam o topos do conflito entre o sujeito da fala e a língua/discurso.
Enquanto funções do sujeito no campo da linguagem, falar e escrever inscrevem a experiência. Indagar pelo silêncio necessário para o exercício dessas funções implica em questionar os discursos que lhes vêm opor, operação clínica indispensável ao psicanalista, mas que requer, além disso, um trabalho de sua posição enquanto crítico de nossas cacofonias culturais.
Entre o virtual e o literário, a produção do real
A pressa do mundo contemporâneo já foi indicada por Freud (1973a) como um dos componentes modernos do mal-estar na cultura. Ela se expressa na produção incessante de imagens, na virtualização da vida, tal como Baudrillard (1990) não se cansou de denunciar. Excessos de imagens e de informações que nos interpelam ora à fixidez do fascínio, ora à facilidade da opinião. Segundo as palavras do autor:
"Isso" comunica, como se diz, por uma espécie de circuito único, instantâneo; e, para que se comunique bem, é preciso que ande depressa, não há tempo para o silêncio. O silêncio é banido das telas, banido da comunicação. As imagens midiáticas (e os textos midiáticos são como as imagens) nunca se calam; imagens e mensagens devem suceder-se sem interrupção. Ora, o silêncio é justamente a síncope no circuito, a ligeira catástrofe, o lapso que na televisão, por exemplo, torna-se altamente significativo - ruptura carregada de angústia e júbilo, verificando que toda essa comunicação é no fundo apenas um enredo forçado, uma ficção ininterrupta que nos supre o vazio, o da tela tanto quanto o da nossa tela mental, do qual espreitamos as imagens com igual fascinação. A imagem do homem sentado, contemplando, num dia de greve, sua tela de televisão vazia, constituirá no futuro uma das mais belas imagens da antropologia do século XX. (p. 18-19)
Qual a incidência desse circuito de comunicação, moto contínuo da informação, naquela condição da experiência que Agamben denomina de "muda"? Pela psicanálise sabemos que esse "mutismo" da experiência, esse silêncio da língua no encontro com os limites da representação, indica o ponto no qual o sujeito da enunciação constitui sua cavilha. Locus originário do inconsciente - espaço/tempo do Isso no qual o Eu deve advir. Diante da profusão ininterrupta de informações, da sobreposição incessante de imagens, o sujeito é excluído de seu lugar ao ter a sua própria fala incluída na série de comunicações.
Retomemos o conceito de sujeito tal como proposto pela psicanálise, a partir de Lacan (1998), pela distinção inaugural em seu ensino entre fala plena e fala vazia. Essa diferença permite à psicanálise conferir um alto valor ao "ato de tomar a palavra". Valor referido justamente ao reconhecimento de uma hiância no discurso, um intervalo silencioso, que permite inscrever aí a singularidade de um ato de fala. É nesse lugar no qual ao Outro faltam palavras, onde o discurso demonstra sua insuficiência, ali onde as imagens e as informações emudecem, que o sujeito pode advir com uma palavra própria e verdadeira, uma fala plena.
Na prática clínica, tal estratégia se estabelece como o fundamento da escuta. A fala endereçada à transferência, fala do sujeito, portanto, em presença de um Outro (analista), engendra o dispositivo que converte uma aparente comunicação em veículo de uma verdade. Enquanto crítico cultural é também esse dispositivo que um psicanalista pode propor como estratégia e modo de intervenção, no lugar do filme-denúncia e dos eventos de mobilização coletiva, trata-se hoje de saber como fazer o Outro calar, daí o valor de obras de arte como a de Christo que ao empacotar monumentos e fenômenos geográficos os dá a ver.3 É preciso, igualmente, reinstalar o espaço do silêncio, a espera sem antecipação, para que o ato de fala possa recobrar seu pleno valor.
Além das artes plásticas, podemos buscar também na literatura experiências e intervenções desse tipo. Supostamente o campo literário seria exemplar do recobrimento de imagens com palavras. Nele se espera que a escansão das letras, das palavras e das frases esteja prevista e incluída no próprio ritmo da leitura. Quem lê é suposto dar algo de si, emprestar seu corpo ao texto, nem que seja para nele buscar, através da impressão da letra no olhar, inscrever um sentido. Encontrar-nos-íamos, assim, diante do registro da metáfora por excelência, lugar do sujeito no discurso.
Recorremos aqui a um livro do escritor argentino Bioy Casares (2006) que interroga, ao nosso ver, a posição da literatura na produção da experiência. No livro "A invenção de Morel" acompanhamos o relato de um homem que se refugia em uma ilha, supostamente deserta, após escapar de uma prisão na qual fora recolhido por motivos políticos. O personagem descreve em um diário os surpreendentes acontecimentos que vivencia nessa ilha a partir da descoberta de que um grupo de amigos também passa uma temporada nesse lugar. A narrativa tem um tom testemunhal particular que busca fazer o leitor sentir a experiência do personagem-narrador. As cenas descritas são por vezes confusas, como série de imagens sobrepostas, compondo situações bizarras que produzem algo próximo do sentimento de Unheimlich, descrito por Freud (1973b). Aos poucos, ao longo da novela, vamos entendendo que não se trata apenas da expressão do estado confusional do personagem. Há algo de fantástico na ilha que lhe é dado experienciar.
A aproximação se dá por intermédio da figura de uma mulher de nome sugestivo: Faustine. Nosso personagem-narrador apaixona-se por ela e busca fazer-se notar. Para seu desespero, depara-se com sua indiferença e insensibilidade. Nada que faça parece suficiente para demovê-la de seu ensimesmamento. Exasperado, depois de muitas tentativas de aproximação revela-se finalmente que sua amada não passa de uma imagem holográfica, resultado de um experimento conduzido por Morel, outro dos visitantes da ilha. Na verdade, todos os integrantes do grupo observado pelo narrador são personagens de um outro tempo; imagens reproduzidas por um aparelho inventado para funcionar ininterruptamente projetando as imagens captadas de um outro instante, esse sim real.
O tema do real e da realidade do acontecimento é, portanto, a questão central em torno da qual gira a trama da novela de Bioy Casares. Na busca pela imortalidade, tema fáustico por excelência, Morel absorve em seu aparelho as imagens concretas de seus amigos, condenando-os assim à morte. O narrador, testemunha-ocular de acontecimentos póstumos, é reduzido à condição de expectador. Apaixonado por uma imagem, vive o infortúnio do encontro impossível. Sua escolha é então tornar-se ele mesmo imagem, projetando-se junto a Faustine, na produção enganosa de um encontro. Imagem sacrificial que através da narrativa de Bioy Casares somos nós, leitores, convidados também a testemunhar. Ali, na ordem da imagem, nada se perde, apenas o essencial. Os corpos se mantêm intactos ao preço da repetição contínua do mesmo, de um tempo passado e sem sujeito. Que a imagem, mesmo de algo passado, tenha consistência e produza efeitos no presente é um dos aspectos que a trama demonstra. Que estas imagens sejam formadas por palavras é, igualmente, perfeitamente ilustrado pela novela. A força de realidade de um texto literário demonstra seu poderio. Quantas vidas perdidas no compartilhar de Werther, o personagem suicida de Goethe que levou consigo uma geração de jovens apaixonados... por literatura.
Gesto condenável? Haveria de se desenvolver, por isso, uma moral literária? Seria essa a mensagem última, uma espécie de autocrítica da literatura, o moral de "A invenção de Morel"? Suspendendo-se o juízo acedemos a experiência provocada por Casares, aquela que nos ensina que não dominamos as imagens, antes somos dominados por elas. Imagens que tiram sua consistência das palavras que as descrevem e nas quais como leitores somos demandados acreditar, tornando-as reais. Voluntariamente o fazemos. Capturados pelo fluxo da leitura, embarcamos na gramática que pulsiona o ler e o escrever, inscrevendo-os com a força de uma realidade psíquica. Cenas fantasísticas que embalam nossos sonhos: permitem-nos dormir e nos torna possível o despertar.
Talvez o enredo dessa novela transmita que as imagens e as narrativas não são, em si, excludentes da experiência. Elas também fazem experiência, e quem sabe não seja essa a sua missão principal. Faustine, essa imagem de uma mulher para sempre perdida e que nos faz viver, junto ao narrador, algo do impossível encontro com o objeto do desejo, algo do inominado da fantasia de uma cena jamais concluída, ponto de encontro com o real do sexo e da morte, que nos acossa e nos interpela.
Distanciamo-nos aqui da crítica de Baudrillard (1990), que pensa a virtualidade enquanto duplicação infinita que conduz à perda do "original" - à aura do objeto de arte, indicada por Benjamin (1994). O "original" é desde sempre já outro, obra de nossa inclusão no discurso, realidade psíquica que constitui em seu cerne sua própria materialidade. Assim, concordamos com Blanchot (2005) ao ler na produção do duplo no texto literário o índice simbólico da presença do autor na obra. A propósito de "A invenção de Morel", ele escreve:
"Felicidade, infelicidade da imagem. Nessa situação, o escritor não estaria tentado a reconhecer, rigorosamente descritos, muitos de seus sonhos, das suas ilusões e dos seus tormentos, e até o ingênuo e insinuante pensamento de que, se ele morrer disso, fará passar um pouco de sua vida para as figuras eternamente animadas por sua morte?" (p. 134).
Função de testemunho do escritor ao transmitir o traumático encontro com o real em seu texto. A novela literária, como já indicava Freud (1973c), é sucedânea do sonho. Ela também contém seu "umbigo". Lembremos aqui a análise de Lacan (1990) sobre o despertar traumático do famoso sonho relatado por Freud (1973d): "Pai, não vês que estou queimando?". É no interior do sonho, no enlace e desenlace de palavras e imagens - entre representação-palavra e representação-coisa -, que o encontro com o real se torna possível, propiciando ao sujeito adormecido em seu luto, o despertar para o desejo (Caruth, 2000).
Trauma e luto
"Nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real." (Lacan, 1990, p. 55). Lacan inicia assim o capítulo do Seminário 11, no qual se dedicará à releitura do conceito freudiano de "Compulsão à repetição". O acaso, o inesperado, a sorte e o infortúnio indicam ao sujeito o ponto de encontro com o real: aquilo que na sua experiência escapa ao tesouro dos significantes, que é inassimilável ao campo das representações. Lacan retoma as categorias aristotélicas de Tyche e Automaton para trabalhar o efeito traumático desse encontro. Seja como retorno, seja como ruptura, o trauma está no cerne da questão da repetição.
Vale notar que repetição, na psicanálise, não é sinônimo de duplicação. Lacan defende-se da atribuição de idealismo, segundo o qual vigoraria a premissa de que "a vida é um sonho". Ou, então - em uma atualização do aforismo para nossos propósitos - de que somos, todos e cada um, personagens construídos e regulados, tal qual marionetes, pelo discurso do Outro. Se é evidente que a alienação à imagem que nos é atribuída desde a mais tenra idade tem efeitos constitutivos nada desprezíveis ao longo de toda a vida, cumpre também indicar o espaço de ruptura e de separação que permite ao sujeito a apropriação de uma experiência que lhe é de início estrangeira. Tal como o personagem de Casares, a condição de espectador apaixonado por uma imagem condiz com a origem narcísica - esse deslumbramento amoroso que desconhece a perda e o descompasso temporal - necessária à produção da experiência. É nessa imagem e através dela que será possível o acesso ao real da perda e do desencontro. Não pelo abandono sacrificial de si ao Outro, em prol da produção de uma imagem eterna. Mas pelo compartilhar na leitura desse texto-testemunho, condição de narração que transmite ao leitor a experiência de uma paixão e o faz revivê-la.
Trauma, angústia e paixão - afetos do real - não são, portanto, estranhos às palavras e às imagens; não são estranhos ao campo das representações imaginárias e simbólicas. Eles constituem seu cerne e sua razão de ser, situam os pontos irredutíveis, as bordas da experiência e a constituem enquanto tal.
O silêncio, tal como o estamos tratando nesse texto, é um dos nomes desse encontro com o real da experiência. Aparentemente antagônico à eloqüência tumultuada dos afetos apaixonados e dos impetuosos abalos traumatogênicos, o silêncio é, ao contrário, sua condição. A possibilidade de emudecer - a suspensão voluntária da palavra, do gesto, do traço - a produção de uma hiância no tempo e no espaço, equivale ao deixar-se afetar pelas circunstâncias que perfazem o solo de experiência no qual um sujeito emerge. Conforme Larrosa Bondia (2002):
"o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial." (p.24)
A questão que se coloca, então, é como fazer ouvir esse silêncio? Como convertê-lo em um tempo-espaço para a inscrição da experiência? Talvez seja preciso antes reconhecer que a sua inacessibilidade é fruto da recusa a uma outra perda. Falta Outra a qual os excessos de imagens e palavras vazias se ocupam em denegar.
Para tentar entender que perda é essa que, recusada, retorna no fetiche da virtualidade (de imagens e de discursos), façamos algumas considerações. Vale lembrar que estamos buscando precisar o modo como o psicanalista possa, a partir do seu discurso e da sua posição, inscrever seu trabalho de crítico cultural criando as condições - tal como na operação clínica stricto sensu - para sustentar transferencialmente na cultura o tempo/espaço do silêncio. Tempo/espaço de emergência de um ato de fala plena.
No texto "Os traumas na modernidade", Rouanet (2006) indica os processos de desculturalização e secularização que marcaram a transição da cultura ocidental na entrada da modernidade. Como ele nos lembra, a partir da leitura freudiana sabemos que para que um trauma se constitua são necessários dois tempos: o tempo do acontecimento (o encontro com o real) e o da significação traumática (sua inscrição simbólica). Para Rouanet, quando Freud menciona as três feridas narcísicas da humanidade - a queda do geocentrismo engendrada por Copérnico, o questionamento radical do criacionismo pela teoria da evolução de Darwin e o descentramento do eu, da consciência e da racionalidade pela psicanálise - são acontecimentos traumáticos, disruptivos, que estão sendo mencionados pelo autor. A psicanálise, portanto, seria responsável pela produção de um trauma na cultura. Note-se que, efetivamente, Freud assume aí uma autoria e uma responsabilidade e inclui a psicanálise como produtora dos modos de subjetivação contemporâneos. Trata-se de uma posição de implicação necessária para a condução da transferência.
Conforme Rouanet, a crise cultural contemporânea, sobretudo o retorno do fundamentalismo religioso e de formas místicas e científicas anteriores ao advento da psicanálise, podem ser interpretadas como reações defensivas a esses traumas, indicados por Freud. Seguindo essa mesma via interpretativa, proporíamos que os excessos fetichistas - que anulam o valor da palavra ao obturar o silêncio necessário ao ato de fala - presentes em nosso laço social, são também reações pós-traumáticas. Desses mesmos traumas propostos por Freud e retomados por Rouanet, mas que vistos por um outro ângulo, podem ser lidos - tal como o faz Foucault (1990) em "As palavras e as coisas" - desde a perspectiva do discurso e das condições de representação.
Acompanhamos, neste ponto, Lacan e Foucault quando interpretam, cada qual do seu modo e no seu campo, a emergência do sujeito, na modernidade, como resultado de uma ruptura atinente à própria ordem das representações. Cumpre lembrar - como o faz Rouanet citando Freud - que a psicanálise aí não apenas é efeito, mas responsável por uma autoria, por um ato. Ou, dito de outro modo: há um real que a psicanálise como práxis destacou, recortou da experiência, implicando nela o sujeito, no mesmo movimento que apontava para sua impossível representação. Real do sexo e da morte; real da pulsão e do desejo.
Impossível representar a morte, escreve Freud; impossível representar a relação sexual, dirá Lacan. Impossíveis que indicam os pontos de necessária suplência do sujeito ao discurso. A impossibilidade na representação indica os pontos, os espaços, as hiâncias, nos quais a neurose é demandada produzir uma significação singular. Lugares do silêncio, topos do mutismo do Outro, onde um sujeito pode, ou não, advir. A condição está em que ele aceite assumir o risco do ato de tomar a palavra em nome próprio, sem antecipações, o que implica em fazer o luto pela condição de alienação originária, em fazer da in-fância o solo no qual do mutismo próprio se acede ao silêncio do Outro.
Um saber-fazer aí, entre as palavras e as coisas
No campo do discurso, a modernidade produziu um importante efeito de ruptura nas condições de representação ao tornar algo independentes os registros do visível e o do enunciável. "São irredutíveis um ao outro: por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz", escreve Foucault (1990, p.25). Os saberes produzidos nesse contexto, segundo a análise do filósofo, pautam-se por esse princípio. Seja reconhecendo e operando com ele, caso da estética, da psicanálise e de alguns saberes humanos. Seja recusando-o, como o faz a ciência positivista e os objetos da tecnologia.
Conforme indica Foucault em sua análise, a ruptura no registro da representação está associada à perda de um referente que, suposto como exterior à significação, funcionasse como garantia a sua produção. Na modernidade, tal garantia está perdida. Não há associação entre as palavras e as coisas, entre o que se diz e o que se vê, que possa dispensar o sujeito. Assim, diante da perda de um referente a priori que garantisse as condições de produção e compartilhamento da verdade - asseguradas na era clássica pelo primado da semelhança, conforme propõe o autor -, a epistême moderna engendrou "o homem" enquanto sujeito e objeto do saber. Ora, é esse homem que a psicanálise (entre outros saberes e discursos) desencanta, introduzindo aí o sujeito do inconsciente. É a esse sujeito que, hoje, a eloqüência da mídia e das produções científicas quer fazer calar.
Estamos, portanto, diante de um campo que nós, os psicanalistas, conhecemos bastante bem. Cabe a pergunta se faremos como Freud e tomaremos a responsabilidade da transferência, reconhecendo nossa implicação, ou se continuaremos a produzir mais e mais discursos que se juntam às imagens, informações e objetos na recusa à instalação do silêncio necessário ao trabalho de um luto ainda inconcluso.
Referências
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Recebido em 6 de novembro de 2008
Aceito em 8 de maio de 2008
Revisado em 20 de junho de 2008
Notas
1. Esse artigo é resultante do trabalho de pesquisa "O campo da linguagem na fala e na escrita como fundamento do discurso e da experiência psicanalítica", financiado pelo MCT/CNPq.
2. Referimo-nos aqui, evidentemente, ao modelo de ciência positivista, sem desconhecer a existência de outros paradigmas científicos, entre os quais aquele que fundamenta uma pesquisa psicanalítica. Lembramos especialmente, dentro do tema que nos ocupa, da crítica de Hannah Arendt (1958/2001) ao referir-se à invenção do telescópio no advento da ciência moderna como modelo do tipo de alienação produzida por esse discurso. Conforme indicamos em outro lugar, a partir da leitura de Arendt: "desde esta nova perspectiva - acrescida da desconfiança do sujeito em relação aos sentidos e que estabelece na introspecção o acesso à estrutura lógica da razão como a única base segura para o conhecimento - é a própria experiência do homem no mundo que se lhe torna alheia. Há, pois, uma dupla alienação em causa na ciência moderna: a perda do mundo, pela adoção do ponto de vista arquimediano, e da experiência, fruto do movimento reflexivo em direção a um mundo interior." (Poli, 2007, p.9).
3. Vale a pena destacar a diferença entre o excesso de imagens que obtura o exercício da pulsão escópica e o velamento que permite a construção de um olhar. Trata-se aí de fazer operar a clivagem indicada por Lacan (1990) entre visão e olhar. Quando propomos que Christo "dá a ver" aquilo que encobre, estamos nos referindo à produção de um "sujeito suposto olhar" na obra.