Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Amor e saber na experiência analítica1
Love and knowledge in the analytical experience
Bruna Pinto Martins BritoI; Vera Lopes BessetII
IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista do CNPq. Mestre em Psicologia pela UFRJ. Membro do Grupo de Pesquisa CLINP (Clínica Psicanalítica) da UFRJ. End.: R. Profª Anália Franco, 112. Morada da Colina, Resende, RJ. CEP: 27523-060. E-mail: brunapmbrito@gmail.com
IIDoutora em Psicologia pela Universidade Paris V. Professora da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro Pesquisador da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Coordenadora do Grupo de Pesquisa CLINP (Clínica Psicanalítica) da UFRJ. End.: Travessa Euricles de Matos, 28, Laranjeiras. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22240-010. E-mail: besset@terra.com.br
RESUMO
A oferta da construção de um saber sobre si e seu sofrimento marca a peculiaridade da proposta da psicanálise. Assim, no início do século XX, o jovem oficial que mais tarde ficou conhecido como 'O homem dos ratos' procurou Freud porque vislumbrou esclarecimentos para seus estranhos pensamentos em um livro desse autor. Em princípio, é porque 'quer saber' o que lhe faz sofrer que um sujeito procura um analista. Desde os primórdios da clínica psicanalítica, a especificidade da concepção de saber é marcada por sua relação com o inconsciente. É que se pode vislumbrar mesmo na escolha do termo alemão Unbewusst, que aponta para um 'saber que não se sabe' para designar o inconsciente. Avançando nessa vertente, Lacan apresenta o inconsciente freudiano como 'inteiramente redutível a um saber'. Esse saber, particular, próprio a cada um, inalienável, deve ser construído em cada caso. Todavia, nos dias atuais, essa proposta entra em desarmonia com a de um saber 'universal', 'para todos', prometido pela ciência. No que concerne o sofrimento psíquico, tal saber é colocado à disposição do público por especialistas que promovem avaliações padronizadas, anulando aquilo o que é próprio a cada um. Na contramão dessa corrente, a psicanálise abre mão dos questionários e manuais, instrumentos da avaliação. Então, como, a partir dela, ter acesso ao saber? Essa é a questão que norteia este artigo. Para tal, seguiremos a indicação freudiana de que esse acesso se faz pela via do amor, amor transferencial, confiança depositada no analista. Pela transferência, o analista se encontra na posição de saber suposto. Isso permite àquele que fala se interessar por saber. Todavia, frente à configuração da cultura atual, em uma época regida pela desconfiança, interessa-nos refletir sobre os obstáculos no caminho do estabelecimento desta experiência.
Palavras-chave: tratamento analítico, saber, amor, transferência, contemporaneidade.
ABSTRACT
The peculiarity of the proposition given by psychoanalysis is having a chance to consolidate knowledge about/ oneself/ and its pain./ That being, as the twentieth century began, the young officer that later became known as the "rat man", after reading one of Freud's books, came to him seeking an explanation to his strange thoughts. At first, what leads someone to an analyst is the yearn to know what brings the suffering. Since the beginning of psychoanalytical clinic, the specificity of the conception of knowledge has been marked by its relation with the unconscious. It is even possible to visualize on the choice of the german term Unbewusst, that points towards a "knowledge that is not known" to designate the unconscious. Moving forward, Lacan presents the Freudian unconscious as "completely reductable to one knowledge". This particular knowledge, that is singular to each one, inalienable, must be built in each case. However, at the present time, this proposition collides with a supposedly universal knowledge, for everyone, promised by science. When it comes to psychic suffering, that knowledge is publicly available by specialists who promote standardized evaluations, ignoring what is unique is each one. On the other hand, psychoanalysis gives up the work with questionnaires and manuals, tools of evaluation. Therefore, how to access knowledge through it? That is the question that guides us in this article. We intend to follow Freud's indication that this can be done through love, transferencial love, by the trust that is placed on the analyst. It is trough transference that the analyst finds himself in the position of an assumed knowledge. This is what allows the speaker to have the interest to know. It is in the contemporary times, ruled by distrust, that we are interested in thinking about the difficulty of establishing this experience of trust.
Keywords: analytical treatment, knowledge, love, transference, contemporary times.
Introdução
É certo que, desde seus primórdios, com Freud, os obstáculos encontrados no caminho da clínica da psicanálise questionam, constantemente, suas bases teórico/metodológicas. Dentre eles destacamos aqueles ligados às características próprias a cada época. É Lacan, depois de Freud, que nos ajuda a pensar sobre as relações de uma configuração cultural dada e a subjetividade que ela forja.
Lembramos Freud (1913/1986a) que, desde o mito da horda primitiva, afirma o sujeito humano como cultural. Para Lacan, a condição do sujeito "depende daquilo que se passa no Outro (A). O que se passa aí está articulado como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro)..." (1998, p. 549). Esse lugar do Outro, distinto do ocupado pelos semelhantes (outros), é o do tesouro da língua, dos significantes que, articulados em linguagem, subvertem e marcam a 'natureza humana' como inevitavelmente cultural (Besset, 1997). Assim como a língua, que se modifica pela ação do tempo e pelo uso, na linguagem, o grande Outro da cultura sofre transformações que têm conseqüência na constituição dos sujeitos. É por essa razão que um analista, em seu fazer, não pode desconsiderar o "mal-estar na cultura" (Freud, 1930/1986b) para que possa "alcançar a subjetividade de sua época" (Lacan, 1998, p. 321).
No contexto atual, entre os desafios que se apresentam à prática da psicanálise destacam-se, especialmente, aqueles ligados às relações dos sujeitos com o amor e com o saber. No que concerne esse último, observa-se o fascínio da promessa deum saber universal, para todos, veiculada pela ciência2. No que tange o mental, registra-se o predomínio de um modo técnico de lidar com o sofrimento. Isso tanto quanto ao diagnóstico, nas classificações psiquiátricas dos manuais em voga (APA, 2000), quanto nos tratamentos propostos, com destaque para as substâncias e as práticas terapêuticas que se valem da palavra de forma autoritária.
Nesse cenário, caracterizado como pós-modernidade (Lyotard, 1998), hipermodernidade (Lipovetsky, 2004) ou modernidade tardia (Giddens, 1991), os paradigmas hegemônicos, que sustentavam os ideais e balizavam o psiquismo, perderam sua força na formação das subjetividades. Nele, as relações podem ser caracterizadas como fluidas, em consonância com uma lógica de consumo onde a acumulação cedeu lugar à troca rápida de um objeto por um outro. Igualmente tomado na engrenagem dessa lógica, cada um é consumidor e (objeto) consumido.
Nesse contexto, a prática clínica confronta-nos com um tipo de demanda cada vez mais freqüente: soluções prontas e rápidas, para uso imediato. Demanda inserida numa época particularmente marcada pelos avanços técnico-científicos. Nela, há uma crescente busca por um bem-estar ampliado a todas as esferas da vida, um bem-estar oferecido pelos gadgets, objetos de consumo, marcados pela futilidade. Desde sua origem, imersos na objetividade prometida pelos números, esses objetos acenam com soluções rápidas para os mais diversos problemas, inclusive para o sofrimento psíquico.
O saber em voga nos dias atuais, imerso igualmente em uma pretensa objetividade, é, podemos dizer, um saber total apoiado em uma quantificação generalizada do ser humano. A busca de objetividade leva a uma utilização crescente de questionários que se propõem a classificar o sofrimento psíquico a partir de uma certa padronização. Eis uma prática distinta da proposta da psicanálise, posto que regida por um saber imposto como verdade (Miller, 2005). A psicanálise, efetivamente, destaca-se por uma abordagem específica do saber e caminha por uma outra via.
Num tratamento analítico, o que se busca é o saber particular, a se desvelar ou a se construir. Em termos freudianos, é possível afirmar, tal como Lacan (2007) que "o inconsciente é inteiramente redutível a um saber" (p. 127). Todavia, considerando-se o contexto contemporâneo, como pensar a existência, ou resistência, dessa proposta específica sobre o saber?
Para investigar tal questão, seguimos a indicação freudiana de que o acesso ao saber do inconsciente se faz via amor transferencial. Isto, através da confiança depositada no analista. Confiança que, lembremos, foi a primeira denominação utilizada por Freud para designar o fenômeno da transferência (Freud, 1893/1895/1986c).Mas, como pensar esse amor - que conduz ao saber inconsciente - numa era em que predomina a desconfiança e a fragilidade nos relacionamentos?
Nesse percurso, destaca-se a contribuição de Lacan (1998), que concebe a transferência em termos de saber, suposição de saber, posição na qual o sujeito que fala institui o analista. Suposição necessária para que um sujeito que, a despeito de demandar uma resposta pronta de alívio para seus males, como um objeto prêt-à-porter, possa se interessar pela construção de um saber.
Para buscar delimitar a especificidade de uma subjetividade tributária de nossa época, nos apoiaremos nas elaborações de Z. Bauman sobre o amor líquido. Para esse sociólogo, no tempo do amor líquido, a relação com o saber se efetua via manuais destinados a ensinar como se conduzir nas relações amorosas.
A prática analítica na era do homem sem vínculos
Estamos hoje diante de uma sociedade marcada pelo consumismo, cuja regência engolfa todos os domínios da vida dos sujeitos. Nada escapa ao desvario que permeia a troca incessante de mercadorias. Conseqüentemente, o investimento libidinal não deve ficar preso a determinado objeto por muito tempo, para que possa ser rapidamente substituído. Quando um determinado objeto não satisfaz como antes, deve ser trocado, imediatamente, no intuito de assegurar uma satisfação imediata. Assim, nem os relacionamentos escaparam dessa lógica que rege a vida contemporânea. Desse modo, estaríamos diante de uma sociedade líquido-moderna: "aquela em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir" (Bauman, 2007, p. 7).
Na medida em que tudo passa a ser regido pela lei de mercado, inclusive o amor, em uma roupagem líquida, estaríamos na Era do Homem sem vínculos (Bauman, 2004). Nela, as trocas afetivas são consideradas como investimentos - em conformidade com as leis do mercado - e, conseqüentemente, não há comprometimento nas relações. Pois, essa lógica de consumo não se baseia no acúmulo de bens, como na modernidade, mas no seu uso e descarte. E, aquele nela inserido pode trocar uma relação por outra, a qualquer momento, como se faz com uma mercadoria, sem temer as conseqüências de seus atos.
À luz dessa liquidez contemporânea, é interessante refletir a respeito da questão do bem, quando se exalta o excesso de trocas com pretensão a um melhor uso (dos objetos). O ponto de vista da utilidade vigora e, em prol da descartabilidade, o capitalismo permite situar "o valor da novidade acima do valor da permanência" (Bauman, 2007, p. 108). No que concerne à instantaneidade, a busca de relacionamentos privilegia a quantidade e a velocidade na troca de parceiro diante de qualquer decepção relativa a ele. Desse modo, os novos relacionamentos se apresentam como uma promessa de ausência de sofrimento. Mas, quais as implicações do amor concebido como mercadoria? É ainda Bauman que indica:
[...] os especialistas em marketing levam sua engenhosidade ao limite para indicar maneiras de adquirir em lojas a solidariedade, o sorriso amigo, o convívio ou a ajuda no momento da necessidade. Constantemente têm êxito - e constantemente fracassam (Bauman, 2004, p. 91).
Quanto à psicanálise, no final da década de 50, Lacan (1991) sublinha a função dos bens produzidos pelo capitalismo: colocar-se à disposição da utilidade. Explicita que "em prol da utilidade, tampona-se o que falta com esses pequenos objetos, substituíveis a todo tempo" (p. 280). Sobre isso, vale lembrar que Freud (1930/1986b) já denunciara a presença de um mal-estar que o sujeito não tem como eliminar totalmente, apontando um sofrimento inerente à vida humana e presente desde a sua origem. Para pensar esse mal-estar, apresenta suas três fontes: o próprio corpo, o mundo exterior e os vínculos sociais. Dentre elas, pontua, são os vínculos sociais que promovem os sentimentos mais dolorosos.
Mas, se por um lado, Freud ressalta que não se trata de eliminar o mal-estar, mas de que forma lidar com ele, por outro, na atualidade, os especialistas acenam com a promessa de um bem-estar total. Assim, propagam um saber que garantiria a anulação definitiva do mal-estar, como a oferta de gadgets, tais como os manuais sobre relacionamentos amorosos, ensinando como avaliar os vínculos como mercadoria (para descartá-los). Isso evidencia o lugar privilegiado da padronização que se apresenta, não só nos laços sociais, como nas propostas de tratamento para o sofrimento psíquico. Nesses, é através da avaliação que se promove uma classificação do sofrimento humano de modo homogêneo. Avançaremos, então, a partir da premissa de que a psicanálise não se insere nessa lógica.
Para delimitar a especificidade do tratamento analítico, debruçaremo-nos sobre o saber da psicanálise. Trata-se de um saber que não se atrela à técnica, já que a via para seu acesso é o amor. Lacan nos ajuda a pensar a relação entre o amor e o saber. Em uma conferência sobre a histeria, realizada em Bruxellas em 1977 e publicada alguns anos mais tarde (Lacan, 1981), esse autor afirma: "O que nossa prática revela, nos revela, é que o saber, saber inconsciente, tem uma relação com o amor" (p. 678). Em outro momento, assinala que "a transferência é amor" (2003,p. 555) e completa: "Insisto: é amor que se dirige ao saber" (Idem). Desde Freud, é imprescindível considerar o lugar e a função do amor no tratamento analítico. Mais recentemente, Solano-Suarez2, ajuda-nos a compreender o papel fundamental do amor na emergência desse saber ao afirmar que:
Para a psicanálise o tema do amor é fundamental. É a lei da prática psicanalítica, a lei do tratamento psicanalítico. O amor, na psicanálise, recebe o nome de transferência, ele unifica o laço entre o paciente e o analista. O analista não busca ser amado, ele vai servir-se da potência do amor para curar e para explorar o inconsciente (Solano-Suarez, 2006, p. 3).
Veremos a seguir que na clínica, a confiança é a condição para que o amor possa se estabelecer e possibilitar que o sujeito se interesse pela construção de um saber.
Saber e amor
Sobre a especificidade do saber na psicanálise, encontramos em Freud uma indicação sobre a relação entre o saber e o inconsciente. Uma via nessa direção são os termos bewusst e unbewusst, que correspondem, respectivamente, a consciente e inconsciente. Há uma menção ao saber na origem dessas palavras, pois o primeiro termo, bewusst, corresponde àquilo que é sabido, conhecido. O segundo termo, unbewusst, corresponde a algo desconhecido, que é não sabido pelo sujeito (Etchereverry, 1978/2003, p. 94). É legítimo, então, o "não sei" formulado pelo sujeito, "pois se trata aí de um saber que não se sabe" (Besset, 2005, p. 92). Esse não saber próprio do inconsciente poderá levar um sujeito a buscar um analista, posto que faz referência à suposição de um saber sobre seu sofrimento.
Em nossa investigação sobre o saber em suas relações com o inconsciente, destacamos a contribuição de Miller (2006b) quando propõe a noção de um inconsciente-saber, radicalizando a leitura de Lacan (1977) do inconsciente freudiano como saber - S2:
Freud não cessou de fornecer disso [um inconsciente ligado ao saber] a demonstração em seu momento de estupefação e de descoberta do inconsciente. Maravilha! Vocês pegam um lapso, pedem suas associações e logo vocês obtêm os fios que se trançam, vocês têm toda uma rede de saberes que são dispostos em seus lugares (Miller, 2006b, inédito).
Atualmente, porém, diante da hegemonia do saber técnico e do amor líquido, parece-nos pertinente pensar que estamos diante de uma era em que não há grande interesse por esse "inconsciente-saber" ou um "saber inconsciente". Na busca de um tratamento para o sofrimento psíquico, os sujeitos contemporâneos demandam um saber como um produto a ser consumido e não um saber próprio a cada um. Além disso, temos, hoje, uma incerteza constante, em função da velocidade com que as mudanças se produzem. Essa incerteza, por sua vez, prejudica o estabelecimento da confiança. Isso traz um problema para a prática da clínica psicanalítica que depende do estabelecimento de um vínculo - amoroso - para ter lugar.
Antes de abandonar a técnica da hipnose, Freud já destacava a importância da confiança: "Parece evidente que no es ventajoso iniciar un tratamiento con la hipnosis; mejor será ganarse primero la confianza del enfermo, conseguir que se amortigüen su desconfianza y su crítica"(Freud, 1891/1986d, p.138). A aplicação da técnica, ao despertar resistências em alguns pacientes, levava ao abalo da confiança necessária ao tratamento: "en toda una serie de casos ponían en movimiento la resistencia de los enfermos y me arruinaban la confianza de que yo necesitaba para el trabajo psíquico más importante" (Freud, 1893-1895/1986e, p.126).
Desde então, Freud não cessou de reafirmar, em vários momentos de sua obra, que aquele que procura um analista em busca de ajuda para seu sofrimento deve considerá-lo como "digno de confiança". Pois, esta é a condição para viabilizar um tratamento, no qual está em jogo a revelação de eventos psíquicos íntimos e secretos (Idem). Tal relação de confiança foi denominada por ele transferência (1893-1895/1986e). Anos mais tarde, Freud (1917/1986f) afirmará que ela é uma "peça decisiva" no trabalho analítico. Para compreender essa afirmação, é preciso acompanhar seus passos.
Segundo o autor, o fenômeno transferencial é aquele que permite depositar o investimento libidinal na figura do analista (Freud, 1917/1986g), o que corresponderia a um primeiro momento da experiência analítica. Lacan nos auxilia a compreender a relevância de tal fenômeno, ao afirmar que ele é o "sustentáculo da fala" (1998, p.175). Ou seja, trata-se daquilo que dá sustentação a um tratamento realizado através da fala. Ao contrário dos demais tratamentos que também utilizam a fala, a psicanálise se caracteriza pelo fato de não manter a transferência intocada: ela é o próprio "objeto do tratamento", como afirma Freud em sua conferência sobre o tema (1917/1986f). Como objeto do tratamento, podemos entender que ela permite que a libido seja inseridanum "campo de batalha", sendo o analista seu objeto de investimento. Cabe, então, ao analista seguir o caminho dessa libido. Ao mesmo tempo, Freud (1915/1986h) alerta-nos, porém, que esse investimento libidinal no analista não deve levá-lo a supor que se trata de algo provocado por sua própria pessoa, mas sim pela própria situação analítica.
Nessa mesma direção, Lacan (1998)nos adverte, em seu texto acerca dos princípios que regem um tratamento analítico, quando afirma que é o analista quem dirige o tratamento e não o paciente (p. 592). Por essa razão, o analista deve aguardar a instauração da transferência para operar, intervir. A partir de Freud, podemos afirmar que se trata de aguardar o momento em que o sujeito deposita confiança no analista. Pois, ele indica que ganhar a confiança do paciente é algo "que fica fora do alcance" do analista. Nesse sentido, sublinha a liberdade da escolha desse objeto, o analista: "Es que si se suprimiera la libre elección del médico, se anularía una importante condición del influjo sobre los enfermos"(Freud, 1890/1986i, p.124).
Mas, como pensar a instauração da confiança a partir da transferência numa época pouco propícia a ela, onde os vínculos têm tendência a serem líquidos e os amores, tal como os objetos, descartáveis? Parece fundamental investigarmos as implicações desse contexto peculiar na constituição de obstáculos ao estabelecimento do amor transferencial. Se com a transferência, o paciente posiciona o analista como objeto de amor (amado- erômenos), Lacan (1992) esclarece que, em função da estrutura da relação amorosa, ele próprio é imediatamente colocado na posição de amante (erástes). O autor nos remete à leitura de O Banquete, obra de Platão (n.d./2006) cujo tema é justamente as questões do amor.
O objeto do amor
Esse diálogo platônico refere-se à realização de um banquete no qual um dos convidados propõe que cada um dos presentes faça um discurso sobre Eros, Deus do Amor. O interesse de Lacan, ao debruçar-se sobre essa obra, é a relação do amor com o fenômeno transferencial. Esse autor acredita que não há como separar o que é do amor e o que é da transferência. Nesse sentido, assinala que devemos partir da consideração da "interrogação sobre aquilo que o fenômeno da transferência é considerado a imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele: o amor" (Lacan, 1992, p. 45).
Segundo Lacan, essa obra de Platão permite "articular o que se passa no amor no nível deste par formado, respectivamente, pelo amante e pelo amado, o erastes e o erômenos" (Ibid, p. 41). Essa relação, por sua vez, indica a disparidade entre os sujeitos, retirando, segundo o autor, qualquer possibilidade de uma posição de neutralidade para os dois parceiros envolvidos. Isso porque não há uma simetria entre os dois envolvidos no amor.
Na prática clínica, a noção de dissimetria é de fundamental importância, uma vez que ela indica haver duas posições (distintas) a serem ocupadas. Assim, no contexto de um tratamento, há um sujeito e um objeto: aquele que ama e seu objeto de amor. Por essa razão, Lacan enfatiza que, nesse caso, o uso do termo "semelhantes" é inadequado, pois não se trata de uma neutralidade. Se recorremos, com Lacan, a Platão, uma passagem do discurso de Fedro sublinha essa distinção entre o amante e o amado. Ao retomar uma frase de Homero "O Deus insulflou coragem a alguns dos heróis", (Platão,2006, p. 104) afirma que isso é o que Eros faz aos amantes: dar coragem, sendo essa uma virtude exclusiva do amante. Afirma ainda, utilizando-se de exemplos gregos clássicos, que morrer pelo outro só é feito por aqueles que amam, porquanto o amante é capaz de se sacrificar pelo objeto amado.
Ao contrário da dissimetria destacada por Lacan, no amor líquido, regido pela simetria, as posições não se distinguem, pois tudo é mercadoria. Contribui para reforçar essa simetria o saber especializado sobre as relações amorosas proposto como válido para todos, sem diferenciação. Veremos a seguir que as concepções de valor no amor platônico e no amor líquido também marcam as diferenças entre eles.
Pontuando o discurso de Pausânias, Lacan ressalta sua indicação quanto ao fato que no amor há trocas, pois o amante sempre busca algo no amado. Destaca uma passagem acerca do engano quanto ao valor dado ao objeto amoroso. Nesse discurso, Pausânias condena aqueles que buscam alguém por um certo tipo de interesse, por exemplo, por dinheiro. Mas, caso o amante seja desprovido da virtude da sabedoria, ou seja, caso haja um engano na consideração do valor do amante - o que difere do primeiro exemplo quando se tratava de um valor monetário -, não se deve considerar de modo negativo a atitude daquele que concedeu os favores. Discursando sobre Eros, Pausânias tece considerações sobre o amor entre os jovens e os sábios e afirma ser bom "o amado conceder favores ao amante" (Platão, 2006, p. 112). Nessa troca, o que está em questão é o valor entendido como a posse do amado.
Nesse sentido, podemos afirmar que tais trocas, em jogo no amor, são distintas daquelas encontradas nos dias atuais. Enquanto em nossa época a troca se dá em busca do novo, o amor tal como concebido no diálogo platônico está atrelado a um valor distinto. A fim de melhor entendermos esse "amor grego", cabe esclarecer que, na Grécia Antiga, era uma prática bastante comum os jovens se entregarem, se tornarem amantes de homens mais velhos e mais sábios, com o intuito de assim obterem um pouco de sua sabedoria. Trata-se de um amor estreitamente relacionado com a busca de um saber que não se tem.
Embora se trate de uma troca, o que nela se torna evidente é a existência de uma dissimetria entre os dois parceiros envolvidos, já que apenas um deles fica no lugar daquele que é sábio. Uma passagem do discurso de Alcibíades nos ajuda a entender a particularidade desse modo de amar. Nela, ele se queixa de Sócrates, a quem supõe deter um saber:
Acreditei que ele [Socrátes] sentia uma grande paixão por minha florescente mocidade e julguei que tal fato importava para mim em vantagem e ventura: pensei que, em troca de meus favores, receberia de Sócrates toda a sua ciência. Sim, eu me orgulhava desmedidamente do brilho de minha mocidade (Platão, 2006, p. 157).
Para que a posse do amado seja alcançada, Lacan assinala que o objeto terá seu valor atrelado à dificuldade de acesso ao mesmo. Um valor a ser entendido de acordo com a Psicologia do Rico, ou seja, poder "avaliar segundo maneiras explícitas de comparação e escala, daquilo que se compara numa competição aberta, que é, propriamente falando, a posse de bens"(Lacan, 1992, p. 63). De modo distinto, encontramos a concepção de valor do objeto amoroso nos dias atuais, posto que o valor insere-se na lógica da descartabilidade em prol do uso. Sendo assim, cada objeto amoroso perde o valor de novidade com seu uso.
O valor, porém, nem sempre está atrelado à novidade. Se retomarmos a formulação de valor, tal como destacada por Lacan no Banquete, de Platão, nos depararemos com uma concepção diferente daquela encontrada nas leis de mercado. Como na passagem supracitada do discurso de Alcebíades, destacada por Lacan, trata-se de um valor atrelado ao saber suposto ao amado. Nos comentários de Lacan, o autor acrescenta que valor e dificuldade de acesso ao objeto estão interligados. Na contemporaneidade, ao contrário, o esforço é todo no sentido de se encontrar a facilidade no acesso aos objetos.
O que está em jogo no amor platônico é sua relação com o saber, pois se pauta na crença de que o objeto amado é detentor de um saber que falta (supostamente) ao amante (erástes). Os discursos de Pausânias e de Alcibíades exemplificam isso. Alcebíades quer receber de Sócrates "toda a sua ciência". Esta é a consideração principal de Lacan em seus comentários sobre esse diálogo platônico: por se tratar de duas funções existentes no amor, o amante busca justamente o que lhe falta. Todavia, para Lacan, a busca do amante visando encontrar no objeto amado o que lhe falta é uma ilusão, pois "o que falta não é o que existe escondido, no outro. Aí está todo o problema do amor" (1992, p. 46.).
No amor, trata-se de um sujeito e um objeto, ressalta Lacan valendo-se do discurso de Alcibíades: "é o que ele [Alcibíades] relata, justamente, ter tentado fazer de Sócrates algo completamente submisso e subordinado a um outro valor que não o da relação entre sujeito e sujeito" ( Ibid, p. 178). O exemplo extraído do discurso de Alcibíades com sua demanda - de ter a posse de Sócrates como um objeto de amor - ajuda-nos a compreender a afirmação de Lacan de que a atividade está do lado do erástes, daquele que ama. Quanto à ilusão de que é possível ter no objeto amado o que falta ao amante, podemos recorrer ao discurso de Aristófanes que, ao tomar a palavra, começa afirmando que Eros é "o maior amigo dos homens" (Platão, 2006, p. 119) e, como um médico, é capaz de curar doenças.
Assim, o amor seria a tendência a retornar à antiga natureza. Para demonstrá-lo, Platão, via discurso de Aristófanes, recorre a um mito antigo segundo o qual teria havido, num certo tempo, seres esféricos formados por dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher. Em um dado momento, os deuses dividiram esses seres que, de um, tornaram-se, então, dois. A partir de tal divisão, conclui Aristófanes, cada metade sai em busca da outra a fim de voltar a obter sua completude, ou seja, com o intuito de retornarem ao estado original quando formavam um único ser, perfeito. Conseqüentemente, diz ele, o objetivo do amante seria "ser unido e fundido no amado" (Ibid,p. 124). Assim, define o amor como "desejo e ânsia dessa complementação, dessa unidade" (Ibid, p.124).
De acordo com Lacan, o discurso de Aristófanes promove a "derrisão da esfera". Um dos seus argumentos é ter colocado as palavras acerca do amor sendo faladas por um poeta cômico, um bufão, levando o leitor a duvidar quanto à seriedade desse discurso. O derrisório, no caso, seria essa tendência à perfeição, retomando a teoria da Boa Forma, como a da esfera, em referência à perfeição. Ou seja, esses seres esféricos, divididos em metades, remeteriam a esse estado perfeito. Então, pautados em Lacan, poderíamos dizer que aquilo que causa riso é a impossibilidade de se atingir a perfeição? O próprio Lacan e nos indica que "amar é dar o que não se tem" (Lacan, 1992, p. 41), já que o amor se sustenta na ilusão de atingir essa perfeição. A ilusão amorosa é justamente crer na possibilidade do "par se tornar um só", o que, aliás, Freud já havia mencionado em 1930 (Freud, 1930, p.105).
Justamente, é a partir da falta e da ilusão amorosa que é possível o surgimento da transferência. A emergência do fenômeno amoroso define-se como a busca no objeto amoroso - o analista - de algo que ele, o amante, não tem. Sendo assim, nos termos de Miller, "o primeiro valor que se pode dar a 'eu amo' é: 'sinto falta de' " (Miller, 2006a, p. 17). Para Solano-Suarez (2005), igualmente, "amor e falta são solidários" (p. 52). No diálogo platônico encontramos exemplo acerca do que falta ao sujeito e o impele em direção ao objeto amoroso. Trata-se do questionamento proposto por Sócrates a Agatão ao final de seu discurso:
Sócrates: - Portanto, a pessoa, a quem quer que deseje alguma coisa, deseja forçosamente o que não está à sua disposição, o que não possui, o que não tem, o que lhe falta; ora, não são esses justamente os objetos do desejo e do amor?
Agatão: - Claro. (Platão, 2006, p. 135.)
É justamente essa falta que faz com que o erástes (amante) se considere incompleto. Essa seria a condição para haver o desejo de se completar, pois, como afirma Sócrates: quem se acha completo "não deseja aquilo cuja falta não pode notar" (Ibid, p. 140).
Se pensarmos no tratamento, quando um sujeito se dirige a um analista busca um saber sobre o seu sofrimento, já que ele "não sabe o que tem" (Lacan, 1992, p. 45). A implicação do inconsciente se mostra, então, quando busca no objeto amoroso o que lhe falta. Entretanto, no contemporâneo, nem sempre se encontra essa crença na incompletude, base desse amor. De todo modo, voltaremos nossa atenção na investigação da transferência estruturada com base no amor. Com isso, esperamos obter subsídios à nossa discussão acerca da desconfiança própria ao contemporâneo, acarretando desafios para uma clínica que tem como condição de acesso ao saber inconsciente a confiança depositada na figura do analista.
A transferência é uma crença que se fundamenta no amor
Tomando esse título como nossa referência, não podemos deixar de mencionar a observação de Solano-Suarez quando nos indica a importância da confiança que, como sabemos, está fundamentada no amor (Solano-Suarez, 2005). Vamos, então, retomar Freud para enfatizar a importância do amor na relação transferencial: "sólo por el amor podían sanar, y desde el comienzo del tratamiento esperaron que ese lazo les deparase como regalo" (1917/1986f, p. 401). Antes, porém, é preciso investigar qual o uso que se pode fazer do amor a ponto de considerar que só a partir dele se conduz um tratamento analítico.
O analisando tem como meta ser amado, proposição freudiana retomada por Miller (2006a) para ressaltar o que está em jogo no amor transferencial, tanto como no amor encontrado no cotidiano. A referência freudiana é afirmação de que o principal do amor é o desejo de ser amado (Freud, 1930/1986b). Segundo Freud, no "amar a todos" proposto pelo catolicismo, o mais importante do amor fica perdido: a escolha de apenas um, pois todos se equivalem como objeto de amor. O essencial do amor, seria, nessa perspectiva, tornar o sujeito único. Desse modo, em caso de perda, a substituição é bastante problemática.
O amor de transferência não difere muito do amor comum. Apenas em um ponto, diríamos. Nesse caso, o amante não quer o bem do amado. Ao analista interessa o avanço do tratamento, mas ao amante interessa apenas o amor... Ao mesmo tempo, assinala-se uma peculiaridade dessa 'relação amorosa': refere-se à postura do analista que, seguindo estritamente uma indicação freudiana, não atende a demanda amorosa.
Ora, se não atende à demanda, como o analista pode fazer uso do amor? E, se a meta do sujeito é ser amado, na tentativa de atingir tal objetivo, o interesse se desloca do tratamento em direção ao objeto amado, ou seja, o analista. Quando isso ocorre, Freud (1912/1986j) afirma que o amor transferencial está servindo à resistência, ou seja, colocando-se como entrave e não como motor do tratamento.
Num primeiro momento, podemos pensar que caíram por terra os objetivos do analista quanto ao progresso do tratamento (Freud, 1917/1986f). No entanto, a transferência como resistência não deve ser considerada uma desvantagem para o tratamento. Ao contrário, mesmo sob sua face de resistência, a transferência permanece fundamental para esse percurso. Tanto assim que é a partir do momento em que a transferência serve à resistência que o analista pode fazer suas primeiras intervenções, pois:
mientras las comunicaciones y ocurrencias del paciente afluyan sin detención, no hay que tocar el tema de la trasferencia. Es preciso aguardar para este, el más espinoso de todos los procedimientos, hasta que la trasferencia haya devenido resistência. (Freud, 1913/1986l, p. 140).
Mas, vale lembrar que a transferência confere autoridade e prestígio ao analista, como nos indica Freud:
En la medida en que su trasferencia es de signo positivo reviste al médico de autoridad y presta creencia a sus comunicaciones y concepciones. Sin esa trasferencia, o si ella es negativa, ni siquiera prestaría oídos al médico o a sus argumentos (Idem, p. 405).
Então, de que autoridade se trataria aí? Sobre o termo autoridade, Buarque de Holanda (1986) nos remete aos seguintes significados: direito ou poder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões, agir etc; aquele que tem tal direito ou poder; influência, prestígio; crédito; permissão, autorização (p. 204). Entretanto, supor algo ligado a um autoritarismo seria, certamente, contrário aos princípios éticos da psicanálise. É Freud (1917/1986g) ainda que nos dá pistas sobre o uso de tal autoridade ao afirmar que não se trata de utilizar essa autoridade para "sufocar a sua [do paciente] exteriorização dos sintomas" (p. 395). Afirma igualmente que, quando o amor serve à resistência, há uma tentativa de anular essa autoridade conferida ao que é dito pelo analista , pois, em vez de confiança e prestígio para com o analista, instaura-se a desconfiança, decorrendo daí um entrave ao tratamento. Dessa forma, fica claro que, também em razão do amor, a transferência pode servir de entrave ao tratamento.
Atualmente, na clínica, há algo anterior a esse impedimento promovido pela própria transferência. É a demanda inicial de tratamento que nos defronta com a questão: o que fazer com a demanda de alívio imediato e com a fluidez das relações quando um sujeito chega para atendimento? Ao contrário de negar essa demanda, trata-se de acolher tais pedidos de ajuda. Aliado a esse acolhimento, é preciso trabalhar no sentido do estabelecimento da transferência. Entretanto, diante dos obstáculos que a subjetividade, própria a nossa época, nos apresenta, devemos refletir sobre a pertinência de uma afirmação de Lacan, segundo a qual: "nega-se o amor ao inconsciente", pronunciada por ocasião de um seminário (1973/1974). Lacan diz que a negação do amor ao inconsciente seria um tema relevante e observado pela primeira vez em nossa história, pois, assegura, nos séculos anteriores amava-se o inconsciente.
Como entender esse movimento inédito de negar o amor ao inconsciente, tal como formulado por Lacan? Para Tarrab (2003), essa negação do amor ao inconsciente estaria relacionada com o desenvolvimento do capitalismo. Diante do cenário atual, retomar essa afirmação de Lacan, como o faz Miller (2006a, p.14), parece bastante pertinente. Esse autor traz à tona a questão da relação dos sujeitos contemporâneos com o amor ao inconsciente. Em um tempo em que os princípios da modernidade encontram-se exacerbados, a ponto de podermos denominá-los de "hipermodernos" (Lipovetsky, 2004), o valor atribuído ao inconsciente parece declinar juntamente com o valor do amor atrelado à falta. Ao mesmo tempo, há sujeitos que, como os analistas, apostam na psicanálise. Aqueles para os quais a oferta da ilusão do amor deixa entrever, vislumbrar, um tratamento possível para o sofrimento que os objetos não conseguem aplacar.
Considerações finais
Partimos da especificidade do tratamento do saber pela psicanálise buscando subsídios para avançar na investigação da via de acesso a esse saber: o amor de transferência. Com o auxílio de autores que se debruçam tanto sobre o tema da transferência como sobre as relações amorosas na atualidade foi possível fazer uma primeira abordagem sobre a questão que recortamos e nos serviu de norte. Diante do amor líquido e suas conseqüências, como pensar no investimento libidinal dirigido ao analista, necessário à experiência analítica? Ao nos determos sobre o que caracteriza o amor líquido e, igualmente, sobre o amor transferencial, necessário à prática analítica, constatamos a existência de duas lógicas distintas. Assim, de um lado, o amor é concebido como mercadoria descartável a partir da qual predomina a desconfiança. E, de outro, na clínica, deparamo-nos com um outro tipo de vínculo, estabelecido a partir da confiança depositada no objeto de amor, o analista. Trata-se, aqui, de uma relação dissimétrica, na qual amante e amado ocupam lugares distintos. Assim, se o amor líquido imprime a simetria nas relações guiadas por manuais, a segunda modalidade instaura a diferença. Com base nas posições do erástes e do erômenos é possível compreender que na concepção de amor da qual faz uso a clínica psicanalítica trata-se de um sujeito e um objeto. Logo, a partir da transferência amorosa, o analista pode ter notícia das escolhas feitas pelo sujeito.
Além disso, devemos ressaltar que o estabelecimento da transferência permite a instauração da confiança, nesse laço com o analista. É o que permite ao sujeito interessar-se por um saber que só poderá servir para ele próprio, distinto daquele exibido nos manuais contemporâneos que pretendem ensinar, de modo homogêneo, como fazer nas relações amorosas. A nova roupagem propiciada pela lógica do amor líquido traz em seu bojo uma forma de recusa da solidez nas relações sociais, entre elas, a amorosa. Mas, para que uma análise possa acontecer, é preciso servir-se do amor utilizando-o como instrumento para produzir um saber sobre a verdade. Usar o amor como instrumento na experiência analítica é afirmar ser fundamental a crença que se encontra embutida na demanda de amor. A transferência, ao se estabelecer baseada no amor, atesta que, aquele que fala, confia e acredita no saber do analista a respeito de seu sofrimento. Essa suposição é certamente o que permite conectar o inconsciente ao analista.
Por isso, a manutenção da oferta de uma escuta que não imponha um saber universal ao sujeito é de fundamental importância. Nesse sentido, a psicanálise caminha na via de uma autoridade conferida ao analista por aquele que lhe supõe um saber sobre o seu próprio sofrimento. É somente desse lugar de confiança, instaurado pela transferência, que o analista pode convidar o sujeito a se interessar pela construção de um saber particular. Construção que ele deverá pagar com seu trabalho, com o dinheiro pago ao analista e com a perda de gozo (satisfação pulsional) que a colocação em palavras implica.
Enfatizamos, então, a idéia de que só será possível convidar o sujeito a inserir-se no dispositivo analítico a partir do estabelecimento da transferência. Isso possibilita ao analista dirigir o tratamento no sentido de restaurar a crença no saber inconsciente. Mas, devido aos obstáculos sempre crescentes de nossa época, não podemos abrir mão de um trabalho preliminar, durante as entrevistas iniciais, com o intuito de promover a inserção do sujeito no dispositivo.
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Recebido em 17 de dezembro de 2007
Aceito em 3 de junho de 2008
Revisado em 25 de junho de 2008
Notas
1. Esse trabalho é fruto da dissertação de mestrado "Psicanálise: De que saber se trata?", defendida pela autora e orientada pela co-autora. Tal pesquisa teve o apoio da Capes sob forma de bolsa de mestrado; relaciona-se às pesquisas em andamento no Grupo de Pesquisas "Clínica Psicanalítica" (CLINP), UFRJ-CNPq, coordenado pela co-autora.
2. A mídia contribui, evidentemente, para a legitimação desse 'saber'. O jornal O Globo, datado de 17 de junho de 2008, traz em sua Seção 'Ciência' o artigo intitulado "Biologia da homossexualidade", a partir de um artigo científico e com apoio de fotos, que o "Cérebro dos gays é similar ao do sexo oposto revelam imagens inéditas".