Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148
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ARTIGOS
A psicanálise face ao hedonismo contemporâneo
Isabel Fortes
Psicanalista. Professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos. End.: R. Paulo César de Andrade, 240/601. Laranjeiras, Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22221-090. E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com
RESUMO
O artigo pretende fazer uma análise do lugar que a contemporaneidade oferece ao sofrimento psíquico, a partir da figura do hedonismo, avaliando o lugar da psicanálise diante do panorama social da atualidade. Observa-se hoje uma mudança nas formas de subjetivar-se, principalmente no modo que o sujeito relaciona-se com a dor como algo a ser evitado. Pode-se fazer uma relação direta do hedonismo com o individualismo, na medida em que o primeiro se associa à sociedade de consumo. É nosso dever sermos felizes e a felicidade implica o consumo. Dentro dessa perspectiva, apresenta-se uma genealogia do individualismo. Do individualismo possessivo de Hobbes, no século dezesseis, ao utilitarismo de Bentham, no século dezenove, demonstra-se que há uma linhagem histórica para a compreensão do hedonismo contemporâneo.
Um elemento importante a ser analisado neste quadro social é o esvaziamento da esfera do político. Observa-se hoje uma transformação na relação entre as esferas públicas e privadas, ocorrendo uma privatização da vida.
Nesse contexto, a figura freudiana do desamparo ganha preeminência, apresentado como efeito da modernidade, a partir da queda dos ideais da razão universal, da crença na ciência como salvadora da humanidade e da religião como forma de proteção dos sujeitos. Outro elemento central neste quadro é o imperativo ao gozo. O lugar da psicanálise diante deste quadro é compreendido como contraposição ao evitamento da dor característico do hedonismo atual. A noção psicanalítica de masoquismo é debatida como elemento central na formação do psiquismo, apresentada como uma via teórica que indica uma diferença crucial entre a psicanálise e o hedonismo contemporâneo.
Palavras-chave: hedonismo, sofrimento psíquico, contemporaneidade, desamparo, psicanálise.
ABSTRACT
The article aims to analyse what place contemporary world ascribes to psychic suffering based on the concept of hedonism, analyzing what is the place of psychoanalysis in regard to these changes. There is contemporarily a change in the way one defines oneself, and some of it is observable in the way pain is seen as something to be avoided. A direct relation of hedonism to individualism can be made, as the former is associated with consumer society. It is our duty to be happy, and happiness implies consuming. From this point-of-view, a genesis of individualism is presented. From Hobbes's possessive individualism, in the 16th century, to Bentham's utilitarism, in the 19th, one intends to show a historical lineage for understanding present-day hedonism.
An important element to be analysed in this social framework is the loss of relevance of the political realm. There is an ongoing transformation in the relation of public and private realms, testifying a general privatization of life.
In this context, the Freudian concept of helplessness becomes proeminent, viewed as an effect of Modernity, and also as related to the fall of ideals such as universal reason, belief in science as mankind's savior and religion as protector of selves. Another important element is the obligation of lust. The place of psychonalysis in regard to contemporary culture is viewed as a confrontation to the refusal of pain. The psychoanalytical concept of Masochism is a central element in the formation of psychism and a theoric path to present a crucial difference between psychoanalysis and present-day hedonism.
Keywords: hedonism, psychic suffering, contemporaneity, helplessness, psychoanalysis.
Introdução
Observa-se, em relação às novas formas de subjetivação na atualidade, uma negação do sofrimento acompanhada da busca incessante de felicidade. A subjetividade é hoje caracterizada pelo hedonismo, pelo imperativo de gozo que se associa ao dever de ser feliz. O sujeito atual nega a dor, seja na relação que mantém com o próprio sofrimento ou naquela que interage com o sofrimento do outro. Este modo de se posicionar frente à dor é marca do nosso tempo, circunscrito às concepções que descrevem a contemporaneidade através do que Lasch (1979) denominou de "cultura do narcisismo" e Debord (2000) de "sociedade do espetáculo", regida pelo triunfo do individualismo associado ao consumo e à demanda incessante de prazer.
Constata-se que na contemporaneidade ocorreu uma mudança nas formas de subjetivar-se, sendo uma destas modificações observada no modo de o sujeito relacionar-se com a dor como algo a ser evitado. Portanto, falar do sofrimento hoje é tocar em uma questão crucial, pois o que caracteriza o homem na atualidade é o hedonismo, o imperativo de ter prazer e evitar o sofrimento.
Ao imperativo de gozo, associa-se o dever de ser feliz. A regra vigente é não sofrer, e a proposta que reina soberana é a de "pensar positivo", ou seja, ter a felicidade como o horizonte de todos os acontecimentos da vida.
Assim, se no século XIX a figura do spleen, certo ar de tristeza e melancolia, tinha o seu charme, principalmente entre os poetas (ver, por exemplo, Eça de Queiroz em Os Maias), hoje a tristeza não está na moda. Outra relação com o sofrimento, que estava longe de ser a da negação, também podia ser observada nos teóricos do existencialismo, no romantismo ou na cultura beat. Até mesmo na bossa nova, os poetas sempre cantaram com suas músicas que a "tristeza não tem fim, felicidade sim". Hoje, aquele que não consegue ser feliz é visto como uma pessoa fraca e merecedora de culpa. Nos nossos dias "toda tristeza é vergonhosa, injustificada, e daqui por diante patológica" (Silvestre, 1999, p. 115).
Dessa maneira, propomos analisar a mudança da relação com a dor no mundo contemporâneo, e o lugar da psicanálise diante deste novo quadro. Se a escuta do psicanalista visa a acolher a dor do outro, a ajudá-lo a elaborar seus sofrimentos e suas angústias, constatamos que a psicanálise é confrontada por certas forças da cultura que impelem o sujeito a negar a própria dor.
No entanto, a negação da dor não leva a que exista de fato menos dor. Ao contrário, a dor excluída é ela mesma fonte de dor. Uma das marcas do nosso tempo é o desamparo. Vivemos em uma era de incertezas que mudou a relação do sujeito com as garantias quanto ao seu futuro. Isso conduz à sensação de vazio e de desproteção, à descrença na política, à fragilidade dos laços sociais e ao enfraquecimento da figura da alteridade nas nossas vidas.
É neste sentido que afirmar a psicanálise na nossa cultura traduz-se em um alargamento da responsabilidade ética do analista. Valorizar a dor é permitir que não sejamos completamente engolfados pela sociedade individualista do consumo. Fazer resistência a isso é tarefa do psicanalista, pois acolher a dor de um sujeito é, muitas vezes, deixar aparecer aquilo que ele tem de mais próprio, de mais singular.
Se desde o seu nascimento coube à psicanálise escutar os sintomas do sofrimento neurótico, continua sendo função do psicanalista acolher o vazio do sofredor contemporâneo que, se não se mostra mais tanto com a cara da neurose, tem nas chamadas patologias do ato, como as drogadições e as compulsões, que se caracterizam pela passagem ao ato e não pelo recurso à simbolização, nas perturbações psicossomáticas ou nas depressões, a comprovação de que ali há dor. Onde há sofrimento psíquico há lugar para a escuta do psicanalista.
1. O sujeito hedonista
Assim, o sujeito atual organiza-se a partir do eixo individualista-hedonista, e o sofredor não se encaixa nos moldes atuais de exaltação do eu e exibicionismo. Vemo-nos acossados pela obrigação de ser feliz. As propagandas publicitárias reificam, a todo momento, esta exigência. Seja nos anúncios de cigarro, onde todos estão sempre atléticos, sorridentes e felizes, seja no slogan "Mc Donald's: gostoso como a vida deve ser", a mensagem que se passa é que a felicidade é um bem a ser adquirido nas prateleiras dos supermercados.
Com efeito, a cultura do hedonismo está intrinsecamente associada à sociedade do consumo. Nosso dever é ser feliz e a felicidade implica o consumo. Como salienta Baudrillard (1981), a aquisição dos objetos na nossa sociedade traduz-se pela ilusão de que o consumo pode preencher a demanda de felicidade. Os objetos neste registro simbólico são marcados por uma equivalência entre possuir bens e usufruir a felicidade. Deste ponto de vista, a referência à felicidade articula-se com a ideologia igualitária-individualista do bem-estar, na qual o conforto e o bem-estar passam a ser sinônimo de felicidade, assim como permitem uma espécie de mensuração da igualdade. A democracia burguesa passou a mascarar as desigualdades sociais ao tornar os objetos de bem-estar acessíveis a todos, apesar de esta pretensa igualdade não ter se mostrado de modo algum real, acabando por mascarar ao invés de permitir a problematização e o encontro das possíveis soluções para as desigualdades sociais.
É dentro deste espírito que observamos na nossa cultura tudo se transformar em gadget, inscrevendo-se os objetos como signos da felicidade, sempre prontos a serem incorporados vorazmente pelos sujeitos.
Nesta lógica, há uma redução absoluta da figura da alteridade, pois mesmo outro ser humano pode tornar-se objeto de consumo, servindo assim como mero instrumento para o prazer egóico do sujeito. Neste contexto, o outro só existe enquanto reforçar a autoexaltação narcísica do sujeito, como meio para alimentar o eu, e não como relação de alteridade. Como um objeto de consumo qualquer, o outro da relação pode ser também rapidamente descartável. Há, assim, uma relação predatória do outro, que só existe de forma "útil", na medida em que é fonte de prazer para o eu, afirmando-se aqui o utilitarismo nas relações interpessoais, que prega que o outro pode ser reduzido a mero objeto de troca.
A partir da constatação da diminuição do campo da alteridade pode ser analisada a fragilidade dos laços sociais na contemporaneidade. O que se apresenta ao sujeito no campo da alteridade é limitado e empobrecido, conduzindo ao recrudescimento do gozo solitário. Como assinala Debord (1997), uma das características da sociedade do espetáculo é não oferecer espaço para o diálogo. Ao espetáculo cabe a função de "fazer ver", de parecer e aparecer, constituindo-se não como uma troca efetiva entre os seus participantes, o que faria dessa produção uma atividade que faz laço entre os homens, mas como uma representação independente, cuja finalidade é o exibicionismo (p. 18). O efeito da precariedade do vínculo com o outro é o sentimento de solidão e de vulnerabilidade.
É no contexto da fragilidade que assola o homem de nossos dias que podemos também compreender o circuito consumista. A obsessão de comprar é certamente a expressão dos instintos hedonistas, mas pode ser vista, por outro lado, como forma de paliativo frente às inseguranças e incertezas que inquietam o homem atual. A compulsão consumista não é apenas o extravasamento da busca incessante de sensações prazerosas, mas constitui-se também numa espécie de compensação diante do vazio da própria subjetividade: "o comprar compulsivo é também um ritual feito à luz do dia para exorcizar as horrendas aparições das incertezas que assombram as noites" (Bauman, 2001, p. 96). Os objetos coloridos, cheirosos e brilhantes expostos nas vitrines das lojas atendem à busca incessante e imediata do êxtase hedonista, mas denunciam também o lado da vulnerabilidade que busca ser compensada por este tipo de prazer. O consumo faz com que os sujeitos tentem "escapar da agonia que se chama insegurança. Querem estar, pelo menos uma vez, livres do medo do erro, da negligência ou da incompetência" (id.).
1.2 Desamparo e gozo na contemporaneidade
Uma das marcas da subjetivação contemporânea é o desamparo. Os ideais de progresso e de evolução do homem, as crenças nas utopias e a possibilidade de investimento no futuro - traços que desenhavam a modernidade - não mais se sustentam no tempo atual.
O desamparo se traduz em diversos níveis. Um deles é o declínio da razão universal e do projeto iluminista sustentados na razão, na ciência e na religião. Ora, não há hoje como se conceber uma razão que se queira universal, a ciência não é mais vista como aquela que salvará a humanidade, e Deus há muito que deixou de ser nosso Grande Protetor.
Deste modo, o desmoronamento dos alicerces que sustentavam a razão universal fez entrarem em declínio os valores da sociedade tradicional, provocando a ausência da figura simbólica do pai na cultura (Birman, 1999), o que conduz ao sentimento de desproteção e de carência de laços sociais.
Como mostra Birman (2000) no artigo "A psicanálise e a crítica da modernidade", o desamparo é o preço que o sujeito tem que pagar pela construção do projeto civilizatório da modernidade. A partir de uma leitura crítica do texto "Mal-estar na civilização" (Freud, 1930), o autor demonstra como o desamparo é condição do homem moderno. Dificilmente poderíamos dizer que o desamparo constituiria um traço fundamental de uma cultura holística, ou mesmo dos sistemas sociais das sociedades patriarcais, já que estas seriam arregimentadas por uma forma de poder onde há o pressuposto de uma figura protetora. É justamente o declínio de uma figura de proteção que conduz ao desamparo como marca fundamental da modernidade.
Assim, o autor analisa três traços principais da modernidade que levam a pensar que o homem moderno teria a marca do desamparo: a passagem do holismo para o antropocentrismo, o auto-centramento do sujeito no eu e na consciência, e a substituição do discurso teológico pelo discurso da ciência.
Na visão antropocêntrica, o homem passa a ser a medida de todas as coisas, havendo um auto-centramento no indivíduo. A modernidade tem como marca fundamental para a subjetividade a categoria de individualidade, que circunscreve todo o valor no indivíduo, diferentemente do mundo holístico da antiguidade, no qual o homem se via como parte integrante de um todo maior que lhe era superior.
O centramento do sujeito na consciência e no eu surgiu a partir da metafísica de Descartes, tendo como desdobramento a sensação de autonomia frente ao mundo divino. O eu passa a ser soberano da sua vontade e da sua consciência, assumindo a separação e a independência de uma entidade divinizada.
O terceiro traço aponta para a soberania da ciência frente à teologia. Ao propor a possibilidade de dominação e ordenação do cosmos, o discurso científico oferece ao homem autonomia diante da natureza, como também lhe dá a possibilidade de se tornar um ser desgarrado da vontade divina. Assim, nestes três eixos apresentados, aparece a maneira soberana de o sujeito se colocar na cena do mundo, afirmando a sua emancipação do jugo do divino.
Ora, a questão importante levantada pelo autor é que esse deslocamento em direção à consciência e à razão científica conduz ao desamparo do homem moderno. A autonomia e a separação do mundo do divino, se por um lado leva o sujeito a adquirir uma posição de emancipação e soberania, por outro retira dele a dimensão de proteção antes outorgada ao divino. "Na modernidade, o homem soberano foi lançado sem qualquer proteção às agruras do mundo, sendo deixado à própria sorte" (Birman, 2000, p. 125).
Certo desencanto, portanto, faz parte do cenário subjetivo da contemporaneidade. A queda dos ideais da razão universal, da crença na ciência como salvadora da humanidade e na religião como forma de amparo conduziram a um homem sem projetos de futuro. É uma "era de diminuição das expectativas" (Lasch, 1991), na qual não se sabe mais o que se pode esperar de um futuro que se tornou incerto. A instabilidade de um futuro nebuloso leva à perda do sentimento de continuidade da história, do sentimento de pertencimento a uma sucessão de gerações e do desejo de transmissão das próprias crenças para as gerações seguintes (id.).
E se não há futuro, para que adiar a satisfação? A demanda de gozo tornou-se imediata e imperiosa. Se não há amanhã, gozar é a palavra de ordem.
Diante do imperativo de gozo que acossa a subjetividade contemporânea, podemos nos perguntar como fica a noção freudiana da renúncia ao gozo como aquilo que permite a edificação da cultura. A ideia da renúncia pulsional como base da construção da civilização é a hipótese central do texto "O mal-estar na cultura" (1930). Quanto à compreensão da renúncia como o operador da cultura, Bauman faz uma análise interessante. Ele propõe que a cultura à qual se refere Freud neste ensaio não seria uma cultura universal, cujos ditames valeriam para qualquer época, mas que o mal-estar ao qual Freud alude seria específico da cultura da modernidade. No contexto desta última, a edificação da cultura impunha "grandes sacrifícios", exigindo a renúncia das pulsões sexuais e das pulsões agressivas. A cultura, sob esta ótica, requer uma renúncia ao gozo e à liberdade individual em prol da constituição do grupo social, renúncia esta que é causadora de um mal-estar que inquieta de maneira constante o sujeito civilizado, obrigado a sofrer um conflito permanente entre o seu gozo individual e a ética que o constitui. A cultura da modernidade representa, desta maneira, uma espécie de formação de compromisso pela qual o sujeito abdica do gozo, mas recebe em troca a segurança oferecida pela vida na civilização (Bauman, 1998, p. 156). Se, como disse Hobbes, o "homem é o lobo do homem", a renúncia à pulsão protege os homens de se exterminarem mutuamente. O homem civilizado trocou o gozo pela segurança. (Freud, 1930/1990d).
Assim, a renúncia ao gozo é uma característica particular da modernidade. Na pós-modernidade esta relação se inverte. Enquanto na modernidade o sujeito abre mão do gozo em prol da segurança, na pós-modernidade ele abre mão da segurança em prol do gozo. A atualidade não se caracteriza pela renúncia ao gozo, tendo este agora todo o caminho livre para a sua circulação, sem as amarras civilizatórias que antes visavam interditá-lo. A liberdade individual reina agora soberana, estando em vigor o "demasiadamente humano reclamo de prazer, de sempre mais prazer e sempre mais aprazível prazer - um reclamo outrora desacreditado como base e condenado como auto-destrutivo" (Bauman, ibid., p. 9). A liberdade individual, outrora um problema para os agentes da ordem civilizatória que visavam difundir todas as normas ditadas por uma razão universal, transformou-se no maior dos predicados da contemporaneidade.
No entanto, a presença da liberdade e do gozo não se tornou sinônimo de um menor mal-estar. O mal-estar agora é outro, mas nem por isso menos aflitivo: "se obscuros e monótonos dias assombravam os que procuravam a segurança, noites insones são a desgraça dos livres. Em ambos os casos, a felicidade soçobra" (Bauman, ibid., p. 10). O preço que pagamos pelo gozo é cada vez mais risco e, por isso mesmo, cada vez menos segurança. A vitória do gozo sobre a ética, portanto, exacerba o individualismo e enfraquece os vínculos afetivos sólidos e duradouros.
Desta forma, podemos pensar que, frente à queda da autoridade paterna que representava o poder patriarcal, o sujeito da atualidade estaria marcado, sob esta perspectiva, muito mais pelo registro do gozo do que pelo registro do desejo e da lei.
Há, assim, uma obrigação de gozar que anula a possibilidade de que o prazer e a felicidade sejam algo a que se pode almejar. A felicidade não é mais um direito ou uma possibilidade no horizonte da subjetividade: a felicidade tornou-se um dever.
1.3 Do utilitarismo ao hedonismo
Ao analisarmos a sociedade de consumo regida pelo princípio individualista, consideramos relevante traçar uma genealogia do individualismo, para que possamos demarcar o solo genealógico-histórico que propiciou o surgimento do hedonismo contemporâneo. Do individualismo possessivo de Hobbes, no século XVII, ao utilitarismo de Bentham no século XIX, há uma linha histórica que oferece algumas demarcações para melhor entendermos o hedonismo de hoje. Nossa questão, a partir da apresentação desta genealogia, é indagar sobre as condições de possibilidade que conduziram ao ponto aonde chegamos. Que caminhos das produções históricas da subjetividade conduziram ao hedonismo contemporâneo e a esta forma de relação com a dor que promove a negação do sofrimento?
Assim, se a modernidade reprimiu o instinto definido por Hobbes como uma tendência natural dos homens para se destruírem mutuamente, noção que está implícita na célebre frase "o homem é o lobo do homem", na pós-modernidade, onde não vigora mais a exigência da renúncia pulsional que constituiu a cultura da modernidade, podemos talvez pensar que a libertação das coerções conduz a que vivamos em loco o temor hobbesiano. Mais do que nunca, vivemos hoje um estado de violência, de depredação do outro e de gozo individualista diante do qual somos levados a dizer que o homem aparece como uma verdadeira fera, o homem como o lobo do homem.
Na genealogia que aqui propomos, o hedonismo da atualidade é herdeiro do utilitarismo, teoria econômica que marcou os pensamentos jurídicos, científicos, sociais e morais do século XIX. Por sua vez, o utilitarismo é uma reafirmação dos princípios individualistas, pois, como assinala Macpherson (1979), Bentham baseou-se totalmente em Hobbes para construir a sua teoria do utilitarismo.
O utilitarismo foi uma concepção cuja ação tinha por meta maior o evitamento da dor para os sujeitos, no que dizia respeito tanto à vida pública quanto à vida privada. O hedonismo é a base do pensamento utilitarista. O termo "utilidade" refere-se à propriedade de proporcionar prazer, bem ou felicidade, consistindo o princípio utilitarista portanto em um pressuposto hedonista, na medida em que a perspectiva daquele era criar as condições econômicas que levassem à felicidade. Para Bentham (1789), um dos principais teóricos do utilitarismo, o objetivo último de toda legislação seria o de sustentar a maior felicidade possível para o maior número de pessoas. Portanto, a meta maior deste princípio era abolir o sofrimento e construir uma moral e uma legislação que oferecessem aos sujeitos sociais o máximo de prazer.
Segundo Bentham, em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação (1789/1984), o termo utilidade designa o seguinte:
a propriedade do objeto de produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que novamente equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta (p. 4)
Deste modo, uma determinada ação está de acordo com o princípio da utilidade quando é maior nela a tendência a aumentar a felicidade do que a tendência a diminuí-la. A finalidade da ação política, social e moral é a maior felicidade possível para o maior número de pessoas, sendo o critério da utilidade o que estima o valor moral das ações. O útil é o bem maior, pois é aquilo que consegue afastar o sofrimento e produzir a felicidade. O objetivo de construir a felicidade faz com que a dor e o prazer sejam o fundamento da utilidade:
O princípio da utilidade reconhece esta sujeição (à dor e ao prazer) e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade através da razão e da lei (id.).
Em Uma introdução aos princípios da moral e da legislação (1789/1984), a proposta utilitarista é elaborada de maneira meticulosa, a partir de um método de mensuração da quantidade de prazer e de dor. Estes últimos são os instrumentos com os quais o legislador deve trabalhar, já que "propiciar prazeres e evitar dores constituem os objetivos que o legislador tem em vista" (p. 16).
Como vimos, podemos traçar uma linhagem genealógica que vai de Hobbes à Bentham, e deste último ao hedonismo contemporâneo. Junto com a concepção utilitarista, o pensamento político inglês dos séculos XVII ao XIX foi marcado pelo que Macpherson (1979) sugere denominar de "individualismo possessivo". O individualismo liberal associa-se ao aspecto racionalista e utilitarista, que fez da liberdade individual um campo aberto para os interesses calculistas em relação ao outro e ao social. Na sua versão possessiva, o individualismo, além de afirmar o direito à propriedade defendido por Locke, induz também a que o indivíduo passe a sentir-se proprietário da sua pessoa, nada devendo à sociedade. O indivíduo neste momento não se vê mais como parte de um todo social, mas como um proprietário de si mesmo. Segundo a análise feita por Macpherson no livro A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke (1979), se a noção de posse foi o que ofereceu ao individualismo a sua força no século XVII, tornou-se no entanto a sua fraqueza no século XIX, quando esta noção foi articulada ao racionalismo utilitarista.
Em Hobbes, a condição natural do homem, se não houver nenhuma sanção que o interdite, é a da luta incessante contra os outros homens. Se não há uma autoridade para reprimi-los, a tendência dos seres humanos é matarem-se mutuamente. A tendência primeira do homem é a da ambição do poder, do lucro e da glória, estando circunscrito muito mais ao amor de si do que ao amor do outro. A constatação da natureza naturalmente apetitiva dos homens leva Hobbes a postular a necessidade de um soberano, um Leviatã, que não permita que os homens se destruam uns aos outros. Só a submissão a um poder soberano absoluto pode barrar a natureza destruidora e violenta do homem. Segundo Macpherson (1979), estas são as características marcantes da sociedade de mercado competitivo: não só o homem é naturalmente competitivo e destruidor do seu semelhante, como também o valor de cada indivíduo é dado da mesma forma que o são os preços do mercado, sendo cada indivíduo um potencial vendedor de seu poder ou comprador do poder dos outros. O valor de um homem é dado pela estimativa que os outros lhe dão, dependendo suas qualidades do julgamento alheio, sendo dado, portanto, como o de qualquer objeto de troca no circuito das mercadorias: é determinado pela opinião e pelo interesse dos outros. Nesta perspectiva, a ambição é o poder, sendo que o poder de cada indivíduo está em oposição direta ao poder do outro, o que coloca o sujeito de imediato no circuito da destruição do outro. No entanto, se Hobbes aponta para o conceito de posse, mostrando como a tendência natural do homem é o gozo individualista, traçando deste modo o perfil violento do homem, não é para positivá-lo ou tomá-lo como a ética que vai reger a vida dos indivíduos, mas é, ao contrário, para repudiá-lo e ao mesmo tempo enaltecer o cumprimento das leis e a necessidade da figura do soberano (Hobbes, 1651/1988; Macpherson, 1979). Já no utilitarismo hedonista, os princípios individualistas não somente são valorizados, como são dados como aquilo que deve ser a própria ética, ou seja, o signo da felicidade perfeita.
2. A crise da política: a privatização da vida
Constata-se uma transformação na relação entre as esferas pública e privada. Como foi mencionado anteriormente, nosso tempo é testemunha da desregulamentação e da privatização das tarefas modernizantes. Bauman (2001) demonstra como o que antes era tarefa do coletivo passa agora a ser da competência da vida individual. O indivíduo tornou-se o responsável pela administração dos riscos que a sobrevivência lhe coloca, ficando sua vida à mercê de seu próprio poder de escolha e de sua capacidade de autoafirmação.
Assim, vivemos em um mundo dominado pela iniciativa individual, que se realiza a custa do recrudescimento do privado em detrimento da esfera pública. O fortalecimento do individualismo é hoje, sem a menor sombra de dúvida, o grande adversário da cidadania. O enfraquecimento desta é um dos efeitos da intensa individualização, na medida em que os interesses agora se voltam para os cuidados da vida privada, tendo os sujeitos perdido a capacidade de compartilhar coletivamente seus temores frente aos riscos da própria existência. Vemos hoje, de modo geral e em vários setores, um movimento de privatização da vida. Por isso Bauman (2001) aponta para a urgência em se renovar a capacidade de "decidir em conjunto" (p. 46). Se existe hoje uma tarefa para a teoria crítica, é justamente a de buscar recursos para "repovoar a hoje quase vazia ágora - o lugar de encontro, debate e negociação entre o indivíduo e o bem comum, privado e público" (id. p. 51). Torna-se premente, para o intelectual de hoje, problematizar a crise da política, para que se possa combater o esvaziamento do espaço público.
O enfraquecimento do Estado como figura que protege e vela pelos cidadãos acaba gerando, nestes últimos, um clima de insegurança, o que remete também à vulnerabilidade que descrevemos mais acima. A desintegração do Welfare State, do Estado de Bem-estar, leva a que não se possa mais contar com os dispositivos da previdência. Se estes dispositivos eram antes considerados um direito dos cidadãos, passam a ser vistos, agora, como um ato de caridade, um tipo de instrumento que serve apenas aos incapazes. Não existe mais seguro coletivo contra os riscos, pois a tarefa de lidar com os riscos coletivamente foi deslocada, como dissemos, para o domínio do privado. Se cada indivíduo deve, sozinho, lutar pela sua sobrevivência, se não há mais órgãos coletivos encarregados da ordem geral da sociedade, é como se todos pudessem ganhar a vida por si próprios e, se não o fazem, são considerados fracos e sentem-se culpados. É como se dissessem para si mesmos: "se o poder de ser feliz está em suas mãos e você não o é, você é o grande culpado por isso".
Outro lado desta mesma moeda é o fato de não existirem mais empregos vitalícios e, desse modo, o desemprego ter se tornado um fantasma sempre presente. Isto deixa pouco espaço para planejar a vida a longo prazo, sendo o futuro um horizonte de incertezas. A insegurança e a liquidez das coisas geram imediatismo e falta de perspectiva de futuro. Basta observarmos que hoje praticamente não existe mais, no domínio de investimento de capital, a figura da poupança. Se antes os pequenos e grandes empresários acreditavam que o dinheiro devia ser poupado como uma garantia para si e para os seus herdeiros, hoje quem tem pouco prefere o gasto imediato e quem tem muito investe no risco. Em tudo isso, a mensagem é a de que o que vale é o aqui e agora, e que não se deve cogitar muito sobre o futuro. Há, assim, uma tendência global para uma radical liberdade de mercado que, associada ao desmantelamento do Estado de Bem-estar, gera uma constelação onde impera incerteza e instabilidade. Como aponta Bauman (1998), temos à nossa volta um "admirável mundo novo da desregulamentação, da privatização, da escolha do consumidor - e da incriminação dos impossibilitados a escolher" (p. 50). A cultura neoliberal baseia-se na crença em um automatismo de circulação do capital sem instâncias de regulação, o que conduz a uma concomitante descrença nas esferas do político e do Estado. Ocorre, portanto, como dissemos, um enfraquecimento da esfera do político e um aumento da privatização da vida de modo geral.
Neste sentido, a queda dos chamados Estados de Bem-estar (ou Estado da Previdência) conduz à necessidade de se pensar por onde poderá vir algum sentimento de proteção para o indivíduo, já que a assistência que derivava da vida política não vigora mais. O indivíduo é obrigado a se defrontar com uma vulnerabilidade advinda de um mundo sem amparo, pois é difícil pensar de onde este último pode vir em uma sociedade que se torna cada vez mais uma "sociedade de indivíduos", ou seja, quais seriam as formas possíveis de proteção em uma sociedade "pós-proteção", pós Estado da previdência (Castel, 1995).
Castel (1995) propõe que na atualidade vigora um "individualismo negativo", uma forma de individualização que associa a independência conquistada pelo individualismo a uma completa ausência de laços, produzindo sujeitos que se apresentam por uma total "desfiliação". O autor chama a atenção para o número crescente de "desfiliados" na cultura de hoje (Castel, 1995, p. 464).
Segundo Bauman (2001), há hoje um divórcio entre poder e política, pois se desconstituiu o lugar da política como solucionadora dos problemas dos seus cidadãos.
Quais as consequências disso para a definição do espaço público? Se há um esvaziamento deste último, associando-se a isso uma total descrença na esfera do político, vê-se como decorrência deste esvaziamento uma verdadeira invasão do espaço público pelo espaço privado. Não é mais o público que coloniza o privado. Se antes havia a ideia de que o domínio do público, particularmente o Estado, coagia, disciplinava e moralizava a vida privada, tendo aquele sempre sido visto como o que cerceava e invadia o mundo individual, agora vemos que o privado abre as suas fronteiras e adentra o público. Neste contexto, há uma relação inversa daquela que ocorria outrora: a esfera do privado coloniza e esvazia a esfera do público. Cada vez há menos lugar para aquilo que não se encaixa nos moldes dos cuidados e das iniciativas individuais. Se o sujeito é dono do próprio destino, não sobra espaço algum para aquilo que "resista a ser engolfado no eu e trabalhado com os recursos do eu" (Bauman, 2001, p. 49).
Desse modo, constata-se uma mudança no processo de individualização no que diz respeito à relação entre o público e o privado. Como vimos, o indivíduo não conta mais com o direito à cidadania, já que lhe foi subtraída a identidade de cidadão. A descrença no mundo político fez da esfera pública um território de exposição das questões privadas, lugar da confissão dos segredos e das intimidades privadas, reduzindo-se a promover o extravasamento dos instintos hedonistas do eu:
Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas (Bauman, 2001, p. 49).
O espaço público tornou-se, portanto, palco para a promoção do espetáculo que visa a dar vazão ao exibicionismo e à necessidade de exteriorização do eu.
Dessa maneira, buscamos, no presente artigo, apresentar um diagnóstico da cultura contemporânea a partir da categoria de hedonismo, pois, a partir deste último, podemos analisar o lugar conferido à dimensão da alteridade e os efeitos do desamparo na forma de o sujeito relacionar-se com o outro nos nossos dias.
3. A psicanálise e o hedonismo contemporâneo
Nossa proposta, a partir da exposição desse quadro, é analisar que lugar a teoria e a clínica psicanalítica podem ocupar diante do hedonismo contemporâneo. O eixo que escolhemos para refletir sobre a psicanálise face ao mundo atual é concebê-la como uma via de possível resistência ao anestesiamento da dor característico da pós-modernidade.
Se, como vimos, o mundo contemporâneo é regido pela negação do sofrimento, há na psicanálise, em contrapartida, o acolhimento à dor. Isso conduz, inclusive, a que a clínica psicanalítica delimite hoje uma fronteira nítida em relação à clínica psiquiátrica, marcadamente influenciada pela psiquiatria biológica.
E qual seria a importância de valorizar a dor? Nossa premissa é que o sujeito não pode ser concebido sem a dimensão da dor e da angústia. Ao diminuir o espaço concedido ao sofrimento psíquico, a cultura contemporânea faz ao mesmo tempo uma operação de aniquilamento da dimensão da subjetividade.
Em contrapartida, a clínica e a teoria psicanalítica sustentam-se a partir de uma positividade da dor, pois não somente a dor é a matéria-prima por excelência a ser trabalhada na clínica, como também é afirmada nas próprias conceituações que alicerçam a teoria.
Uma via pela qual podemos apresentar a importância da dor na psicanálise é através da noção de masoquismo. Com as elaborações acerca do masoquismo no artigo de 1924 "O problema econômico do masoquismo", Freud concebe no psiquismo a presença da pulsão de morte, indicando como não há como afastar o pólo do prazer da dimensão da dor. Se nas teorizações anteriores à formulação do segundo dualismo pulsional o prazer era concebido a partir da diminuição do desprazer, doravante a dor é elemento intrínseco ao psiquismo, a partir de uma ordem que não é mais exclusivamente regulada pelo princípio do prazer.
A figura do masoquismo primordial indica, de maneira contundente, esta direção, na medida em que o masoquismo passa a ter um lugar originário na constituição do próprio aparelho psíquico.
Para descrever o masoquismo erógeno, Freud recorre à dinâmica da economia pulsional. Nas teorizações acerca do trabalho pulsional empreendidas a partir de 1915, vemos que o retorno pulsional para a própria pessoa materializa-se no masoquismo erógeno, ligado ao eu-real originário, quando o sujeito coincide com o agradável e o mundo exterior é indiferente, isto é, quando o eu ainda não se constituiu no eu-prazer regido pelo princípio do prazer (Freud, 1915/1990a; 1920/1990b; 1924/1990c).
A expulsão inicial converte-se em dor a partir do amparo libidinizado do outro, que redireciona a energia de volta para o corpo do sujeito. Trabalhamos anteriormente de que modo a expulsão energética configura-se como dor quando o outro devolve a energia descarregada para o corpo pulsional. Na teoria freudiana, o circuito pulsional nunca descreve um indivíduo separado, envolvendo sempre a presença do outro que ampara o sujeito, não o deixando ficar indefinidamente à mercê da descarga energética.
Portanto, a presença do outro no circuito pulsional é concomitante ao aparecimento do masoquismo erógeno. Esta presença, por um lado, é apaziguadora porque não permite que a energia se descarregue indefinidamente, o que no limite levaria o sujeito à morte. Mas, por outro lado, o outro é fonte de dor na medida em que provoca aumento de tensão ao redirecionar a excitação para o sujeito. Assim, o outro é fonte de prazer ao libidinizar a energia descarregada, mandando-a de volta para o corpo do sujeito, mas provoca também dor, já que esta excitação é da ordem de um excesso que causa no sujeito um impacto traumático. A presença do outro é sempre da ordem do excesso, inserindo-se em um circuito onde há ao mesmo tempo a possibilidade do prazer e a da dor.
O masoquismo erógeno é, neste sentido, este momento de retorno sobre o eu através do suporte do outro que dá um destino, uma direção, um signo, um sinal que marca no corpo pulsional uma impressão. Assim, observamos como a subjetividade do eu-real originário se constitui através da dor. Nesta volta sobre o eu, surge a dor ao mesmo tempo em que se forma uma subjetividade originária a partir da passividade erógena frente ao outro. Observamos, então, que este destino pulsional do retorno sobre a própria pessoa é concomitante à formação de um eu originário, um eu de pura intensidade, não regulado pelo registro da representação característico do eu-prazer. Desta forma, Freud apresenta a figura do masoquismo erógeno primordial, mudando com isso o quadro conceitual anterior que dava ao sadismo um lugar originário. A partir do masoquismo primordial, o sujeito busca uma pessoa que não si próprio para fazer novamente a passagem da atividade para a passividade, surgindo aí o sadismo na figura de um sujeito ativo que causa dor no sujeito agora passivo masoquista. A partir da dor do masoquismo pode ter lugar, então, a meta sádica de infligir dor (Freud, 1915/1990a, p. 124). Só aqui podemos falar de um masoquismo secundário.
Assim, o masoquismo primordial não se constitui a partir da introjeção do sadismo, mas provém de um lugar originário que não se submete à tutela do princípio do prazer e da representação. Esta modalidade de masoquismo estaria livre das amarras da representação, apresentando-se como uma figura de intensidade na obra de Freud, pois remete à região do além do princípio do prazer. Os masoquismos moral e feminino associam-se diretamente ao registro da representação, pois são regidos pelo princípio do prazer. Estão circunscritos ao domínio fálico, seja através da culpa inerente ao masoquismo moral ou do fantasma perverso que dá sedimento ao masoquismo feminino.
Deste modo, a figura do masoquismo erógeno consiste em um momento inaugural - de pura intensidade - do sujeito, sendo no retorno pulsional sobre o eu que surge a dor concomitante ao aparecimento de um eu originário. A dor representa, então, a marca primeira de um sujeito. Esta impressão (Prägung) é cravada sob o signo da dor, através da experiência de intensidade acarretada pelo retorno pulsional sobre o eu. Esta compreensão faz do masoquismo erógeno, repetimos, um lugar de intensidade no pensamento freudiano.
Portanto, a partir do segundo dualismo pulsional a dor passa a ter o estatuto de motor da própria formação do aparelho. Este último se constitui como efeito da exigência de captura do excesso pulsional. Com a conceituação da pulsão de morte, Freud concebeu os referenciais teóricos para a elaboração do masoquismo.
Se não há uma pulsão em estado puro, mas sempre a mescla dos dois modos de pulsão em proporções variáveis, o masoquismo erógeno é o resíduo da liga de Eros com a pulsão de morte.
No ser vivo a libido enfrenta a pulsão de morte. Esta desagrega o ser vivo, levando cada organismo elementar a uma estabilidade inorgânica. A tarefa da libido é tornar inócuos os efeitos nefastos da pulsão de morte:
"a pulsão de morte atuante no interior do organismo - o sadismo primordial - é idêntica ao masoquismo. Depois que sua parte principal foi transposta para fora, sobre os objetos, no interior permanece, como seu resíduo, o genuíno masoquismo erógeno, que por uma parte tornou-se um componente da libido, mas por outra segue tendo como objeto o próprio ser. Assim, esse masoquismo seria um testemunho e uma herança da fase de formação em que ocorreu a liga, tão importante para a vida, entre Eros e pulsão de morte." (Freud, 1924/1990c, p. 170)
Portanto, para cumprir a tarefa de amortecer as forças destrutivas do ser, a libido desvia uma boa parte da pulsão de morte para os objetos do mundo exterior, com a ajuda da musculatura. Outra parte fica no interior do organismo, sendo aí "amansada" pela libido, através da mescla de Eros com a pulsão de morte - é o masoquismo erógeno, uma experiência da dor concebida a partir da co-presença do prazer e da dor.
Por permitir essa concomitância do prazer e da dor, o masoquismo, na sua forma erogeneizada, consiste, a nosso ver, uma via teórico/clínica de contraposição ao evitamento da dor promulgado pelo hedonismo contemporâneo. Obviamente que a experiência masoquista é também capturada pelo hedonismo contemporâneo, sendo a posição de servidão e humilhação frente ao outro uma das vicissitudes do nosso Mestre pós-moderno. Mas na sua complexidade o masoquismo, assim como a pulsão de morte, demonstra que a dor é inerente à própria formação do aparelho psíquico, na medida em que este se constitui a partir da necessidade de dominar o excesso pulsional mortífero.
A elaboração da dor como elemento necessário ao aparelho psíquico indica que não há como eliminá-la totalmente do psiquismo humano, delimitando dessa maneira uma diferença crucial entre a tarefa da psicanálise e certos imperativos da cultura contemporânea.
Referências
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Recebido em 28 de outubro de 2008
Aceito em 12 de janeiro de 2009
Revisado em 23 de fevereiro de 2009