Revista Mal Estar e Subjetividade
ISSN 1518-6148
AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS
Curar a Homossexualidade? A psicopatologia prática do DSM no Brasil
Christian Ingo Lenz DunkerI; Fuad Kyrillos NetoII
IPsicanalista, professor livre docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). End.: R. Abílio Soares, 932. Paraíso. São Paulo-SP. CEP: 04005-003. E-mail: chrisdunker@usp.br
IIDoutor em Psicologia Social pela PUC/SP, integrante do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo (LATESFIP/USP). Docente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais (IELACHS). End.: Av. Getúlio Guarita, 159. Abadia. Uberaba-MG. CEP: 38025-440 E-mail: fuad@psicologia.uftm.edu.br
RESUMO
Discutiremos a forma com que a absorção das categorias presentes no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM influencia as práticas psicoterápicas. Para tanto, mencionaremos o caso da punição de uma psicóloga pelo CFP - Conselho Federal de Psicologia - que oferecia aos seus pacientes um tratamento que supostamente curava a homossexualidade. Abordaremos esse evento a partir de duas perspectivas. Adotando a premissa de que a saúde mental é um microcosmo de nosso país e de que a absorção de sistemas diagnósticos, como qualquer forma de tecnologia, implica um processo de assimilação cultural. Pretendemos comparar aspectos do que chamamos psicopatologia prática, inspirada no DSM, no sistema de saúde mental americano (no qual se originou) e no contexto brasileiro da reforma antimanicomial. A segunda perspectiva pretende examinar a forma como o DSM se posiciona no vasto campo da psicopatologia, mais especificamente quanto a questões atinentes à sexualidade, no contexto dessa psicopatologia prática. Concluímos que apesar de o DSM negar que existem instâncias transcendentes as quais se pode recorrer no que diz respeito aos fenômenos ligados ao sofrimento dos sujeitos, em acordo com sua proposta convencionalista e nominalista, as classificações científicas que este instrumento expressa mostram grande fragilidade no que tange a questões de poder, particularmente no entendimento das relações entre gênero, e da sexualidade em sua relação com a formação de sintomas.
Palavras-chave: Homossexualidade. DSM. Psicopatologia. Psicanálise. Clínica.
ABSTRACT
We are going to discuss the way that the absorption of the categories in the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM infuences psychoterapeutic practices. In order to do that, we'll mention the punishment of a psychologist by the Federal Council of Psychology. This professional offered to her patients a treatment that was supposedly able to cure homosexuality. We will talk about this fact from two perspectives. Adopting the premise that mental health is a microcosm in our country and that the absorption of diagnostic systems, such as any form of technology, implies a process of cultural assimilation. We intend to compare some aspects of what we call practical psychopathology inspired by the DSM, in the american mental health system (where it was originated) and in the brazilian context of anti-asylum reform. The second perspective intends to examine how DSM is positioned in the vast field of psycopathology, more specifically on issues related to sexuality, in the context of this practical psychopathology. We conclude that although DSM denies that there are transcendent instances which we can use when the essay is related to the subjects suffering, according to its nominalist and conventionalist proposal, the scientific classifications expressed by this instrument, in topics related to power, is very fragile, particularly in the understanding of the relations between gender, and sexuality in its relation to symptom formation.
Keywords: Homosexuality. DSM. Psychopathology. Psychoanalysis. Clinical.
1. Introdução
Em julho de 2009, a imprensa brasileira deu destaque ao caso de uma psicóloga punida pelo Conselho Federal de Psicologia por oferecer aos seus pacientes um tratamento que supostamente curava a homossexualidade1. Ao ser interpelada sobre sua prática, a profissional apela para a Organização Mundial de Saúde, que adota como categoria do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM a homossexualidade egodistônica. Lê-se na tese da cura da homossexualidade o estabelecimento da heterossexualidade, em acordo com a antiga e equivocada ideia de que a orientação homoerótica do desejo constitui, por si só, uma patologia, uma anormalidade ou um disfuncionamento. A proposição está de acordo também com a antiga e errônea ideia de que curar implica corrigir, retornar ao estado anterior ou restabelecer o funcionamento saudável do corpo, da mente e, consequentemente, da sexualidade. Esse estado "normal" da sexualidade seria o que Butler chamou, criticamente, de "heterossexualidade genital compulsória" e que, para essa autora, estaria na base dos mais diversos dispositivos jurídicos, sociais e, sobretudo, de saúde. Ou seja, em vez de considerar, da ideia de "homossexualidade egodistônica", que o tratamento deveria recair sobre o sentimento de inadequação a si (egodistonia) ou de aversão ao próprio desejo, a psicóloga propunha-se a converter a homossexualidade como se esta fosse um diagnóstico ou uma patologia.
O que vamos discutir no presente artigo não é o cinismo, o preconceito patente ou a ambígua pertinência clínica dessa categoria que permitiu o erro técnico contido na defesa, mas o discurso no interior do qual ela se apresenta como defesa possível. O discurso no qual o argumento se apoia implica, tacitamente, que aquilo que é descrito como anomalia (e o DSM seria um catálogo sobre isso) justifica, automaticamente, a necessidade de sua erradicação, inversão ou cura. Notamos aqui ecos do discurso jurídico no qual não há crime que não esteja especificado como artigo do Código Penal. Consequentemente, tudo o que está no Código Penal constitui crime e deve ser evitado, banido ou coibido. Mas assim como o direito pode ser exercido sem justiça, a saúde mental pode ser praticada de forma insalubre. Entendemos que a chave para entender esse discurso encontra-se na ideia de operacionalização nominal do sofrimento e do mal-estar ao modo do que Ota (2010) chamou de formalismo normativo.
Adotamos assim uma perspectiva metodológica análoga à de Berrios (2008) que, ao estudar as classificações psiquiátricas a partir de uma episteme exterior à psiquiatria, considera as classificações psiquiátricas como produtos culturais, não obstante a materialidade e a empiricidade dos fenômenos a que se referem. Esse autor relativiza a concepção de que as doenças mentais seriam epifenômenos comportamentais envolvidos em alterações moleculares e neuroquímicas. Para ele, a genética sozinha não explica toda a patologia mental e não deveria compelir os psiquiatras à pesquisa de uma invariante social. A crença que de que todas as doenças mentais sejam meramente construtos sociais não é ameaçadora à psiquiatria porque questiona a existência profissional de psiquiatras; ela é ameaçadora por não oferecer a estabilidade requerida para criar um sistema preditivo, que é uma expectativa inerente à medicina. Ou seja, o primeiro fato a considerar no delineamento dessa racionalidade diagnóstica é justamente seu nominalismo. Os fatos clínicos são tomados apenas como convenções operacionais ou descrições simples de acontecimentos e signos em ordenamento patológico.
Abordaremos a punição imposta à psicóloga a partir de duas perspectivas. A primeira pretende refletir sobre as peculiaridades do campo da saúde mental no Brasil em comparação com alguns aspectos do funcionamento do sistema de saúde mental americano, no qual emerge o DSM, notadamente quanto ao uso e a função e de categorias clínicas. Essa perspectiva considera que a saúde mental é um microcosmo do Brasil; nela se representam as diferenças sociais abissais presentes em nosso país, as motivações de distintos grupos políticos, as combinações entre vícios públicos e benefícios privados na economia e na ideologia. Encontramos no campo da saúde mental uma arena de conflito de interesses diversos no qual a segregação, as representações de gênero e o preconceito possuem uma história diversa do caso americano. Portanto temos que considerar a absorção das categorias e da racionalidade diagnóstica contida no DSM como um caso de importação de ideias e práticas. Estariam elas fora do lugar?
A segunda perspectiva presente neste artigo enfatiza o lugar do DSM no vasto campo da psicopatologia, mais especificamente sua penetração entre psicólogos e psicanalistas em questões atinentes à sexualidade e ao gênero. Aqui nosso argumento se esboça da seguinte forma: se é verdade que uma determinada forma de psicanálise teria inspirado diretamente a formação do sistema DSM (pelo menos até sua segunda edição) e se é verdade que a psicanálise teria, assim, transmitido um modelo adrocêntrico, heterosexual e neuroticocêntrico ao DSM, que culminou na associação entre homossexualidade e perversão, teria de fato a solução nominalista representada pela "homossexualidade egodistônica" resolvido o problema? Ou a presença dessa categoria representa justamente um sintoma dessa razão diagnóstica?
2. Formalismo Normativo e Psicopatologia Prática
Estudando o amplo espectro de reformas institucionais expresso pelo desenvolvimento de um novo sistema de assistência social no quadro de um novo pacto entre Estado e o emergente terceiro setor brasileiro, Ota (2010) mostrou como esse processo, que se inicia com a abertura política dos anos 1980 e parece apresentar sinais claros de exaustão, baseia-se em dois movimentos articulados. De um lado trata-se de uma mutação da economia interna e na funcionalidade externa das teorias de referência para a formação de políticas públicas. Essa mutação implica que os quadros conceituais de determinado sistema teórico, seja ele pós-estruturalista, pós-crítico, psicanalítico ou liberal, sofrem uma espécie de tradução normativa. Por meio dela, incorporam-se a regulamentos, normas, marcos regulatórios e demais estatutos institucionais, adquirindo assim um segundo sentido. Tal sentido serve para o reconhecimento intersubjetivo e político dos atores do sistema socioassistencial, bem como para a criação de fronteiras e facilitações no interior de processos institucionais. Nesse sentido, processos administrativos, deliberações sobre distribuição de recursos ou alocação de funcionários podem depender estritamente desse formalismo normativo. É justo supor que esse fenômeno encontre seu correlato no interior da saúde mental e que uma formulação tão equívoca quanto a tese de curar a "homossexualidade egodistônica" aspire à eficácia pragmática, não pelo seu conteúdo, mas pela inclusão que pretende em um determinado discurso, o da psicopatologia prática, no qual o DSM se vê incorporado.
Discurso que se inclui em uma determinada razão diagnóstica que ultrapassa os procedimentos psiquiátricos e estende-se ao campo do que estamos chamando de psicopatologia prática, cada vez mais influente na cultura brasileira. A psicopatologia prática não corresponde a uma orientação teórica ou técnica, de tipo geral ou fundamental, mas apenas ao uso, à combinação e ao compromisso entre conceitos, noções, regras de ação e consensos normativos de tal modo a que a psicopatologia inclua-se em um discurso que, ao mesmo tempo, faculte escolhas e confrontações teóricas em psicoterapia (por exemplo, cognitivismo, psicanálise, interacionismo, psicodrama etc.), discrimine campos disciplinares (por exemplo, psicologia, psiquiatria, terapia ocupacional etc.), articule disposições jurídicas (leis sobres serviços substitutivos, composições e distribuição de recursos), organize hierarquias institucionais (de chefia e subordinação), oriente estratégias de atenção, cuidado e tratamento (psicoterapias grupais individuais, iniciativas de interação e inclusão) e caracterize orientações políticas e de cidadania. Fica claro que tais funções estão muito distantes do que convencionalmente se espera de uma psicopatologia, como articulação clínica entre diagnósticos, formas de intervenção e investigações etiológicas ou semiológicas. Contudo essa é a ideia mesma de prática discursiva (Foucault, 1988), tornar homogêneos e proporcionais superfícies discursivas e enunciados cuja origem está distante do objeto e da forma de poder que essa prática discursiva exerce. Dessa maneira, podemos dizer que uma mesma razão diagnóstica contém inúmeras modalidades de psicopatologia prática conforme o discurso e, no caso específico de nosso interesse, o discurso do formalismo normativo.
Pretendemos contribuir dessa forma para o entendimento de um vasto conjunto de fenômenos relacionados à expansão desordenada do discurso formal-normativo em saúde mental, fenômeno que não será objeto de nossa presente consideração, mas no qual podemos incluir a hipermedicalização por especialistas, a automedicalização, a medicalização por não especialistas, os compromissos entre estratégias de medicação (alopáticas, homeopáticas, fitoterápicas etc.), a psicopatologização das formas de vida (infância, terceira idade, adolescência, primeira infância), a psicopatologização dos laços sociais (escolarização, trabalho, vida amorosa) e dos comportamentos, das disposições morais e discursivas.
Acreditamos que a polêmica criada em torno da ideia de cura da homossexualidade é paradigmática da forma como a absorção dos grupos clínicos presentes no DSM influencia as práticas psicoterápicas contribuindo para a adaptação social de pacientes. Ao fundo desse fenômeno encontramos um efeito aparentemente securitário gerado pela inclusão nominal de uma forma de sofrimento ou de mal-estar ao modo de um nome. O nome inclui. Essa é uma descoberta notável do formalismo normativo brasileiro.
3. Os Gêneros do DSM no Brasil e nos Estados Unidos
Lembremos que a polêmica em torno da cura da orientação homossexual possui no Brasil intensa afinidade com a ascensão do discurso religioso conservador e com a crescente pragmática de resultados e eficácia de curas que tal discurso veio a produzir no país nos anos 1980-2000. Não só a psiquiatria tornou-se baseada em evidências; as curas mágicas e as asceses religiosas também. Isso deve ser pesado contra a origem desse formato discursivo assumido pelo DSM, que teve início em 1970, nos Estados Unidos, com o lançamento do DSM II, que fazia associação entre perversão e homossexualidade. Ativistas denunciaram a individualização, a patologização de contradições sociais e a segregação de minorias. O controle e a neutralização de resistências encontrariam, assim, um referendo psiquiátrico-psicanalítico.
A partir da década de noventa, o Brasil realiza, de forma expressiva, uma reforma psiquiátrica por meio de uma iniciativa articulada dos três níveis gestores do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal processo resultou na modificação de algumas formas jurídicas e na ênfase das políticas públicas sobre a questão. O projeto de lei 3.657/89, conhecido como Lei Paulo Delgado, proibia a construção ou a contratação de novos leitos psiquiátricos pelo poder público e previa o redirecionamento dos recursos públicos para a criação de "recursos não manicomiais" e "práticas substitutivas" em saúde mental. Tal projeto foi aprovado em março de 2001, após doze anos de tramitação no Congresso Nacional. Na publicação oficial do Ministério da Saúde fica estabelecido o objetivo de:
[...] alcançar, em um futuro próximo, uma atenção em saúde mental que garanta os direitos e promova a cidadania dos portadores de transtornos mentais no Brasil, favorecendo sua inclusão social (2000, p. 5).
Tal mudança discursiva reconfigura juridicamente o sofrimento mental como uma questão de política pública. A par das inúmeras transformações e ganhos decorrentes dessa mudança de perspectiva, duas peças sólidas remanescem intocadas: o sistema diagnóstico baseado no DSM e a medicalização extensiva. Diversos autores (Figueiredo e Tenório, 2002; Ferreira, 2005) criticam a origem primária neuroquímica dos transtornos mentais não porque ela seja materialmente inconsistente, mas porque a descrição de alterações não deveria, por si só, justificar nem a etiologia nem o tratamento. Ao final e ao cabo não é a redução ou a ausência de eficácia o que justificaria a exclusão de práticas psicanalíticas; pelo contrário, as "psicoterapias psicodinâmicas de longo termo" mostraram-se muito mais eficazes do que qualquer outra forma de tratamento psicológico (Leichsenring & Rabung, 2008). Ocorre que a grande transformação gerada pela reforma psiquiátrica no Brasil herda uma prática, já constituída, baseada no binômio DSM-medicalização. Isso contrasta vivamente com o cenário americano no qual o DSM é reconstruído em meio ao reposicionamento da APA (American Psychiatric Association) em novas práticas institucionais de tratamento. O paradoxo é que um instrumento formado para reinstitucionalizar massivamente a saúde mental americana seja empregado como prática nuclear da desinstitucionalização asilar brasileira.
Enquanto no Brasil a inclusão como princípio maior da prática em saúde mental abarca principalmente uma reforma institucional de cunho universalista, nos Estados Unidos as reformulações do DSM, notadamente a partir dos anos 1970, abarcam uma reforma clínica que dá expressão a uma sociedade crescentemente multicultural. O ativismo americano, que questionava a patologização da homossexualidade, discutia principalmente a diferença entre sexualidade e gênero, enquanto o ativismo brasileiro centrava seus questionamentos na barreira que restringia a cidadania, representada pelo acesso a sistemas e dispositivos estatais de bem-estar e assistência. A relativa anomia que vigorava na exclusão de acesso a qualquer tratamento real em saúde mental por uma parte da população brasileira, já então excluída de bens e serviços semelhantes em termos de justiça, saúde e educação, não pode ser comparada com a alta organização das minorias americanas que levaram a luta pelos direitos civis (civil rights) como exigência de reconhecimento e expressão de demandas particulares.
Temos assim, no contexto americano, um processo de "desinstitucionalização" da interferência do Estado nas questões de gênero, que pede por uma transformação discursiva e por políticas diretas de contrassegregação. Na situação brasileira, ao contrário, há um processo de "desinstitucionalização" geral da saúde mental, seguida por uma "reinstitucionalização discursiva" baseada na construção de práticas substitutivas em saúde mental. Daí que a inclusão brasileira seja, antes de tudo, genérica, isto é, centrada em "usuários quaisquer" que aspiram à condição de cidadãos, e que a inclusão americana seja uma inclusão específica, ou seja, que aspira à inscrição das diferentes interseccionalidades, a saber, de gênero, de classe, de etnia, de cultura, nas práticas institucionais e discursivas em saúde mental. Ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos, a revisão de práticas em saúde mental nos anos 1980-1990 não questionou a fundo o contexto institucional, o fundamento médico e a conexão jurídica que organizam a saúde mental naquele país. Isso não se fez necessário uma vez que nos Estados Unidos um análogo da reforma psiquiátrica já havia acontecido. Em outros moldes e com outras finalidades, verificou-se nos Estados Unidos da década de 1960 uma profunda modificação do discurso asilar.
O relatório Action for Mental Health, de 1961, recomendava que fossem criadas bases de assistência comunitária e ampliação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Esse relatório representa a primeira política nacional americana de cuidados comunitários para a saúde mental e também ambicionava uma reforma psiquiátrica hospitalar buscando a humanização e o desenvolvimento de programas de reabilitação visando reinserir o paciente na comunidade.
Os grandes hospitais psiquiátricos deveriam ter seus leitos reduzidos, e outros não poderiam ser criados. O espaço de ação da psiquiatria deveria ser expandido e incorporado à comunidade como campo de atuação. Dois mil centros de saúde mental comunitária seriam introduzidos em todo o país e, dois anos depois (1965), já se poderia dizer que os programas estariam implantados. Há, ainda, relatos de brusco esvaziamento de hospitais psiquiátricos, especialmente na Califórnia, sem que a rede comunitária de atendimento estivesse funcionando.
Caplan, teórico que interferiu no processo americano, influenciou notavelmente os programas comunitários da América Latina, incluindo o Brasil. Esse autor importa conceitos de história natural da doença e níveis de prevenção, transpondo-os para a área de saúde mental por meio de seu conceito básico de crise. Tal fato permite uma nova articulação, fundamental para os países em desenvolvimento em nível conceitual com a saúde pública, uma das recomendações básicas e comuns a todos os programas de saúde mental exportados para a América Latina.
Em busca de constituir uma nova disciplina, Caplan (1968) define a psiquiatria preventiva como um ramo da psiquiatria que é parte do esforço comunitário mais amplo. A psiquiatria preventiva ocupa-se de todos os tipos de transtornos mentais em pessoas de todas as idades e classes num enfoque do problema total da comunidade e não somente do problema dos indivíduos e grupos particulares.
Em nossa opinião, as premissas de Caplan antecipam o que seria a tônica atual da psiquiatria americana na vertente da classificação DSM. Ele inferiu que as doenças mentais obedeceriam ao modelo da história natural das doenças, devendo haver uma pré-patogênese a ser identificada e imediatamente atuada com vistas a prevenir o surgimento da enfermidade.
Pitta-Hoisel (1984) nos lembra que Caplan estabeleceu em sua teoria correlações entre miséria/loucura, velhice/crise, adolescência/crise propondo trabalhos profiláticos para erradicar o sofrimento. Ele buscava uma intervenção técnica que, por intermédio do controle social, regularia e administraria todas as possíveis fontes de inquietação na comunidade. Podemos aproximar os objetivos de Caplan com o compromisso pragmático do DSM. Esse compromisso obrigou os pesquisadores a abandonarem os conceitos de seus campos específicos e mostrou-se particularmente conveniente para disciplinas que operam com uma metodologia empírico-experimental em suas abordagens do sofrimento psíquico.
A partir de 1990 ocorreram mudanças em relação às políticas de saúde mental brasileiras, caracterizadas pela reestruturação da assistência psiquiátrica, melhor aplicação dos recursos financeiros e desenvolvimento de serviços integrados à atenção básica. A ênfase era o desenvolvimento de dispositivos comunitários visando ao tratamento precoce, contínuo e eficiente na reabilitação e reinserção do usuário da saúde mental.
O clima sociopolítico influenciava nas questões da saúde, não só nas políticas para a área, mas também no agir em saúde. Nesse contexto reformista, algumas áreas tiveram destaque, em especial as relacionadas ao uso de substâncias psicoativas, suicídio, violência e transtornos comportamentais. Para os progressistas, esse pensamento poderia ser perigoso e ferir a individualidade e a liberdade de escolha dos cidadãos; já os conservadores acreditavam que o controle social fortalecia o estado e defendiam que a mudança deveria ser realizada paulatinamente.
Tais considerações são relevantes para o problema que queremos tratar, uma vez que sugerem um contexto explicativo para entender por que o avanço das práticas em saúde mental no Brasil não se fez acompanhar de uma inscrição teórica e discursiva dos problemas de gênero na psicopatologia prática de nossos servidores. Chamamos de psicopatologia prática a tradução e a recriação, nos contextos culturais específicos de tratamento, das categorias, narrativas, diagnósticos e etiologias fixados ou aderidos a contextos teóricos, disciplinares ou jurídicos específicos. Por exemplo, o amplo emprego de categorias ligadas à dissociação e ao dismorfismo corporal na psiquiatria africana liga-se à necessidade de sincronizar o discurso técnico diagnóstico do DSM (pelo qual a distribuição de recursos, a epidemiologia e as políticas públicas se orientam) com a interpretação mágico-religiosa dos transtornos mentais, ainda muito presente em vários lugares daquele continente.
Podemos dizer que a "psicopatologia prática" funciona ao modo de um dispositivo ideológico que combina exigências díspares (clínicas, sociais, assistenciais, jurídicas) em um discurso que funciona como coordenação interna dos agentes de saúde mental, sustentação clínica de um programa de cuidado, tratamento e atenção e justificação moral para práticas de segregação ou compromisso como outros discursos (políticos, religiosos). Em outras palavras, a psicopatologia prática é um complexo discursivo no qual as regras de funcionamento de instituições se articulam com práticas efetivas de tratamento e com os recursos sociossimbólicos que uma comunidade tem para lidar com o sofrimento.
4. Homossexualidade Egodistônica
Apesar da pretensa universalidade, a "psicopatologia prática" inspirada pelo DSM deve, em cada caso, formar um compromisso cultural com as práticas e os dispositivos disponíveis. Nunca se trata de aplicar cada caso à sua regra, como se o tratamento se desenvolvesse por meio de sucessivas inclusões categoriais, ao modo dos eixos diagnósticos do DSM. Contudo, há um contexto no qual essa inclusão é especialmente problemática, ou seja, a medicação. Aqui reencontramos o contraste com a segmentação dos direitos civis. Podemos, genericamente, reivindicar a inclusão segundo a retórica universalista da inscrição de diferenças articuladas politicamente em minorias; daí que o acesso ao trabalho, à circulação e aos bens simbólicos sejam as condições elementares de qualquer tratamento possível. Contudo não podemos reivindicar o mesmo universalismo em termos de medicação. O argumento espontâneo, nesse caso, é que disposições morais, orientações de conduta e formações de identidade não podem e não devem ser tratadas como doenças que nos impõe heteronomia. Portanto, o erro da psicóloga teria sido um erro meramente "técnico".
Jaspers, em sua Psicopatologia Geral, de 1913, já chamava atenção para as ambiguidades inerentes à pesquisa em psicopatologia:
"Tanto na psicologia quanto na psicopatologia talvez não se possa afirmar nada ou quase nada que não seja, de alguma maneira, contestado. Por isso se alguém pretende estabelecer a razão de suas afirmações e descobertas e elevá-las acima da onda de intuições psicológicas diárias, terá também de empreender reflexões metodológicas." (Jaspers, 1913/1987, p. 16)
Advertidos por Jaspers acerca da importância do método para o estabelecimento de conceitos em psicopatologia, lembramos que o DSM foi constituído a partir de uma perspectiva ateórica e operacional. O DSM tem como objetivo constituir-se num sistema de classificação sobre dados diretamente observáveis, sem recorrer a sistemas teóricos. Recorremos a David Goldberg, um dos integrantes da comissão responsável pelas novas edições do DSM. Recentemente, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Goldberg foi indagado sobre quais mudanças pretende promover na classificação de doenças mentais. Ele relata sintomas que possuem "variações pequenas que distinguem um do outro", que são, tais como as depressões unipolares simples, os estados de ansiedade, os transtornos de medo e os de ordem somática. Frente às dificuldades diagnósticas devido às "variações pequenas", Goldberg propõe:
"Você só pode fazer diagnósticos ignorando alguns sintomas, então será melhor se os médicos apenas descrevessem os sintomas gerais que as pessoas têm nesse grupo de transtornos [emocionais]."
A descrição minuciosa, fina e precisa dos sinais e sintomas dos transtornos mentais constitui a base semiológica de um processo investigativo em busca da etiologia. Pereira (1998) nos adverte que a ideia de que as alterações mentais teriam um estatuto de patologia se formou gradativamente em psiquiatria, não estando totalmente clara nas hipóteses de seus precursores.
Kraepelin foi o grande sistematizador da psicopatologia descritiva. Esse autor consolida, de forma definitiva, a vocação nosológica da psicopatologia. Bercherie (1989) lembra que em 30 anos o Manual de Psiquiatria de Emil Kraepelin conheceu oito edições e não houve uma só edição sem modificações nosológicas. Do ponto de vista kraepeliano, trata-se de discernir sob as bases clínicas as diversas formas do adoecimento mental, as quais teriam o mesmo estatuto das doenças físicas tratadas pela medicina.
Pereira (1998) nos lembra que, diante do impasse constituinte da própria psicopatologia, o projeto empírico-pragmático do DSM reclama-se do qualificativo de neo-krapeliniano, no sentido da delimitação precisa das entidades clínicas psiquiátricas. Diante das considerações anteriores acerca da semiologia e do trabalho de Kraepelin, parece-nos que a declaração de Goldberg explicita uma prática clínica que prescinde da descrição fina da entidade mórbida e, consequentemente, abdica da busca pela etiologia das patologias.
Diante do que Pereira (1998) denomina confusão de línguas, presente nas disciplinas que compõem o campo da psicopatologia, esse sistema de classificação esforçou-se por criar um sistema fidedigno, pragmático e objetivo de classificação dos chamados "transtornos mentais". O termo "transtorno" já expressa a tentativa de se afastar da linguagem nosográfica em busca de um sistema idealmente ateórico, imune aos pressupostos das disciplinas que buscam a hegemonia no campo da psicopatologia.
Porém existem diferenças marcantes entre a proposta do DSM e o projeto kraepeliniano. Enquanto Kraepelin pensava as entidades psicopatológicas como equivalente às doenças orgânicas, a perspectiva do DSM, inspirada num pragmatismo radical, abandona a noção de "doença mental" para fundamentar seus processos. O termo doença desaparece das categorias do DSM, substituído por disorder (transtorno), que nos remete à ideia de algo que está em desacordo com uma ordem operacionalmente estabelecida. Fica-nos a questão: que ordem é essa? Quais critérios para elaboração dessa ordem?2
A superação da confusão de línguas seria obtida por intermédio de uma fidedignidade à categoria diagnóstica, ou seja, perante uma mesma configuração sintomatológica, clínicos e pesquisadores provenientes de diferentes orientações teóricas e de ambientes culturais distintos devem chegar ao mesmo diagnóstico. Para se alcançar esse objetivo, um sistema ideal de classificação deveria fornecer critérios explícitos, operacionalmente observáveis e que reduzissem ao mínimo o uso de interferências teóricas não-diretamente observáveis para a definição de cada quadro mental. Temos, assim, a opção pelo pragmatismo como solução para os impasses teóricos existentes no campo da psicopatologia.
O DSM explicitamente não possui a pretensão de ser uma psicopatologia. Ele procura se constituir num sistema classificatório fidedigno dos padecimentos psíquicos. Sua racionalidade está organizada em torno da busca de categorias confiáveis, provisórias e operacionais que permitam a superação de mal-entendidos terminológicos no terreno da psicopatologia. Seu critério de objetivo está alicerçado na descrição formal do plano empírico dos fatos clínicos.
Porém, Pereira (1996) aponta críticas ao caráter falsamente ateórico do DSM e de adesão implícita às teses empiristas. Esse "compromisso prático" do DSM obriga pesquisadores a abandonar os conceitos teóricos próprios de seus campos específicos de saber com uma consequência direta: a incapacidade do progresso das disciplinas científicas que compõem o campo da psicopatologia devido à inaptidão de essas mesmas disciplinas constituírem teórica e formalmente seu objeto e métodos próprios. Os compromissos com o pragmatismo, nesse plano, certamente resultam em um enfraquecimento de cada ciência. Assinalamos o risco desse enfraquecimento no contexto em que diferentes disciplinas encontram no campo da psicopatologia um mesmo objeto operacionalmente definido, quer dizer, um objeto comum apenas do ponto de vista descritivo, plano exclusivo aos procedimentos empíricos.
O argumento a favor do uso do DSM no campo das políticas públicas de saúde mental é baseado no fato de que para organizar de forma eficiente os investimentos em saúde pública (incluindo-se obviamente o campo da saúde mental), o gestor deve saber quais são as entidades clínicas mais frequentes e prevalentes em certa comunidade e conhecer a real eficácia das diferentes modalidades terapêuticas disponíveis. Temos aqui uma perspectiva que considera a medicina uma forma de intervenção concreta na ordem da vida e das instituições sociais. O sofrimento mental passa a ser encarado como questão de saúde pública solicitando a intervenção do estado3. Roudinesco (2000) nos lembra da influência do DSM nas escolas de psicoterapia que propõem ao sujeito uma relação terapêutica focada na adaptação social.
Em recente entrevista a uma revista de grande circulação nacional4, a psicóloga, ao ser indagada se acredita que os homossexuais sofram de distúrbio psicológico, afirma:
"O Conselho Federal de Psicologia não quer que eu fale sobre isso. Estou amordaçada, não posso me pronunciar. O que posso dizer é que eu acho o mesmo que a Organização Mundial de Saúde. Ela fala que existe a orientação sexual egodistônica, que é aquela em que a preferência sexual da pessoa não está em sintonia com o eu dela. Essa pessoa queria que fosse diferente, e a OMS diz que ela pode procurar tratamento para alterar sua preferência. A OMS diz que a homossexualidade pode ser um transtorno, e eu acredito nisso".
Lembramos ainda de uma situação que envolveu Spitzer, que tem sido referido como um grande arquiteto da classificação moderna dos distúrbios mentais e foi presidente da força-tarefa da terceira edição do American Psychiatric Association's - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), lançado em 1980. Em 2001, Spitzer criou uma divergência na reunião anual da APA argumentando que indivíduos altamente motivados, com êxito poderiam mudar sua orientação sexual de homossexual para heterossexual. A APA emitiu imediatamente um desmentido oficial do documento, observando que ele não havia sido revisado e afirmou que "não há evidências científicas publicadas que possam apoiar a eficácia da terapia reparativa como um tratamento para mudar de orientação sexual."
Dois anos mais tarde, o documento foi revisto e publicado no Archives of Sexual Behavior. A decisão de publicá-lo causou controvérsia, e um membro contribuinte renunciou em protesto. Esse material tem sido criticado por não-amostragem e critérios pobres de demonstração de sucesso.
5. Considerações Finais
Como vimos na história do DSM, a questão das discussões acerca da presença da homossexualidade como categoria diagnóstica é bastante polêmica. Pereira (2000) considera que esses episódios históricos são ilustrativos do vigor e da fragilidade do jeito estritamente pragmático de se abordar os fenômenos relacionados ao sofrimento psíquico.
Acerca dos reflexos do pragmatismo na prática clínica, utilizaremos um caso presente no DSM-IV-TR, volume dois, que consta na parte intitulada transtornos sexuais e da identidade de gênero. É o caso de um menino que entre os 18 e os 24 meses de idade começa a vestir saias e a ficar fascinado por personagens femininos idealizados como Branca de Neve e Ariel (da Pequena Sereia). Após entrevista com os pais e aplicação de uma entrevista de identidade de gênero estruturada, Brian foi diagnosticado com transtorno de identidade de gênero. O tratamento recomendado se constituiu em sessões semanais de ludoterapia para explorar suas representações internas de gênero e lidar com sua ansiedade generalizada. O aconselhamento dos pais foi pautado em recomendações para manter Brian mais exposto a crianças do mesmo sexo em seu ambiente naturalístico e estabelecer limites muito claros para a identificação com o sexo oposto.
Interessante notar que o terapeuta responsável pela condução do caso faz duas ressalvas. Na primeira ele se situa abertamente contra o "paradigma concorrente que afirma que variação de gênero não é um transtorno mental e que crianças como Brian devem ser aceitas como são e que terapeutas como eu devem ser evitados." (Spitzer; First; Willians; Gibbon, 2008, p. 313). Na segunda ressalva, o terapeuta relata que os pais de Brian se sentiram à vontade com as recomendações de como tratá-lo; logo, ele julgou desnecessário um tratamento mais direto e intensivo para os genitores. E, ainda, como o pai de Brian já fazia psicanálise, o terapeuta não achou adequado profissionalmente passar muito tempo explorando seus problemas.
Após 21 meses de tratamento, o terapeuta considerou que Brian consolidou uma identidade mais confortável de menino. Exemplificou seu êxito com os presentes de aniversário da criança, que incluiu personagens de Star Wars, quadrinhos do Powers Rangers e um boneco realístico do Obi Wan Kenobi. O pai disse que o filho parecia mais que nunca um menino. Já a mãe de Brian, na entrevista com o terapeuta, formulou não saber os motivos que a fizeram comprar itens femininos para o filho. Lembrou-se que comprou a Casa dos Sonhos da Barbie quando Brian completou três anos e que devia estar completamente louca. Interessante o silêncio do terapeuta sobre as falas dos pais. A felicidade do pai sobre o "jeito masculino do filho" apenas reforça o êxito do tratamento, e as questões da mãe são relatadas sem reflexões teóricas mais aprofundadas.
Em psicanálise pensaríamos essa criança na posição de refém do desejo dos pais. O pai quer um menino, e a mãe sonha com uma Barbie. Para Lacan (1969/2003), o sintoma da criança está na posição de responder ao que exista de sintomático na estrutura familiar. Nesse sentido o sintoma, dado fundamental da experiência analítica, pode representar a verdade do casal familiar. Mas para o tratamento adotado, o foco era o tipo de brinquedo que Brian usava, ou seja, bonecos de identidade masculina ou feminina funcionam como um índice da construção da identidade sexual de Brian.
Conforme dissemos anteriormente, o DSM deixa claro que não existem instâncias transcendentes às quais se pode recorrer no que diz respeito aos fenômenos ligados ao sofrimento dos sujeitos. Por outro lado, as classificações supostamente científicas mostram grande fragilidade no que tange a questões de poder, de interesses econômicos, de formação de grupos de pressão por determinados interesses e da mídia em geral.
As considerações anteriores se fazem presentes de forma peremptória no caso do processo sofrido pela psicóloga carioca. Frente aos argumentos pragmáticos e descritivos apresentados pela profissional, o Conselho Federal de Psicologia responde com argumentos políticos e sociais de uma resolução que regulamenta o exercício profissional. Eis a resolução que embasou a penalidade de censura pública à psicóloga:
Resolução CFP N.º 01/99 Art. 2° - "Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas."
Contudo, consideramos prudente uma cautela metodológica para fazermos uma análise crítica do DSM, sob o risco de incorrermos em descaminhos que anulem a validade de nosso exame. Não podemos mascarar a dimensão política de nossa análise acerca do uso do DSM. Certamente nossa crítica é inseparável de uma concepção ideológica e sociocultural de onde se origina.
Em contrapartida, outro risco é alimentarmos o debate em um plano exclusivamente político, abandonando os aspectos teóricos inerentes ao campo psi que o acompanham. Tal reducionismo pode simplificar a crítica, mas retira sua consistência. Do ponto de vista psicanalítico, temos que evitar certa retórica maniqueísta acerca do DSM, bem como uma crítica que é repetida inúmeras vezes, de formas diferentes: o DSM tem uma lógica objetivante que exclui o sujeito da implicação com o próprio sofrimento.
Tal argumento parece-nos parcial, pois exige do DSM o que ele não se propõe a ser. O DSM se fundamenta na racionalidade biomédica, e sua consistência e relativo êxito repousa exatamente nesse fato, com a objetividade dos dados produzidos, relegando a interpretação psicopatológica e do uso clínico de seus ocasionais achados para os cientistas e a sociedade.
Carecemos de um debate minimamente estruturado sobre as consequências subjetivas em longo prazo da ação de alterarmos de forma biológica um estado psicopatológico. Referimo-nos a um debate que fuja das petições de princípio e avalie de forma criteriosa as situações que se apresentam efetivamente na clínica contemporânea.
Notas
1. Jornal O Estado de São Paulo. 31/07/2009. "Psicóloga que diz curar homossexualidade é punida." Jornal Correio Brasiliense. 01/08/2009. "Psicóloga que diz que "cura"gays sofre censura pública."
2. Roudinesco disserta exaustivamente sobre o assunto na obra Por que a psicanálise? apontando que, num mundo de valores utilitaristas e urgentes, passa a ser mais apropriada a crença numa fórmula química do que no manejo das relações regidas pela linguagem. A autora ainda considera que estamos numa sociedade obcecada pela padronização de comportamentos e de crenças voltadas para a normalização de atitudes diante dos pretensos padrões de normalidade.
3. Lembramos que Foucault (2008), ao abordar as formas de governabilidade liberal, considera o liberalismo como a moldura da biopolítica. A análise foucaultiana evidencia o papel paradoxal desempenhado pela sociedade em relação ao governo: princípio em razão do qual este tende a se autolimitar, mas também alvo de uma intervenção governamental permanente, para produzir, garantir e multiplicar as liberdades necessárias ao liberalismo econômico.
4. Revista Veja, edição 2125, de 12 de agosto de 2009. Entrevista: Rozângela Alves Justino "Homossexuais podem mudar".
Referências
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Recebido em 27 de fevereiro de 2010
Aceito em 22 de março de 2010
Revisado em 12 de maio de 2010