Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148
RELATOS DE PESQUISA
Oficinas de contos e narrativas: produções discursivas de cuidado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
Silvia Cristine Cezimbra MoraesI; Stela Nazareth MeneghelII
IPsicóloga, Coordenadora da Saúde Mental do Município de Canela/RS, Mestre em Saúde Coletiva. End.: Av. Palace Hotel 933. Canela-RS. CEP: 95680-000. E-mail: silcezimbra@hotmail.com
IIMédica Sanitarista, Professora e Pesquisadora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, da Universidade de Santa Cruz do Sul e colaboradora do PPG de Enfermagem /UFRGS. End.: R. Santa Cecília, 1899 ap. 404, Porto Alegre-RS CEP: 90420-045. E-mail: smeneghel@hotmail.com
RESUMO
Esta pesquisa é uma intervenção psicossocial que utiliza a narrativa como referencial teórico metodológico em oficinas de histórias (narrativas e contos). O objetivo da intervenção é o de ouvir as narrativas de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e explorar novas formas de conviver com o sofrimento originado pelos transtornos mentais. As oficinas de histórias constituem uma proposta para trabalhar com o sofrimento mental, ouvindo as vozes das pessoas que o sofrem no cotidiano em um espaço de aprendizagem, respeito e escuta. Este espaço-tempo de narração permitiu a enunciação do sofrimento e questionamentos acerca do que é ser louco na nossa sociedade, já que há poucos espaços sociais onde este acontecimento pode ser explorado dialeticamente. Nas seis oficinas de contos e narrativas, "o louco" ocupou a posição do narrador, aquele que metaforiza sua história e sua loucura e pode, no espaço protegido do grupo, explorar outros papéis e outras possibilidades. Os encontros foram analisados segundo os temas produzidos pelos narradores, salientando-se os questionamentos acerca do tempo, da morte, da dor e da loucura. Os contadores de histórias compartilharam experiências e encontraram sentidos para o sofrimento, em um espaço onde a interpretação e a palavra circularam, assim como a ajuda e o cuidado.
Palavras-Chave: narrativa, loucura, oficinas de histórias, sofrimento mental, Centro de Atenção Psicossocial.
ABSTRACT
This research is a psychosocial intervention that uses the narrative as a theoretical/methodological tool in story workshops (narratives and tales). The aim of the intervention is to hear the stories of a Center of Psychosocial Care (CAPS)' users and explore new ways to live with the suffering caused by mental disorders. The story workshops are a proposal to work with mental disorder, hearing the voices of those who suffer it in the daily. The groups occur in a space of learning, respect and listening. This space-time of narration allowed the suffering announcement and questioned about what is to be crazy in our society, since there are few social spaces where this event can be explored dialectically. In the six story and narratives workshops occurred in the CAPS, "the mad" held the position of the narrator, the one that metaphor his history and his madness. In the protected space of the group, the narrator could explore other roles and possibilities. The meetings were analyzed according to themes produced by the storytellers, pointing out the questions about the time, death, pain and madness. The storytellers shared experiences and found ways to understand the suffering, in a space where the word and the interpretation were moved, as well as the help and care.
Keywords: narrative, madness, stories workshops, mental suffering, mental health services.
Introdução
A Reforma Psiquiátrica Brasileira que ocorreu nos anos 1980 foi um marco de mudança de paradigma na atenção aos portadores de sofrimento mental. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) representam um dos serviços substitutivos ao manicômio, constituindo espaço de realização das tecnologias de cuidado na rede de atenção à saúde mental do Sistema Único de Saúde (Merhy, 1997; Campos, 1991). Trinta anos após o marco inicial da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ainda continua viva a luta por um novo "lugar social" para as pessoas em sofrimento mental, ocorrendo movimentos de resignificação dos saberes e das práticas que compõem este novo campo de intervenção, atenção e cuidado (Amarante, 2007).
Um dos desafios terapêuticos dos serviços substitutivos à internação psiquiátrica está na invenção dialógica de um outro tempo de atenção à loucura. A construção de novas maneiras de cuidar do usuário em saúde mental utiliza as oficinas como um dos seus recursos. As oficinas possibilitam trabalhar com pequenos grupos, apostando na reconstrução dos laços sociais, sem perder de vista o interesse singular de cada usuário. As oficinas realizadas nos CAPS podem ir além do fazer, da ocupação do tempo e da assistência, constituindo um espaço de fazeres complexo, plural e de transversalidades de saberes (Amarante, 2007).
A voz da loucura, ao longo da história, esteve de alguma forma silenciada pelos mitos, pelas explicações religiosas, pelos muros dos leprosários, prisões e manicômios, e pela indiferença nas ruas das cidades (Foucault, 2005). O fazer cotidiano, parte da reestruturação dos serviços, permite divisar somente pedaços da vida dos loucos que atendemos todos os dias. Talvez porque conseguimos apenas vê-los e escutá-los aos pedaços, como se fossem hiatos que por vezes nos interrogam. E em geral, quando a loucura se mostra apesar das mordaças químicas, convoca-nos para a produção urgente de sentido, para a compreensão daquilo que nos escapa. Na medida em que nós, trabalhadores em saúde mental, nos deixamos tocar, percebemos que os muros não são mais os do manicômio, os muros agora são simbólicos, muros de uma escuta entrecortada - uma não escuta fragmentada, institucionalizada - que empobrece a nós e à loucura naquilo que ela tem para desafiar, entender e ensinar acerca do humano.
O cotidiano está atravessado pela narratividade ou a dimensão em que as coisas do mundo são significadas, já que as relações e as trocas se dão através da linguagem. A narrativa, em suas mais variadas construções, possibilita novas apreensões do real, a incursão subjetiva que permite ao sujeito refazer a si mesmo, ao criar ou recriar um novo tempo, um outro sentido às suas experiências mais profundas e dolorosas e às próprias fronteiras de existência.
Jerome Bruner, no texto Atos de significação, situa as narrativas como um espaço de negociação e renegociação de significados, definindo significado como um fenômeno culturalmente intermediado que depende da existência prévia de um sistema compartilhado pelos símbolos, a língua, a qual só tem sentido a partir do interpretante (Bruner, 1997).
As investigações narrativas têm um longo trajeto intelectual e compreendem a forma como nós experimentamos o mundo. Os estudos sobre narrativas incluem uma ampla gama de temas: história oral, folclore, contos, costumes, artes, adivinhações, provérbios, poemas e mitos, dentre outras elaborações. Quanto às possibilidades de análise podemos referir as aproximações estruturalistas que utilizam esquemas ao trabalhar com as histórias e as aproximações que se referem ao significado, oriundas da tradição hermenêutica (Larrosa, 1995).
Dentre as oficinas, há uma em especial voltada aos sentidos produzidos pelos sujeitos em suas trajetórias de vida, que é a oficina de histórias. É um convite à narratividade, já que no mundo da linguagem as regras de sentido são construídas pelo autor que pode metaforizar também a(s) loucura(s). Como diz Ricoeur, a linguagem não constitui um mundo ela própria, ela não é sequer um mundo. Se a linguagem não é ela mesma um mundo, ela possibilita, através das narrativas, a criação de mundos e a recriação de nós mesmos (Ricoeur, 1994). Por meio da linguagem, podemos nos livrar dos diagnósticos, dos rótulos, da exclusão e do sofrimento; podemos nos perder e nos achar diferentes.
O cotidiano terapêutico de um Centro de Atenção Psicossocial possibilita a invenção constante de novas formas de convivência e de um novo estatuto para loucura: o estatuto cidadão. As tramas narrativas - "o que está tecido com" (Abrahão, 2004) - partilhadas entre usuários e trabalhadores podem se tornar ferramentas potentes na consolidação da Reforma Psiquiátrica e de um novo modelo em saúde mental. A trama de viver o presente, recordar e esperar constitui dimensões da temporalidade onde "narrar, narrarme, ser narrado por otros, narrarnos a todos como participantes de tramas múltiples pobladas de elencos cambiantes donde el personaje constante, siempre protagonista, es el 'yo' de cada uno" (Borrat, 2000, p.43).
O campo da saúde coletiva ainda está pouco sensibilizado pela potência e possibilidades das ferramentas oriundas das ciências sociais, embora não possamos negar as condições subjetivas que fazem parte dos processos de viver, adoecer e morrer (Canguilhem, 2002)
Este estudo aborda questões relativas à produção de conhecimento ligado à práxis cotidiana e ao cuidado (Merhy, 1997) inventado por uma equipe interdisciplinar em um CAPS. As discussões da/em equipe, embora pretendam ser críticas, em muitas situações criam saberes ou situações que funcionam como verdadeiras amarras. Os laços e prisões teóricas de cada campo disciplinar que compõe a equipe circulam nas narrativas do saber 'científico' de fronteiras bem demarcadas (especificidades), e por mais que os silêncios tentem negar, por graus de hierarquia (que se disciplinam entre si).
No contexto de uma cidade de pequeno porte, em um CAPS I, que atende à população com transtornos mentais severos, esta oficina de narrativas abriu uma discussão em que o novo modelo de assistência foi problematizado a partir do coletivo. Essa reflexão focou as necessidades de cuidado do usuário, o resgate da cidadania do "louco", a reflexão crítica do portador de sofrimento mental sobre si, sua condição, seu local de tratamento e seu mundo.
Este artigo relata uma pesquisa que utiliza a narrativa em oficinas de histórias como método de intervenção psicossocial em saúde mental (Vasconcelos, 2006, 2008). A ideia das oficinas está em explorar novas formas de cuidado, fortalecendo os vínculos entre usuários e trabalhadores de saúde mental.
A pesquisa foi realizada a partir da inquietação de uma das pesquisadoras implicada na coordenação do programa de saúde mental e na luta para a implantação e efetivação dos serviços antimanicomiais. Objetiva explorar novas formas de conviver com o sofrimento originado pelos transtornos mentais a partir da voz daqueles que os vivenciam, que atravessam e são atravessados pela montagem dos serviços de atenção à saúde mental.
Construindo um método
A partir dos anos 1970 ocorreu um movimento de revalorização da narrativa, incorporando novas compreensões e incluindo a interpretação (Bauer & Gaskell, 2003). Nesse estudo exploramos o potencial terapêutico de oficinas de narrativas, por meio do uso de técnicas marcadas pela subjetividade e capazes de agenciar subjetivações. Abrir um espaço à interpretação do vivido aos portadores de transtorno mental, que supere a mera categorização diagnóstica, cria novas interlocuções entre o saber científico e o 'não saber' de sujeitos historicamente excluídos da racionalidade. Este foi o cenário do trabalho no contexto terapêutico de um CAPS, onde "narrar es experiencia cotidiana de todos, aunque no seamos concientes de ello" (Borrat, 2000, p.43).
O referencial teórico metodológico foi pautado nas narrativas enunciadas em oficinas de contadores de histórias, especificamente oficinas de contos e narrativas. O poder da narrativa situa o lugar social ocupado pelo narrador, que nas oficinas de contadores de histórias narra a si mesmo e ao mundo. O narrador existe antes e depois do seu adoecer, por meio da narrativa resgata o passado e divisa um futuro que é livre, é seu, com ou sem a doença. Dessa maneira, o sujeito não se restringe a ser portador de um transtorno mental, ele é alguém que busca seu lugar no mundo.
A narrativa forja ligações entre o excepcional e o comum, pois embora a cultura contenha um conjunto de normas, ela precisa de procedimentos interpretativos para tornar o abandono da norma possível (Bruner, 1997).
Histórias têm o poder de ensinar, conservar a memória ou alterar o passado; nelas, as vidas são como textos sujeitos à revisão, onde o autor é também o intérprete de si mesmo, o que possibilita uma aproximação à ficção no sentido da permanente reelaboração, da autoinvenção. Esse movimento proporciona ao sujeito uma nova oportunidade de se apresentar, recontar e reposicionar-se, tecendo/retecendo a intriga, sob os limites da discordância do destino, do tempo e do desconhecimento de si mesmo (Carvalho, 2003).
A produção possível do sujeito acontece através de seu contar acerca de si e do mundo, de seu mundo, na montagem de seus próprios contornos, nos espaços da fala, vazios contínuos ou refeitos; recontados a cada vez. Esta é uma aventura de pesquisa radical, pois não busca uma verdade absoluta, aliás, qual o lugar da verdade na construção narrativa que produz e é produzida pelo sujeito?
A história de vida devolve a palavra aos silenciados e aos esquecidos da história e projeta uma iluminação particular ao social, ela tira as palavras dos lugares de silêncio e rechaça um ponto de vista enquadrado em sistemas de pensamento exclusivos, redutores e totalitários (Meneghel, 2007, p.119).
No CAPS, a oficina de contos e narrativas já havia sido sinalizada há algum tempo, sendo recebida pela equipe como interessante e instigante, embora essa mesma equipe tenha questionado os benefícios da proposta. Os participantes constituíram uma amostra de usuários intencionalmente selecionada segundo a capacidade dos mesmos de entendimento, enunciação, verbalização, condições de simbolizar e de imaginar. Ao iniciar as gravações da oficina, com o consentimento dos membros do grupo, já haviam ocorrido alguns encontros, mas os contornos deste espaço estavam ainda em esboço, em experimentação, sendo constituídos a cada encontro, a cada ideia.
Esta pesquisa faz parte de um projeto maior denominado "Histórias e artes na promoção da vida" (Meneghel, 2006). O projeto foi aprovado pelo CEP/UNISINOS e cada usuário/paciente deu seu consentimento para a realização desse estudo. Tivemos o cuidado de observar qualquer alteração psíquica relacionada aos efeitos produzidos pelas oficinas de narrativas uma vez que se trata de sujeitos com transtorno mental. Assumimos o compromisso de que a qualquer sinal de desorganização psíquica interromperíamos o processo ou o usuário seria afastado. Porém, não foi necessário o afastamento de nenhum dos participantes. Ao sermos questionados quanto às condições de decidir dos usuários, nos reportamos aos direitos civis e exercício de cidadania, bandeira da luta antimanicomial, e os tratamos como sujeitos plenos de direitos.
A oficina desde o início ocorreu quinzenalmente e, para este estudo, foram utilizados seis encontros que ocorreram entre novembro de 2007 e março de 2008, contando com a participação de oito usuários. Após a compilação do material gravado este foi lido muitas vezes, num movimento de diálogo com o texto e que resultou a análise das narrativas (Iñiguez, 2006; Abrahão, 2006; Larrosa, 1995; Meneghel, 2007).
No texto, nos reportamos aos sujeitos da pesquisa de várias maneiras. Às vezes nós os chamamos de "loucos", instigados pelo caráter de denúncia que este termo conclama, posto que os diferentes nomes atribuídos à loucura tragam concepções teóricas e ideológicas diversas - diversidade característica do campo da saúde mental. Em outros momentos, conforme a conceitualização o exija, os tratamos como portadores de sofrimento mental ou usuários dos serviços substitutivos propostos pela Reforma Psiquiátrica. Alguns deles exigiram ser tratados como pacientes, do mesmo modo que as pessoas que possuem alguma doença.
Os usuários foram convidados a participar desta nova oficina que iria começar. Mostraram-se curiosos e ao mesmo tempo receosos. Muito intrigante, tinham a mesma preocupação da equipe - será que eu vou conseguir entender? Foi-lhes informado que seria uma oficina na qual leríamos um conto, fábula, texto ou história e que, a partir daí, conversaríamos livremente. Acharam vago - mas seus olhos brilharam: iriam não só participar, mas criar algo! Embora alguns manifestaram medo em fazer parte de um grupo.
A cada encontro os temas foram sendo propostos, tendo-se o cuidado de usar textos abertos que permitissem associações, metáforas e deixassem livre a imaginação. Os textos foram selecionados na leitura cotidiana, eliminando as narrativas infantilizadas e procurando assuntos desafiadores onde o outro é igual ao narrador. No percurso das oficinas, alguns se interessaram em levar textos e falaram em escrever seus próprios contos.
Os textos usados nos encontros foram: "A Ilha", de Ricardo Kelmer; "Desconhecer", de Lúcio Cortelleti; "Os três Cabelos de Ouro do Diabo", dos irmãos Grimm; "O Mito do Nascimento de Atena", um excerto do Hino Homérico a Atena; Titãs; e A Caixa de Pandora, de Marcos Antonio Filho.
Não podemos negar que testemunhar vidas tão sofridas inspira algo de trágico, remete à poética da tragédia aristotélica (Machado, 2006); talvez por isso, tenhamos usado textos da mitologia criando uma espécie de "batismo de angústia" e dando a cada participante um nome que supostamente teria algo a ver com ele/a. Foram eles: Cronos (dono do tempo), Perséfone (soberana dos mortos), Ártemis (coração da caçadora solitária), Hades (irmão de Zeus, deus dos mundos inferiores, subterrâneos), Dionísio (culto de vida e morte), Atena (guerreira que nasce da cabeça do pai), Delphos (oráculo), e finalmente uma mulher Sem nome. Ainda não sabemos se este foi seu batismo ou se ele ainda não aconteceu. Os nomes foram dados a posteriori, buscando identificar as personagens que emergiram no processo de análise das oficinas.
Contando histórias
Ao iniciar a análise, questionamos o modo de tratar os dados sem considerá-los apenas meras descrições ou relatos e, sim, entender as relações estabelecidas a partir das unidades narrativas de vidas e do compartilhamento narrativo que é construído e que também constrói as relações.
Dar voz à loucura ou ao usuário de um serviço de saúde mental pressupõe a existência de uma relação de cuidado que não é da ordem do saber/poder (Foucault, 2005). Só podemos romper com os modelos tradicionais de lidar com o louco e operar ações de cuidado se estivermos atentos às relações que estabelecemos com os usuários e dispostos a mudá-las. Nas palavras de Brizman: "la voz sugiere relaciones: la relación del individuo con el sentido de su experiencia y la relación del individuo con el otro, ya que la comprensión es un proceso social" (Larrosa, 1995, p.20).
Alguns já haviam participado de outras oficinas e perceberam que era uma proposta diferente. Havia o desejo de agenciar subjetivações, uma preocupação com a subjetividade e singularidade de cada um. Nas oficinas de contos, os participantes apontaram a liberdade no uso da palavra, enquanto que nas oficinas e grupos que ocorrem nos serviços de saúde a palavra é tutelada pelos profissionais, em uma situação contrária ao ideário da Reforma Psiquiátrica. Os CAPs envelhecem prematuramente, segmentarizam-se, sua vida torna-se cinzenta, infantilizada e os profissionais se enclausuram em diversas formas de corporativismo, diz Lancetti (2008) a esse respeito. Então, os usuários/pacientes precisam pedir para conversar, se o profissional tem um tempo para lhes dispensar e, normalmente, trata-se de queixas ou de pequenas confissões. Nos grupos, usualmente há poucos diálogos entre usuários, exceto quando se trata de algum trabalho a ser realizado em conjunto. No dia-a-dia das instituições, não percebemos o quanto o cotidiano reforça a estereotipia dos usuários, profissionais e serviços, já que funcionamos como detentores do bastão da fala e ajudamos a silenciar a loucura.
No encontro em que discutimos o conto intitulado "A Ilha" foi traçado um paralelo entre esta formação da natureza e os modos de viver a vida. O grupo se entreolhava observando as reações; havia certa expectativa quanto à compreensão de cada um. Então, aos poucos se puseram a falar, do texto, do que o texto os fazia lembrar, de momentos de suas vidas, dos familiares, filhos, casamentos, internações, prisões, de tudo.
Foi feita uma grande descoberta por todos nós. Não importava a escolaridade (a não ser para a leitura), o texto servia de base para interações verbais, interpretações e invenção de novos sentidos. A partir daí, os textos se sucederam abordando questões existenciais. Alguns tiveram grande impacto nas discussões, outros simplesmente foram quase esquecidos e a conversa tomou outros rumos. Finalizávamos os encontros muitas vezes sem respostas ou com mais perguntas sobre as questões colocadas, embora sem o compromisso de respondê-las.
A loucura e a experiência de ser e/ou viver como louco por vezes foi pano de fundo, outras entrava em cena como a protagonista que exercia poder sobre a vida de cada um, como o bonequeiro que dá movimento e voz ao seu boneco. Mas que ente é este, a loucura, "que nos arrebata e transfigura?" Sou louco? Fico louco? Estou louco? Em cada história mantinha-se uma razão, não a razão social, mas a razão do sofrimento genuíno de desconhecer a si próprio. As crises narradas surgiam como um grito desesperado de expressão do sofrimento. Não só o sofrimento de estar louco, mas o sofrimento de ser desconsiderado, desamado, desrespeitado, discriminado, de ter a existência pontuada com toda a sorte de prejuízos. Sofrimento acarretado pela supressão de direitos e pela integridade esfacelada. Como viver então? E mais, como ser feliz?
Tempo dos vivos e tempo dos mortos
Os relatos de doenças físicas, de dolorosas marcas e destinos pré-determinados permearam as narrações de terror de cada um. A forma de narrar, o constante retorno ao tema, sugere que há uma necessidade subjetiva partilhada, que permanece paralisada na repetição, no tempo imobilizado. Quase como contar histórias fantásticas, mas estas são reais, portanto ainda mais fantásticas.
O tempo aparece como um eixo estruturador das narrativas de vidas, articulando passado, presente e futuro, razão e desrazão. Os sujeitos narram as tentativas de suicídio, o uso da medicação que não faz dormir - tempo de estar acordado. O paciente/contador de histórias e louco que chamamos Cronos perde seu relógio, perde muitas coisas, mas passado algum tempo nos traz a notícia: - Surpresa! Achei o relógio. Já o dava por perdido, não era mais o dono do tempo; mas encontra-o e se apossa novamente do controle, do autocontrole e deixa de querer morrer, ao menos por um tempo.
Cronos levava uma vida normal, trabalhou, constituiu família, teve filhos. Não consegue entender o que aconteceu, mas tudo mudou. Não trabalha mais, tem dias que nem mais anda, isola-se em casa. Inicialmente resistiu em participar da oficina, hoje diz que é um dos momentos em que não precisa se esconder. Levou-nos um texto: O Poder da Tristeza, focado no sofrimento que pode gerar criações artísticas, literárias e do modismo das doenças mentais que enriquece o mercado farmacêutico mundial.
O mundo exibido por qualquer narrativa é sempre temporal e o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo (Ferreira & Grossi, 2004). Os vários tempos, cronológicos, lógicos, verbais, engendram a referência do ser: Eu não sou mais [...] não sei o nome do que sou (Cronos); Sou melhor que eu mesmo, sou que nem camaleão (Hades); Sou jovem [...] tenho muitas coisas a fazer (Perséfone). Dizemos o que somos, quem somos, nem sempre na primeira pessoa, mas a palavra dita acerca do ser presentifica uma existência única, uma forma de sentir, e as implicações que aí existem, jogando com a cadeia de acontecimentos temporais que constroem a vida individual e social (Bauer & Gaskell, 2003).
O momento da enunciação, mais que o enunciado em si, opera como reatualizador e reelaborador de sentido, da tecitura do contexto individual e social (Santamarina & Marinas, 1994). Perséfone usou muita droga e gerou muitas filhas, acontecimentos que nos parecem incompatíveis entre si. Sua mãe, quando viva, sempre a ajudou a cuidar das meninas. Elas já viveram em abrigo, hoje estão de volta sob seus cuidados. Agora, Perséfone não consegue ir onde está sua mãe morta. Evita e sofre, explica que não é descaso, é falta de coragem. Pede-nos ajuda para que a acompanhemos ao cemitério. Nós também tememos este lugar. É um convite ao mundo subterrâneo das perdas, lástimas, culpas, daquilo que é irrecuperável. O lugar da imobilidade - onde o tempo pára.
A oficina se prolonga em uma visita ao cemitério. Após um ano ela saúda a mãe morta. Encontra outros mortos conhecidos e se dá conta que a mãe não está sozinha. A relação de confiança e força que o grupo inspira está baseada nas trocas que ali se estabelecem. Todos falam e nada é desvalorizado ou impróprio. Descobrimos que criamos máscaras para a própria loucura, pois há uma loucura aceitável e uma loucura execrável. Cada um esconde em si esta segunda: não queremos ser mal interpretados, temidos, internados, afirma Ártemis em uma referência à família, mas também à equipe.
Este espaço-tempo de narração liberta os demônios, pois é na medida em que os conhecemos e lhes damos vida e voz que deixam de ser temidos.
O louco interpela o pastor e rende o diabo enquanto o corpo padece
Dionísio foi menino de rua em Porto Alegre, talvez dos primeiros. Sua mãe era prostituta e ele logo aprendeu a se virar na cidade grande. Constituiu família, teve uma filha, e agora vive no limiar do ilícito, tramando coisas, trocas mirabolantes, criando teorias para explicar o que lhe acontece. Sou um personagem de mim mesmo, sou um copiador, ele nos diz. Revela ao grupo através de uma história que sabe enganar tão bem, que a equipe do CAPS acreditou nele: Pensou que eu estivesse bem e não me ajudaram.
O valor da palavra está intimamente ligado ao lugar do enunciador. O Pastor detém o lugar da verdade, o Louco o da insensatez. E o Diabo? Pergunta Dionísio. Dionísio constrói metáforas que narram sua história e nos conta o questionamento feito a um pastor evangélico que exorcizava o demônio do corpo e da cabeça dos fiéis. Dionísio disse ao pastor que, ou ele estava enganado ou tinha um problema de entendimento, pois um inimigo mais fraco (o diabo) não poderia entrar na casa do mais forte (deus) para desafiá-lo. Portanto, continuou argumentando, se estavam na casa de deus (o templo), o diabo não podia entrar nela, mesmo que fosse escondido no corpo ou na cabeça de Dionísio. Desta forma ele - o louco - interpelou o pastor e rendeu o diabo, desmascarando a inocuidade do exorcismo apregoado pelo Pastor.
Os discursos socialmente aceitos ordenam que sejamos normais, agindo de acordo com o regime estabelecido de verdades, mesmo que essas verdades sejam insensatas. "Cada sociedad tiene, en términos de Foucault, su régimen de verdad, esto es, los tipos de discurso que acepta y hace funcionar como tal, los mecanismos e instancias que nos ayudan a distinguir entre lo verdadero y lo falso" (Iñiguez, 2006, p.20). A lucidez de Dionísio em desmontar as verdades socialmente aceitas desperta naqueles que o atendem um rechaço semelhante ao demonstrado pelo pastor. A oficina de narrativas foi seu último refúgio. A verdade da loucura desnuda a insensatez da montagem sociocultural que, segundo Foucault, "conecta los conceptos de 'saber' y 'poder': el saber asume, combinado con el poder, la autoridad de la verdad" (Iñiguez, 2006, p.21).
As narrativas revividas e metaforizadas pelos loucos assumem, no espaço de construção de histórias, um poder contra-hegemônico expresso nas verdades enunciadas pelo narrador, àquele que narra a dor. Verdades que questionam o instituído enquanto poder absoluto e que apontam os equívocos de sujeitos normais detentores do saber, que não admitem ser interpelados por um louco.
O grupo expressa sua habilidade diagnóstica e conhecimento dos sintomas e prescreve cuidados. Como suportar esta rebeldia do corpo que não funciona bem se a cabeça não ajuda? Mas para as dores do corpo, o remédio é melhor se o médico acerta. Criticam o sistema de saúde que não atua como deveria e denunciam os maus-tratos, o mau atendimento na farmácia, nas unidades, nos hospitais. Será que é por que somos loucos? Contam da falta de amor e de tempo das equipes de saúde, do excesso de especialização e burocracia. Mas há partes deste sistema em que acreditam, precisam acreditar, o CAPS é uma delas, embora apontem que ali também há profissionais que amam o que fazem e outros que apenas fazem.
Cronos: Perguntei se gente doente merecia ser feito de bobo, vim aqui várias vezes e não tive resposta.
Perséfone: Quem vai para um atendimento de saúde não tem que estar preparado para ser agredido, mas tem que estar preparado para entender um que desce do salto. Se tu chega com uma grande dor, tem alguém lá que pode te ajudar, mas aí te barram, é claro que tu vai descer do salto.
Delphos diz ter sido roubado pelo governo, que ficou com seus milhões e se vê estreito em viver com um salário mínimo: Isto não é vida! É esmola. Não bastasse o tempo em que ficou preso no Instituto Psiquiátrico Forense, hoje ele tenta reaver seus milhões em peregrinações pelas delegacias de polícia e juizados. Delphos é quase uma aparição na oficina. De repente, lá está ele; de repente, lá vai ele, mas é sempre acolhida e brindada sua aparição. Fala pouco e com dificuldade, mas não deixa de contar suas histórias.
Certo dia, ao chegar ao CAPS, encontro Delphos com três chapéus na cabeça. Sorri com sua boca de poucos dentes. Pergunto:
Pesquisadora: - Querias ter três cabeças?
Delphos: - Mas eu tenho, a minha é tua e a tua é minha, é nossa.
Surpreendo-me com esta declaração que sugere um compartilhamento muito intenso: o de ideias. Delphos oferece seus pensamentos e se apropria dos meus, sem medo, sorrindo. Logo a seguir diz: Se tu precisar pode deixar que eu te seguro. Percebo que quando não nos protegemos e permitimos uma ruptura nas hierarquias de poder, começamos a tecer relações mais igualitárias entre loucos e trabalhadores de saúde.
Lembrar, esquecer, narrar
A relação dos seres humanos com o passado está marcada pela tarefa de ativar o processo da memória, voltando a vidas que já morreram por meio de nossas próprias vidas. A memória se estende sobre o vazio do esquecimento e a historiografia é a técnica que se dedica a dissipar o esquecimento e cultivar a memória (Buttafuoco, 1990). Paradoxalmente, uma das funções da memória é esquecer, porque esquecemos mais que lembramos. Não suportaríamos lembrar de absolutamente tudo que nos aconteceu. Assim, "la memoria y el olvido están en estrecha relación con las posibilidades de memoria y olvido que contitueyen el propio orden social" (Vásquez, 2001, p.43). A possibilidade de esquecer supõe o exercício pleno da memória, embora as lembranças sejam preciosas e constituam marcas, cicatrizes da existência. A loucura tem memória curta, embora a quantidade de química ingerida deva estar auxiliando a esquecer. Não lembrar é estar num vazio, perdido, desorientado, embora este estado seja aceito como algo comum à loucura. Então, ouvimos narrativas que recuperaram memórias perdidas, através da "técnica" de contar histórias:
Ártemis: Estou lembrando na medida em que conto, e lembrar do que me aconteceu de alguma forma faz com que eu me conheça melhor hoje.
Sem Nome passou anos em silêncio. Vergonha de tudo, de sua própria voz, de inspirar dúvida nos outros quanto ao seu sexo. Hoje fala, ri envergonhada, esconde o rosto. Encara como grande aventura participar desta oficina. Escreve muitas cartas. Narra um segredo: vai mudar de cidade e trabalhar.
Ocorre uma apropriação do texto da existência, do livro da vida, da loucura que passa a pertencer a um sujeito que, desse modo, deixa de ser apenas sua vítima. Ser autor e intérprete de si mesmo remete a experiência para o campo do fictício, da permanente reelaboração, da autoinvenção, tendo a narrativa o poder de ensinar, conservar a memória ou alterar o passado (Carvalho, 2003).
Hades vive atormentado com tentativas de explicar as coisas, sofre por isto. Fica ansioso, faz muitas perguntas. Ao final balança a cabeça e diz: Não sei, lamentando querer saber tanto. Sente-se incompreendido e às vezes incompreensível - imagina que sua loucura esteja aí. Participou na oficina dando vazão a suas teorias e dúvidas, compartilhando-as, experimentando os seus efeitos no coletivo. Exercitou a capacidade de deixar assuntos pendentes ou em aberto, sem explicações últimas, sem literalizar.
Em experiência similar a que realizamos um grupo de residentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro trabalhou com poesias como um dispositivo capaz de se apresentar como um espelho, refletindo a própria existência e permitindo tomar consciência da mesma (Brink, 2007).
As histórias que criamos agenciaram possibilidades como as apontadas por Spink que, baseando-se em Foucault, dizem de uma hermenêutica "em que a interpretação passa a ter o caráter de inacabado, reinventando-se a cada nova trama engendrada, redescobrindo-se em formas e conteúdos de possibilidades infinitas, onde o princípio da interpretação não é mais do que o intérprete" (Spink, 2004, p.100).
Histórias finais - cada um carrega o seu deserto
Parafraseando Álvaro Moreyra, poderíamos dizer que cada um carrega o seu deserto. O mergulho na pesquisa como ator é de uma riqueza à prova da razão mais perspicaz e do sentimento mais arrebatador. Muitas descobertas, viagens, sensações, umas próprias, outras compartilhadas e uma contradição: isto é ciência? Pergunta sem resposta frente a esta ciência de mercado, de produtividade, de interesse econômico e publicitário. É difícil e árduo operar esta operação de estar dentro e fora ao mesmo tempo. É preciso atravessar o deserto. É preciso tempo e distância para ser a pesquisadora que analisa, e que analisa a si mesma também (Silva, 2007), reconstruindo-se no movimento de narrar e narrar-se.
Embora os trabalhadores do campo psi mencionem exaustivamente categorias como "inclusão", "cidadania", "autonomia", há dificuldade em permitir a existência de algo que pretenda simplesmente existir, o que parece um contrassenso. Deixar o paciente solto e livre para seus devaneios e delírios, não será um perigo? A quem ou a quê? Era exatamente este o objetivo da oficina de contos e narrativas, produzir a existência de um espaço e um tempo em que a produção narrativa fosse livre, em que paciente/usuário e terapeuta estivessem em condições de igualdade para criar e aprender um com o outro. Utópico? Diria que apenas subversivo ao saber científico tradicional. Uma vontade de investir nos usuários, na mobilização de afetos e criação de acontecimentos singulares, na aposta em um jogo polifônico nem otimista nem pessimista, já que estamos "ao mesmo tempo, presos numa ratoeira e destinados às mais exaltantes aventuras" (Pelbart, 2008, p. 14).
Trabalhar com a dimensão do "não saber", no sentido de estar aberto à produção de um novo saber, parece um caminho possível para se abrir à dimensão do outro. Não o outro esperado, instituído, diagnosticado e sim o outro ele mesmo, como é, como se faz existir, se constrói e seu inverso. O espaço da surpresa da existência descortina novas e possíveis existências, sejam imaginárias, reais ou simbólicas. A narrativa, a linguagem, potencializa o desejo de arriscar-se a existir muito além do transtorno - rótulo sociocultural de marcas profundas e cerceadoras do autoreconhecimento e da autovalorização.
A utilização das histórias de vida, das narrações, não mais como dados clínicos ou fatores causais das patologias mentais, mas como um espaço e um tempo de valorização das subjetividades, de novas formas de existir e de cuidar, remete-nos a uma nova postura que "é mais do que um repertório de uma arte de viver e que, não se exerce, se deixa entrever ou entender a não ser na difícil e efêmera articulação entre experiência e expressão" (Abrahão, 2006, p.43).
As experiências de loucura vividas e narradas perfazem um constante interrogar: O que é isto? De onde vem? Por que acontece? A denominação loucura remete à anormalidade, é assim referida pelo conceito social que percebe os comportamentos exagerados, sem controle, sem causa, como o desatino daquele que ultrapassou o fio invisível da realidade. O rótulo da loucura joga o sujeito para um lugar perigoso, desconhecido, temível. Essa situação é experienciada pelos narradores como um evento especial, um diferenciador de sua existência. Não há espaços sociais/comunitários que permitam a exploração dialética destes acontecimentos. São silenciados, dividido o segredo entre o louco e seus cuidadores, a quem podem confessar e por quem supostamente serão entendidos.
No percurso da oficina de contos houve várias aprendizagens compartilhadas. Ocorreu um crescente interesse em escutar o outro e uma compreensão de que as coisas da vida não se fecham, não estancam, não estão prontas. Os participantes/contadores de histórias identificaram as diferenças e as semelhanças entre suas histórias, trocando experiências e inventando sentidos, fazendo circular o lugar da interpretação, assim como o da ajuda e do cuidado.
A dimensão narrativa ganha vida e liberta as histórias de cada um, desenhadas conforme o desejo que quer se expressar ali, naquele momento, trazendo do silêncio e dando vida e voz às experiências mais íntimas e loucas das personagens que nos habitam. A gente começa a sucumbir na gente mesmo um personagem, nos conta Dionísio, dizendo de mundos e sentimentos nunca falados. As personagens individuais, ao se exporem ao coletivo, circulam e se reconhecem, e a loucura que individualmente é arrasadora, no grupo ela dança, cria novos passos, é acolhida, entendida e apaziguada.
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Recebido em 02 de julho de 2009
Aceito em 27 de julho de 2009
Revisado em 15 de setembro de 2009