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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644

     

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Criminalidade juvenil no Brasil pós-moderno: algumas reflexões psicossociológicas sobre o fenômeno da violência

 

Youth crime in post-modern Brazil: psychosociological reflections on the phenomenon of violence

 

 

Jacqueline de Oliveira MoreiraI; Ângela Buciano do RosárioII; Domingos Barroso da CostaIII

IDoutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta III da PUC-Minas. Professora do Mestrado da PUC-Minas. Psicóloga clínica. End.: R. Congonhas, 161, São Pedro. Belo Horizonte, MG. CEP: 30330-100. E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br
IIMestre em Psicologia pela PUC-Minas. Coordenadora do Curso de Psicologia da Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC) de Barbacena. Psicóloga clínica. End.: R. José Linhares, 21, Santa Tereza. Barbacena, MG. CEP: 36201-088. E-mail: angelabr@ig.com.br
IIIMestre em Psicologia pela PUC-Minas. Professor da UNIPAC. Bacharel em Direito pela UFMG. Especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela UNIGRANRIO/PRAETORIUM. End.: R. Xavier de Gouveia, 240, apt. 201, Grajaú. Belo Horizonte, MG. CEP 30430-710. E-mail: dobarcos@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo o estudo interdisciplinar da criminalidade e da violência na contemporaneidade. Com amparo na Sociologia, na Psicanálise e no Direito, visa à abordagem das peculiaridades desses fenômenos no período atual - denominado, por alguns, de Pós-Modernidade, em cotejo com o contexto do que se chamou Modernidade. Nesse sentido, na primeira parte do texto, procura-se situar a discussão no contemporâneo quadro social brasileiro, sempre considerando sua imersão no processo de globalização do consumo. Posteriormente, deslocado o foco da análise que se propõe para o âmbito subjetivo, buscam-se, na teoria freudiana, alguns subsídios para a compreensão das origens psicológicas da violência - e, por conseguinte, da criminalidade -, com destaque para o que se extrai do texto Mal-Estar na Civilização. Tomam-se as idéias apresentadas neste texto freudiano para trabalhar a relação entre o eu e o outro, que está em constante ameaça de destruição devido à inclinação humana para o mal. Como afirma Freud, a manutenção da sociedade depende do investimento de uma elevada quota de energia na contenção dessa inclinação, enquanto se observa que os processos de subjetivação do sujeito pós-moderno cada vez menos demarcam os limites que o distanciam do outro e, dessa forma, sustentam a sociedade. E é a partir dessa nova dinâmica de construção subjetiva que se tenta explicar a expansão desenfreada da violência e da criminalidade no Brasil, com especial atenção, ao final deste estudo, para o alardeado aumento dos atos infracionais perpetrados por adolescentes.

Palavras-chave: violência, Psicanálise, adolescência, criminalidade, pós-modernidade.


ABSTRACT

The scope of this essay is the interdisciplinary study of crime and violence in today's world. Based on Sociology, Psychoanalysis and Law, it aims to address the singularities of these phenomena in the present - referred, by some people, as post modernity, in comparison with what was called modernity. In this sense, in the first part of this study, we intend to establish the discussion according to the Brazilian social contemporary scope, considering its immersion in the consumption globalization process. Later, shifted the focus of analysis that suggests the scope for subjective, in the Freudian theory, some elements for understanding the psychological roots of violence - and, therefore, the crime - with emphasis on what is extracted from the text Mal-Estar na Civilização. We took up the ideas presented in this Freudian text to study the relationship between the self and the other, which is in constant threat of destruction because of the human inclination to evil. As Freud says, the maintenance of society depends on the investment of a high share of energy in the containment of inclination, as long as it is observed that the processes of subjectivity of the postmodern subject fewer demarcate the limits that distance of the other and thus support the society. And it is from that new dynamic of subjective construction that we try to explain the unbridled expansion of violence and crime in Brazil, with special attention, at the end of this study, to the ostentatious increase in illegal acts perpetrated by teenagers.

Keywords: violence, Psychoanalysis, adolescence, criminality, post modernity.


 

 

Criminalidade juvenil no Brasil pós-moderno: algumas reflexões psicossociológicas sobre o fenômeno da violência

O presente texto apresenta-se como uma proposta de reflexão acerca da expansão contemporaneamente observada de comportamentos violentos e criminosos, marcadamente os atribuídos a adolescentes. Diante da complexidade desse fenômeno - que tem raízes históricas, sociais e subjetivas -, propõe-se, aqui, sua abordagem interdisciplinar. Coerente com tal proposição e com o objetivo de facilitar a melhor apreensão de seu conteúdo, este trabalho inicialmente delimita e contextualiza a realidade sobre a qual se constrói - qual seja, a brasileira -, para, posteriormente, investigar quais são seus reflexos no psiquismo dos sujeitos que a conformam. Estruturados os limites da discussão, as conclusões alcançadas nesse percurso são direcionadas para a análise específica da violência e dos atos infracionais praticados por adolescentes.

Como o estudo ocupa-se de fenômenos que marcam os processos de conformação subjetiva e social, em sua mútua interferência, toma-se por marco referencial em sua construção o texto freudiano Mal-Estar na Civilização (1930[1929]/1976d), que, além de conter elementos que viabilizam a reflexão sobre a violência no processo civilizatório, explicita o fio condutor da abordagem que se propõe, o qual se tece a partir da Psicanálise. Apesar de seu referencial psicanalítico, cumpre ressaltar, nesta breve apresentação, que o próprio caráter interdisciplinar deste trabalho, assim como a extensão da abordagem proposta, impede uma reflexão minuciosa sobre conceitos da Psicanálise, ou um estudo aprofundado sobre a sociedade pós-moderna. Aliás, para abrir o debate, é interessante assinalar que tais elementos servem como pontos de amarração do texto, que se erige a partir do diálogo entre diferentes campos científicos, na tentativa de lançar luz sobre a expansão da violência e da criminalidade. Ou seja, emerge como um dos principais objetivos deste texto apontar a necessidade de se considerar os fenômenos humanos a partir de diversas perspectivas, sempre destacando a imprescindibilidade de um olhar interdisciplinar sobre os mais relevantes temas contemporâneos, como é o caso da expansão da criminalidade juvenil no Brasil contemporâneo, do que se cuidará a seguir.

 

Considerações iniciais

Em sintonia com um processo mundialmente vivido desde o último terço do século passado, o Brasil vem experimentando um crescimento contínuo nos índices de criminalidade. Tal aumento produziu seus efeitos mais evidentes na virada da década de 80 para a década de 90, quando o país - especialmente suas grandes capitais - vivenciou um súbito aumento na prática dos crimes ditos violentos, a saber, aqueles nos quais a integridade física da vítima pouco representa se considerada como empecilho à efetivação do intento criminoso.

Seqüestros de repercussão nacional, crescimento vertiginoso da prática de roubos, além dos efeitos colaterais do tráfico provocaram notórias alterações no comportamento do brasileiro, além de reverberarem na produção legislativa e na elaboração de políticas públicas que tenham por objetivo declarado o combate e a redução dos níveis de criminalidade. Contudo, ainda não houve qualquer comprovação do recuo da violência e, nesse embalo, o que se pode observar é a criação sempre alardeada de leis e políticas públicas de emergência, sempre acompanhadas da falaciosa promessa de solucionar tão espinhosas questões. A título de exemplo dessas malfadadas respostas do legislador pátrio aos problemas da criminalidade e da violência, vale mencionar a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90), que, na contramão das mais avançadas doutrinas do Direito Penal, além de suprimir diversas garantias individuais em nome da "Lei e Ordem", não produziu qualquer efeito prático na redução dos índices de criminalidade.

O legislador talvez nunca tenha sido tão pródigo na criação de leis penais e, embora também se tenha observado um relevante movimento despenalizador - como os representados pelas leis nº 9.099/95 e nº 9.714/98 -, os cárceres nunca estiveram tão cheios, a denunciar as mazelas de um período de exacerbado individualismo, no qual o Poder Público recua diante das questões sociais ao melhor estilo neoliberal, dobrando-se ao império do mercado.

Atendendo às exigências do mundo globalizado, ao qual tem de se integrar, o Estado brasileiro, assim como tantos outros, também se viu obrigado a enxugar seu aparato burocrático, processo que representa a redução gradativa de sua intervenção nas relações particulares. Aderiu ao movimento de privatizações e, numa reedição do ideal liberal do laisser-faire, laissez-passer, cada vez mais limita sua atuação, que fica reduzida ao exercício das funções mais básicas, com destaque para o incremento das atividades policiais que visam à garantia de um mínimo de segurança à população.

Mínimo de segurança à população consumidora, como frisa Zygmunt Bauman (1999), já que é sobre ela que se funda o capitalismo globalizado, e é ela, portanto, que merece a proteção estatal na sociedade contemporânea, da qual é esteio. Afinal, como teóricos de todo o globo vêm discutindo exaustivamente, sabe-se já consumada a transição de uma sociedade que se arrimava na produção para um modelo que se apóia na massificação do consumo, o que acarreta relevantes conseqüências, conforme se verificará no curso deste trabalho.

Trata-se de processo que também marca a passagem da Modernidade para o que, dentre outros nomes, se denomina Pós-Modernidade, em dinâmica caracterizada pelo declínio dos valores e das instituições antes responsáveis por fortalecê-los na construção de subjetividades e sociedades. Ou seja, sobre as ruínas dos antigos modelos de família, religiosidade e conformação do Estado, emergem novos parâmetros de existência humana, marcados pelo enfraquecimento objetivo e subjetivo da Lei, da Ordem Simbólica que permeava as relações interpessoais, possibilitando a coesão dos laços sociais.

Consolidado na Revolução Francesa e representado pelos ideais iluministas, o projeto Moderno fundava-se no tripé constituído por Razão, Progresso e Felicidade, preconizando a construção de um mundo marcado pela ordem e estabilidade. Acreditava-se, então, que a reflexão racional seria o meio hábil à consecução de tais fins, além da fonte de elaboração das técnicas que possibilitariam a produção de bens aptos a garantir um nível estável de segurança e felicidade à humanidade. No entanto, os instrumentos de destruição criados pelo gênio humano e utilizados na Primeira Guerra Mundial - com posteriores e cruéis aprimoramentos observados no conflito que lhe sobreveio -, acabaram por desestabilizar a crença que atribuía à Razão a condição de instrumento primordial na busca do progresso e felicidade humanos.

Como bem demonstraram as duas grandes guerras, o progresso da Razão e da Ciência idealizado pelos filósofos iluministas acabou solapado pelo tecnicismo. Ou seja, pela massificação da técnica, retirou-se da Ciência e da Razão a inspiração humanista que legitimava seu avanço, num movimento em que os meios passaram a justificar os fins.

Péssimo para diversas nações, arruinadas em razão dos dois conflitos; excelente para a indústria - e, futuramente, para o mercado -, que jamais experimentou tanto progresso quanto o observado ao longo do século XX. De fato, as inovações tecnológicas foram responsáveis pelas mais drásticas transformações na história da civilização. Os meios de locomoção e comunicação foram incrementados a ponto de se poder afirmar que as distâncias encurtaram - ou sequer existem mais -, o que também afetou os modos de se lidar com o tempo; além disso, dentre tantos outros milagres técnicos, observou-se a progressiva substituição do homem nas linhas de produção (automação) e o fabrico de um excesso que passou a demandar cada vez mais zonas de escoamento, ou, em termos políticos, a abertura de novos mercados consumidores.

Eis o resumo do processo de efeitos mundiais que determinou a substituição do modelo de sociedade fundada na produção - característico da Modernidade - por um que se arrima no consumo - que marca a Pós-Modernidade. Embora tenha sua origem já na Primeira Grande Guerra, tal movimento de transição encontrou seu ápice com o fim da divisão bipolar do mundo e o conseqüente rompimento das antigas fronteiras que impediam a livre expansão capitalista. Sem a necessidade de exércitos ou da utilização explícita de armas, a colonização a partir de então poderia ser feita de forma sub-reptícia, através do mercado, com a imposição de bens de consumo aos países menos desenvolvidos pelos que apresentem industrialização mais avançada.

Observou-se a passagem de um sistema calcado na ordem e na estabilidade, ideais intrínsecos ao modelo fordista de produção, para cujo êxito se faziam necessários homens com hábitos de disciplina e pontualidade, para outro que se baseia e depende justamente de uma constante instabilidade, e que vem progressivamente dispensando os homens das linhas de produção. Afinal, se para produzir são fundamentais disciplina, ordem e pontualidade, tais predicados chegam a ser indesejados para que se consuma mais, uma vez que a vontade de consumir depende muito mais de uma ausência de ordem e de uma segurança faltosa que da sensação de que tudo está em seu devido lugar.

Dessa maneira, num modelo de sociedade que se sustenta e desenvolve a partir do consumo, a Lei, e tudo que a representa na contenção de impulsos e manutenção da ordem, não possui valor. Ao passo que a sociedade de produção regia-se por uma Lei forte ao ponto de se impor a todos, determinando o adiamento da satisfação de impulsos egoísticos em prol de ideais coletivos, a sociedade de consumo, pelo contrário, depende do grau de liberdade que se confere à compulsão gozosa dos indivíduos que a compõem, de uma constante e sempre frustrada tentativa dos sujeitos de alcançar a plenitude a partir dos objetos postos à sua disposição pelo mercado.

Desse arrefecimento da Lei decorre a horizontalização das relações e o crescente individualismo tão próprio às políticas liberais, as quais propagam um ilusório desfazimento de níveis hierárquicos, difundindo a crença numa possibilidade de igualdade total. Aliás, trata-se da mesma ilusão fomentada pelo liberalismo clássico, que, ao afastar o Estado das relações e, a partir disso, pregar que a igualdade de todos estava garantida, apenas matinha um estado de coisas já sedimentado. Noutras palavras, sem a intervenção do Estado, quem possuísse melhor posição socioeconômica estava livre para explorar aqueles que estivessem em piores condições. Não é demais lembrar que os abusos praticados na Revolução Industrial legitimavam-se justamente pelos ideais liberais.

Em percuciente análise da transição da Modernidade para a Pós-Modernidade - que denomina Modernidade Recente -, conclui Jock Young:

As pessoas já não querem mais aceitar seu lugar na hierarquia ou colocar os interesses coletivos à frente dos individuais sem refletir. A argamassa que cimentava uma situação opressiva e desigual começou a perder sua capacidade de aglutinação (Young, 2002, p. 53).

Deduz-se, do exposto, que "a argamassa que cimentava uma situação opressiva e desigual" a que se refere o autor compunha-se justamente pelos ideais e valores que, conforme já dito, na Modernidade asseguravam a coesão do pacto social, os quais há algum tempo vêm perdendo "sua capacidade de aglutinação". E, diante desse quadro, em que se reconhece a falência de padrões hierárquicos, com a preponderância dos interesses individuais sobre os coletivos, pode-se concluir que as engrenagens que impulsionam a sociedade de consumo fomentam comportamentos violentos e, logo, a criminalidade. Afinal de contas, há muito se sabe que, não havendo um poder capaz de submeter os homens - o qual no Absolutismo fazia-se representar pelo monarca e, com o advento do Estado de Direito, através da lei -, em risco estará o pacto social, devido à inclinação natural do ser humano à mútua agressão.

É o que já afirmava Hobbes, no século XVII1:

Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. (Hobbes, 1651/2006, p. 98)

Diz-se, portanto, do caráter criminógeno da sociedade de consumo, que fomenta condutas violentas e criminosas ao conferir uma ilusória sensação de igualdade total aos indivíduos, quebrando limites de respeito e hierarquia ao afastar a Lei que sustentava os laços sociais na Modernidade e mantinha a ordem em seu modelo de produção.

Ocorre que não há a igualdade propalada quando se trata da possibilidade de acesso aos meios legítimos de se obter a senha de pertencimento à sociedade de consumo. Contudo, se tal senha remete ao ter ou, pelo menos, a um parecer ter os objetos aptos a definir o indivíduo como consumidor ativo, se elididos os limites que na Modernidade determinavam o adiamento da satisfação de impulsos egoísticos, marcando as fronteiras entre o eu e o outro, nada mais há a impor que os meios escolhidos para atingir o êxito social sejam conformes à lei ou aos padrões morais. Por essa razão, a violência e as vias criminosas apresentam-se como atalhos ou caminhos alternativos não menos apropriados ao alcance de uma identidade social.

Infere-se, pois, que, sob a máscara de uma falsa igualdade, pulsa uma desigualdade massacrante, já que não há - ainda que minimamente - a intervenção efetiva do Estado para assegurar a toda a coletividade uma paridade de condições e oportunidades que possibilite aos sujeitos desenvolverem suas potencialidades, situando-se socialmente a partir de padrões legítimos de ascensão.

Vive-se num momento em que se proclama e se exige a plena cidadania, mas no qual o Estado já não pode intervir no sentido de efetivá-la, motivo por que se conclui que só os bem sucedidos podem dela gozar. Como resultantes desse conjunto de fatores, chega-se ao crescente individualismo e à difundida sensação de privação relativa (Young, 2002).

Assim, diante da inexistência de limites que imponham ao sujeito a escolha de meios legítimos para o alcance dos padrões de pertencimento à sociedade de consumo, os quais se referem exclusivamente à maior ou menor facilidade que encontra no acesso aos objetos postos à disposição pelo mercado, não é de se estranhar que a violência ou o crime sejam o caminho escolhido por muitos para o alcance desses objetos significantes da identificação e do pertencimento social.

Isso explica, no Brasil, a partir do final da década de 1980, o crescimento vertiginoso de crimes contra o patrimônio - mormente o furto e o roubo -, além da expansão desenfreada do tráfico e da constelação de condutas criminosas que gravitam em seu redor. São práticas delitivas que têm por ponto comum o fato de visarem ao lucro rápido e fácil, cabendo ainda destacar que seu cometimento em massa denuncia um total afastamento de valores e limites que na Modernidade marcavam o distanciamento entre o eu e o outro, refreando impulsos narcísicos destrutivos e garantindo a coesão social. Explica, ainda, o cada vez maior número de adolescentes que ingressam no mundo da criminalidade, numa busca sôfrega pela afirmação social.

A questão relativa ao adolescente infrator merecerá detida abordagem mais à frente, interessando, neste momento, ressaltar que os impulsos narcísicos destrutivos a que acima se refere não são fenômeno exclusivo da sociedade de consumo. Pelo contrário, como já afirmaram vários teóricos, são inerentes ao ser humano, somente variando o seu grau de contenção determinado pelos padrões culturais de certos povos e épocas. E é dessa violência estrutural e de suas bases psicológicas que agora se cuidará, dando seqüência a este debate.

 

Violência e subjetividade: alguns apontamentos sobre as origens psíquicas da violência

Por razões já abordadas, sabe-se que a violência encontra-se em pauta nas mais variadas discussões do mundo atual, que, como nunca, se esforça no sentido de apreendê-la, simbolizá-la antes que sua expansiva realidade reduza a humanidade à barbárie. Nesse movimento, não foram poucos os que tentaram conceituá-la, como fez Ferrater Mora, ao defini-la muito amplamente como impossibilidade de as coisas seguirem seu curso natural (Mora, 1981, p. 3436).

Por sua vez, no brilhante trabalho Violência e Psicanálise, Jurandir Freire Costa conceitua violência como o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos (Costa, 1984, p. 30). Apresenta, portanto, definição que permite pensar numa vinculação entre violência e intencionalidade, afirmando a existência de um agente e de um paciente do ato violento. Assim, subjacente à questão da violência, coloca-se o problema do encontro intersubjetivo, da temática da alteridade, a qual abre caminho para o debate sobre violência e cultura. Trata-se, nesses moldes, de conceito que possibilita situar a violência no campo da intencionalidade consciente, ou seja, como um movimento volitivo e efetivo, uma ação cruel de outrem, que visa intencionalmente ao mal de um terceiro.

Compreender o fenômeno da violência na atualidade é tarefa difícil, pois requer que sejam consideradas muitas variáveis importantes, como, por exemplo, os efeitos da Pós-Modernidade nas subjetividades. No entanto, não obstante seja um fenômeno complexo, resultante de uma intrincada sobredeterminação, pretende-se, aqui, ressaltar apenas a sua dimensão psicológica na relação com o outro próximo, na medida em que coloca em xeque a sustentação do outro enquanto alteridade, como uma diferença, porque através dela o que se busca é justamente a radical supressão do outro. Podemos afirmar que o outro - agente do ato violento - afirma-se através do completo desrespeito à dimensão da alteridade, pois ele visa reduzir o outro - sujeito passivo da ação violenta - à condição de coisa. No ato violento, o outro comparece através da figura de um outro-objeto, mas é o horizonte mesmo da alteridade que é negado.

A negação do horizonte da alteridade se situa no núcleo do fenômeno da violência, mas essa categoria pode ser pensada por diferentes perspectivas. Assim, buscaremos na teoria freudiana alguns subsídios para nos ajudar a compreender origens psicológicas da violência.

As abordagens acerca da violência aparecem no curso da obra freudiana em diferentes contextos: nas reflexões sobre a guerra, nas discussões sobre o mal-estar na cultura e nas indagações sobre a origem mítica da civilização, dentre outros. Entretanto, mostra-se necessário ressaltar que Freud, por vezes, utiliza termos como agressividade ou hostilidade para tratar da violência. Diante disso, parece pertinente enfatizar que esses termos apresentam similaridade. Todavia, também guardam diferenças que não interessaram a Freud. Feita a ressalva, cabe asseverar que, neste estudo, se decide por interpretar a palavra agressividade presente em alguns trechos do texto freudiano como violência. Embora Freud não tenha se mostrado sensível a essa diferenciação, entende-se que a agressividade refere-se ao mundo da natureza, enquanto a violência é uma categoria antropológica. Marcados os posicionamentos necessários, pretende-se apresentar a discussão sobre a violência no texto freudiano a partir dos três contextos citados anteriormente, e construir uma hipótese sobre a origem da violência de acordo com uma fundamentação lastreada em sua obra.

Em Totem e Tabu (1913[1912-13]/1976a), Freud apresenta a tese de que a própria civilização originou-se de um ato violento, a qual foi assim resumida no texto Psicologia de Grupo e Análise do Ego:

Em 1912 concordei com uma conjectura de Darwin, segundo a qual a forma primitiva da sociedade humana era uma horda governada despoticamente por um macho poderoso. Tentei demonstrar que os destinos dessa horda deixaram traços indestrutíveis na história da descendência humana e, especialmente, que o desenvolvimento do totemismo, que abrange em si os primórdios da religião, da moralidade e da organização social, está ligado ao assassinato do chefe pela violência e à transformação da horda paterna em uma comunidade de irmãos (Freud, 1921/1976b, p. 155).

Por vincular a origem da civilização a um ato de violência - o parricídio -, essa hipótese foi sempre polêmica, suscitando intermináveis debates, os quais, embora requeiram menção, não nortearão o presente trabalho. Afinal, tem-se que o tratamento dedicado ao tema da violência no texto Mal-Estar na Civilização (1930[1929]/1976d) contribui mais para apreensão da concepção antropológica freudiana. Contudo, é necessário frisar o contexto em que foi elaborada a mencionada obra, marcando sua posição no interior da teoria freudiana.

Como se sabe, Mal-Estar na Civilização foi escrito após a Primeira Guerra Mundial, momento em que sofre grande abalo a crença na razão como promotora do progresso humano, tal como difundida pelos pensadores iluministas e da Ilustração Alemã. Conforme já ressaltado, os horrores da Primeira Grande Guerra tiveram por efeito o refreamento nessa crença, provocando nos pensadores da época uma atitude pessimista. Freud não foi poupado desse golpe e, em 1920, propôs a sua Segunda Tópica, ou seja, a segunda teoria sobre os lugares do aparelho psíquico, na qual dedicou especial atenção ao conceito de pulsão de morte, introduzindo, então, uma nova discussão sobre a problemática da violência. Neste ponto do debate, vale destacar que se pretende explicitar a relação entre pulsão de morte e violência, ressalvando, entretanto, que aqui se toma a violência como o desejo agressivo de destruição.

A concepção antropológica freudiana no que se refere ao tema da violência é trágica, já que dela se extrai que o homem possui uma inclinação inata e resistente para o mal. Ainda segundo Freud, os homens não são criaturas gentis; pelo contrário, possuem uma alta conta de agressividade.

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. - Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? (Freud, 1930[1929]/1976d, p. 133)

Consoante se verifica, para Freud, a relação entre o eu e o outro está sempre sob a ameaça de destruição, razão pela qual a manutenção da sociedade depende do investimento de uma elevada quota de energia na contenção da inclinação humana para o mal.

A existência dessa tendência à mútua agressão - que cada um pode detectar em si mesmo e supor com segurança que também está presente nos outros - constitui o fator que perturba os relacionamentos intersubjetivos, tendo, ao longo dos séculos, motivado as sociedades a criarem e aperfeiçoarem constantemente uma série de mecanismos destinados a sua contenção. Pode-se mesmo afirmar que, em conseqüência dessa hostilidade recíproca e primária entre os seres humanos, a sociedade civilizada vê-se permanentemente ameaçada de desintegração, sendo compelida a despender esforços supremos, a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle a partir de formações psíquicas reativas (Freud, 1930[1929]/1976d, p. 134).

Na sua maioria, os mecanismos sociais são eficazes em conter a violência, mas quando fracassa essa contenção, o homem revela sua face bestial, podendo-se afirmar que, em baixos níveis de controle social, a violência manifesta-se espontaneamente.

Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho (Freud, 1930[1929]/1976d, p. 133).

Não havendo notícias da possibilidade de existência humana fora do universo da cultura, pode-se concluir, pois, que o homem precisa conter suas tendências violentas para garantir a própria sobrevivência. Ou seja, precisa lutar contra si próprio, sacrificar-se em prol do ideal civilizatório, que impõe severas restrições ao exercício de sua sexualidade e agressividade (Freud, 1930[1929]/1976d). Segundo Freud - em teoria que se aproxima da defendida pelos filósofos contratualistas, como Rousseau -, o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança (Freud, 1930[1929]/1976d, p. 137). Mas, pergunta-se, como conter essa inclinação natural do ser humano para o mal?

Para obter êxito em tão difícil empreitada, como já afirmado, diversos mecanismos e estratégias foram estabelecidos ao longo do processo civilizatório. Porém, segundo Freud, o estratagema mais bem sucedido no que concerne à contenção dos impulsos narcísicos de destruição consiste no estabelecimento de valores e ideais culturais que se sobreponham ao sujeito a ponto de determinarem a introjeção da agressividade que ele tendia a dirigir para o mundo exterior. Nesse sentido e para esse fim, a partir dos modelos culturais impostos, desenvolve-se no sujeito uma instância psíquica moral que o observa, pune e controla.

Tal processo medra-se da seguinte forma: ao ser introjetada pelo sujeito, a agressividade é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de consciência, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que este teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é, por nós, chamada de sentimento de culpa e se expressa como uma necessidade de punição. É dessa maneira, portanto, que a sociedade consegue integrar o indivíduo à cultura: dominando seu perigoso desejo de agressão, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu próprio psiquismo um agente para vigiar os impulsos indesejados, como uma guarnição militar protege a cidade conquistada (Freud, 1930[1929]/1976d, p. 146).

Mas a introjeção da agressividade que lhe é ínsita pode ser mortífera para o sujeito. Afinal, de acordo com Freud, quanto mais um homem controla a sua agressividade, mais intensa se torna a inclinação de seu ideal à agressividade contra seu próprio ego (Freud, 1923/1976c, p. 71). Nesse sentido, podemos pensar que quanto mais um homem libera sua agressividade, menor se torna sua auto-agressividade, e mais inócuo se torna o sentimento de culpa na manutenção da conduta moral.

Para Freud (1930[1929]/1976d), a libido expressa em agressividade é a energia original que circula entre os seres antes do processo civilizatório. Assim sendo, o laço social somente pode ser garantido através da culpa que, conforme ressaltado, determina a modificação da agressividade a partir do encontro com a verdade do desamparo, a qual aponta para o outro como um fim em si mesmo e não como meio. Sem o encontro e o reconhecimento da alteridade, o eu sucumbiria no desamparo. O sentimento de culpa aparece, pois, como uma das modalidades de relação com a alteridade, motivo por que é entendido como fator estruturante na cultura.

Contudo, embora tenha importância fundamental na manutenção da civilização, como antes anunciado, a relação entre o ego e o superego pode ganhar contornos patológicos, provocando no sujeito a angústia descrita por Freud em O Mal-Estar na Civilização (1930[1929]/1976d). Se inibida em excesso - o que se verifica nas civilizações mais adiantadas -, a agressividade que tendia a ser dirigida para o mundo externo acaba sendo totalmente investida no ego, o que se repete a ponto de estabelecer uma relação erótica entre este ego - que se torna masoquista - e o superego - na condição de agente sádico. Pode-se atribuir à constatação da repetição gozosa marcante dessa relação mortífera no interior do psiquismo do sujeito moderno, a estruturação do conceito de pulsão de morte, como aquilo que estaria além do princípio do prazer.

Eis a fonte do sentimento de culpa difuso tão bem trabalhado por Freud, o qual poderia ensejar atos violentos, os quais representariam respostas à angústia de um sujeito que necessitava encontrar um objeto apto a materializar sua massacrante e inominada culpa. Resumidamente, essas são as bases da tão moderna relação entre pulsão de morte e violência, entre crime e castigo.

Mas qual seria, para o freudismo, na atualidade, o fundamento psíquico do mal? Arrisca-se a dizer que na base do mal contemporâneo encontra-se o narcisismo, tomado como a condição em que se rejeita a alteridade, tendo por princípio determinante a supressão de tudo que é outro.

É interessante pensar que, em nível teórico, o eu-narcísico só existe na e pela relação com o outro. Porém, no seu enlouquecimento imaginário, o eu-narcísico percebe o outro como um obstáculo e, por essa razão, deseja aniquilá-lo. No plano vivencial, o eu-narcísico é prisioneiro da falácia imaginária e arrogante que pressupõe uma anterioridade do eu sobre o outro. Pode-se afirmar, inclusive, que, embora do ponto de vista lógico o eu seja anterior ao outro - pois, para se perceber um outro faz-se necessário um eu preexistente -, é precisamente o outro que possibilita o nascimento desse eu. Assim, do ponto de vista ontológico é o outro que antecede o eu. Mas o eu-narcísico não percebe essa co-dependência, e sente o outro como um obstáculo que deve ser eliminado. Segundo Drawin (2003), o eu-narcísico deseja aniquilar todo o seu semelhante, sendo essa a violência intrinsecamente humana e que tende a disseminar-se por toda a cultura - especialmente a contemporânea -, conduzindo-a à barbárie, em processo que deve ser contido pela própria marcha civilizatória.

Conforme já ressaltado, a Pós-Modernidade fomenta a violência ao fundar num individualismo exacerbado, soerguido sobre a máscara de uma igualdade que atrás de si esconde uma realidade de privação relativa e de massacrante desigualdade. Segundo Harvey (1992), a perspectiva pós-moderna2, que assume o profundo caos apresentado no início da Modernidade e denuncia a impossibilidade da solução racional, cria verdadeiras revoluções da sensibilidade, que podem ser traduzidas na busca pelo sensual e pelo narcisismo. O pós-moderno pode ser definido como o acolhimento do fragmentário e efêmero, produzindo, pois, uma perda dos limites que demarcam os âmbitos individual e coletivo, o que acentua no sujeito a sensação de desamparo (Harvey, 1992).

Sentimo-nos tanto materialmente inseguros quanto ontologicamente precários (Young, 2002, p. 12) e, se tudo é relativo e provisório, tende-se a acreditar que o agora deve ser vivido intensamente, sem qualquer preocupação com o outro e o futuro. Tal contexto explica o aumento vertiginoso dos índices de violência e criminalidade, bem como do diagnóstico de patologias como a depressão, a toxicomania e o transtorno do pânico, todos sintomas de um período em que se liquefazem os laços sociais.

Como símbolo da Pós-Modernidade, toma-se um sujeito de perspectiva narcísica, cujo desejo tem por destino uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado (Birman, 1999, p. 24). Trata-se de momento histórico caracterizado por encontros desprovidos de densidade existencial, vínculos frouxos e sujeitos com baixa capacidade de simbolização.

Desse modo, pode-se concluir que a cultura narcisista do mundo globalizado opera um enfraquecimento do vínculo social, pois conduz o sujeito a minimizar seu campo de investimento libidinal, reduzindo-o ao próprio ego, e colocando o outro na condição de objeto. E, se nessa cultura o indivíduo vale pelo que parece ser, é necessário que tenha boa performance, inclusive no crime.

É nesse contexto e nessas circunstâncias que se dão os processos de subjetivação do sujeito pós-moderno, que, imerso no vácuo narcísico, cada vez menos respeita os limites que o distanciam do outro e sustentam a sociedade. Isso explica a expansão desenfreada da violência e de comportamentos criminosos praticados por agentes cada vez mais jovens, que, dessa forma, procuram ser vistos e por essa via obter seu cartão de pertencimento ao que Guy Debord denominou sociedade do espetáculo. Essa é a questão de que se cuidará a seguir, e que tanto preocupa a sociedade brasileira, a qual assiste alarmada ao envolvimento cada vez maior de adolescentes em práticas criminosas - técnica e eufemisticamente denominadas atos infracionais -, não raro marcadas pela brutalidade.

 

O adolescente em conflito com a lei: entre a lei do direito e a lei do desejo - uma breve análise da realidade brasileira

Inicia-se o debate problematizando a nomenclatura comumente utilizada para referir-se a adolescentes autores de ato infracional. Trata-se da expressão adolescente em conflito com a lei. Ora, a adolescência não seria por si só conflitiva com as instâncias de autoridade e de lei?

Tal terminologia pode ser entendida a partir de dois aspectos que se entrecruzam. O primeiro diz respeito à perspectiva psicanalítica, ou seja, a que se pauta pelo processo de constituição subjetiva do adolescente, cuja principal característica é justamente o aspecto conflitivo.

Como se pode observar, na adolescência ocorre um afrouxamento dos modelos identificatórios da infância, ou seja, a identificação com os progenitores começa a vacilar. As transformações do corpo e a reativação edípica que surge com tais mudanças impõem ao sujeito um novo posicionamento subjetivo. Aquilo que outrora pertencia ao mundo infantil deve ser negado - o corpo infantil, a identificação com os progenitores - e tal negação pode manifestar-se por intermédio das recorrentes contestações, comuns nessa fase, principalmente endereçadas à geração pregressa. Não raro manifestam-se hábitos característicos do universo adulto, tais como o uso de álcool e drogas, o tabagismo, além das experiências sexuais, que representam a negação do universo infantil a que se referiu, bem como uma tentativa de ingresso no mundo adulto.

Rassial (1999) afirma que a especificidade do adolescente é não ser nem uma coisa, nem outra, ou seja, trata-se de um sujeito que não é completamente criança e nem completamente adulto. Esse duplo aspecto da adolescência determina, segundo o autor, a organização da denominada crise formal da adolescência, caracterizada como:

[...] um limite entre dois estatutos, um regendo a criança que brinca e aprende, outro o adulto que trabalha e participa da reprodução da espécie; um período de indecisão subjetiva e de incerteza social, durante o qual a família e as instituições exigem, segundo as circunstâncias, que o sujeito se reconheça como criança ou como adulto (Rassial, 1999, p. 58).

Trata-se, portanto, de uma fase incerta, em que não se é criança, mas, tampouco, adulto. Período deveras conflituoso, já que o sujeito deixa a infância segura para aventurar-se por caminhos e descobertas permeadas de transformações. Dessa forma, no sentido psicanalítico, o termo conflito com a lei fala de uma crise subjetiva, marcada pelo desejo do adolescente de deixar de ser objeto de desejo de seus genitores e ingressar no mundo adulto, mesmo que pela via da transgressão.

Nesse contexto tão conturbado, mostra-se de suma importância dar voz ao adolescente, considerando-o sujeito. E considerá-lo sujeito implica abdicar da posição de saber que comumente se adota em relação ao adolescente, que precisa ser escutado, ter sua fala reconhecida. Isso porque, ao não ser escutado, o adolescente poderá agir e é precisamente essa ação que poderá ser, como se diz, conflitiva com a lei. Eis a segunda perspectiva do termo conflito com a lei, o viés jurídico.

No âmbito do Direito, quando vinculada aos menores, a expressão conflito com a lei diz genericamente do ato infracional cometido por crianças e adolescentes. Neste ponto, cabe explicitar as diferentes concepções acerca da infância e juventude, o que se faz a partir das legislações direcionadas a essa população.3

Após a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - em 1990, crianças e adolescentes passaram a ser considerados sujeitos de direitos, diferentemente do que ocorria na vigência dos revogados Códigos de Menores de 1927 e 1979, que partiam da concepção da Doutrina da Situação Irregular.

Nos Códigos de Menores, não só os infratores eram considerados em situação irregular, mas também os carentes, os abandonados e os considerados inadaptados, cuja proteção dava-se a partir da separação da família, com internação em instituição pública ou conveniada. Ou seja, observa-se que as mesmas medidas judiciais eram adotadas, tanto nos casos de repercussão meramente social, quanto nos que implicassem violação à lei.

Posto isso, mostra-se interessante frisar que a instituição que acolhia essa população, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor - FEBEM -, regida pela Política Nacional de Bem-Estar do Menor - PNBEM -, tinha, de acordo com seu Estatuto, o seguinte objetivo: [...] prevenir sua marginalização e corrigir as causas do desajustamento (Artigo 5º do Estatuto da FEBEM, 1976).

Assim sendo, com a correção procurava-se reconstituir o sujeito obediente, conformá-lo a hábitos, regras e ordens, devolvendo-o perfeitamente adequado aos padrões da sociedade que o circundava.4 Buscava-se formar um sujeito de obediência, um sujeito submisso (Foucault, 1987), o que evidencia que, em sua concepção, a FEBEM tinha como preceito a correção dos sujeitos, a fim de prevenir a marginalização.

Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, introduz-se a concepção de sujeito de direitos na perspectiva da Doutrina de Proteção Integral. Nesse sentido, o ECA busca promover e defender todos os direitos das crianças e adolescentes ao considerá-los pessoas em desenvolvimento.5 Com isso, busca-se também superar o caráter discriminatório da terminologia menoridade.6

Dividido em dois livros, o Estatuto apresenta, no Livro I, os direitos fundamentais da criança e do adolescente e o dever da prevenção contra a ocorrência de ameaça ou violação desses direitos. Por sua vez, o Livro II trata das políticas de atendimento, que têm por finalidade viabilizar o que está contido no Livro I; diz também das medidas de proteção e da prática do ato infracional.

A necessidade de mudança no que concerne ao trato das questões relativas à criança e ao adolescente fazia-se imperiosa. No entanto, consideramos no mínimo ingênuo crer que a promulgação de uma lei tenha, por si só, o condão de alterar percepções, princípios e doutrinas.

Nesse sentido, cabe ressaltar que, embora o ECA tenha inovado ao definir restritivamente as condutas que ensejam a aplicação de medidas de segurança ao adolescente - no que remeteu àquelas definidas como crime ou contravenção pela legislação penal aplicável aos adultos imputáveis -, na prática, a Doutrina da Situação Irregular persiste no imaginário dos atores processuais (Rosa, 2005). E, segundo Alexandre Rosa (2005), se não é salutar nem para os imputáveis, a vinculação ao Direito Penal jamais poderia ser benéfica a crianças e adolescentes, devido a suas características de seleção e etiquetamento.

Encontra-se, nessa afirmativa, questionamento assaz pertinente, o qual demonstra que a simples vinculação do ECA com o Direito Penal, no que tange à definição de atos infracionais, não se mostra eficaz ou suficiente à resolução das questões sociais e jurídicas que envolvem crianças e adolescentes. Os princípios que informaram a criação do Estatuto e o animam, indicam que a abordagem dessas questões concentra peculiaridades que requerem trato especialmente próprio. Como aponta Rosa, nesse sentido, é patente a necessidade de diálogo entre diversas áreas do saber, que considerem, além da situação brasileira, a situação peculiar do adolescente, num diálogo intermitente com o outro e o Outro (2005, p. 18). Noutros termos, concorda-se com o autor que o adolescente deve ser considerado e tratado como sujeito, de modo a transcender a perspectiva tutelar.

Após tais considerações, retoma-se a questão do adolescente contemporâneo e daquelas que poderiam ser as principais causas de seu envolvimento em situações de conflito com a lei. Para tanto, sempre a partir das duas perspectivas apresentadas, recorre-se ao ensino de Mougin-Lemerle, que, ao estudar as relações e articulações entre o jurídico e o psíquico, assim afirma:

A criança humana não é um produto da carne de seus progenitores, nem mesmo de seu desejo de filhos, ou de proezas biotecnológicas desenvolvidas nos procedimentos medicais de procriação assistida. Ele é instituído como tal - criança, filho de... ou filha de... - pelo Direito (Mougin-Lemerle, 2004, p. 2).

Isso porque, a partir de uma instituição familiar organizada por regras jurídicas, todos carregam consigo, sempre, a marca da sociedade em que nascem e irão viver. Nessa estrutura, o pai é, antes de tudo, o representante de uma função. Ou seja, tanto no âmbito do Direito quanto no da Psicanálise, é o fracasso da função paterna, do ofício do pai, que impede o sujeito de se constituir como tal (Mougin-Lemerle, 2004). Isso porque o ser humano não se autofunda, não se humaniza por si só.

E, por ser marcada pela contenção e transmissão de valores, ideais e tradições, é justamente a função paterna que entra em crise na transição da Modernidade para a Pós-Modernidade, o que dá contornos diferenciados ao conflito do adolescente com a lei, tanto em termos psicanalíticos, quanto em termos jurídicos. Afinal de contas, o Direito e a Psicanálise se reúnem como intérpretes do limite - a proibição - que nos permite viver e transmitir a vida (Mougin-Lemerle, 2004, p. 6).

Faltam os limites, ou seja, o peso de uma ordem que possibilite ao indivíduo perceber sua existência em meio à coletividade, uma Lei que, como na Modernidade, o permita situar-se no pacto social. Na já tratada horizontalidade pós-moderna, não há balizas que orientem o sujeito no curso de sua existência, que se torna fantasmagórica na medida em que é tragada pelo vácuo do gozo consumista.

Contemporaneamente, religião, família e Estado não contam com o mesmo prestígio de outrora, não mais sendo vistos como legítimos depositários e transmissores de ideais que possam sobrepor-se às vontades individuais. O declínio desses lugares corresponde justamente ao declínio da função paterna e, por conseguinte, ao afrouxamento dos laços sociais.

Fala-se, portanto, da queda do Outro diante de um engrandecido Eu pós-moderno, que não reconhece qualquer fronteira de alteridade que se interponha entre seus vorazes impulsos e os objetos a que se dirigem. Eis o traço marcante do conflito com a lei atualmente empreendido por grande número de adolescentes: a total ausência de limites que permitam identificar um desejo subjacente.

O que emerge é o Real do gozo, cujo avanço requer a imediata interferência do Simbólico. O ato reclama a palavra e, nesse sentido, considerando-se que o ato infracional possa ser a manifestação de um sintoma, torna-se imprescindível a escuta do sujeito que se perde nesse ato. Assim, conceber o adolescente como sujeito implica dar-lhe voz, abrindo-lhe a oportunidade de interpretar sua ação e recolocá-la num registro que permita o aparecimento do sujeito através da palavra (Conte, 1997).

 

Considerações finais

Ante todo o exposto, cumpre salientar que já não há espaços para saudosismos. Os valores e ideais que sustentavam a Modernidade foram irrevogavelmente superados, e, tal como eram, já não podem ser convocados em socorro ao sujeito pós-moderno.

Sabendo-se inviável a existência humana fora das fronteiras do Simbólico, tem-se, na busca pela palavra, o único meio de se conter o homem no gozo desenfreado que o conduz à barbárie do Real. Desse modo, conforme destacado, é através da escuta que poderão emergir os sujeitos que contemporaneamente se escondem atrás de atos criminosos; e é através de sua palavra que poderão desvelar o desejo que fará anunciar novos valores e ideais, os quais, livres de padrões superados, demarcarão as balizas que, a partir de então, conduzirão o processo civilizatório.

Eis o porquê de se ressaltar a necessidade de se dar voz ao adolescente e observar as nuances de seu comportamento conflitivo em relação à lei. Frente ao progressivo e irrefreável aumento do índice de envolvimento desses sujeitos em práticas criminosas, bem como à absoluta frieza da lei, talvez fosse sensato concluir pela imperatividade de uma mudança crítica de perspectiva e, por conseguinte, pela necessidade de questionar se não é o olhar de quem interpreta, representa e aplica a lei em seus vários aspectos que se encontra equivocado.

Afinal, em razão de se encontrarem no ponto crítico de uma transição histórica, os adolescentes contemporâneos fazem-se arautos de um novo modelo de sociedade. Dessa forma, por denunciarem a falência de antigos valores, seus sintomas podem ser a chave de um novo tempo, regulado por novas idéias, que as ultrapassadas lentes da Modernidade nos andam impedindo de enxergar.

 

Referências

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Recebido em 26 de agosto de 2008
Aceito em 2 de dezembro de 2008
Revisado em 19 de dezembro de 2008

 

 

Notas

1. Resgatam-se, aqui, as idéias de Hobbes justamente porque as cores fortes com que o autor inglês imprime suas conclusões favorecem o entendimento de que o impedimento da mútua agressão entre os homens e, por conseguinte, a manutenção do pacto social, depende de uma força que se sobreponha às vontades individualmente consideradas, preservando a comum-unidade constituída pelos sujeitos. Até mesmo por desenvolver-se sob a perspectiva de um Estado de Direito, cabe destacar que neste trabalho não se defende que um poder arbitrário, absoluto ou absolutista - como então propunha Hobbes - sobreponha-se às vontades individuais; defende-se, sim, que às vontades individuais se sobreponha uma lei comum a todos, sob pena de prevalecer a "lei do mais forte" e, assim, perder-se a referência do que é justo, estabelecendo-se um sentimento de anomia ante a possibilidade da instauração de uma guerra que seria de todos contra todos.
2. Não existe consenso sobre a utilização da expressão "pós-modernidade", mas, nesse texto, não pretendemos investigar as diferentes nomeações para nossa contemporaneidade.
3. Refere-se, nessa distinção, à Doutrina da Situação Irregular, dos revogados Códigos de Menores de 1927 e 1979, e à atual Doutrina da Proteção Integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990.
4. Trata-se da perspectiva moderna de adequação inclusiva.
5. Artigo 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente.
6. Criado jurídica e socialmente, o termo menor foi instituído na ocasião do Código de Menores de 1927, para designar crianças e adolescentes pobres e desprotegidos moral e materialmente (Sayao, [s.d.]).

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