10 1 
Home Page  


Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148

     

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Bakhtin e a "vida dos outros"

 

 

Marina PinheiroI; Selma LeitãoII

IPsicóloga, doutoranda em Psicologia Cognitiva, pela Universidade Federal de Pernambuco. End.: R. Manoel de Carvalho, n.226, apt. 302, Aflitos. Recife-PE. Cep: 52050-370. E-mail: marinaassis.pinheiro@gmail.com
IID. Phil, Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da UFPE. End.: R. Clóvis Beviláqua, n.163, apt. 1203, Madalena. Recife, PE. Cep: 50710-330. E-mail: selma_leitao2001@yahoo.com

 

 


RESUMO

O crítico literário e filósofo Mikhail Bakhtin é nome que circula em diversas áreas na atualidade das Ciências Humanas. Um dos principais representantes do dialogismo, Bakhtin oferece-nos uma perspectiva estética ao entendimento dos processos de subjetivação, em que seria a singularidade humana um destacado pressuposto de suas reflexões. É através da leitura do filme A vida dos outros (Buena Vista Internacional, 2006; direção de Florian Henckel von Donnersmarck) como possível metáfora bakhtiniana, que se propõe o presente artigo enquanto campo de refração aos debates sobre as relações entre singularidade e autoria na produção do "si mesmo". A referida película dispõe-nos à saga que Gerd Wiesler, um exemplar agente secreto da STASI (polícia política da Alemanha Oriental), é lançado ao ser encarregado de observar a vida de um casal de artistas, suspeitos de subversão aos ideais da República Democrática Alemã. Mobilizado pela intimidade diaresca do casal, Wiesler encontra, através de sua unicidade responsiva, uma cena possível para redescrição de si. Arrebatado pela observância a que foi designado, o herói roteiriza o destino de seus observados num duelo com a alteridade inescapável de sua própria história. A vida dos outros é, assim, lugar descentrado, donde um "eu" passa a autorar seu tornar-se.

Palavras-chave: Bakhtin. Autoria. Alteridade. Singularidade. Dialogismo.


ABSTRACT

The literary critic and philosopher Mikhail Bakhtin is a name heard in various areas of present-day Human Sciences. One of the main representatives of the dialogism, Bakhtin offers us an aesthetic perspective on the understanding of the subjectivation processes, in which the human singularity would be an outstanding presupposition of his reflections. It is through the reading of the film The lives of others (Buena Vista International, 2006; directed by Florian Henckel von Donnersmarck) as a possible bakhtinian metaphor, that this paper brings forward as a refraction field to the debates on the relations between singularity and authorship in the production of the "self". The referred movie takes us to the saga which Gerd Wiesler, an exemplary STASI (East Germany political police) secret agent, is cast into when he is put in charge of observing the life of an artists couple, suspected of subversion of the German Democratic Republic´s ideals. Mobilized by the daily intimacy of the couple, Wiesler finds, through his responsive unicity, a possible scene for self-redescription. Enraptured by the observance he was assigned to, the hero writes the script of the destiny of the ones he observed in a duel with the otherness of his own history. The lives of others thus is a decentered place, from where an "I" passes to author his becoming.

Keywords: Bakhtin. Authorship. Otherness. Singularity. Dialogism.


 

 

Os três campos da cultura humana - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Mas essa relação pode tornar-se mecânica, externa. Lamentavelmente é o que acontece com maior frequência (Bakhtin, 1919/2003a, p. 2).

É submetido ao risco alertado na epígrafe supracitada, que o presente ensaio dispõe-se a abordar a delicada situação da autoria no campo das artes e da singularidade humana. Vislumbra-se em A vida dos outros - produção lançada em 2006, escrita e dirigida pelo cineasta Florian Henckel Von Donnesmarck - um contexto altamente performático aos processos de subjetivação, de acordo com o dialogismo bakhtiniano. Neste filme, somos atravessados pelo enternecimento e pela descentração a que Gerd Wiesler, protagonista, é lançado ao ser encarregado de observar a vida de um casal de artistas, na Alemanha Oriental, suspeitos de subversão aos ideais patrióticos comunistas, em 1984. Da posição de um aparente 'contêiner' monológico do sistema, Wiesler (um agente da polícia política da época, a STASI) desloca-se a um incontornável arrebatamento 'voyeurístico' por via das tensões discursivas, das ambivalências ideológicas, da condição trágica experimentada pelos objetos de seu escuta.

A premissa básica que percorrerá a presente leitura posiciona o personagem central não como aquele que encontraria no Outro o reflexo passivo e idêntico a si mesmo; assim como não seria Wiesler, em direção contrária, tábula rasa formada de pura impressão do discurso alheio. O que marca a obra posta aqui em discussão dá-se na exibição cinzenta da solidão de um herói que se inventa entre a culpa e a responsabilidade por suas ações. Os outros, nesta narrativa, prefiguram os possíveis efeitos autorais do confronto com o estranho, com o não-eu-em-mim (Clark e Holquist, 2004).

O argumento apresentado neste texto tenta escapar de quaisquer aplicativismos teóricos à produção cinematográfica. Isto seria a mais radical destituição do valor interpretativo deste trabalho, mantenedora das cisões epistêmicas (tais como "mundo da vida e mundo das artes", "conhecimento teórico e conhecimento prático") a que tanto Bakhtin buscava superar na unidade responsável das ações. O pretendido, no presente artigo, é a reflexão sobre a trajetória do herói de A vida dos outros como metáfora bakhtiniana. Na construção deste argumento, busca-se ficcionar sobre a dinâmica envolvida nas relações entre singularidade, autoria e alteridade com base na saga do agente secreto alemão. Na reinvenção da narrativa de si, autorada pelo herói a partir dos atravessamentos estéticos experimentados na relação com "os outros", podemos acompanhar a força performativa que a relação eu-tu produz na emergência da autoria e seus inevitáveis entrelaçamentos éticos.

Pode-se reconhecer na escrita bakhtiniana a tessitura de um discurso que concebe o ato criativo como um permanente processo co-autoral e, ao mesmo tempo, produzido por um sujeito marcado por uma inescapável singularidade. Em outras palavras, aquele que se enuncia na primeira pessoa, aquele que coloca em toda produção o traço da sua estilística singular, apenas existe na tensa relação com tudo que é Outro, não-eu, portanto. Recorremos à epígrafe de Bernard Berenson em A paixão segundo G.H. como forma de aproximação ao pressuposto ontológico do dialogismo: "A vida em sua inteireza pode ser aquela finalizada em tal identificação com o não-self, que existirá nenhum self para morrer" (apud. Lispector, 1986).

De acordo com a perspectiva bakhtiniana, nunca estamos sozinhos frente ao espelho. O Outro participaria da atividade de auto-contemplação em termos de uma "necessidade estética absoluta" (Bakhtin, 1923/2003b, p.33). Esta expressão não emerge no texto por acaso, a dita "necessidade absoluta" parece resgatar a dimensão fundante da alteridade, uma vez que o Outro seria a única instância capaz de ver, reunir, unificar um "eu" que em si, não é, porém torna-se - desde seus mais remotos tempos - através do olhar alheio. Seria sempre através dos olhos do mundo que a imagem de "si mesmo", internamente vivenciada como descontínua, não unitária e de temporalidade não-cronológica, é passível de ser reconhecida (Faraco, 2003).

Parece-nos que o dialogismo bakhtininano provoca especial eficácia discursiva ao problema da contingência da individualidade formulada por Rorty:

Veremos que a necessidade consciente de o poeta forte demonstrar que não é uma cópia ou réplica é apenas uma forma especial de uma necessidade inconsciente que todo ser humano tem: a necessidade de se haver com a marca cega que o acaso lhe deu, de construir um eu para si, redescrevendo essa marca em termos que, mesmo marginalmente, sejam seus (2007, p.88, grifo do autor).

Como descrever os modos de autoração da existência, para um sujeito cuja condição é a de alienação à voz, ao discurso, do Outro? Esta parece ser uma questão que ressoa em diversas perspectivas, como a psicanálise, a filosofia neo-pragmatista de Rorty, a fenomenologia-existencial de Heidegger, a escrita bakhtiniana. A partir de uma incursão dialógica no cenário do filme, problematizaremos como o protagonista autora a tragicidade de sua história. De que forma o arrebatamento de Gerd Weisler - que o tornou quase uma sombra da vida alheia - pode participar da reconstrução da escrita de si? São questões como estas que o presente artigo pretende abordar.

 

Notas sobre os sentidos de singularidade, unicidade e processos de subjetivação em Bakhtin

Nesta seção, pretende-se promover uma breve discussão sobre os marcadores conceituais que instrumentalizam a interpretação proposta neste ensaio. Afirma-se de antemão, que o inevitável recorte da abordagem bakhtiniana firmou-se na órbita do enredamento conceitual que circunda a problemática dos processos de singularização da subjetividade. Este tema é objeto da pesquisa da primeira autora e que, assim, impôs-se como posição por onde a leitura de Bakhtin ocorre.

Pressupõe-se que a singularidade é tomada como aspecto sensível, em sua difícil apreensão, pelos discursos da ciência. Não existe uma teoria da singularidade, uma vez que esta apenas consiste naquilo que escapa e emerge como resto não-analisável das regularidades desenhadas, como por exemplo, numa curva normal, ou ainda, na generalização constitutiva do fazer científico. Entretanto, só é possível falar do singular em relação ao que se configura como geral/ universal dos fenômenos. Foi, portanto, a partir dessa fundamental relação dialógica envolvida na questão da singularidade que se tornou necessário um encontro com o texto bakhtiniano. Não foi só por esta via, entretanto, que se deu tal encontro. No universo das artes, a singularidade perfaz-se no lugar de critério para validação do artístico, e também, de condição da potência criativa do artista. Bakhtin, enquanto crítico literário, não deixou de lado esse fundamental aspecto em suas reflexões sobre a atividade estética, configurando, assim, uma escrita das mais atentas ao singular; à unicidade das enunciações, a linguagem que ganha vida no ínterim entre o código, a letra, a entonação única de cada enunciação, a arena de vozes.

As artes e o processo de autoração configuram-se, assim, como universo extremamente poroso e próprio à reflexão da singularidade. Esta noção deve ser concebida, para fins de entendimento da presente escrita, não enquanto o estudo das diferenças individuais, como é o caso nas ciências descritivas e catalográficas, tais como a botânica e a psiquiatria. Neste ensaio, a singularidade é pensada enquanto efeito das relações intersubjetivas, donde a unicidade do ser dá-se por um movimento de infindáveis diferenciações e espelhamentos, num permanente jogo de subversão para com as referências histórico-discursivas, para tudo aquilo que se torna constitutivamente alteritário.

Isto não é de modo algum novo no que o termo singularidade pode aludir, de modo lato, ao leitor. Entretanto, é nos modos como Bakhtin dota de consistência conceitual a proposição supracitada que o autor efetivamente apresenta uma contribuição fundamental ao problema. Abordaremos a referida questão à luz de dois textos que marcadamente nos oferecem uma contribuição à questão levantada. São eles: Para uma filosofia do ato (s.d) e Problemas da poética de Dostoiévski (1963/1981).

 

A unicidade em "Para uma filosofia do ato": contribuições bakhtinianas sobre o tema da singularidade

Seria talvez impróprio reconhecer em 'Para uma filosofia do ato' a escrita, por assim dizer, de teor mais "psicológico" que podemos encontrar em Bakhtin. Apontada como um dos textos mais germinais da escrita bakhtiniana (Faraco, 2003), esta obra apresenta noções fundamentais e que percorrem todos os posteriores escritos do filósofo russo. Psicológico, filosófico, ou ético, o que nos importa é a força hermenêutica que as noções ali prefiguram sobre questões ontológicas do ser; em especial, aquelas que respondem, de modo único, ao problema da singularidade. Aliás, a unicidade é o tema de mais intenso efeito neste trabalho, donde decorre uma série de consequências acerca da responsabilidade e dos modos de ser. Preocupado com as dicotomias estabelecidas pela teorização, tais como, "mundo da cognição teórica e mundo da vida", "pensamento e realidade única e concreta"; Bakhtin problematiza a restauração dessas dualidades na unicidade responsável das ações.

Historicamente, o Ser único real é maior e mais pesado que o Ser unitário da ciência teórica, mas essa diferença em peso, que é autoevidente para uma consciência viva que a autoexperimente, não pode ser determinada em categorias teóricas (Bakhtin, s.d, p.26).

Seria, assim, a partir do alheamento ético-histórico estabelecido a partir das ciências modernas (século XIX e XX), que o autor denuncia e deflagra sua narrativa sobre a impossibilidade da abstração configurada em disciplinas do saber, em dar conta da vida da ação, da vida viva. A tecnologia é posta enquanto exemplo de um saber que em sua autonomia de leis internas e de desenvolvimento "impetuoso, infreável" (ibid., p.25) se esquiva de sua maior tarefa, a saber, a de acompanhar seu desenvolvimento na cultura e aquilo que ela se prestaria, sendo utilizada muitas vezes "antes ao mal que ao bem" (ibid.). Em suas palavras: "[o Ser teórico] não pode oferecer nenhum critério para a vida prática, a vida da ação, porque ele não é o Ser no qual eu vivo, e, se ele fosse o único Ser, eu não existiria" (ibid., p.27, grifos do autor). E não existiria, uma vez que, seria através do Ser evento único, temporalmente determinado, que as verdades das ciências respondem, se alimentam e consistem como fato da existência. O propósito bakhtiniano seria, necessariamente, o da retomada da unicidade inescapável do que existe no mundo, enquanto algo indissolúvel da eventicidade da existência, do Ser, portanto. Assim, neste pensamento, o ato teórico deveria encontrar-se incluído como ação real da vida do Ser - numa relação de necessidade moral e responsável. A razão teórica faria parte, como apenas um de seus momentos, da razão prática da vida, marcada pela unicidade das ações, participativas, afetivo-volitivas, singulares e concretas do mundo.

A dita "estetização da vida", ou ainda, "a vida-em-processo-de-devir" faria parte do "sujeito portador do ato de visão" (ibid., p.31), sendo o objeto estético uma parcialidade, uma produção, que marcaria a incompletude humana. Parcialidade porque este ato de visão não pode ver tudo, é limitado pela posição corpórea, espaço-temporal, daquele que contempla. Em suas palavras:

A tentativa de encontrar-se a si mesmo no produto do ato-ação da visão estética é uma tentativa de lançar-se no não-Ser, uma tentativa de abandonar tanto minha auto-atividade do meu lugar próprio e único situado do lado de fora de qualquer ser estético, quanto sua plena realização enquanto Ser-evento. O ato realizado da visão estética se eleva acima de qualquer ser estético - um produto deste ato - e é parte de um mundo diferente: ele entra na unidade real do Ser-evento, incorporando no Ser também o mundo estético, como um momento constituinte. A pura empatia seria, de fato, uma queda do ato-ação em seu próprio produto, e isso, é claro, é impossível (ibid.,p.34).

Nesta citação, Bakhtin enfatiza o impossível da transposição/anulação da lei da localização do Ser. Isto significa dizer que seria da ordem da radical impossibilidade do olhar descolar-se da posição única que o contemplador assume no mundo (no instante real e concreto de ver) - numa fantasiosa busca de neutralidade extra-mundana/sobre-humana - que o produto do ato de visão dar-se-ia.

Numa de suas escritas posteriores, o filósofo, em O autor e a personagem na atividade estética (1923/2003b), problematiza a contemplação da própria vida do autor na construção de uma escrita autobiográfica. Para abarcar este problema, à luz da indissolúvel unicidade pela qual nos é possível experienciar e criar o mundo com suas alteridades, Bakhtin lança mão de noções como transgrediência e excedente de visão. Assim o filósofo caracteriza o princípio fenomenológico destes termos:

(...) essa posição singular, a única de onde se pode perceber o todo da personagem e o mundo como algo que de fora o guarnece, restringe e acentua, fora da personagem não é atingida de modo convincente e sólido pela visão do autor em toda a sua plenitude e daí, resulta, aliás, a seguinte peculiaridade do todo artístico característica desse caso: o fundo, o mundo às costas da personagem não foi elaborado nem é percebido nitidamente pelo autor-contemplador, e é dado supostamente, de modo incerto, de dentro da própria personagem, assim como é dado a nós mesmos o fundo de nossa vida (op.Cit. p.17).

Conforme veremos mais adiante, neste artigo, na saga do protagonista da "Vida dos Outros" o dito "fundo da nossa vida", o que fica às nossas costas, é suposto, imaginado, ou ainda criado, a partir da unicidade do ato de visão; num exercício de pretensa exotopia. Um deslocamento operado na posição do sujeito, para a qual este se projeta sobre o olhar de um Outro imaginário, uma alteridade indeterminada, mas que se prestaria a apreender a dimensão transgrediente do ângulo de visão da consciência do autor. Buscando tornar-se um outro em relação a si mesmo (eu-para-os-outros), tenta-se espreitar os pontos-cegos, o desconhecido; a refração projetiva do que nos escapa e, por isso mesmo, é dotado do mais intenso valor.

A estilística existencial, ou ainda, a estetização da vida seria fortemente marcada pelo movimento de inatingível captura do que nos ultrapassa, nos excede através do olhar do estranho que nos habita. Para Clark e Holquist (2004), "self, [é] uma atividade que nunca posso completar. De modo que o self tem de ser pensado como um projeto" (p.97).

O objeto estético sempre traria a marca daquele que o produz em sua ação contemplativa, assim como seria desta condição que desliza a responsabilidade do contemplador sobre aquilo que vê. Para o referido filósofo, compreender um objeto é, sobretudo, compreender o dever do sujeito-contemplador em relação a ele, compreendê-lo em relação à unicidade do meu Ser-evento. Este é um dos princípios que regem a dimensão trágica de A vida dos outros (a ser discutida, mais à frente neste artigo) assim como, de modo mais amplo, a própria formação humana.

Se entendermos que nesta perspectiva a ação é sempre resposta - uma responsividade natural e própria do Ser que vive e existe a partir de um infindável campo de contingências - perceberemos que o "eu" não adquire consistência "em si mesmo", fora de um ethos, de uma ambiência. É como um contínuo de responsividades particulares a um meio que seria da mais intensa transitoriedade (física, temporal, histórica, discursiva, organísmica...) que nos tornamos sujeitos plenos de vida. Conforme propõem Clark e Holquist (2004), o self seria "uma dádiva do outro" (p. 93). A dádiva não deve, entretanto, ser significada como algo passivamente recebido, mas como evento vividamente participado.

Tudo o que tenha a ver comigo me é dado em um tom emocional-volitivo, porque tudo é dado a mim como um momento constituinte do evento do qual eu estou participando. Se eu penso em um objeto, eu entro numa relação com ele que tem o caráter de um evento em processo. Em sua correlação comigo, um objeto é inseparável de sua função no processo (Bakhtin, 1923/2003b, p.51).

Neste sentido, participar implica a inevitável responsividade pró-ativa do Ser naquilo que ele experimenta como dado. O Ser, que se constitui entre o lócus único de sua responsividade vital e o ambiente alteritário (natural e cultural) do qual faz parte, autora através da sensibilidade pela qual apreende o Outro, sua ação criativa. O tom emocional-volitivo, no texto bakhtiniano, parece aludir à realidade encarnada, entoada nas palavras enunciadas pela 'outridade'. Isto performatizaria tudo aquilo que excede e ao mesmo tempo torna-se indissolúvel do universo semântico através do qual existimos. No que se refere à pró-atividade do vivido, Bakhtin, todavia adverte:

(...) eu posso ignorar minha auto-atividade e viver apenas pela minha passividade. Eu posso tentar provar meu álibi no Ser, eu posso pretender ser alguém que não sou. Eu posso abdicar da minha obrigatória (dever ser) unicidade. Um ato ou ação responsável é precisamente aquele ato realizado sob a base de um reconhecimento de minha obrigatória (dever-ser) unicidade. É essa a afirmação do meu não-álibi no Ser que constitui a base da minha vida sendo tanto real e necessariamente dada como também sendo real e projetada como algo-ainda-por-ser-alcançado. É apenas o meu não-álibi no Ser que transforma uma possibilidade vazia em um ato ou ação responsável e real (s.d, p.60, grifos do autor).

O não álibi no Ser parece realçar a dimensão ética das proposições bakhtinianas. Esta noção central ao texto reitera a preocupação sobre os efeitos da ação criativa implicando, na filosofia moral de Bakhtin, a consequência inescapável da unicidade da existência. O 'algo-ainda-por-ser-alcançado' deflagraria o permanente porvindouro das ações, num movimento de tensão ante a responsabilidade e a constante invenção de si (Bakhtin, 1923/2003b). Deste modo, o filósofo também tenta diluir qualquer entendimento do Ser como unidade, individualidade, centro ou núcleo egóico. O Ser, movido e constituído através de infinitas alteridades, não seria encontrável por ele mesmo. Em suas palavras: "O fato de minha participação única e insubstituível no Ser é entrar no Ser precisamente onde ele não coincide com ele mesmo: entrar no evento em processo do Ser" (ibid.,p.60).

É notório que o presente artigo apenas recorta uma fração dos infinitos cenários filosóficos que podemos encontrar na leitura de Para uma filosofia do ato. Salienta-se que no contexto desta obra, a linguagem não é colocada como um foco primeiro das reflexões. O aspecto ético-fenomenológico, conforme foi aqui apresentado, configura o propósito desta escrita. Entretanto, Bakhtin, que tanto problematizou em textos posteriores a linguagem, lança no referido texto as bases de sua concepção sobre o discurso, ou ainda, sobre as vozes, que perfazem o devir da subjetividade.

Podemos, por ora, apreender que a linguagem é pensada de modo inseparável do sujeito que a experimenta enquanto ação. Apesar de não desconsiderar a importância da linguística, para a qual a linguagem é investigada como objeto autônomo (com leis próprias) em relação ao sujeito, Bakhtin enfatiza a complementaridade que a atenção aos processos de enunciação pode oferecer à compreensão da linguagem enquanto unidade experimentada na vida de ação.

(...) a linguagem aparece já apresentada como atividade (e não como sistema) e o enunciado como um ato singular, irrepetível, concretamente situado e emergindo de uma atitude ativamente responsiva, isto é, uma atitude valorativa em relação a um determinado estado-de-coisas (Faraco, 2003, p.24).

Deste modo, antecipando o que pode ser apreendido na sessão seguinte do presente artigo, a linguagem é enquadrada como amálgama indissolúvel da alteridade constitutiva do Ser. Para o filósofo, seriam as vozes do Outro, enquanto uma formação discursiva marcada pela contingência sócio-histórica, o componente central da subjetividade dialógica por ele argumentada.

 

A subjetividade do autor como questão: considerações sobre a polifonia em Dostoiévski

Em Problemas da Poética de Dostoiévski (1963/1981), a questão da linguagem torna-se dimensão destacada em relação ao plano ontológico. A emergência da palavra viva, isto é, da palavra tornada discurso enunciado pelo sujeito, apresenta-se como um dos temas centrais daquele trabalho. Uma extensa gama conceitual é construída a partir da literatura, e, assim, no argumento em defesa da riqueza polifônica do romance em Dostoiévski, da "não uniformidade" (ibid., p.158) da linguagem, Bakhtin destaca o ângulo estritamente dialógico por onde a escrita dostoiveskiana se constrói. Afirma o autor:

A idéia, como considerava o Dostoiévski-artista, não é uma formação psicológica individual subjetiva com "sede permanente" na cabeça do homem; não, a idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante à palavra, com a qual forma uma unidade dialética. Como a palavra, a idéia quer ser ouvida, entendida e "respondida" por outras vozes e de outras posições. Como a palavra, a idéia é por natureza dialógica (grifos do autor, p.73).

O elogio de Bakhtin à obra de Dostoiévski perpassa, assim, pela natureza de sua escrita. Natureza esta para a qual a idéia1 e as palavras não existem sem a idéia e a palavra dos outros. Elas apenas ganhariam vida em relação a outras, um jogo de "interânima". O sopro de vida delas emerge na relação, com outras vozes, com outras consciências. A morte da idéia aconteceria quando esta se isola na consciência de um homem. "Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as idéias dos outros é que a idéia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão verbal, a gerar novas idéias" (ibid., grifo do autor).

Os signos, para o Círculo de Bakhtin, refratam o mundo uma vez que o processo de significação não é dado como num glossário transcendental ou gramática de regras fixas e atemporais. Muito pelo contrário, o processo de significação, enquanto ação humana, seria uma construção dinamizada pela história de um povo, pela experiência dos falantes, pela unicidade do enunciador, pelas infinitas vozes sociais através das quais atribuímos sentindo ao mundo. "Em outras palavras, a refração é o modo como se inscrevem nos signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos humanos" (Faraco, 2003, p.50). Todo dizer seria, assim, uma resposta a um já dito de nosso universo discursivo; uma expectativa réplica de um destinatário (uma outridade constitutiva); uma heterogeneidade de natureza dialógica dadas as infinitas vozes histórico-culturais, as infinitas alteridades que se confrontam e se atualizam (ato) no enunciado do sujeito.

Enquanto artista, Dostoiévski não criava as suas palavras do mesmo modo como criam os filósofos ou cientistas, ele criava imagens vivas de idéias auscultadas, encontradas por ele na própria realidade.

(...) auscultava a sua época como um grande diálogo, de captar nelas não só vozes isoladas mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas. Ele auscultava também as vozes dominantes, principais (oficiais e não oficiais), bem como vozes ainda fracas, idéias ainda não inteiramente manifestas, idéias latentes ainda não auscultadas por ninguém exceto por ele e idéias que apenas começavam a amadurecer, embriões de futuras concepções do mundo (Bakhtin, 1963/1981, p.75).

O fascínio de Bakhtin por estas características da escrita de Dostoiévski estampava sua refração sobre a magnitude dessa literatura. Em sua leitura da obra, Bakhtin reconhecia a encenação da mais plena potência dialógica que um texto poderia ter. A tão discutida noção de polifonia é tomada no texto como atributo gerado no romance de Dostoiévski. Como pode ser inferido na citação acima, o traço distintivo de uma construção polifônica não ocorreria como expressão de muitas vozes (o que seria um pressuposto básico da consciência), mas como universo em que a multiplicidade de vozes assume a mesma força/poder (são equipolentes), como numa radical e utópica democracia em que consciências independentes e intransponíveis coexistem num infindável diálogo.

É no cenário desta discussão que podemos nos aproximar da questão da carnavalização da literatura. Nesta graciosa alegoria vislumbrada por Bakhtin, o carnaval "esta vida desviada de sua ordem habitual, em certo sentido uma "vida às avessas", um "mundo invertido" (ibid., p.105, grifos do autor) é transposto como metáfora das forças subversivas - de desterritorialização dos discursos autoritários (de traço monológico) - impulsionadoras da produção do novo nas artes literárias, especialmente numa perspectiva dialógica. Os símbolos carnavalescos, como a descoroação do rei, a profanação, a excentricidade, são reconhecidos como alegorias que na literatura refletiriam o lugar da mudança e da transformação, da morte e da renovação (ibid., p.107). A coroação-destronamento é um ritual ambivalente biunívoco, que expressa a inevitabilidade e, simultaneamente, a criatividade da mudança-renovação, a alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e qualquer posição (hierárquica).

(...) E assim são todos os símbolos carnavalescos: estes sempre incorporam a perspectiva da negação (morte) ou o contrário. O nascimento é prenhe de morte, a morte, de um novo nascimento (ibid).

O carnaval, como uma "cosmovisão viva" desvelaria, em sua potência anárquica, o sonho, a utopia, de superação de qualquer monologização da existência. Neste cenário, as forças centrípetas dos discursos sociais estabelecidos, de estancagem do fluxo semiótico, se afrouxariam sob a intensidade centrífuga das refratárias e singularizantes redescrição das criações ideológicas. Trazendo esta reflexão para o plano a autoria, recorro a Faraco que assim a define como: "assumir uma posição estratégica no contexto da circulação e da guerra das vozes sociais; é explorar o potencial da tensão criativa da heteroglossia dialógica; é trabalhar nas fronteiras" (p.83). Vejamos, portanto, como o protagonista de A vida dos outros, autora e singulariza sua existência; como arte e vida se inscrevem na unicidade de sua responsabilidade.

 

A vida dos outros

Conforme anteriormente introduzido, não foi por mero exercício de hermenêutica ante a beleza do filme em questão, que a proposta da presente leitura se deu. Inquietações acerca das aproximações entre as artes e o processo de subjetivação tornaram possível reconhecer na obra do cineasta Von Donnesmarck, uma forte metáfora para muitas das apreensões que buscamos desenvolver sobre o problema da singularidade e movimentos de estetização da existência.

A trajetória das mais inusitadas e contínuas mudanças na posição do oficial Wiesler, em relação à potência criativa de suas ações, é um fio narrativo que captura a audiência numa comoção tal qual encontramos na relação do público com heróis da história do cinema. Entretanto, a possível satisfação gerada não é a mesma como a que temos com figuras cinematográficas, marcadas por uma trilha ascendente de sucessos e superações sobre-humanas. Ao contrário, o protagonista paga, com o preço de uma vida a ser destruída, todas as subversões que realiza sobre a mácula da paixão desenvolvida pelo casal de artistas observados, suspeitos de transgredir os ideais da República Democrática Alemã. O roteiro do filme não apresenta a história de um mártir que renuncia à sua existência em prol dos irmãos; muito menos de uma saga a ser premiada ou, ainda, reparada pela benevolência do destino ou o que quer que seja. 'A vida dos outros' não é uma narrativa de recompensas, nem de canonizações. É uma história sobre a história; sobre a história de Wiesler e suas recriações, sobre aquilo que a ultrapassa. A sublime arte da emergência da autoria, a fronteiriça condição de assumir um lugar ali, aonde as vozes nos consomem ao mesmo tempo em que nos impulsionam a ir para além delas.

A quase-caricatura do oficial Wiesler marca o primeiro cenário do filme. O agente da STASI seria de uma fidelidade ideológica tamanha e de um faro investigativo tão infalível que, na função de instrutor para novos agentes, um dos seus interrogatórios é apresentado como método exemplar para extração de confissões. Na prática, o método consistia na tortura provocada pelo caráter interminável do interrogatório. O suspeito era privado de qualquer pausa ou repouso, até que a verdade emergisse aos olhos do agente. Na instrução proferida por Wiesler aos seus alunos-investigadores, o interrogado passará 30 horas sentado, em vigília, sendo submetido à mesma pergunta para a qual poderia ser enunciada - em igual medida - a mesma sentença como resposta.

Como a interpretação, por vezes, fala mais do intérprete que do interpretado, nesta primorosa cena encontramos uma rica fotografia de como o mundo e as individualidades eram significadas por Wiesler. Numa espécie de "análise de discurso" por ele concebida, a confissão de um suspeito seria a consequência matemática da combinação entre o estilo narrativo e o tipo de personalidade do investigado. Em suas palavras: "Inimigos do Estado são arrogantes... um detento inocente torna-se cada hora mais agressivo e irritado por conta da injustiça sofrida... um mentiroso sempre prepara frases para que possa repetir quando sob pressão." O determinismo monológico observado na forma como o protagonista reconhece uma consciência subversiva encarna a voz totalitária da ditadura do proletariado. Na primeira fase da saga do herói, seria o discurso autoritário a entonação séria e possível dos seus atos enunciativos. Nas elaborações acerca do problema da seriedade, afirma Bakhtin:

O cenho carregado, os olhos apavorantes, as rugas e as pregas juntas pela tensão, etc., são elementos de pavor ou intimidação, de preparativo para o ataque ou para defesa, um chamamento à subordinação, uma expressão da fatalidade, de necessidade férrea, de peremptoriedade, de indiscutibilidade. O perigo faz o sério... A necessidade é séria, a liberdade ri (1963/1981, p.397, grifo do autor).

A premência de uma um discurso implica o constrangimento de tantos outros. A presença de Wiesler é marcadamente silenciosa ao longo do filme; o personagem é figura de poucas palavras. Escassas são as cenas em que o encontramos em conversação e é precisamente neste ângulo que comunicação não é sinônimo de diálogo. Concebendo que todo enunciado é uma resposta a um já-dito (Bakhtin apud.Faraco, 2003), quantos intermináveis diálogos de vozes interiores permaneciam abrigados na seriedade silente do personagem? Se entendermos o diálogo como a expressão ôntica de uma subjetividade que apenas vive na relação eu-tu, eu-outros; que outros "não- eus" participavam daquela existência aparentemente tão fixa e encerrada na impermeabilidade de um soldado de chumbo?

Por sua qualidade e dedicação à STASI Wiesler é solicitado pelo seu superior, capitão Anton Grubitz, a acompanhá-lo a uma apresentação de teatro onde estão presentes o dramaturgo e escritor da peça, Georg Dreyman; o ministro da Cultura, Bruno Hempf; e a atriz em cena, namorada de Georg, Christa-Maria Sieland. O chefe de Wiesler recebe do ministro da cultura a missão de investigar a vida do escritor Georg, por motivos nada políticos. A intenção de Hempf e Grubitz com a solicitação, era a de envolver o artista em alguma difícil situação, afastando-o da namorada, que pelo ministro era cobiçada. O casal de artistas, que gozava de muito prestígio em seu país pela aparente fidelidade aos princípios socialistas da RDA, passaria então a ser observado e relatado 24 horas por dia através de escutas espalhadas em todos os cômodos da residência do dramaturgo. Apesar do ministro Hempf e do capitão Grubtiz não compartilharem de quaisquer motivos para duvidar da postura política do escritor, Wiesler, para a surpresa do capitão, identifica no dramaturgo "o tipo arrogante", próprio aos conspiradores do regime socialista. A partir desta construção, o agente exemplar passa a acompanhar e a participar da vida e da intimidade diaresca de Georg e Christa-Maria. A história se desenvolve costurada pelo inusitado e encantador arrebatamento de Wiesler pela vida do apaixonado casal. Da identidade de um relator maquínico do Estado, o herói se rende ao desmedido envolvimento produzido pela escuta novelística do romance encenado por Georg e Christa-Maria. O agente da STASI parece tornar-se refém, adicto, do que há de mais pulsátil e vibrante na vida dos objetos de sua observância.

Talvez seja desnecessário afirmar que esta história seria impossível, dada a organização da polícia secreta da época. Os oficiais da STASI eram não só vigiados, como, também, substituídos constantemente nas escutas para evitar este tipo de risco. Na ficção elaborada por Von Donnesmarck, salta-nos à vista a redenção da figura gélida e obsessiva do protagonista a uma forma heroicamente humana e sensível no lidar com o desamparo próprio à sua ambiência. A questão que se impõe ocorre na possibilidade de acompanharmos o processo envolvido numa mudança axiológica tão intensa. De que forma pôde emergir um posicionamento extremo, oposto à anterior constrição, ou positividade identitária, do dogmático universo de Wiesler?

O roteiro do filme não nos abandona na construção de um encaminhamento possível a essa indagação. O agente encarregado de observar a vida do dramaturgo dá-se conta, a partir do exercício da escuta, que a atriz Christa-Maria chega à casa do namorado, no carro do ministro da cultura. Na sequência, ao interpelar o capitão Grubitz sobre seu desconcertante achado investigativo, recebe deste a recomendação de que apague este registro do relatório. Diz ele: "Estamos ajudando um membro do Comitê a se livrar de um rival. Você sabe o que isso pode fazer pela minha carreira... e pela sua". Ao que responde Wiesler, com entonação monocórdica: "Foi por isto que nos reunimos? Lembra do juramento que fizemos? Nós somos o escudo e a espada do partido".

Com a mesma seriedade que o acompanha do início ao final da película, Wiesler ao retomar o posto da escuta, abre a cena com o seguinte enunciado: "A hora da verdade". Assim, provoca a confrontação do equilibrado escritor, Georg, com a precariedade da condição de vida sobre a ditadura. O agente força-o, através do uso das tecnologias que dispunha, a ver o impensado desembarque de Christa-Maria do carro do ministro. O protagonista acompanha, pelo jogo de silêncios e falas, os efeitos do encontro provocado por sua intervenção na escuta... O acolhimento do escritor à vulnerabilidade, à insegurança, à impotência de sua amante que se rendia aos assédios sexuais do político Hempf por medo de perseguição. Ao que Christa-Maria solicita: "apenas me abrace". Encontramos, no corte da cena, o nosso agente da STASI abraçado ao próprio corpo, num suspiro enternecido como o de quem vibra com o ápice romântico de um drama a que se acompanha. Nesta hora a seriedade sucumbe ao sorriso deflagrado na face do herói. O riso libertário, dessacralizador, que suprime o peso do futuro (Bakhtin, 1963/1981). A sensorialidade auditiva do diálogo entre os amantes ressoa como o prazer de uma experiência musical no corpo incontido de Wiesler. Este momento marca a primeira subversão de uma sucessão de várias outras.

Na perspectiva bakhtiniana, pode-se afirmar que toda leitura seria uma subversão. No processo de produção de sentidos encontra-se, inarredavelmente implicada a refração discursiva do intérprete. O investigador Wiesler teria encontrado, naquela circunstância, um jogo especular desestabilizador do silenciamento, do constrangimento da arena interior de vozes alteritárias constitutivas da consciência do herói. A interceptação da inércia monológica, da força centrípeta da palavra autoritária (Faraco, 2003, p.81) é produzida. Lançado aos efeitos perlocutórios, imprevisíveis, de sua ação, acompanhamos então Wiesler numa sequência de gestos indicadores do acontecimento de uma nova e tocante estilística existencial. A entrada clandestina no apartamento de Georg, ancorada no insólito do corpo que, sob a gravidade do desejo, abre-se à procura de extasias. Movido pela sensorialidade despertada através da materialidade do cenário antes apenas escutado, nosso protagonista deixa o apartamento alimentado pelo apetite de novas intensidades. Do consolo encontrado na carne da prostituta à comoção erótica na leitura de Brecht; Wiesler elabora a composição de um outro gênero à sua narrativa autobiográfica.

A propósito de uma metáfora dialógica, o herói de "A vida dos outros" parece remontar ao coração dos ideais éticos da filosofia do ato criativo. O encontro que tentamos provocar entre a ficção cinematográfica e a Arquitetônica de Bakhtin ocorre, talvez, no ângulo em que estes dois discursos descrevem o processo autoral, como respostas ao cenário histórico de regimes totalitários. Bakhtin muito sofreu com o governo stalinista e suas respectivas técnicas policiais de controle às atividades intelectuais sendo, muitas vezes, exilado (Faraco, 2003).

A saga do agente secreto da STASI dá vida e unicidade a traços fundamentais do sujeito ético, autor, responsável e responsivo, da ação criativa. A condição de autoria desvela-se na obra quando o agente, tido como policial exemplar da STASI, passa a intervir no destino dos observados, protegendo-os do aparelho do Estado como quem zela pela própria criação. Duelando com a sua alteridade histórica, com a vida das vozes incorporadas, acompanhamos o processo de emergência de uma reescrita de si. Através da experimentação do lugar fronteiriço, impulsionado, criativamente, pelas tensões discursivas de sua própria organização, Wiesler autora sua existência a partir de uma nova linguagem.

A transgressão, tanto na peça cinematográfica quanto na noção de carnavalização da obra "Problemas da poética de Dostoiévski", perfaz-se como componente axial da transformação. A perspectivação, a superação do discurso monológico e, sobretudo, a proclamação da libertária relatividade do mundo, seriam efeitos da anárquica dessacralização da palavra autoritária. Afirma Bakhtin: "O carnaval triunfa sobre a mudança, sobre o processo propriamente dito de mudança e não sobre aquilo que muda. O carnaval, por assim dizer, não é substancional, mas funcional. Nada absolutiza, apenas proclama a relatividade de tudo" (1963/1981, p. 107).

Numa comunicação intitulada O que é um autor? (2006), Foucault afirma que textos e livros passaram a ter, efetivamente, autoria quando "o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores" (p.47). Assim, tanto na narrativa dialógica, como na histórico-arqueológica, a autoria se instaura no movimento de inevitável co-gênese de conformismo/transgressão.

Na psicanálise dos nossos dias, a diferenciação entre transgressão e perversão é ponto de constantes revisões. De acordo com Birman (2002), se no ato transgressivo reconhecemos o questionamento da normatividade social, uma ruptura marcada pela singularidade criadora de novas formas de subjetivação, na perversão dá-se a condição narcísica para a qual o agente, suprido de prestígio social, comete transgressões aniquiladoras do outro mantendo-se, de modo servil, submetido à moral vigente. A transgressão seria marcada pelo registro do risco e da dor, ao passo que a perversão, estaria baseada no cálculo e no gozo. Neste contexto, o personagem principal de "A vida dos outros", lança-se ao mais vertiginoso dos riscos. De forma anônima, como uma sombra quase invisível na vida do casal de artistas, Wiesler assume, de forma resignada, as consequências últimas de sua subversão. Condenado a passar vinte anos abrindo correspondências de suspeitos da STASI, o herói na solidão silenciosa do seu ofício recebe a notícia da queda do muro de Berlin.

Nos momentos finais da película, Georg, o dramaturgo, descobre nos antigos arquivos do serviço secreto, que foi diariamente investigado através de escutas. O artista sofre um choque ao perceber que alguém ocultou suas subversões, não relatando os crimes de conspiração por ele e seus companheiros executados. Desconcertado com a descoberta, Georg identifica o código do agente angelical. Na sequência, depara-se, emocionado, com Wiesler trabalhando como carteiro, numa Alemanha dilacerada. Nesta cena, quando todos esperariam um acalorado ato de gratidão, Georg retrai-se, dá meia volta e observa, à distância, o seu benfeitor. Algum tempo depois, Wiesler encontra na vitrine de uma livraria o livro de Georg Dryman, "Sonata para um homem bom". Folheia as páginas do livro e lá encontra a dedicatória para si. Indagado, pelo funcionário da loja, se o livro seria para presente, pela primeira vez escutamos o pronome de primeira pessoa na boca do herói: "é para mim".

Acreditamos que esta belíssima obra convida-nos a uma intensa reflexão sobre a autoria em sua intersecção entre os discursos das artes e os discursos da vida. Na cultura de nosso tempo, singularidade e autoria talvez se ofereçam como um campo especial para o questionamento do sujeito ético. Encerramos esta sessão com uma das passagens mais significativas da filosofia de Bakhtin:

O sentido correto e não o falso de todas as questões antigas, relativas à inter-relação de arte e vida, à arte pura, etc., é o seu verdadeiro pathos apenas no sentido de que arte e vida desejam facilitar mutuamente a sua tarefa, eximir-se da sua responsabilidade, pois é mais fácil criar sem responder pela vida e mais fácil viver sem contar com a arte (1919/2003a, p. 2).

 

Considerações Finais

O presente artigo teve como propósito abordar, a partir da impactação provocada pelo filme A vida dos outros, os sentidos que as noções de autoria e singularidade poderiam assumir numa perspectiva bakhtiniana de reflexão. O exercício adveio de uma preocupação teórica, para a qual a película, ao que nos parece, não foi colocada como pretexto para a discussão. Pretendeu-se desenvolver um caminho inverso, para o qual o filme, de certa maneira, configurou e implicou a discussão levantada.

É sempre muito delicado o trabalho de interpretação de produções do campo das artes que muitas vezes são empobrecidas e comprimidas, em sua força plástica e polissêmica, pelas teorias. Tentou-se, ao máximo, escapar deste efeito, especialmente num texto de inspiração bakhtiniana que assume, como princípio, a restauração, através da ação responsável, da integração (na unicidade do ser) dos domínios das artes, da cultura e da vida.

É valido salientar que a perspectiva bakhtiniana oferece um vasto campo de interlocução para com as abordagens que versam sobre processos de subjetivação. Neste sentido, a escrita deste artigo pode ser tomada como uma representação da força interpretativa da filosofia bakhtiniana sobre a compreensão das vicissitudes do tornar-se sujeito.

Seja em sua dimensão discursiva, ética ou, até mesmo, psicológica, a arquitetônica de Bakhtin configura-se como um universo a ser mais amplamente explorado por outros cenários teóricos que comungam do princípio dialógico em suas respectivas concepções de sujeito. As interfaces entre o dialogismo e o pragmatismo linguístico, ou o sócio-interacionismo vygotskiano e, até mesmo, a psicanálise se oferecem como uma seara a ser ainda mais enfaticamente investida pela pesquisa em Ciências Humanas. O sentido do investimento nestas interlocuções parte, sobretudo, da importância que um dado referencial teórico recebe ao ser problematizado por uma outra perspectiva, num jogo de tensões e aproximações gerador de novas possibilidades de reflexão sobre a subjetividade.

 

Notas

1. Não se deve tomar o termo idéia, no texto de Bakhtin, como formação metafísica de uma genialidade racional. O termo idéia comporia, de modo geral, o vocabulário sobre o ideológico designando as produções imateriais, espirituais, sociais, valorativas, da cultura. Como toda formação ideológica é significada, tudo que seria ideológico possuiria valor semiótico, numa relação de co-incidência sígnica (Faraco, 2003).

 

Referências

Bakhtin, M. (1981). Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária. (Originalmente publicado em 1963).         [ Links ]

Bakhtin, M. (1993). Para uma filosofia do ato [Towards a Phylosophy of Act] (C. A. Faraco & C. Tezza, Trads.). Tradução não publicada. (Originalmente publicado em 1921).         [ Links ]

Bakhtin, M. (2003a). Arte e responsabilidade. In M. Bakhtin, Estética da criação verbal (4ª ed., pp. 33-34). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1919)        [ Links ]

Bakhtin, M. (2003b). O autor e a personagem na atividade estética. In M. Bakhtin, Estética da criação verbal (4ª. ed., pp. 3-90). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1923).         [ Links ]

Birman, J. (2002). Nas bordas da transgressão. In C. A. Plastino (Org.), Transgressões (pp. 43-61). Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Clark, K., & Holquist, M. (2004). Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Faraco, C. A. (2003). Linguagem e diálogo: As idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba, PR: Criar Edições.         [ Links ]

Foucault, M. (2006). O que é um autor (6ª ed.). Lisboa, Portugal: Nova Vega.         [ Links ]

Lispector, C. (1986). A paixão segundo G. H. (10ª ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Rorty, R. (2007). Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Recebido em 08 de setembro de 2009
Aceito em 13 de outubro de 2009
Revisado em 20 de outubro de 2009

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License