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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.2 Fortaleza jun. 2010
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Freud: pensador da diferença
Joana Pantoja ScharingerI; Daniela Scheinkman ChatelardII
IPsicóloga, também formada em filosofia pela Universidade de Brasília e mestre pelo Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília. End.: SHCGN 705 bloco P, apt.509. Brasília-DF. CEP: 70730776. E-mail: jmut44@hotmail.com
IIPsicanalista. Docente no Departamento de Psicologia Clínica/ e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura na/ Universidade de Brasília. Membro da/ Escola dos Foruns do Campo Lacaniano e da Álgebra do Campo Lacaniano/ em Brasília. Doutorado em Filosofia pela Universidade de Paris 8. End.: SHCGN 705 bloco P, apt.509. Brasília-DF. CEP: 70730776. E-mail: dchatelard@gmail.com
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo percorrer brevemente os textos de Freud em que o tema da diferença comparece. O ponto de partida é seguir por conceitos como o complexo do próximo, narcisismo, identificação, relação entre interno e externo, relação eu-outro, o estranho, etc. A proposta é, portanto, traçar um percurso teórico por alguns textos freudianos e a partir daí defender que a temática da diferença se faz presente em todos eles, permanecendo como fio constante de interesse do autor. A intenção é indicar que a dinâmica do psiquismo, para Freud, sempre tem relação com aquilo que de algum modo é outro, com aquilo que se difere. O sujeito depende de outrem quando nasce, se vincula as pessoas e a cultura, se apaixona, se identifica. O sujeito está a todo tempo lidando com um dentro e um fora, com aquilo que é eu e aquilo que é outro. O conceito de outro aqui referido não compreende apenas o que se encontra fora do sujeito, já que mesmo internamente é possível ele experimentar algo como outro, tal é o caso do inconsciente quando faz-se presente através dos lapsos de linguagem e dos atos falhos. Também aí comparece uma alteridade e a vivência de uma diferença. Freud, portanto, pensou a temática da diferença de modo permanente.
Palavras-chave: Diferença. Alteridade. Outro. Narcisismo. Relação interno e externo.
ABSTRACT
This article is meant to provide a brief overview of texts by Freud dealing with the topic of difference. The starting point is to address concepts such as the complex of the fellow human being, narcissism, identification, the internal-external relationship, the I-other relationship, the stranger, etc. The proposal is, therefore, to draw a theoretical path through some Freudian texts and, based on it, defend that difference-related topics are present in all of them/ as a constant link of interest to the author. The intention is to indicate that Freud believed that the dynamics of psychism is always related to what is, in one way or another, the other one, to what differs. Subjects depend on other subjects when they are born, they develop relations with people and culture, they fall in love with things and people, they identify themselves. Subjects are constantly dealing with the inside and the outside, with what is oneself and the other. The concept of "other" mentioned here doesn't comprise only what is outside the subject, since even internally it is possible for one to experience something as different, as when the unconscious makes itself present through language lapses and faulty actions. In this connection, the notion of otherness and the experience of a difference are also present. What this means is that Freud insistently addressed the topic of difference.
Keywords: Difference. Alterity. Other. Narcissism. Internal-external relationship.
Introdução
Parece ser possível afirmar que o tema da diferença sempre foi interesse de Freud. Afinal, desde o início de sua trajetória até suas últimas obras este assunto esteve de algum modo presente. É possível perceber que vários dos conceitos utilizados por ele estão de algum modo relacionados à temática da diferença. Idéias como o complexo do próximo, narcisismo, identificação, o estranho, a relação interno e externo, revelam que a dinâmica da vida psíquica está sempre em relação com aquilo que é outro de algum modo, com aquilo que se difere. O sujeito depende de outrem quando nasce, se vincula as pessoas e a cultura, se apaixona, se identifica. O sujeito está a todo tempo lidando com um dentro e um fora, com aquilo que é eu e aquilo que é outro. No decorrer de sua obra, Freud manteve esse interesse sempre desperto. O objetivo do presente texto, portanto, é defender a presença constante desta temática dentro de um percurso na obra freudiana.
Antes, porém, de passar a Freud, cabe observar que a temática da diferença está inscrita numa tradição que é filosófica. Na filosofia a discussão sobre a diferença é vasta e antiga. Heidegger parece ter sido quem introduziu a discussão ao fazer a crítica contra a metafísica e propor sua destruição. Em seguida vieram os chamados filósofos da diferença, tais como Deleuze, Derrida e Levinas. A crítica de Heidegger visava ressaltar que a filosofia enquanto metafísica esqueceu-se do ser, já que o confundiu com o ente. Nesta medida, Heidegger (1927/2005) propôs inserir a noção de diferença ontológica, demarcando a diferença entre ser e ente. Ele acusou a metafísica de negar a diferença ontológica (Heidegger,1945/1991). Ou seja, a acusou de ser uma metafísica da identidade, da presença, e por isso, ela deve ser destruída. O pensamento heideggeriano nos propôs um novo paradigma, abrindo possibilidade de se confrontar a tradição. Assim, ao nos fazer repensar a metafísica, acabou por inserir e exigir o pensamento sobre a diferença.
Derrida seguiu Heidegger na medida em que propôs, no interior das discussões lingüísticas, desmontar as estruturas tradicionais da linguagem, buscando desconstruir suas estruturas fonocêntricas e logocêntricas. A desconstrução que Derrida (1967/2004) sugere busca sua justificação filosófica em Heidegger ao propor não apenas um novo modo de lidar com um texto, mas sim um olhar crítico que aponta para uma história do esquecimento do ser através da metafísica logocentrista. Com a desconstrução, Derrida (1967/2004) põe em questão o significado familiar, abrindo espaço para o estranho e o novo, em um confronto direto com uma verdade definitiva. O projeto derridiano propõe-se a acrescentar a diferença, contrapondo-a a repetição da tradição, inserindo o novo sentido e distanciando-se do que é familiar. Ele encaminha sua discussão para a defesa de que a diferença deve ser valorizada, que aquilo que se faz estrangeiro, estranho, outro, deve ser acolhido.
Levinas, enfim, influenciou Derrida e também retomou a proposta Heideggeriana. Para ele, porém, a verdadeira metafísica não deve ser situada como ontologia, tal a defesa heideggeriana, mas sim, seguir outro caminho. Levinas (1961/2000) considerou que entender a metafísica como ontologia não é pensar a alteridade. Sua justificativa é de que a valorização do ser implica na valorização do eu, do sujeito, e por isso, do Mesmo. Como nos explica Levinas (1961/2000), a relação do Eu com o mundo é uma relação de posse e identificação. Ter com o mundo esta relação é realizar um movimento contra a alteridade, movimento de egoísmo. A crítica de Levinas (1961/2000) considera inaceitável, portanto, a proposta de Heidegger, na qual para se conhecer o ente é preciso se conhecer o ser do ente. Isto é afirmar a subordinação do ser sobre o ente. Ocorre neste caso o que Levinas (1961/2000) chamou de posse do Outro, na medida em que na posse se afirma o outro, por outro lado, ela veda por completo a independência deste último. Levinas (1961/2000) nega que a relação com Outrem se reduza a ontologia. Seu projeto é a afirmação do Outro, onde este é o mestre, e não mais o Eu. Esta seria a verdadeira ética, e assim, a filosofia primeira. A proposta é que no meu encontro com o que é outro, eu não possa dominá-lo ou possuí-lo. Devo deixá-lo existir em sua verdadeira diferença, em sua verdadeira alteridade.
Introduzir aqui esta rápida discussão, que é proveniente da filosofia, se faz pertinente porque a temática da diferença e da alteridade serviram de motivação para este trabalho. Talvez seja possível supor que se podemos falar em alteridade hoje, na psicanálise, isso se dê porque a filosofia a introduziu. Sabemos, contudo, que a filosofia e a psicanálise freqüentemente seguem caminhos distintos, e se, por exemplo, as duas falam de sujeito, há aí diferenças importantes, que não devem ser esquecidas. Deste modo, o propósito aqui não foi importar a discussão da filosofia para a psicanálise, menos ainda traçar proximidades e semelhanças entre elas. Antes, trata-se de considerar esta temática, que é vasta, e tentar apenas indicá-la dentro da proposta psicanalítica, exclusivamente dentro de Freud. A filosofia mostrou a importância de se pensar o conceito de outro, apontando para a valorização da diferença. Vemos que Freud, a seu modo, também se interessou por este tema. Assim, é nele que vamos buscar compreender de que diferença a psicanálise nos fala.
Os conceitos de diferença e de alteridade aqui utilizados serão considerados num sentido mais geral e abrangente. Qual seja, manter a compreensão de que diferenciar é trazer um movimento de demarcação e limitação de algo, alguém, ou alguma coisa, com relação a um outro. Este outro será referente a tudo que se contrapõe ao que é o mesmo, a tudo que se difere, que não se homogeiniza. Aí o termo alteridade se inclui, referindo-se ao que apresenta a qualidade de ser outro. Nestes termos, a palavra outro não se limita apenas a um outro ser humano, mas se aplica a tudo que se faz de algum modo estranho, alheio, novo ou estrangeiro.
Diante disto, podemos iniciar um específico percurso teórico em Freud, buscando identificar onde a temática da diferença prevalece.
Interno e externo
No Projeto, Freud (1895/1950) se propôs a estudar a relação do organismo com o meio. Ele pretendeu compreender o aparelho psíquico a partir de sua relação com o mundo externo. Ou seja, a relação do organismo com aquilo que está fora dele, com o que dele se difere. Para tanto, Freud definiu que o aparato psíquico é constituído por neurônios e que existe uma energia (Q) que circula entre eles. Esta energia por sua vez, é considerada de duas maneiras, uma delas como proveniente do organismo e outra proveniente do mundo externo (Freud, 1985/1950). Deste modo, o texto em questão se propôs a discutir a dinâmica psíquica em sua relação com o que é externo ao organismo. A relação entre interno e externo permeia todo o texto.
Segundo Freud (1895/1950), o estímulo que os neurônios recebem proveniente do interior do organismo provocam uma tensão que para ser aliviada necessita de uma intervenção externa. É o que Freud (1895/1950) denominou de 'ação específica'. Desta ação compreende-se uma 'assistência alheia', algo que o próprio organismo, no caso a criança, não é capaz de realizar sozinho. Isto implica que necessariamente para buscar alívio e satisfação das tensões internas a criança precisa de um outro sujeito. Para que esta ajuda externa aconteça a criança vivencia uma 'alteração interna' em decorrência da tensão, a qual provoca variados tipos de demonstrações de sofrimento. Por exemplo, o grito e a expressão das emoções (Freud, 1895/1950). Estas demonstrações são descargas de energia, mas por si só não podem produzir alívio, necessitam de uma assistência que venha de fora. Esta ajuda que vem do exterior acaba por observar a situação de desamparo da criança e ao prover assistência provoca transformações na tensão interna, gerando finalmente a 'experiência de satisfação'.
Em uma passagem específica, Freud ao focar a relação entre interno e externo se aproxima da temática sobre alteridade, quando define o 'complexo do próximo'. Segundo Freud (1985/1950), o sujeito quando em contato com o mundo externo, dentre os vários objetos de sua percepção, pode perceber 'um outro ser humano'. Neste momento, entra-se em contato não apenas com algo externo ao organismo, e que naturalmente se diferencia dele, mas com 'um objeto semelhante', um outro ser semelhante a mim mesmo. Trata-se de um objeto semelhante também àquele que foi o primeiro objeto de satisfação do sujeito, bem como seu primeiro objeto hostil. É o que acontece com os recém-nascidos, num momento primordial da vida, onde o contato com o outro tem valor fundamental. "É por esse motivo que é em seus semelhantes que o ser humano aprende a (re)conhecer" (Freud, 1895/1950, p.438). As percepções emanadas deste encontro se dividirão em dois aspectos. De um lado serão percepções novas tais como alguns traços faciais, e de outro, percepções que remetem o sujeito a si mesmo, tais como movimentos corporais iguais aos seus. É o caso, exemplificado por Freud (1985/1950), quando ao se deparar com o grito do outro, o sujeito remete-se a sua própria experiência de dor, ao seu próprio desamparo. O encontro com outro ser humano nos põe em contato com a condição de alteridade, a condição de diferença entre eu e outro, porém, também nos põe em contato com algo que é familiar. O contato com o outro faz reconhecer-me pra além de mim, além de meu corpo. Faz reconhecer-me no outro.
Freud (1985/1950) assim, conceitua o complexo do próximo como separado em duas partes: uma parte coerente como uma 'coisa', e outra parte compreendida a partir da memória e das lembranças do próprio sujeito. Neste último caso o sujeito percebe algo do mundo externo e o transforma em uma informação baseada em si mesmo, na experiência de seu próprio corpo, trata-se neste caso de um juízo, de uma atividade judicativa. Nesta etapa de seus estudos, Freud enfatizou a importância do outro em nossa percepção do mundo e de nós mesmos. Com isso é fácil perceber que, mesmo em textos considerados pré-psicanalíticos, Freud já valorizava a importância das noções de externo e outro na vida psíquica.
O sujeito do inconsciente
Nas fases seguintes de seus escritos, em textos já considerados psicanalíticos, Freud inseriu a noção de Inconsciente e a partir daí seu interesse pela diferença parece um pouco mais evidente. Nos Estudos sobre histeria, por exemplo, Freud (1893/1974a) começou a dar importância a um tipo de estado mental o qual ele denominou de inconsciente. Trata-se de um estado que faz lembranças importantes serem inacessíveis à memória, provocando falta de inibição, lapsos de memória e falta de controle das associações, segundo os estudos de Breuer e Freud, em 1893. Implica-se a partir daí que muitos de nossos processos mentais nos são desconhecidos. Ou seja, há algo em nós mesmos que desconhecemos. A partir disso não somos mais sujeitos da consciência. Esta idéia é central na psicanálise, fundamenta toda obra de Freud. E com isso, trata-se de uma idéia que concerne à temática da diferença. Em nós mesmos, parte de nosso psiquismo se diferencia, vivenciamo-la com estranheza, como uma outra parte de nós.
No texto A psicopatologia da vida cotidiana, Freud (1901/1976d) se dedica a estudar justamente os diferentes modos de expressão do inconsciente. Por exemplo, no caso dos esquecimentos, dos lapsos de linguagem, das falhas de escrita e de fala, e todas as funções falhas através do qual o inconsciente se expressa. É o caso de nomes próprios, os quais estamos muito habituados, e não haveria razão para não lembra-los, porém, inesperadamente, o esquecemos (Freud, 1901/1976d). Eis o caso em que nos desconhecemos, quando somos surpreendidos por nós mesmos, ao esquecer o nome daquele que tanto estamos familiarizados. Segundo Freud (1901/1976d), isso mostra com clareza que há parte de nosso funcionamento psíquico que falha e os motivos para este ocorrido são desconhecidos a nossa consciência. Há algo em nós que estranhamos e muitas vezes sentimos como outro, como se fosse outra pessoa falando por nós.
É comum, defende Freud (1901/1976d, p.287), quando percebemos uma parapraxia, não estarmos "cientes de algum motivo para ela em nós mesmos. Devemos todavia ser tentados a explicá-la através de 'distração' ou atribuí-la ao 'acaso'". No entanto, a visão determinista de Freud, na qual os fenômenos psíquicos devem ser entendidos em termos causais, descarta estas justificativas e segue justamente o caminho inverso. Ele diz: "Há muito tempo sei que não somos capazes de fazer com que um número nos ocorra por livre escolha, do mesmo modo como um nome não nos pode ocorrer assim" (Freud, 1901/1976d, p.288). Para ele, nada na mente é arbitrário. E assim, nos enganamos ao acreditar que podemos escolher uma palavra ao acaso, que por distração podemos esquecer nomes próprios, ou ainda, quando achamos que esquecemos algo por ser sem importância. Ao contrário, Freud (1901/1976d, p.327) acredita que "o motivo do esquecimento é invariavelmente um desprazer de lembrar alguma coisa que pode evocar sentimentos aflitivos". Ele reafirma assim que, definitivamente, não sabemos de nós mesmos. E nesse sentido, estamos em constante contato com algo de nós mesmos que é outro. Lacan foi um importante psicanalista que se delongou nos estudos sobre esta alteridade, mas o que estamos tentando afirmar é que, dentro da psicanálise, esta temática foi iniciada com o próprio Freud.
Investimento no mundo externo e nos objetos
Em 1914, Freud dedicou o texto Sobre o Narcisismo novamente à questão sobre o interno e o externo. Neste texto, Freud (1914/1974b) explora os processos de não-reconhecimento do mundo externo e do outro, de tal modo considerando suas vias patológicas. Ele observou que alguns pacientes, como os esquizofrênicos, apresentavam um modo muito peculiar de relação com o mundo externo (Freud, 1914/1974b). Nestes pacientes a libido não investia no mundo externo, ao contrário, era inteiramente dirigida ao eu do indivíduo. Eis o que Freud denominou de narcisismo secundário, visto que todos nós passamos por um momento no início da vida que também se assemelha a este processo.
O eu investe libidinalmente em seus objetos. O narcisismo é o estado em que a libido toma o próprio eu como objeto. Freud (1914/1974b), então, definiu um narcisismo normal e primário que ocorre naturalmente em todos nós quando investimos, no período inicial de vida, em nosso próprio eu com um egoísmo de preservação. Um narcisismo secundário, porém, seria os que se instalam em psicoses e perversões, tais como no caso da megalomania, onde ocorre um total desinvestimento em objetos externos para reter toda a libido no eu.
Freud (1914/1974b) relatou outros exemplos quando a libido também concentra sua energia no eu. Trata-se de condições em que o indivíduo encontra-se adoecido organicamente, ou ainda, quando está dormindo. Nestes casos ocorre um desinvestimento natural da libido no mundo externo, voltando toda energia ao próprio eu. Estes momentos devem ser compreendidos como naturais, se procederem momentaneamente, e são muitas vezes necessários afim de trazer o equilíbrio novamente. A libido deve ser capaz de realizar este movimento, ela deve ser flexível para depois retornar ao mundo externo. Porém, quando há certo engessamento neste movimento estabelece-se aí uma condição patológica. Visto isso, o sujeito deve sair de um 'em-si-mesmamento' e voltar-se ao que lhe é externo, ao que lhe é outro. Por que isso deve ocorrer, ou seja, por que o sujeito deve investir fora de si, é o que Freud (1914/1974b, p.101) explica na seguinte passagem:
A resposta decorrente de nossa linha de raciocínio mais uma vez seria a de que essa necessidade surge quando a catexia do eu com a libido excede certa quantidade. Um egoísmo forte constitui uma proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em conseqüência da frustração, formos incapazes de amar.
Esta passagem parece declarar a defesa de Freud pela diferença. O indivíduo deve investir fora de si, ele deve amar o outro, ele deve vincular-se ao mundo lá fora. Trata-se de uma questão de quantidade, em que sobra energia a investir no eu, por isso ela transborda para fora. Isto é saudável, já que liga o sujeito ao mundo, ao social, aos outros seres humanos. E assim, torna possível a vida na coletividade. Esta passagem parece indicar que vincular-se ao mundo externo é fundamental para a saúde psíquica, caso contrário é certo o caminho ao adoecimento.
Freud definiu também que uma vez o sujeito consiga investir em objetos externos, como nas neuroses, estas escolhas, ainda assim, podem ser guiadas por uma vertente narcísica, onde escolhe-se um objeto externo porque ele é representante do próprio eu. Mas neste caso, é um investimento na representação e não no próprio eu como na megalomania. Assim, mesmo ao vincular-se ao outro, realizamos uma escolha objetal que pode ser baseada em escolhas narcísicas, embora nem por isso seja o caso de indivíduos narcisistas. As escolhas saudáveis costumam oscilar entre modelos narcisistas e anaclíticas. O primeiro tomando como base o próprio eu, onde ama-se um outro que se pareça comigo, e o segundo caso quando ama-se o outro que se assemelha com aquele que foi meu primeiro objeto de amor, tal como a mãe (Freud, 1914/1974b).
Deste modo, quando um indivíduo ama, ele se vincula ao meio externo e isso garante a ele, um psiquismo mais saudável, possibilitando maior investimento no social e não deixando-o recair sobre um narcisismo secundário e patológico. Por outro lado, Freud (1914/1974b) ressalta que muitas vezes a paixão por outrem torna-se tão intensa que é capaz de provocar movimento inverso, estando o indivíduo tão investido fora de si (em outra pessoa) que de si torna-se vazio. Esta condição, muito comum nos apaixonados, diminui a auto-estima e priva o indivíduo de uma parte de seu narcisismo, conforme defende Freud (1914/1974b). A relação com o outro, parece ser por esta via, também ameaçadora.
A relação transferencial
Neste momento, não podemos deixar de lembrar de uma relação com o outro muito discutida por Freud. Trata-se de uma relação que comumente se confunde com um enamoramento: a relação do paciente com a pessoa do analista. Segundo Freud (1905/1972), existe um processo que ocorre durante o tratamento analítico denominado transferência. Este processo consiste em uma atualização de experiências psicológicas passadas aplicadas à pessoa do analista durante o tratamento (Freud, 1905/1972). Ou seja, ocorre uma reedição de fantasias e sentimentos que antes aplicadas a uma outra figura, agora são direcionadas a figura do analista, ou médico, como denomina Freud.
No texto A dinâmica da transferência, Freud (1912/1969a, p.133) explicou que cada indivíduo:
...conseguiu um método específico próprio de conduzir-se na vida erótica - isto é, nas precondições para enamorar-se (...) Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico, constantemente repetido - constantemente reimpresso - no decorrer da vida da pessoa.
Eis exatamente o que se atualiza na pessoa do analista, um modo de funcionamento psíquico, uma repetição da vida erótica do paciente. No mesmo texto, Freud (1912/1969a) esclareceu que ao longo da vida do indivíduo, parte destes impulsos libidinais se dirigiu à realidade, ao passo que outra parte ficou retida e afastada do consciente, sendo impedida de se realizar, exceto na fantasia. Deste modo, a catexia libidinal parcialmente satisfeita buscará se dirigir naturalmente a figura do médico, na busca satisfação. A teoria freudiana defende assim que esta catexia sempre recorrerá a protótipos, a certos 'clichês estereotípicos' presentes no indivíduo, e este movimento libidinal incluirá deste modo o médico (Freud, 1912/1969a). Isto implica que o paciente inevitavelmente endereçará ao médico conteúdos pessoais. O exemplo utilizado por Freud (1912/1969a) traz a figura paterna como uma norteadora comum na transferência dos pacientes para com o médico. Neste caso, conteúdos do paciente endereçados ao próprio pai são transferidos e atualizados na figura do analista.
A questão que nos importa aqui é, então, compreender que a transferência é um processo típico a ocorrer no tratamento, em especial de pacientes neuróticos, e que faz o paciente tornar a figura do médico objeto de seus impulsos emocionais (Freud, 1912/1969a). Assim, realizo um endereçamento ao outro de algo que pertence a mim, e que vivencio como novo, mas na verdade, é uma atualização de algo já presente em minha história, em meu inconsciente.
Para Freud (1912/1969a) a transferência pode ser distinguida entre positiva e negativa. Ele explicou que a transferência positiva diz respeito a sentimentos afetuosos e amistosos, no geral conscientes, e que funcionam positivamente no tratamento, fazendo o paciente confiar no médico e simpatizar com ele, colaborando com o tratamento. A transferência positiva, porém, pode incluir sentimentos afetuosos que se desenvolveram demasiadamente e remontaram a fontes eróticas, tomando o médico como objeto sexual (Freud, 1912/1969a). Este tipo de transferência positiva tende a ser inconsciente. No caso da transferência negativa está em questão sentimentos de tipos hostis, depreciativos, de desconfiança. No entanto, Freud (1912/1969a) defendeu que um movimento de ambivalência é comum comparecer, fazendo coexistir endereçamentos de sentimentos hostis e afetuosos para a mesma pessoa.
A transferência positiva referente a impulsos eróticos recalcados e a transferência negativa são relacionadas a um movimento de resistência do paciente (Freud, 1912/1969a). Isto se justifica porque sempre que estão presentes tendem a dificultar o decorrer da análise, normalmente impossibilitando o tratamento de seguir seu curso, impedindo o processo de associação livre ou de recordação. Deste modo, a transferência ao mesmo tempo que é vetor imprescindível para fazer o tratamento se desenvolver também surge para impedi-lo. A transferência como resistência insere na relação médico-paciente elementos que estão mais de acordo com vivências fantasiosas, trazendo algo que, a primeira vista, não parece pertencer àquela relação. Eis o que explica Freud (1912/1969a, p. 142) ao defender que "uma pessoa em análise, assim que entra sob o domínio de qualquer resistência transferencial considerável, é arremessada para fora de sua relação real com o médico (...)". Ou seja, neste caso, comparece algo que parece situar-se fora daquela relação, algo proveniente de um outro lugar:
Com isso queremos dizer uma transferência de sentimentos à pessoa do médico, de vez que não acreditamos poder a situação no tratamento justificar o desenvolvimento de tais sentimentos. Pelo contrário, suspeitamos que toda a presteza com que esses sentimentos se manifestam deriva de algum outro lugar, que eles já estavam preparados no paciente e, com a oportunidade ensejada pelo tratamento analítico, são transferidos para a pessoa do médico. (Freud, 1917/1976e, p. 515)
No texto Observações sobre o amor transferencial Freud (1915/1969b) se aprofundou nesta temática enfocando a situação da paciente que enamora-se por seu médico. Segundo Freud (1915/1969b), nestas ocasiões o médico deve reconhecer este enamoramento como algo proveniente da situação analítica sem acreditar que tais sentimentos se endereçam realmente a sua pessoa. O que deve-se inferir disto é a resistência da paciente a se concentrar em seu tratamento, visto que agora ela apenas busca falar de seu amor. Em situações mais radicais é comum a paciente optar por interromper o tratamento perante a intensidade de seus sentimentos. Não por acaso é comum este enamoramento ter início num período da análise onde a paciente está sendo convidada a evocar uma lembrança especialmente angustiante (Freud, 1915/1969b). Por outro lado, o médico deve fazer uso desta transferência para evocar sua origem e seu verdadeiro endereçamento, buscando fazer a paciente falar deste a quem ela realmente endereça este conteúdo. Em decorrência, desfaz-se a resistência trazendo novamente o caminhar da associação livre e da recordação.
Frente a estas características da relação transferencial citadas até aqui percebemos o interesse de Freud em se dedicar ao estudo da relação do paciente com seu analista. Vimos que durante o tratamento se faz sempre presente um constante movimento do sujeito de 'endereçamento ao outro'. Trata-se de endereçar ao outro - no caso à pessoa do analista -algo que é dele mesmo, dizendo respeito a um movimento psíquico de repetição. Enquanto o paciente vivencia esta transferência de sentimentos como autêntica e nova, o analista a compreende como irreal e estereotípica. Parece que no trabalho de análise, para Freud, não se trata apenas da presença do sujeito e do outro (analista), mas de um constante movimento de evocação do paciente para que ainda outros se presentifiquem e permeiem sua relação com o médico. Lembrando, claro, que todo este chamado para que outros se atualizem é obra mais uma vez do inconsciente, sempre comparecendo e demarcando sua diferença.
Diferenciação eu-outro
Após enfocar a relação eu-outro a partir da relação tranferencial, podemos trazer o questionamento de como a diferenciação eu-outro se constitui, segundo Freud. Para isso, podemos buscar a compreensão freudiana sobre os destinos das pulsões. Ele as relacionou com estímulos que se originam no interior do organismo e possuem uma força constante (Freud, 1915/1974c). Além disso, a pulsão é caracterizada por exercer uma pressão, uma quantidade de força, ou seja, uma certa demanda de trabalho ao psiquismo. Ela tem por finalidade a satisfação, sempre. Seu objeto é aquilo a respeito do que a pulsão atinge a satisfação. O objeto pode ser uma parte do corpo, um outro indivíduo, o próprio sujeito, algo de natureza material, trata-se de possibilidades infinitas.
Discorrendo sobre as várias vicissitudes das pulsões, Freud (1915/1974c, p.155) define três grandes polaridades da vida mental, das quais as pulsões sofrem grandes influências. São elas: 1- a antítese sujeito-objeto, que diz respeito ao eu e sua relação com tudo que seja externo a ele. 2- a polaridade prazer-desprazer. 3- a polaridade ativo-passivo, relacionada a polaridade masculino-feminino. Destas três polaridades a primeira em especial ressalta aspectos relevantes a nossa proposta.
A antítese em questão é aquela que diverge o mundo interno do mundo externo. Ou seja, diverge o sujeito de seus objetos, diverge o eu do não-eu. Para Freud (1915/1974c) esta divergência se inicia em fase muito primordial da existência. Segundo ele, quando ainda nos primeiros momentos de vida o sistema nervoso recebe estímulos provenientes de fora do organismo, este último logo estará apto a responder aos estímulos externos, por exemplo, esquivando-se ou chorando. Em conseqüência, Freud (1915/1974c, p.139) afirmou que " a substância perceptual do organismo vivo terá assim encontrado, na eficácia de sua atividade muscular, uma base para distinguir entre um ' de fora' e um 'de dentro'". Com isso, Freud parece afirmar que é a partir de uma atividade corporal e das sensações do corpo, que o indivíduo, no iniciar da vida, começa a se diferenciar do mundo. Nesta relação do mundo interno com o externo, Freud (1915/1974c) adverte que há um processo dinâmico no qual o primeiro tanto recebe quanto exerce influência ao segundo. E deste modo, é nesta troca com o meio que, a partir da vivência corporal provocada pelo sistema nervoso, o indivíduo inicia o processo de consciência psíquica de separação.
Ainda sobre este período inicial da vida, Freud (1915/1974c) explicou que originalmente as pulsões se voltam para o eu, investindo-o como seu objeto de satisfação. Deste modo o eu é capaz de satisfazer-se em si mesmo. Este momento inicial, conforme anteriormente citado, é um estado narcisista e esta forma de obter satisfação é denominada por Freud (1915/1974c) de auto-erotismo. Nesta fase de muito investimento direcionado ao eu, o mundo externo não tem muito valor, apresenta-se sem grandes propósitos de busca de satisfação. Assim, enquanto o eu se encontra em fase auto-erótica este não necessita do mundo externo, porém, em decorrência das necessidades de se preservar, bem como com a presença de pulsões sexuais que não conseguem alcançar satisfação auto-erótica, ele passa a adquirir objetos do mundo externo. Em nota de rodapé, Freud (1915/1974c, p.156) afirma que:
Na realidade, o estado narcisista primordial não seria capaz de seguir o desenvolvimento, se não fosse pelo fato de que todo indivíduo passa por um período durante o qual é inerme, necessitando de cuidados, e durante o qual suas necessidades prementes são satisfeitas por um agente externo, sendo assim impedidas de se tornarem maiores.
A partir das considerações de Freud (1915/1974c) acerca deste estado inicial da existência, o euto-erotismo, no qual o eu ama somente a si e é indiferente ao mundo externo, é possível afirmar que a vida inicia de modo egoísta, mas tão logo este quadro se modifica, logo o eu começa a buscar vínculos ao mundo externo, buscando nele seus objetos de satisfação. Assim, conclui-se que é movimento natural buscar o mundo externo após um período inicial de desinteresse do mesmo. Como já citamos anteriormente, ainda assim, sabemos que em casos momentâneos como a doença orgânica, o sono ou o apaixonamento, também é natural desinvestir um pouco do externo, contanto que depois se invista novamente.
Relação sujeito-objeto na melancolia
Segundo Freud, porém, existe um tipo de investimento objetal que leva o indivíduo a um grave quadro patológico, no qual ocorre um comprometimento considerável de seu investimento no mundo externo e também em si mesmo. Trata-se da melancolia. Em Luto e melancolia, Freud (1915/1974d) se propôs a discutir a melancolia a partir de sua aproximação com o luto. Freud (1915/1974d) explica que nos dois casos trata-se de uma reação a uma perda considerável. Esta perda costuma ser a perda de outrem, pela morte de um ente querido, ou a separação de uma relação próxima. Porém, esta condição também pode ser provocada por uma perda de natureza mais abstrata como a perda de um país, da liberdade, ou de um ideal. Estas perdas podem gerar o luto como a melancolia, sendo esta última considerada por Freud (1915/1974d) de grau patológico.
O luto está presente na vida de todos, a pessoa fica desanimada com as coisas ao seu redor, desmotivada e entristecida. O mundo fica sem graça. No caso da melancolia, o desânimo e desinteresse pelo mundo, porém, é acompanhado por uma atitude de auto-recriminação, incapacidade de amar, auto-punição, baixa auto-estima. Nos dois casos a perda do objeto de amor é o motivo da dificuldade em substituir tal objeto, provocando o afastamento das atividades que não tenha este objeto em relação (Freud, 1915/1974d).
Estas condições no luto estão claramente relacionadas a perda que se viveu. E de modo gradual a pessoa vai retornando seu vínculo com as atividades externas até conseguir amar novamente. Na melancolia, Freud (1915/1974d, p.278) sugeriu que um processo diferente ocorre, pois a perda se realizou de modo inconsciente:
A diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enigmática porque não podemos ver o que é que o está absorvendo tão completamente. O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto - uma diminuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de seu eu em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu.
Portanto, no luto a perda foi a perda de um objeto. Na melancolia a perda foi a perda de seu próprio eu. Freud (1915/1974d) nos atentou ao fato de que o modo violento e rigoroso que o melancólico se auto-acusa dá a impressão de que o mesmo está acusando o objeto perdido. Sobre estas auto-acusações do melancólico Freud (1915/1974d, p.280) afirmou que sempre há a "... impressão de que frequentemente as mais violentas delas dificilmente se aplicam ao próprio paciente, mas que, com ligeiras modificações, se ajustam realmente a outrem, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar."
Assim, o cerne da melancolia está no fato de que os sentimentos direcionados ao objeto perdido, ou a perda em questão, são deslocadas deste objeto ao próprio eu. Neste ponto da questão melancólica parece haver uma mistura entre o que é eu e o que é outro, entre interno e externo. Na melancolia, ocorre, portanto, uma identificação do eu com o objeto perdido (Freud, 1915/1974d). Esta forte identificação deve ter sido precedida de uma forte fixação no objeto amado, uma identificação narcisista.
Segundo Freud (1915/1974d), a perda do objeto se transformou na perda do eu. Assim, talvez possamos dizer que, na melancolia, a perda de outrem se transformou na perda de si mesmo. Incorporando em si este outro, ele traz para dentro as agressões que endereçou realmente a outro. A razão para isso, é que este mecanismo acaba por possibilitar que não se abandone o objeto, e assim não se realize o verdadeiro processo de luto, de aceitação da perda. Para não perde-lo, devora-o, internaliza-o, e traz o outro em mim. O que está prejudicado neste caso é a relação com a alteridade, ocorre uma confusão entre eu e outro, seja este outro um sujeito, seja este outro, um ideal.
O estranho e o familiar
Esta idéia de um outro introjetado relaciona-se com aquilo que Freud denominou de o estranho. Sobre esta temática, Freud começou considerando todo tipo de vivência psíquica o qual nos provoca uma sensação de estranheza. Segundo Freud (1919/1976a), o estranho está relacionado com aquilo que aparenta ser justamente o seu oposto, o familiar. Nesta caso, estranheza e familiaridade são sensações vinculadas. Para Freud (1919/1976a) o estranho não é nada novo ou alheio, mas algo que se encontra há muito tempo estabelecido na mente. E isto se dá, devido ao recalque.
Embora outros fatores possam estar envolvidos com o estranho, os fatores que interessam a psicanálise são os relacionados aos conteúdos recalcados (Freud,1919/1976a). Um dos exemplos trazidos por Freud (1919/1976a) diz respeito as crenças mais primitivas. É o caso dos assuntos acerca do poder da mente. Atualmente, o homem comum já não tem mais tanta crença mágica e não acredita que se pode matar outrem apenas com a força do desejo. Porém, ao desejar que outra pessoa morra, e logo, este fato acontece, a sensação gerada será de estranheza. Neste caso ocorreu um teste de realidade, vinculado a uma realidade material do fenômeno.
Em outros casos, como explica Freud (1919/1976a), quando a sensação de estranheza provém de complexos infantis, então o lugar não é a realidade material, mas psíquica. Nos dois casos algo que parecia superado, ou esquecido, é rememorado ou revivido e a sensação estranha provém.
Quando inesperadamente vemos nossa imagem refletida no espelho, logo nos questionamos quem é este estranho que se aproxima. E a resposta logo vem surpreendida, este estranho é ninguém menos que nós mesmos. A mesma relação do estranho com o familiar pode ser experimentada quando nos deparamos com a loucura de outrem. Imediatamente nos vemos assustados ao entrar em contato com algo que o louco verbaliza abertamente, e que tem o mesmo conteúdo daquilo que lutamos em nós mesmos para deixar mais escondido. O que estranhamos neste outro é simplesmente aquilo que também jaz em nós mesmos. Assim, a minha relação com o outro remete a vivências da minha própria história, me faz reviver lembranças antigas. E ainda, em mais uma situação de alteridade, quando queremos dizer algo, mas acidentalmente, dizemos outra coisa. Como se outrem estivesse a falar por nós, em nós. Estranhamos assim a nós mesmos, mas na verdade, este conteúdo estava recalcado, e aproveitou uma brecha do ato falho para fazer falhar nosso discurso, para falar, para aparecer.
Há algo no outro que revela a mim mesmo, há algo em mim que se revela outro. Esta constante relação entre aquilo que é eu e aquilo que é outro, aparece em Freud, de tal modo indicando como estas duas condições estão em constante relação. Assim, o interesse de Freud com o dentro e fora, interno e externo, eu e outro, intrapsíquico e mundo externo é algo que, de modo geral, permeou sua obra.
Realidade externa e realidade psíquica
Podemos relembrar ainda o texto O eu e o isso de Freud (1923/1976b), no qual ao introduzir a segunda tópica ele insere algo importante a nossa discussão. Freud define algumas instâncias psíquicas que se desenvolvem no psiquismo a partir do contato do psiquismo com o mundo externo e com outros sujeitos. Deste modo, ele parece sugerir que no processo de constituição psíquica o contato com o mundo externo e com os outros sujeitos é fundamental e determinante. Vejamos como isso se dá.
Para Freud (1923/1976b) o eu é uma organização mental vinculada aos processos conscientes e responsável pelo controle de liberação de excitações para o mundo externo. Ele está em contato com o mundo externo e deste contato aplica influências ao isso, que por ser parte mais inconsciente e interna do psiquismo, é regido pelo princípio do prazer, em contrário ao princípio que rege o eu, da realidade. Freud (1923/1976b, p.39) define, portanto, que "O eu representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o isso, que contém as paixões".
Desta definição contrastante, o eu está em constante desafio ao ter que se comportar como um negociador que deve conseguir satisfazer a ambas as partes, exigências sociais e exigências do desejo, sem abrir mão total de nenhum dos lados. É a esta situação que se refere a metáfora do cavaleiro, utilizada por Freud (1923/1976b). Assim, está claro, uma vez o indivíduo é um ser social, um ser no mundo, ele tem seu psiquismo necessariamente fadado a viver em negociações (psíquicas) com seus desejos inconscientes, afim de que possa viver em sociedade. Ou seja, todo conteúdo não aceitável socialmente, o eu busca endereçar ao inconsciente e aos efeitos do recalque. Por exemplo, sabemos que para conviver com outros sujeitos e em sociedade não é aceitável realizar desejos sexuais com a própria mãe, mas, para não negar inteiramente a força do isso, o sujeito está livre para enamorar-se com alguém do mesmo nome que ela, ou alguém fisicamente parecida. A negociação neste caso foi feita.
Freud (1923/1976b, p.42) definiu o eu como um "... representante na mente do mundo externo real". Porém, não se trata somente disso, há uma gradação no eu denominada de supereu (Freud, 1923/1976b). E esta gradação não está relacionada simplesmente as exigências sociais, mas as identificações importantes com outros sujeitos. Segundo Freud (1923/1976b), o supereu se origina da primeira identificação da história do indivíduo, no caso, costumeiramente, com seus pais. Esta identificação se concebe no complexo de Édipo, donde se resultam as escolhas objetais do isso.
Identificação
No que concerne às primeiras identificações ocorridas nesta fase da vida, o complexo de Édipo, Freud (1921/1976c) definiu a identificação como o modo mais primitivo de laço emocional que um indivíduo pode constituir com outra pessoa. Isto significa que é a partir da identificação que se formam as primeiras vinculações do sujeito com o outro. Segundo Freud (1921/1976c), o complexo de Édipo tem como acontecimento, no menino, a identificação com o pai e um desejo pela mãe. Esta identificação diz respeito ao modelo que o menino passa a ter como figura masculina, já que passa a considerá-lo como seu ideal. A partir disto, o sujeito busca moldar seu eu de modo a tomar características deste modelo como próprios e não mais do outro (Freud, 1921/1976c).
No entanto, a identificação traz consigo a característica da ambivalência. É o que defende Freud (1921/1976c), ao afirmar que o menino simultaneamente que busca o pai como modelo masculino, deseja ser como ele, o que inclui o desejo de ocupar seu lugar junto à mãe. Por isso, trata-se de uma relação de identificação que é perpassada de ternura, mas também de hostilidade. Neste caso, o menino gostaria de ser como seu pai, e como ele, ter a mãe como seu objeto sexual. O desfecho desta história segue para a imposição da lei do pai que manterá o menino em identificação com seu pai, mas que o impedirá de realizar seus desejos junto a mãe, podendo fazê-lo com qualquer outra mulher, menos ela.
No caso da homossexualidade masculina, Freud (1921/1976c) relata que a identificação ocorre de modo semelhante, mas neste caso, o menino passa do desejo por sua mãe, para uma identificação forte com ela. Ao invés de passar do desejo para uma identificação com o pai, este menino passa a buscar a própria mãe como modelo.
Não há dúvidas que esta relação com os pais as quais o sujeito está frequentemente exposto no início da vida é crucial para seu posterior desenvolvimento. Este momento inicial revela bastante sobre as escolhas objetais futuras do sujeito. Do mesmo modo, contribui consideravelmente para a formação de seu ideal, o qual o guiará por longo tempo. Isto indica, mais uma vez, que os outros sujeitos, especialmente os pais, têm papel fundamental na constituição psíquica dos indivíduos. Revelando, assim, mais uma vez, a importância que Freud concedeu ao estudo da relação eu-outro.
Do mesmo modo, se o supereu é resultado das forças do isso em direção ao mundo externo, e mais propriamente, em direção ao pai ou a mãe, é a partir desta vivência inicial da vida que se introjetam imperativos de identificação, tais como 'você deveria ser como seu pai' ou 'você não deve desejar sua mãe, apenas seu pai o pode'. Estes imperativos surgem, pois o supereu tem função de recalcar o complexo de Édipo, afastando os desejos incestuosos e fazendo imperar as identificações.
E assim, Freud (1923/1976b, p. 51) afirmou:
O supereu, portanto, é o herdeiro do complexo de Édipo, e, assim, constitui também expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do isso. (...) Enquanto que o eu é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o supereu coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do isso. Os conflitos entre o eu e o supereu, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno.
Esta passagem de Freud é muito significativa para nós, pois ele define o quão importante é a influência do mundo externo naquilo que é psíquico. No caso do eu, isto está claro, visto ser ele a organização que mantém a mente em contato com o mundo externo. O supereu, embora compareça como relator de uma realidade interna, é também constituído por introjeções baseadas na influência das primeiras identificações com outros indivíduos. Todas estas colocações apenas indicam mais uma vez como os outros sujeitos, o social e o mundo externo têm papel fundamental na dinâmica psíquica. Aqui parece claro novamente a relevância que Freud dá a dois tipos de realidades opostas, de um lado a realidade externa e social, e de outro lado, a realidade psíquica. Estas duas realidades, apesar de opostas, estão constantemente entrelaçadas.
Considerações finais
Até aqui, compreendemos que longe desta exposição abarcar todos os textos de Freud, porém sendo estes textos relativamente representativos a nosso propósito, acreditamos guiar esta discussão para o entendimento de que Freud foi um pensador interessado na questão sobre a diferença, tendo abarcado assuntos importantes acerca da alteridade. Certamente não tratou estes aspectos como tema central, nem com a mesma atenção que Lacan o fez, entretanto, demonstrou interesse permanente sobre a questão do social e do outro, e sobre as questões relativas ao dentro e ao fora.
Diante do que foi citado na introdução deste trabalho a respeito das vias filosóficas desta temática, talvez caiba dizer que de algum modo Freud parece ter herdado algo desta tradição ao valorizar a importância da diferença e da alteridade na dinâmica da vida psíquica.
Alguns autores atuais também apontam a importante relação entre Freud e o tema da diferença. Fuks (2007, p.23), por exemplo, defende que a psicanálise é uma prática de alteridade. A autora considera que o pensamento freudiano provocou uma abertura importante que foi possibilitar uma experiência de encontro com a alteridade. Não somente pelo fato de se tratar de um pensamento inovador em seu meio científico, e por isso inseriu a diferença e o novo, mas por trazer uma valorização do fenômeno social, e da relação do sujeito com o outro. Esta valorização a qual já nos referimos, considera a importância do outro sujeito - seja ele o pai, a mãe, o analista ou a pessoa amada - na experiência subjetiva (Fuks, 2007, p.7).
Ainda no que concerne a relação de Freud com a temática da alteridade, a autora aponta para o cerne psicanalítico: o inconsciente. Fuks (2000, p.67) defende que Freud sempre se interessou por aquilo que se apresentou desconhecido e estranho no sujeito, aquilo que é estrangeiro, que é outro. Seu interesse pela exterioridade, pelas influências do mundo externo também fizeram dele um pensador da diferença. E ainda, Fuks (2000, p.76) prossegue na defesa de que a experiência psicanalítica em si possibilita ao sujeito entrar em contato com uma parte de si desconhecida. Deste modo, a partir da fala, possibilita ao sujeito construir algo novo e, portanto, romper com o mesmo.
Segundo Fuks (2000, p.76): "Experimentar o exílio analítico é, então, uma aprendizagem de alteridade: permite ao sujeito buscar pela palavra uma designação para aquilo que, vindo de fora, está nele mesmo, embora lhe seja estranho." Esta passagem considera como exílio a busca do sujeito por aquilo que lhe é mais desconhecido em si mesmo. E a partir da fala e da resignificação é possível introduzir um outro discurso, passar para outra coisa, ultrapassar o discurso do mesmo. Lidar com um estranho em nós mesmos é lidar com um outro em nós, e resignificar esta experiência é trazer o novo. Está sempre em jogo na experiência analítica a relação com o outro. Obviamente sabemos que Lacan se concentrou ainda mais neste entendimento. Em Lacan, entretanto, a separação entre dentro e fora sustentada por Freud não permanece. Enquanto Freud sustenta o conceito de intrapsíquico, Lacan trata de outro modo a temática da diferença e da alteridade, indicando que esta separação não pode ser delimitada tão radicalmente, e que o fora, em sua condição de externo, na verdade, também pertence ao dentro. Eis então temática a ser discutida em outra oportunidade. Por fim, podemos concluir que se a psicanálise é mesmo uma experiência de alteridade, por nos colocar em constante contato com o que é outro, então é possível afirmar: Freud, pensador da diferença.
Referências
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Recebido em 06 de janeiro de 2010
Aceito em 12 de março de 2010
Revisado em 28 de março de 2010