Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148 ISSN 2175-3644
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Normatividade e plasticidade: algumas considerações sobre a clínica psicanalítica com pacientes neurológicos
Perla KlautauI; Monah WinogradII; Benilton Bezerra Jr.III
IMestre e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Pós-doutoranda do Instituto de Psicologia da USP sob os aupícios da FAPESP. End.: R. Lopes Quintas, 97, Jardim Botânico. Rio de Janeiro/ RJ. CEP: 22469.010
IIProfessora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, Coordenadora do Grupo de Pesquisa MateriaPensante. End.: R. Prof. Luiz Cantanhede 130/302, Laranjeiras. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22245-040. E-mail: winograd@uol.com.br, monahwinograd@gmail.com.br
IIIProfessor do Instituto de Medicina Social da UERJ, Pesquisador do PEPAS - Programa de estudos e pesquisas da ação e do sujeito. End.: R. Gustavo Sampaio 223/602, Leme. Rio de Janeiro, RJ. CEP: 22010.010
RESUMO
Ultrapassados os limites de uma técnica fundamentalmente interpretativa, a psicanálise deixa de se restringir ao âmbito do sofrimento neurótico e passa a intervir em outros campos da patologia do mental, quer nos quadros de origem psicogênica, quer nos quadros em que alterações de natureza orgânica engendram sofrimentos subjetivos - como acontece com muitos pacientes portadores de lesões cerebrais. No entanto, tais modalidades de intervenção exigem investigação teórica e técnica, já que as exigências deste tipo de clínica diferem em pontos consideravelmente importantes das encontradas na clínica psicanalítica clássica. O principal objetivo deste artigo é fornecer subsídios - por meio da articulação entre as formulações winnicottianas sobre dependência, confiança no ambiente, sentimento de continuidade espaço-temporal, e o conceito de normatividade postulado por Canguilhem - para uma abordagem teórica e prática que oriente a clínica psicanalítica com pacientes portadores de distúrbios neurológicos. A realização desta tarefa exige, primeiramente, uma investigação dos conceitos de plasticidade cerebral, epigênese e normatividade. De posse destes conceitos, finalmente, tecermos algumas considerações sobre a clínica psicanalítica com pacientes neurológicos.
Palavras-chave: normatividade, plasticidade, epigênese, clínica psicanalítica, pacientes neurológicos
ABSTRACT
Once exceeded the limits of a fundamentally interpretative technique, psychoanalysis cannot be restricted to the sphere of neurotic suffering and moves its scope on to other fields of mental pathology, be them from a psychogenic origin or from disturbances of organic nature that may cause suffering to the subject - as is frequently the case with bearers of brain lesions. The ways in which this can be done demand technical and theoretical investigations since this type of clinic differs considerably in many points from the classical psychoanalytical practice.. The main purpose of this paper is to provide subsidies - through articulation of Winnicott´s concepts such as dependence, reliability on the environment, feeling of space-time continuity, and the concept of "normativeness" as postulated by Canguilhem - for a theoretical and practical approach that may give bearings to a psychoanalytical practice with patients that carry neurological disturbances. The completion of this task demands, in first place, an investigation into the concepts of cerebral plasticity, epigenesis and "normativeness". After this is accomplished we will finally make some considerations about psychoanalytical practice with neurologically impaired patients.
Keywords: normativeness, plasticity, epigenesis, psychoanalytical clinic, neurological patients
Introdução
Embora recente e extremamente controverso, o diálogo entre neurociências e psicanálise vem interferindo no entendimento das relações entre estruturas neuroanatômicas e funções mentais. Diferentemente do que muitos previam no início da década de 90, as descobertas realizadas pelas neurociências - graças aos novos métodos de investigação da atividade cerebral - não resultaram nem na morte, nem no descrédito da psicanálise. Ao contrário, a percepção de que cérebro e mente são indissociáveis e de que há vetores causais de mão dupla (alterações nos tecidos corporais e cerebrais afetam a mente e estados mentais modificam o funcionamento corporal e cerebral) criou um campo de investigação sobre as correlações entre estados cerebrais e experiências mentais para o qual as contribuições tanto da neurociência quanto da psicanálise são requeridas.
Até poucos anos atrás, o atendimento clínico a pacientes neurológicos tinha como eixos centrais a neurologia e a neuropsicologia (Sury e Sano, 1999; Miller, 1999). Isto indica que o tratamento privilegiava somente os aspectos relacionados à lesão, isto é, as perdas cerebrais, cognitivas e motoras sofridas pelo sujeito em função de seu adoecimento. Com o avanço dos estudos no campo das neurociências (Damásio, 1995 e 2004; Dennett, 1991 e 1997; Varela, Thompson e Rosch, 1992; Sacks, 1995; Ramachandran e Blakeslee, 2004), observou-se que as lesões cerebrais não afetam somente os planos cerebral, motor e cognitivo. Pelo contrário, as consequências destas perdas atingem todo o plano da experiência subjetiva, além dos efeitos produzidos no desempenho biológico dos sistemas funcionais afetados. Com isto, a pesquisa neurocientífica e a investigação psicanalítica passaram a compartilhar interesses teóricos e clínicos relativos à capacidade de agir terapeuticamente e à possibilidade de intervenções multidisciplinares nas expressões físicas e subjetivas das diversas patologias neurológicas.
Especificamente com relação à clínica, os escassos pontos de contato entre psicanálise e neurologia decorriam historicamente, em parte, do fato de o fazer analítico ter se constituído a partir da demarcação de uma fronteira bastante clara entre os dois campos. A psicanálise se voltou para a realidade psíquica e a causalidade do inconsciente, deixando para a neurologia o espectro das patologias mentais de etiologia orgânica e o estudo do organismo no plano somático ou sensório-motor (Oppenheim-Gluckman, 2000/2006). Por outro lado, a clínica neurológica tradicional, ao lidar com um campo causal restrito aos limites do biológico, não dava importância para abordagens de cunho psicológico ou subjetivo, a não ser como instrumento complementar voltado para o alívio de fatores psicológicos prejudiciais em pacientes portadores de afecções neurológicas.
A idéia de que uma abordagem psicoterapêutica da experiência subjetiva pudesse produzir efeitos nos sistemas funcionais afetados por patologias neurais precisou esperar pelos desenvolvimentos recentes da pesquisa empírica no campo da neurobiologia e da investigação teórico-clínica no campo da psicanálise para vir à luz. Nos últimos anos, como conseqüência dessas mudanças, vem se constituindo um horizonte de pesquisa teórica e clínica no qual o diálogo entre as mais variadas disciplinas se torna, mais que possível, necessário. Basta notar que, com as novas tecnologias de visualização e com a possibilidade de estudar as propriedades e características do cérebro em atividade, tornou-se possível investigar o que ocorre neurologicamente em um indivíduo quando ele se encontra nos mais variados estados mentais. Esta ampliação dos conhecimentos sobre as bases neurais de uma grande variedade de experiências humanas deu origem a campos interdisciplinares de pesquisa, tais como a neuroética (julgamentos morais), a neuroeconomia (decisões econômicas), a neuroeducação (processos de aprendizagem), a neuroteologia (experiências místicas), neuropsicologia (funções cognitivas), a neuropsicanálise (mecanismos de facilitação ou obstrução do acesso à consciência de informações armazenadas) e assim por diante. Vê-se que as neurociências ultrapassaram as fronteiras do biológico strictu sensu, estabelecendo diálogos e composições com várias ciências humanas e, de uma maneira muito intensa, com o campo da psicologia e da psiquiatria. O conhecimento sobre as bases neurais dos processos psíquicos tem avançado rapidamente e, hoje, se conhece muito mais sobre os processos neurais presentes no sonho, nas diversas modalidades de memória, nos processos de regulação emocional, na cognição em geral, nos processos decisórios, na gênese das diversas formas de organização do self, e em diversos estados psicopatológicos. Outro ponto relevante para este diálogo tem sido a verificação da influência de fatores ambientais, psicológicos e culturais na organização e regulação das estruturas funcionais do cérebro - o que abre um campo extremamente interessante de pesquisa sobre os dispositivos terapêuticos baseados em uma teoria ecológica do mental1.
Por sua vez, no campo psicanalítico, houve nas últimas décadas uma intensa pesquisa teórico-clínica acerca dos limites das práticas clínicas tradicionais centradas na interpretação, e uma exploração sistemática de outros dispositivos de cuidado e intervenção - mais adequados a pacientes que fogem, por diversas razões, à figura típica do neurótico2. Entre esses pacientes estão aqueles nomeados como casos-limite, borderline, casos difíceis ou inclassificáveis (cuja constituição psíquica torna difícil sua absorção aos padrões habituais da clínica) e aqueles que apresentam, por sua condição biopsicológica particular, um tipo de problemática que exige reorientação do dispositivo clínico tradicional como, por exemplo, bebês e crianças na primeira infância e pacientes com lesões neurológicas. Ao observarmos esses movimentos em ambos os campos torna-se possível perceber como a complexificação dos objetos de estudo, de um lado e de outro, produziram uma aproximação entre eles. Acreditamos que tal aproximação pode ser enriquecida através da exploração de certos conceitos-chave como normatividade, epigênese e plasticidade - conceitos que descrevem propriedades fundamentais aplicáveis tanto ao campo do cerebral ou biológico, quanto ao campo do mental ou psicológico, por situarem a ação no centro da análise dos processos vitais normais e patológicos. De acordo com esta lógica, a patologia, seja física ou mental, deve ser vista como uma exigência de rearranjo das capacidades de ação do organismo ou do sujeito em função das limitações sofridas a partir das perturbações do funcionamento habitual de suas estruturas e sistemas (Goldstein, 1963/2000; Canguilhem, 1966/2006). Deste ponto de vista, o atendimento psicanalítico com pacientes neurológicos é compreendido como o conjunto de recursos e dispositivos postos à disposição do organismo-sujeito com vistas à recuperação ou à ampliação de sua capacidade normativa, tanto física quanto psíquica.
Plasticidade cerebral, epigênese e normatividade: noções chave para a clínica psicanalítica com pacientes neurológicos
O conceito de plasticidade cerebral se refere às alterações criativas produzidas no sistema nervoso como resultado da experiência, de lesões ou de processos degenerativos. A plasticidade neural se expressa fundamentalmente como modificações das sinapses, proliferações dendríticas ou axionais e mudanças nas densidades ou dinâmicas dos canais iônicos. A plasticidade sináptica é relativa ao aumento ou diminuição da quantidade de sinapses, fora do programa genético - ou seja, em função das vicissitudes impostas pela trajetória vivida pelo organismo - de acordo com a eficiência funcional e as ativações que sofram. Já a plasticidade dendrítica ou axional se refere à capacidade proliferativa da árvore dendrítica ou axional que ocorre como um fenômeno de recuperação compensatória após uma perda de neurônios. Dito de outro modo, a plasticidade neuronal em geral designa a propriedade adaptativa e criativa que permite o desenvolvimento de novos arranjos capazes de modificar a organização estrutural e o funcionamento do sistema nervoso em função das experiências vividas pelo indivíduo, incluindo aí a experiência de um distúrbio neurológico.
Ora, o funcionamento do cérebro não é indiferente às condições ambientais: pelo contrário, o cérebro é um sistema que se modifica constantemente a partir da relação do corpo com o meio, se reorganizando diante dos desafios e vicissitudes impostos pelo seu entorno. Portanto, ao lado do processo de desenvolvimento anatômico e funcional do cérebro que obedece a normas biológicas universais para a espécie humana, há uma dimensão propriamente singular a cada cérebro que reflete a trajetória única de cada indivíduo diante das solicitações, desafios e obstáculos que a vida lhe impõe (Prochianz, 1991). Cada cérebro desenvolve, diante e a partir do horizonte vital no qual ele se situa, uma forma e um funcionamento relativos às exigências vitais que ele tem de enfrentar. Daí algumas idéias fundamentais: (1) o cérebro se desenvolve ao longo de toda a vida, diferentemente de outros órgãos do corpo que encontram uma forma final a qual permanecerá a mesma até a morte e (2) no desenvolvimento do cérebro, tão ou mais importante do que a onto ou a filogênese, é a epigênese, ou seja, as modificações neurais que ocorrem em função do meio no qual o corpo, de que o cérebro é parte, se encontra inserido e os encontros que marcam a sua história (Prochianz, 1991).
Tecnicamente, o conceito de epigênese expressa o fato de que a construção do cérebro humano não é determinada somente pela configuração genética do organismo, uma vez que as ligações nervosas só serão formadas a partir das experiências vividas pelo indivíduo - processo chamado de epigênese por estabilização seletiva. Noutros termos: ao nascer, cada organismo tem uma gama de possibilidades inatas, porém, o que fará com que uma se concretize em detrimento de outra, é a interação com o meio ambiente. O crescimento da rede neuronal não ocorre apenas através da necessária multiplicação celular, mas também pelo crescimento de ramificações celulares que formam redes cada vez mais cristalizadas e interligadas. Nesta formação, o cone de crescimento desempenha uma função importantíssima. Como uma espécie de "cabeça buscadora" (Changeux e Danchin, 1974), o cone de crescimento é a única parte móvel do neurônio. Progredindo para frente, ele deixa atrás de si um segmento fixo que assinala a sua passagem. Os ziguezagues, os seus avanços e recuos, difíceis de prever a priori, se inscrevem, deste modo, na topologia das conexões nervosas. Ao encontrar seu local de destino, o cone de crescimento imobiliza-se e transforma-se numa terminação nervosa. Entretanto, apesar de se assemelhar a uma sinapse adulta, ele ainda possui uma interligação menos precisa. Esse processo faz parte de um primeiro momento, o início da vida do indivíduo. Em certo momento de seu desenvolvimento, a rede atinge o máximo de conexões possíveis entre os neurônios, havendo uma redundância transitória, ou seja, combinações excessivas. É aí que entra a epigênese, para "especializar" estas ligações ou, como descreve Changeux e Danchin (1974), para "afinar as coisas". Iniciam-se fenômenos regressivos, nos quais há um elevado índice de morte neuronal e uma degeneração de incontáveis ramificações terminais entre axônios e dentritos.
O que vai possibilitar a um neurônio dar continuidade a sua existência é a experiência de vida do indivíduo - ou, noutros termos, as mãos do acaso. A carga genética oferece um contingente inato de possibilidades neurais. Porém, o que determina quais destas possibilidades se atualizarão são os estímulos provocados pelo meio. Noutros termos, para se constituir, o sistema nervoso depende do encontro com o meio. Neste encontro, neurônios e redes neurais potenciais são descartados. Esta morte neuronal não somente é de extrema importância para o desenvolvimento, como é necessária para a aprendizagem, pois as conexões nervosas restantes se estabilizam, se fortificam, possibilitando uma melhor organização do cérebro. Este processo ocorre de modo epigenético, sendo crucial no desenvolvimento do sistema nervoso. Nunca é demais repetir que, por 'epigenético', devemos entender tudo quanto não seja estritamente determinado pelos genes, tudo aquilo que vem introduzir um fator de jogo no determinismo genético. Assim o indica o prefixo epi, que significa, ao mesmo tempo, o 'acréscimo', a 'sucessão', mas também, o 'contato' e a 'inflexão' de uma trajetória.
Este fenômeno foi observado e registrado num estudo feito com ratos e citado por Changeux em L'homme neuronal (1983). À medida que os ratos iam aprendendo a andar, o número de terminações funcionais diminuía. Suas fibras musculares, antes inervadas por quatro ou cinco terminações nervosas, após este processo, passavam a apresentar apenas uma terminação axônica. Da mesma forma, os neurônios, por sua vez, também apresentavam o número de suas inervações diminuído. Chegou-se, então, à conclusão de que a morte neuronal se faz necessária para que as conexões estabelecidas ganhem mais eficiência e precisão. Quanto mais conexões, mais redundante e impreciso se torna o sistema, conseqüentemente, quanto menos conexões, maior é a ordem e a funcionalidade deste. Este processo de estabilização seletiva está presente desde nossa vida intra-uterina, sendo mais intenso nos primeiros anos, e nos acompanha por toda vida, até a morte. Novas conexões estão constantemente sendo feitas, e a paisagem neuronal está em constante mudança.
Vemos que, de um lado, o desenvolvimento das redes neurais, dentro desta lógica, pertenceria ao conjunto do que é inato. De outro lado, a epigênese, ocorrendo através de um processo de estabilização seletiva, como o nome já diz, seleciona, a partir do encontro com o meio, o que se estabilizará a cada período ao longo da vida, caracterizando o que vai sendo constantemente adquirido. Quanto maior o número de células de um organismo, maior é o papel da variabilidade na construção de seu sistema nervoso. Assim, na escala evolutiva, mais alto estão aqueles que possuem um envoltório genético mais permeável ao meio, sendo o ser humano o que possui o envoltório mais aberto às influencias físio-sócio-culturais. Quanto mais alto o patamar, mais permeável será esse envoltório, ou seja, maior importância terá o epigenético, abrindo espaço para a individualidade.
O conceito de normatividade (Canguilhem, 1966/2006) precisa justamente a relação necessária entre individualidade e vida. A palavra latina "norma" traz dois sentidos, um próprio e outro figurado, próximos do que apresenta a palavra "regra": ao mesmo tempo, designa o "esquadro" e a "norma", quer dizer, segundo o caso, a ferramenta (ou o instrumento) e o princípio segundo o qual deve-se dirigir a ação. O termo normativo designa duas formas de juízo: a primeira faz referência a um julgamento imperativo que enuncia e impõe uma norma considerada como um valor ou modelo e, a segunda, diz respeito a um julgamento paradoxalmente constatativo; que afirma a possibilidade de produzir variações infinitas segundo a regra única da diferença, e que exige um uso crítico da noção de norma. De acordo com esta última, pode-se falar de uma normatividade do vivo no sentido em que ele não se limita a registrar o passado, mas se torna capaz de inventar o futuro.
A normatividade designa, então, de modo próximo, a autonomia interna do organismo e sua operação dupla de regulação e diferenciação em termos de valores, e não de mecanismos. Isto exige que se considere os processos dinâmicos que se desenrolam no organismo inteiro, e não somente em determinadas regiões: o organismo deve ser pensado a partir da atividade global da regulação (Goldstein, 1963/2000). Esta se define como a possibilidade de preservar o equilíbrio do meio interno; equilíbrio que só pode ser mantido se o organismo valorizar as condições de uma relação justa e adequada ao meio e desvalorizar as causas perturbadoras - o valor funcional se inscreve, assim, como norma na própria estrutura do organismo. A regulação consiste, portanto, na preferência dada a certos valores de equilibração funcional relativamente ao meio e contra ameaças eventuais.
Em outro sentido, mais próximo da segunda forma de juízo, normatividade designa a operação de diferenciação na atividade biológica. Todo ser vivo é normativo, no sentido de que é capaz de produzir novas normas para si, em função das injunções que a vida lhe impõe. Assim, a atividade normativa consiste em instituir normas diferentes de funcionamento, sempre que a luta contra os obstáculos à manutenção e ao desenvolvimento da vida assim o exigir. (Canguilhem, 1966/2006).
Seguindo o raciocínio desenvolvido acima, devemos entender a normatividade como aquilo através do qual o vivo (humano ou animal) se individualiza, biológica e psicologicamente. Portanto, a idéia de normatividade propõe que o vivo seja pensado não a partir da imagem de um mecanismo, mas a partir da noção de potência: os organismos desenvolvem suas potências através de seus comportamentos particulares. Tais comportamentos não são apenas respostas automáticas a estímulos externos, mas modos singulares de se relacionar com o meio que todo vivo explora à sua maneira, manifestando uma atividade própria e dupla. De um lado, esta atividade é reprodutiva, pois visa manter o organismo em sua potência intrínseca. Por outro lado, ela é produtiva e criativa, já que permite ao organismo inventar respostas inéditas ao ser ameaçado. Esta atividade reprodutiva e produtiva expressa, assim, a iniciativa do organismo sobre o meio que se torna, então, sua obra: eis a normatividade vital (Le Blanc, 1998).
Todo organismo opera um corte singularizante do ambiente que o transforma em meio de vida próprio. Tal ato de apropriação tem a marca da normatividade vital: o vivo contribui para constituir o meio no qual vive. Seu comportamento, ao invés de ser tão somente uma resposta mecânica aos constrangimentos externos, é uma atividade de diferenciação na qual são expressos certos valores biológicos particulares. Assim, a normatividade designa aquilo através de que o vivo se liga ao seu ambiente, tornando-se sujeito do meio graças à escolha de valores pelos quais ele transforma um meio em sua obra. Dito de outro modo, a atividade biopsicológica do vivo é designada pela individualização dos valores que ela atualiza e a normatividade subentende, assim, a criação de normas pelas quais o vivo se mantém e se individualiza (Le Blanc, 1998).
Além disso, a normatividade permite também precisar a distinção entre o normal e o patológico, reconfigurando as definições de doença e, sobretudo, o entendimento do que seja saúde. Para Canguilhem, normal é um termo que possui um duplo sentido. Ele pode indicar um fato: aquilo que é mais prevalente, mais constante, mais esperável de ser encontrado. Mas em seu sentido mais forte, normal indica um valor: aquilo que é como deve ser. Na acepção propriamente médica, portanto, o termo "normal" não possui apenas um valor descritivo, mas um valor normativo. O estado do organismo que o doente demanda à medicina restaurar é o estado normal. Mas, tal estado não é dito normal porque é visado como um fim pela terapêutica: ele é dito normal por ser experimentado pelo doente como um valor ao qual ele confronta seu estado presente. É neste sentido que se pode dizer que a saúde perfeita não existe. O conceito de saúde não é o de uma existência, mas o de uma norma.
Visto sob esse ângulo, ter saúde não é o mesmo que se situar dentro de padrões médios de funcionamento. Ter saúde é ser normativo, ou seja, ser capaz de enfrentar as "infidelidades do meio" com a criação de novas normas de funcionamento que ampliem novamente o horizonte vital sempre que ele for restringido pela doença. Ser saudável, portanto, não é não ter doenças, mas, ao contrário, poder adoecer e não sucumbir aos efeitos imediatos da patologia (Bezerra Jr, 2006). Outra decorrência importante da contribuição canguilhemiana é o acento que ele põe nas relações entre o organismo e o meio nas definições de saúde e patologia: "O ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais, porém é sua relação que os torna normais um para o outro" (Canguilhem, 1966/2006, p. 111). Em outras palavras, é na ação do indivíduo no mundo que devemos procurar as referências não só para descrever e compreender o alcance das modificações impostas pela patologia, mas também para traçar as estratégias de estímulo às respostas normativas do doente.
Daí se segue que só existe, para o vivo, normalidade na referência a um meio. Uma anomalia, ou seja, uma particularidade estatística, seja morfológica ou funcional, só se torna patológica pelo confronto do vivo que é o seu portador com o meio no qual ele deve viver. O patológico não é, então, a ausência de normas, mas a presença de outras normas, inferiores àquelas exibidas na saúde - inferiores porque obrigam o organismo a viver em um meio "estreito". Deste modo, o contrário de "patológico" não é "normal", mas sim "são", entendido em seu duplo sentido: a saúde é justamente a capacidade de tolerar o máximo de normas diferentes, e o organismo "são" não está assujeitado ao seu meio particular.
No caso da espécie humana, a saúde depende, em grande parte, da capacidade que o cérebro apresenta de se reorganizar, ao inibir, intensificar e estabelecer novas conexões neurais de acordo com as exigências da vida. Sempre que a vida impõe uma exigência para a qual o indivíduo não estava habituado são elas que tornam biologicamente possível a resposta - tanto do cérebro quanto do sujeito. Isto é particularmente importante quando se trata de pacientes com lesões neurológicas. O que se desorganiza não é apenas o funcionamento de estruturas ou sistemas neurais, mas também o mundo vivido no qual o indivíduo se encontra situado. O corpo é o meio de se ter um mundo, como disse Merleau-Ponty (1945/1999), e na patologia corpo e mundo vivido são afetados. Ao atingir tanto o esquema corporal como a imagem do corpo, a patologia modifica a experiência subjetiva como um todo.
A clínica psicanalítica com pacientes neurológicos: o setting, o manejo e a função do analista
Vimos que Canguilhem (1966) define normatividade como a capacidade de o organismo inventar novas normas para o seu próprio funcionamento como resposta às injunções da relação do indivíduo com o meio. Em sua visão, a normatividade é o critério de definição das fronteiras entre a normalidade saudável e a patologia: o patológico não é a ausência de normas, mas a emergência de normas qualitativamente inferiores, menos plásticas, menos flexíveis, que produzem um "sentimento direto e concreto de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada" (Canguilhem, 1966/2006, p. 106) e reduzem a capacidade do organismo de fruição de suas potencialidades. Já ter saúde não é se situar dentro de padrões médios de funcionamento, mas ser normativo, ou seja, ser capaz de enfrentar as "infidelidades do meio" com a criação de novas normas de funcionamento que ampliem novamente o horizonte vital sempre que ele for restringido pela doença. Assim, é na ação normativa do indivíduo no mundo (ou na ausência dela) que devemos procurar as referências não só para descrever e compreender o alcance das modificações impostas pela patologia, mas também para traçar as estratégias de estímulo às respostas normativas do doente.
A noção de normatividade é importante porque elucida o que está em jogo tanto na clínica neurológica quanto na clínica psicológica. Tanto num caso como no outro, o que está em questão é a possibilidade, propiciada por um dispositivo terapêutico adequado, de estimular a invenção de novos padrões de atividade cerebral - o que sabemos ser possível a partir dos conceitos de plasticidade cerebral e epigênese - e de funcionamento psíquico que sejam capazes de dar conta das exigências impostas pela vida ou pela lesão. Partindo dessas considerações, o conceito de normatividade pode ser utilizado como eixo da estratégia terapêutica para o atendimento psicanalítico a pacientes portadores de lesões cerebrais.
Além de abalar as relações do sujeito com o ambiente que o cerca e causar limitações, acontecimentos como TCE ou AVC ocasionam perdas motoras e cognitivas que desestabilizam a sensação de identidade e de existência subjetivas (Winograd, Sollero-de-Campos e Drummond, 2008). Na falta de um status de unidade estabelecido, os pacientes acometidos por perturbações neurológicas não conseguem funcionar sem estabelecer uma relação de dependência com seu entorno, dependência esta que ultrapassa o domínio físico e atinge o terreno psíquico. Assim, mais do que prejudicar, por exemplo, a capacidade de locomoção ou de realizar tarefas sozinho, muitas vezes a lesão cerebral afeta a capacidade perceptiva e representacional dos sujeitos traumatizados. Deste modo, os sujeitos em questão encontram-se desprovidos da possibilidade de se apoiar sobre as percepções e as representações que construíram sobre si e sobre o seu entorno. Diante disto, surge a questão: qual é a função do analista - no manejo da transferência - com sujeitos cujos recursos para falar sobre as percepções e as representações construídas acerca de si encontram-se limitados, em decorrência de lesões anatômicas e prejuízos nos sistemas funcionais? Situações como esta exigem um remanejamento da técnica analítica clássica estruturada a partir da associação-livre, da atenção flutuante e da interpretação dos conteúdos recalcados.
Na história da psicanálise, Ferenczi (1920) foi o primeiro analista a propor alternativas à técnica clássica3. Com o objetivo de superar os limites impostos pela interpretação, Ferenczi recuou em direção ao vivido nas fases mais precoces do desenvolvimento infantil (Klautau, 2007)4. Este movimento em direção à dimensão pré-reflexiva da vida subjetiva - cuja ordenação se dá por meios de critérios e processos que não incluem tudo aquilo que a aquisição do equipamento lingüístico oferece - abre um campo até então não explorado e deixa uma herança clínica para as futuras gerações de analistas.
A idéia de que encontramos em Winnicott o legado ferencziano, mesmo que de forma indireta, vem sendo disseminada no cenário psicanalítico dos últimos anos. Trabalhos como os de Figueiredo (2002) e de Pacheco-Ferreira (2003), inserem Winnicott em uma tradição ferencziana que inclui, tanto uma orientação teórica quanto um estilo clínico. Embora Winnicott não faça referências diretas à obra de Ferenczi, há, certamente, uma sensibilidade clínica que o filia às adaptações técnicas propostas por Ferenczi. Esta sensibilidade diz respeito à disposição favorável para aceitar casos refratários à técnica analítica clássica e, sobretudo, à disponibilidade de adaptar a técnica às necessidades do analisando. É importante ressaltar que, quando se fala em adaptação da técnica, inclui-se a função do analista. Deste modo, um dos traços marcantes do estilo clínico de Ferenczi, herdado por Winnicott, é a capacidade de o analista ajustar-se às novas situações impostas pelos casos que oferecem um limite ao método clássico. A conseqüência disto é a ampliação do raio de ação da psicanálise. Com o horizonte ampliado, a psicanálise passa a incluir em sua clínica pacientes que até então eram considerados não analisáveis por escaparem à lógica que rege a problemática neurótica.
Com o intuito de incluir em sua clínica casos que não se amoldam à técnica clássica, Winnicott (1954/2000c) identifica três tipos de pacientes, cada qual com uma necessidade que requer uma intervenção específica. Em primeiro lugar, encontram-se aqueles que tiveram uma história primitiva de adaptação suficientemente boa e, portanto, funcionam como pessoas inteiras. Estes apresentam dificuldades no campo dos relacionamentos interpessoais. Para tais casos, a melhor opção de tratamento consiste em uma análise clássica, baseada no uso da interpretação como ferramenta principal. Em segundo lugar, há os pacientes cuja personalidade se integrou recentemente. As dificuldades em questão relacionam-se ao estágio de concernimento, ou seja, à aquisição do status de unidade. Nestes casos, a análise clássica continua sendo a melhor opção, contanto que se preste atenção ao manejo da transferência. Em terceiro lugar, estão os casos cujas análises têm a função de lidar com os estágios do desenvolvimento emocional anteriores ao estabelecimento do status de unidade em termos de espaço-tempo. "A estrutura pessoal ainda não está solidamente integrada" (Winnicott, 1954/2000c, p.375). Com estes pacientes, o enquadre analítico clássico deve ser deixado de lado: o que conta é a provisão ambiental. Sendo assim, a técnica adequada consiste no oferecimento de um ambiente de holding5 capaz de fornecer o suporte necessário para a integração de experiências que, embora não discursivamente organizadas, são articuladas, ordenadas e carregadas de sentido6.
Sem dúvida, os pacientes portadores de lesão cerebral devem ser incluídos neste terceiro grupo. Embora não sejam casos nos quais a origem do problema possa ser alocada em dificuldades ou situações traumáticas ocorridas em estágios precoces de seu desenvolvimento, o que a patologia traz como consequência é certamente um desarranjo do estágio de integração pessoal anteriormente alcançado, provocando uma perturbação na sua integração no tempo e no espaço. Esta perturbação se expressa no modo como a relação com o ambiente é atingida como decorrência da lesão. No vocabulário winnicottiano, ambiente é um termo abrangente. Num primeiro momento, ambiente, mãe e cuidados maternos devem ser considerados sinônimos, já que, no início, a mãe funciona, tanto em termos biológicos quanto em termos psicológicos, como o primeiro ambiente para o bebê. Com a criança ainda no útero ou no colo sendo segurada e cuidada, a mãe fornece o ambiente físico que gradualmente torna-se psicológico. O importante nesta equivalência de termos é perceber que a mãe, inicialmente, é mãe-ambiente. E mais: ambiente, mãe e cuidados maternos não podem ser pensados de forma separada do bebê (Winnicott, 1945; 1956; 1966; 1971). Deste modo, o que reina é um estado de continuidade entre eu-não-eu, cuja unidade não é o indivíduo isolado, mas sim o conjunto ambiente-indivíduo (Klautau e Salem, No prelo; Bezerra Jr., 2007). No contexto em questão, é o holding, ou melhor, é a sustentação oferecida a partir dos cuidados ambientais que garante progressivamente a continuidade da existência de ser. Neste ponto, deve ser ressaltado um tema de importância crucial para a clínica com pacientes portadores de lesões cerebrais: a noção de dependência.
Para Winnicott, dependência está diretamente relacionada ao meio ambiente. Quando o que está em pauta é a análise de pacientes cujo status de unidade não se encontra estabelecido, o que está em questão é a situação de dependência absoluta ambiental (Winnicott, 1960). Mais precisamente, trata-se da dependência dos cuidados inicialmente recebidos de um ambiente confiável. Nos primórdios da vida, confiança deve ser entendida como a possibilidade de se fiar, crer na permanência e na estabilidade do entorno. Para que esta confiança se expresse no exercício da criatividade primária, inerente a todo sujeito, é preciso que o ambiente exiba sua dimensão provisional, ou seja, que o ambiente seja capaz de oferecer ao sujeito os objetos adequados às formas de expressão física e psíquica de que eles são capazes. Em outras palavras, o ambiente - para estar à altura das exigências que deve cumprir - deve se constituir num horizonte para ação normativa do sujeito.
Nos casos em que a desintegração assume o aspecto dominante da personalidade, é necessário, para que o processo analítico avance, primeiramente a instauração de um setting que inspire confiança. Nestes casos, a situação de dependência encontra-se em primeiro plano e fornece "a indicação do paciente ao analista de como ele deve se comportar mais de como ele deve interpretar" (Winnicott, 1959-64/1990b, p.117). É esta espécie de manejo não-interpretativo que possibilita o sujeito acometido por uma lesão cerebral restabelecer o status de unidade, isto é, a coerência eu-mundo. Portanto, nestes casos, o setting encontra-se em primeiro plano: o que está em questão é a constância, a sustentação e a adaptação empática do analista às necessidades do paciente ainda não integrado (Winnicott, 1969/1994). Além disso, é necessário que o setting esteja disposto de tal modo que se organize como um campo de experimentação subjetiva - incitada pelo manejo do analista e pelo oferecimento de objetos capazes de suscitarem respostas normativas por parte do paciente.
Deste modo, o setting deve ser encarado como parte integrante da personalidade do analista (Winnicott, 1954/2000b, 1954/2000c). Isto inclui a totalidade de elementos que constituem o relacionamento analítico - dos quais a contratransferência merece destaque. Numa visão ampliada, a contratransferência não se encontra limitada aos aspectos positivos ou negativos produzidos pela transferência, ela vai além: abrange todo funcionamento mental do analista (Green, 1975/1988, p.40). A condução da análise de pacientes portadores de lesões cerebrais exige que o analista se afaste de uma posição baseada prioritariamente na escuta do material inconsciente recalcado, e adote uma posição mais ativa participando, com sua presença sensível, do processo analítico.
A adoção de uma certa atividade provoca uma mudança na qualidade da presença do analista, que passa a incluir todo o seu funcionamento mental, envolvendo mudanças de sensibilidade, de atenção e de percepção. Ao estabelecer um contato empático, o analista se coloca no mesmo diapasão do paciente ainda não integrado e passa a participar da sessão com seus processos psíquicos. Isto significa que os processos perceptuais e cognitivos do analista tornam-se parte do processo de integração dos sujeitos acometidos por perturbações neurológicas.
Diante disto, na clínica com este tipo de pacientes, a cognição é peça chave pois "tem uma função de apoio interno para o sujeito, permitindo integrar psiquicamente as representações de si e do mundo próprias a cada um" (Winograd, Sollero-de-Campos e Drummond, 2008 e Oppenhein-Gluckman, 2000/2006). Ao funcionar como continente que proporciona um suporte para o processo de integração, o analista empresta suas funções cognitivas ao sujeito que se encontra em uma situação de dependência absoluta do meio ambiente. Dessa forma, ao disponibilizar um pouco de si, através de sua presença física e psíquica, o analista empresta elementos cognitivos e perceptuais capazes de possibilitar o gradual restabelecimento da capacidade de fruição das potencialidades individuais do sujeito ainda não integrado, estimulando a invenção de novos padrões de funcionamento psíquico e cerebral capazes de responder às exigências impostas pela lesão. Adotando, portanto, a normatividade como eixo da estratégia clínica, fica claro que a psicanálise pode atuar como um dispositivo terapêutico capaz de aumentar a atividade normativa, possibilitando que o sujeito em análise construa para si um eu e um mundo coerentes.
Notas
1. Sobre a teoria ecológica da mente, ver: Reed, E. (1996), Butterworth, G. (1998), Gibson, J.J. (1979, 1982).
2. Neste sentido, trabalhos de alguns autores merecem destaque: Helene Deutsch (1942), Fairbain (1952), Winnicott (1955), Kohut (1971), Giovachini (1975), Federn (1979), Masud Khan (1984) e Balint (1993).
3. É sabido que Freud e seus contemporâneos se depararam com obstáculos que os fizeram questionar a eficácia da técnica interpretativa. A problemática acerca das limitações do processo analítico é discutida por Freud em vários momentos de sua obra (1917[1916]; 1919[1918]; 1920; 1933a; 1937b).
4. O vivido pode ser entendido como uma dimensão pertencente ao plano da experiência no qual o que está em tela é a inserção ou a ancoragem do corpo no mundo que ele habita. Trata-se de um horizonte vital, um plano no qual a inteligibilidade da experiência não se organiza pela mediação de uma reflexão sobre ela, mas pela percepção sensível dos modos pelos quais o mundo afeta a experiência do corpo e o corpo afeta o mundo no qual ele age.
5. Na tradução da obra de Winnicott para o português, o termo holding foi mantido com a grafia original. Não foi encontrada nenhuma palavra ou expressão em português capaz de abranger o significado deste termo. Na língua inglesa, a palavra holding é utilizada no sentido do verbo to hold, que possui alguns significados compatíveis com a idéia de Winnicott: segurar, agüentar, sustentar e conter. Sendo assim, a expressão em questão deve ser entendida como uma sustentação proveniente do ambiente que possui a peculiaridade de adaptar-se às necessidades que vão se modificando ao longo do tempo.
6. Aqui, sentido diz respeito à ordenação, direcionamento ou regulação do campo experiencial que se dá sem o uso do equipamento semântico da linguagem, e que permite a aquisição de um certo tipo de conhecimento (perceptual, não-inferencial ou não-discursivo) que possibilita o estabelecimento de padrões de resposta a estímulos e desafios do meio. Nesta acepção, sentido se diferencia de significação, que implica o uso de palavras e que possibilita um tipo de organização semântica da experiência mediada pelo uso de conceitos.
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Recebido em 13 de janeiro de 2009
Aceito em 02 de março de 2009
Revisado em 06 de maio de 2009