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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148

     

 

RESENHA

 

"A soberania da clínica na psicopatologia do cotidiano"

 

 

Autor da resenha
Thiago Costa Matos Carneiro da Cunha

Psicanalista. Psicólogo do CAPS Infantil de Fortaleza. Vice-presidente da CLIO - Associação de Psicanálise. Pesquisador membro do Laboratório sobre as Novas Formas de Inscrição do Objeto (LABIO). End.: R. Costa Barros, 940, apt. 21. Fortaleza, CE. CEP: 60.160-280. E-mail: thiagoclio80@gmail.com

 

 

 

Organizadores
(Vera Lopes Besset e Henrique Figueiredo Carneiro)
Editora Garamond, 2009, 296 páginas.

 

A Psicanálise e o Sofrimento Psíquico em Questão: sintoma, gozo e corpo na clínica contemporânea

O estudo da psicopatologia do cotidiano na clínica psicanalítica ganha uma instigante colaboração. O livro "A Soberania da Clínica na Psicopatologia do Cotidiano", organizado em forma de coletânea por Vera Lopes Besset e Henrique Figueiredo Carneiro, reúne contribuições memoráveis, por sua acuidade teórica e aplicação prática, de psicanalistas nacionais e internacionais.

Coordenadora do grupo de pesquisa Clínica Psicanalítica (CLINP) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vera Lopes Besset tem como ponto central de seus estudos científicos os impasses vivenciados pela clínica na contemporaneidade. Matéria de grande valia nos estudos empreendidos pelo Dr. Henrique Figueiredo Carneiro, como pesquisador e coordenador do laboratório de pesquisa LABIO da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), no desenvolvimento de pesquisas psicanalíticas sobre as novas formas de relações estabelecidas sujeito-objeto.

Colaborações em pesquisas e vínculos transferenciais de trabalho foram se firmando desde então, o que pode revelar muito bem o espírito deste livro, onde fulgura aos olhos do leitor a importância da análise do sofrimento psíquico contemporâneo, resultado do encontro de suas articulações científicas. Nota-se a preocupação dos organizadores com a prática clínica e a posição do analista em relação aos novos sintomas encontrados na conjunção entre o corpo e o imperativo de gozo do Discurso do Mestre - "avesso as coisas do amor e do desejo" -, vigente na atualidade, privilegiando a linguagem na constituição subjetiva.

Sua configuração, em três grandes eixos temáticos - "Contribuições sobre a psicose"; "Corpo e sintoma"; e "Atualidades em psicopatologia" - traduz o cuidado de seus organizadores ao pensar o desenvolvimento da clínica em sua referência à psicopatologia do cotidiano.

No primeiro eixo-temático, "Contribuições sobre a psicose", Jean-Claude Maleval, Michel Grolier e Gwénola Druel-Salmane, em "Sobre a fantasia no sujeito psicótico: de sua carência e seus substitutos", dissertam a respeito da fantasia fundamental, especificamente em duas formas de psicose ordinária (as chamadas "clínica do deserto" e as psicoses que se vinculam ao conceito de "imagem indelével"), como forma de contribuição ao diagnóstico estrutural e à condução do tratamento em pacientes psicóticos.

Demonstram a importância da constituição de uma suplência, como substituto da fantasia fundamental, no tratamento, em sua função de contenção do gozo do Outro, fornecendo algum tipo de suporte ao eu ideal do sujeito psicótico.

Jesus Santiago, em "A pragmática do sintoma no tratamento das psicoses", empreende sua competência em analisar a prática psicanalítica, e seu "indecidível lógico", a partir da demanda de tratamento atual, pelo caráter "arbitrário das estruturas". Relaciona a exterioridade do sentido nos sintomas contemporâneos às peculiares dos sintomas psicóticos, se utilizando de fragmentos de discursos primorosos de um caso para descrever algumas características desta clínica.

A aposta da clínica se exerce por uma mudança de referencial, das estruturas clínicas para o tratamento do sintoma, com o posicionamento do analista pela "estrutura do estranho", propiciando a contenção do gozo e a moderação da transferência erotomaníaca (mortificante) por parte do analisante.

Em "Sobre a aplicação do método psicanalítico no tratamento das psicoses", Gustavo Dessal descortina o set analítico da clínica das psicoses. Apresenta, em cinco magníficos casos, detalhes dos impasses, questionamentos, dificuldades, construções, saídas e voltas que o analista está sujeito a realizar para situar-se na transferência e dar continuidade ao tratamento nas psicoses.

Descreve as especificidades das psicoses ordinárias e extraordinárias e o esforço do analista em permitir que o analisando oriente e direcione seu tratamento, suportando as "manobras psicóticas para assegurar a transferência" e identificando os pontos de amarração para a contenção do gozo invasivo do Outro, para a produção de importantes efeitos terapêuticos.

O sintoma na psicanálise é abordado de forma precisa por Sidi Askofaré, em "Sintomas e suplências: uma tentativa de problematização". O autor problematiza o inconsciente na psicose a partir de Freud até o último ensino de Lacan, sobre a questão do sintoma, presente na função de enodamento da estrutura borromeana. Apresenta o processo de constituição metafórica delirante estabilizada como a que fará suplência - conceito trabalhado de forma impecável - à metáfora paterna fracassada, caracterizando, assim, referências imprescindíveis ao desenvolvimento do tratamento nas psicoses.

O segundo eixo-temático "Corpo e sintoma" oferece, em sua primeira contribuição, um trabalho de Hebe Tizo, intitulado "Considerações sobre o sintoma". A psicanálise e a psiquiatria são analisadas minuciosamente, a partir do lugar do sintoma em seus discursos, na perspectiva da saúde mental dos dias de hoje.

Critica, de forma perspicaz, as premissas neoliberais presentes implicitamente nos manuais diagnósticos, como o DSM IV, comportando a lógica do funcionamento de um padrão harmônico - forma contemporânea de regulação social do gozo - na saúde mental, onde o sintoma passa a ser considerado uma disfunção ou um mal a ser extirpado através do tratamento. Demonstra, inegavelmente, a importância da psicanálise no tratamento em saúde mental, por sua consideração à dimensão do gozo no sujeito.

O conceito de arrebatamento nas psicoses é trabalhado por Angélica Bastos, em "O corpo e o arrebatamento". A autora traz grandes contribuições ao estudo da vivência corporal do sujeito psicótico quando, a partir da novela "O arrebatamento de Lol V. Stein", de Marguerite Duras, Lacan constrói um artigo para dissertar sobre as práticas da letra e do inconsciente e suas confluências em relação ao corpo.

Angélica Bastos ilustra com detalhe a dificuldade encontrada pela personagem principal em constituir a própria imagem, realizando uma manobra subjetiva através do "arrebatamento", como se pudesse viver a partir do corpo de outro sujeito, sendo arrebatada por ele. Forma inventiva de suplência à fantasia fundamental elaborada pelo sujeito.

"Corpo e sintoma na experiência analítica", de Vera Lopes Besset, Bruna P. M. Brito, Gabriella V. Dupim da Silva e Marina Pereira Vieira, realiza um exame fino e pormenorizado dos efeitos subjetivos do discurso capitalista, como imperativo de gozo e sua representação no corpo.

Denuncia a constituição de sintomas "mudos" - que não se prestam ao sentido - a partir de uma lógica peculiar: na crença do saber "para-todos", resultando na demanda de tratamentos específicos. Corrobora com a posição da psicanálise, à medida que sua técnica aponta para um "querer dizer" do sintoma, por instaurar a crença no sentido, atuando, com toda a sua força teórica, como forma de tratamento possível aos efeitos da lógica capitalista atual "em direção a uma infelicidade comum".

Henrique Figueiredo Carneiro abre o eixo-temático "Atualidades em psicopatologia", com o artigo "A amnésia infantil em um caso de perversão", propondo uma análise da amnésia infantil na subjetividade. Para esclarecer sua função, descreve as nuances do atendimento de um sujeito na posição perversa.

O caso tem o seu núcleo na frase "a intervenção não pode ser do pai", fragmento discursivo do analisante para fazer frente à possibilidade do pai de ter exercido um corte ou limite à relação mãe-filho, sustentando o desejo da mãe na montagem do seu fantasma perverso. O autor destaca a amnésia infantil como um dos principais referenciais, que comparecem à clínica, para situar o lugar subjetivo do sujeito, e assinalar a sua forma de gozo em relação ao Outro, questão essencial ao trabalho analítico.

Um estudo histórico sobre as contribuições e desenvolvimentos da psicopatologia freudiana é o que propõem Ilka Franco Ferrari e Sérgio Laia, no artigo "Psicopatologia: a perspectiva freudiana". Em seu enredo encontra-se uma admirável incursão à história da psicopatologia desde o século XVIII até a metade do século XX, com o fim dos estudos freudianos, refazendo o percurso de suas principais obras e seus desenvolvimentos teóricos. Estabelece os parâmetros diferenciais psicanalíticos na saúde mental, de forma clara e contundente, marcando a originalidade do pensamento freudiano e, mais do que nunca, a sua atualidade clínica.

A partir de um estudo de caso, Marta Gerez Ambertín, em "O pai e seus enigmas", disserta sobre a paternidade em meio à queda dos ideais e dos desenvolvimentos tecnológicos de nossa época. A autora, numa explanação elucidativa, revela as consequências subjetivas das novas técnicas de reprodução que praticamente prescindem da presença do pai, para reafirmar a importância de sua função, já que a mesma não se reduz ao biológico, ultrapassa-o, se encontrando inscrita no campo do simbólico, pois "outorga - desde a palavra do pai - filiação e genealogia ao sujeito".

A transexualidade passa a ser o tema de Marcia Mello de Lima, no artigo "Sobre o ato mutilatório na transgenitalização masculina". O estudo responde ao apelo cada vez mais crescente das cirurgias de transgenitalização e seu impacto na clínica médica e psicanalítica. Ressalta as diferenças subjetivas constituintes na transexualidade e no travestismo e o perigo decorrente da realização de tais cirurgias sem levar em consideração a posição subjetiva do sujeito. Articula a experiência de transgenitalização masculina às fenomenologias sintomáticas das psicoses (ordinária e extraordinária), o que pode ser identificado nos impasses, trazidos em forma de poesia, por um transexual.

A questão da adoção é aqui trazida por Edilene Freire de Queiroz, em "Escutar o desejo de adotar", ao fazer uma viagem histórica da adoção no Brasil até a consolidação de sua legislatura atual. Relata uma experiência de trabalho singular originada da articulação entre Psicanálise e Direito, na Universidade Católica de Pernambuco, no atendimento às famílias adotivas em estado de sofrimento psíquico.

Aborda especificamente o desejo de adotar dos pais e sua problemática na relação com o filho adotivo, principalmente quando estes não correspondem às suas expectativas no dia-a-dia.

As contribuições se encerram com Valeska Zanello e Francisco Martins, no artigo "Associação livre e metáfora". O referencial clínico é a maior preocupação dos autores, quando se perguntam sobre o lugar da metáfora no desenvolvimento da associação livre. Se esta proporciona a circulação dos significantes por aquilo que é inominável, razão de seu movimento, a metáfora surge com sua função nomeadora, que, através do sintoma, revela a posição subjetiva tomada pelo sujeito em relação ao desejo do Outro.

Em épocas sombrias do discurso do Mestre capitalista, o sintoma, o gozo e o corpo comparecem como os principais referenciais da psicopatologia para a construção de uma psicanálise atual, atenta às novas formas de sofrimento psíquico vivenciadas pelo sujeito. É nos interstícios das novas formas de sofrimento que a clínica detém sua soberania, exatamente ao colocar a escuta do analista em função dos efeitos devastadores das práticas discursivas e na insistência por uma causa: o inconsciente.

 

Referência

Besset, V. L.; Carneiro, H. F. (2009). A soberania da clínica na psicopatologia do cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Garamond Ltda, 2009.         [ Links ]

 

 

Recebido em 01 de setembro de 2009
Aceito em 10 de setembro de 2009
Revisado em 14 de setembro de 2009

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