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Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.2 Fortaleza jun. 2010
RELATOS DE LIVROS
Homossexualidade e deficiência mental: jogos discursivos e de poder na construção dessas identidades no contexto escolar
Anderson FerrariI; Luciana Pacheco MarquesII
IDoutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora. End.: R. Monsenhor Gustavo Freire, 520/204. São Mateus. Juiz de Fora-MG. E-mail: aferrari@acessa.com
IIDoutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora. End.: R. Professor José Ribeiro, 268. Santana. Juiz de Fora-MG. E-mail: luciana.marques@ufjf.edu.br
RESUMO
Como pesquisadores que se interessam pelas diferentes formas de manifestação da condição humana e as tensões entre as mesmas, buscamos compreender os desafios que se colocam para pensar estratégias de reversão dos processos de exclusão estabelecidos na sociedade e nas escolas. Nossa contribuição, com este texto, será discutir os jogos discursivos e de poder que organizam as negociações entre as identidades no contexto escolar, a partir de dois casos ocorridos com alunos, sendo um relacionado à sua orientação sexual e o outro a um diagnóstico de deficiência mental, numa lógica foucaultiana, o que significa pensá-los como produtos dos discursos que permitem que os alunos se posicionem do modo como fizeram. Não centralizamos a análise nos alunos em particular, mas entendendo-os como meio pelo qual os discursos passam e se atualizam. Para justificar nossa contribuição, recorremos a Souza e Fleuri (2003), que propõem uma ampliação da visão intercultural para além da convivência numa escola entre sujeitos de etnias diferentes, considerando também o pertencimento da pessoa a diferentes grupos que se identificam conforme as gerações, o gênero, a classe econômica, a pertença regional, as condições físicas e mentais, entre outros. A partir dessa discussão, fazemos proposições para uma educação que considere as diferenças.
Palavras-chave: Deficiência mental. Homossexualidade. Discurso. Poder. Escola.
ABSTRACT
As researchers who are interested in the different forms of manifestation of the human condition and their tensions, we try to understand the challenges that are posed so as to think about exclusion process reversal strategies established in society and at schools. Our contribution with this text will be to discuss the discursive and power games that organize negotiations among entities within the school contexts based on two cases that had happened with two students, one being related to the student's sexual orientation and the other one a mental deficiency diagnosis, within the Foucaultian logics, which means thinking of them as products of the discourses that allow students to position themselves in the manner they did. We have not concentrated the analysis on the students in particular, but on understanding them as a means through which discourses go and are updated. In order to justify our contribution, we refer to Souza and Fleuri (2003), who propose broadening the intercultural view beyond the social relations at a school among subjects of different ethnicities, also considering the person as belonging to different groups that identify one another according to generations, gender, economic class, regional location, physical and mental conditions, among others. Based on this discussion we present proposals for an education that considers these differences.
Keywords: Mental deficiency. Homosexuality. Discourse. Power. School.
Introdução
Este texto foi escrito a partir das reflexões das pesquisas que vimos desenvolvendo ao longo da nossa trajetória acadêmica, preocupados com a dimensão educativa da construção das diferenças a partir das imagens e discursos que atingem, sobremaneira, estes "estranhos, anormais e diferentes". Não se trata de pensar essa construção em qualquer espaço, mas num campo específico de investigação - a escola, buscando examinar a exclusão como resultado de processos classificatórios e discriminatórios, demonstrando que as práticas discursivas vão além de exercer simplesmente a função de descrever e nomear o "real", criando e legitimando aquilo que chamamos e que identificamos como "a realidade". Nesse sentido, partindo de dois casos de construção da homossexualidade - narrado por Anderson Ferrari - e da deficiência mental - narrado por Luciana Pacheco Marques -, propomos discutir a respeito dos conceitos de identidade e sua relação com discursos e poder, sugerindo problematizá-las.
Em especial, este texto é um convite a refletir e a questionar alguns conceitos tidos como naturais, como a-históricos e, que, portanto, não despertam nenhum tipo de desconfiança. Conceitos que não nos governam sozinhos, mas que nos fornecem indicações de como devemos nos relacionar em relação às diferenças. Refletir sobre esse processo de normalização da sociedade e das ideias que organizam nossas ações, discursos, os modos de ser e de relacionar com as diferenças é uma forma de desnaturalizar os conceitos de normalidade e anormalidade.
Caso 1
Esta pode ser considerada uma história como tantas outras que se repetem quando se trata de discutir a construção das diferenças e identidades no contexto escolar. Trata-se de uma conversa com João, um adolescente do grupo de jovens gays do MGM - Movimento Gay de Minas - que ocorreu durante a reunião semanal. Extremamente empolgado, o menino dizia sobre a alegria de ter encontrado o grupo gay, de ter a oportunidade de estar num espaço de encontro e de troca com os iguais, de ter acesso a informações e aprendizagens novas, de estar lidando com a sua homossexualidade de uma forma mais positiva e, principalmente, de estar levando uma amiga, "antiga" namorada, para conhecer o grupo. A alegria também dizia respeito a esse fato novo na sua vida, poder assumir para si e para os outros a identidade homossexual, que, segundo ele, "havia escondido por muito tempo". A fala revelava um tempo de sofrimento e desqualificação. Recuperando esse tempo de contato com a homossexualidade, lembrou que, por volta da sétima série, entre doze e treze anos, começou a ser chamado de gay pelos outros colegas de turma, fato novo na sua vida. Morador de cidade pequena, a classificação logo ultrapassou o contexto escolar e tomou outros espaços de sociabilidade, como o clube que frequentava. Na sala, fora apelidado de "Monalisa". Havia uma brincadeira em que cada menino, de uma hora para outra, mesmo durante a aula, dizia uma sílaba do apelido. Assim, se sucediam: "É mo", "É na", "É li", "É sa", sendo que um quinto aluno encerrava o "sofrimento", dizendo: "Só posso te dizer que é Monalisa". A turma inteira ria, já que todos sabiam do que se tratava. Contou como isso causava sofrimento, já que não havia momento certo para iniciar e, portanto, fazia com que ele ficasse tenso por toda manhã, esperando que, de uma hora para outra, a agressão ocorresse. Ao mesmo tempo, não havia nenhum tipo de interferência do professor e nem ele se sentia forte o bastante para denunciar tal fato, esperando que, ao se silenciar, um dia, todos iriam esquecer e a "brincadeira" iria acabar. Mas, como isso não ocorria, contou que foi se calando, evitando se mostrar, já que qualquer participação na aula poderia iniciar o processo. Esse fato levou-o a questionar se era mesmo homossexual, uma vez que todos diziam isso. Lembrou que, até então, não tinha certeza de nada, pois se sentia com "vontade de namorar" tanto meninas quanto meninos. No entanto, essas relações levaram-no a se perceber como homossexual, ao mesmo tempo em que não queria sentir isso que vinha surgindo com o sofrimento. Tentando resolver essa última questão, começou a construir uma identidade masculina, iniciando um processo de namorar garotas como que para provar para os outros que era "homem" e, assim, encerrar as agressões. A namorada que, naquele momento, estava sendo levada ao grupo gay fazia parte dessa fase, fato que demonstrava para ele a passagem para outro momento, em que podia assumir, sem medo, a identidade homossexual, aquela que fora imputada pelo "outro" e que ele não queria, mas que, nessa ocasião, já era assumida, constituindo-se como motivo de "orgulho". Dizia ele, com um sorriso no rosto: "Trouxe minha ex-namorada para conhecer, do tempo que eu era hetero", recuperando toda essa história. No final, fechou a narrativa com uma frase intrigante: "Ainda hoje, quando ela fala no meu ouvido, eu me arrepio, sinto um pouco de tesão, mexe comigo". Com essa revelação na cabeça, perguntei para ele o que fazia com isso, ao que me respondeu: "Nada! Eu sou gay!"
Caso 2
Pode parecer lugar comum falar em crianças nomeadas em suas escolas como as que não aprendem e que são encaminhadas para a escola especial. O processo de desqualificação de muitos alunos acontece cotidianamente, sendo o caso do menino que, aqui, chamaremos de Pedro mais um a ser contado e recontado para que possamos, algum dia, escutar o que estamos fazendo quando agimos com base nesses padrões estabelecidos por nós mesmos para as nossas crianças e adolescentes. O fato foi retirado de uma observação, por ocasião de uma pesquisa, em uma aula na turma de Pedro, nomeada como "turma de alfabetização", na escola estadual especial para deficientes mentais que ele frequentava. Na ocasião, a professora , após um passeio no parque da própria escola, solicitou que todos desenhassem e fizessem a escrita espontânea dos brinquedos que lá viram. Ao terminar seu desenho, Pedro parou, durante um tempo, ficou olhando para o alto, relutante em continuar a atividade. Logo depois, num ímpeto, perguntou à professora: "Pode escrever com letra palito?" Ao que ela respondeu: "Pode". Diante desse fato, assim que ele terminou de fazer a atividade, aproximei-me, e logo que ele me contou o que havia feito, perguntei-lhe o porquê de ter solicitado à professora escrever com letra palito, ao que ele respondeu: "Eu vim para cá, porque não sabia escrever com letra cursiva". Entendi o que ele dizia, mas pedi que me contasse como tudo havia acontecido. Ele contou: "Ah, eu estudava na escola, lá perto da minha casa (uma escola estadual regular), na primeira série, mas a professora chamou a minha mãe e disse que eu não sabia escrever, que era pra ela me trazer para cá. Quando eu tomei pau, minha mãe me trouxe pra cá". A professora atual de Pedro, ouvindo nossa conversa, completou: "Ele chegou, aqui, há dois anos atrás, e só agora começou a escrever de novo, porque, como ele não sabia escrever com a letra cursiva, exigência da escola, foi diagnosticado como tendo deficiência mental. Agora que ele está aprendendo, vai poder sair daqui". Pedro, que estava ouvindo nossa conversa, retrucou: "Eu não quero ir; aqui, eu posso escrever com a letra palito; lá, não vão deixar eu escrever assim".
Discurso, poder e identidade
Em ambos os casos, as relações parecem ter sido não somente iniciadas, mas também reforçadas a partir da discriminação, ou seja, uma atitude a respeito de algo ou alguém, e da demonstração de um tipo de conhecimento. Os alunos e professores trazem para seus discursos e para suas ações as imagens e as informações que têm a respeito dos diferentes e do que significa ser diferente. Quando discriminam um aluno, estão "criando" o diferente, imputando uma identidade relacionada diretamente a cada um deles, construindo discursos sobre a diferença, agredindo-os de forma geral. Quer dizer, a questão não está no menino classificado como homossexual, mas no tratamento que estão dando à homossexualidade, nem, tampouco, na condição de aprender do outro, mas na condição de deficiente mental que estão lhe imputando. Quando a escola não percebe a dinâmica de organização desse jogo de imagens e de identidades e não trata do assunto, está jogando a responsabilidade sobre quem é estigmatizado, não entendendo que a questão é mais ampla, pois diz respeito à sua responsabilidade não só com essas crianças e adolescentes, mas com a construção dessas identidades, consideradas marginalizadas, e com a formação de todos os alunos.
Nos dois casos, a ação dos alunos e dos professores demonstra que o nosso espaço - a escola - é repleto de discriminações, de violências, de confrontos, que, sem dúvida, estão presentes em outros espaços sociais. Estão presentes em todos os espaços, em maior ou menor grau, explícita ou implicitamente. Isso não justifica o silenciamento ou imobilismo, principalmente na escola, por ser um local privilegiado e compromissado com o questionamento, a transformação e a elaboração de novos projetos sociais. Nesse sentido, a escola pode ser um local de problematização dessas construções, possibilitando discutir, ficar atento e trazer à tona os fatos que ocorrem em sala, buscando seus sentidos, que, muitas vezes, estão além do fato em si. Como tais instituições e os diferentes grupos que estão em diálogo investem na organização de uma identidade homogênea de homossexualidade e de deficiência e como a produção dos discursos serve ao enquadramento dos "classificados" naquilo que se espera? Parece possível pensar que essas relações reforçam discursos elaborados em outros tempos, que demonstram como estamos presos na repetição, compreendendo as relações que se estabelecem na escola como dispositivos da sociedade e da cultura (Foucault, 1966/1999b, 1970/2002). Assim, a dedicação ao enquadramento, ao disciplinamento e ao controle põe em funcionamento mecanismos de interdição, atribuindo significado à homossexualidade e à deficiência e criando um lugar para cada uma delas (Foucault, 1975/1994). Portanto, ampliar a análise significa ultrapassar a agressão e a discriminação e representa desvelar as relações com a construção das identidades dos alunos e professores, dos que classificam e dos que são classificados. Tais jogos e arranjos de identidades se relacionam, haja vista que as identidades dialogam entre si. Dessa forma, problematizar a construção das identidades homossexuais representa discutir, também, a relação com as outras orientações sexuais, assim como as ideias em torno da deficiência põem em discussão a construção do que vêm a ser e o que representam as normalidades.
Tudo passa pelo discurso. A palavra determina a identidade do ser e, por consequência, fortalece as identidades dos outros como seu "oposto": mulher X homem; criança X adulto; negro X branco; homossexual X heterossexual, deficiente X não deficiente. Nesses casos, o discurso cria não somente as identidades como as diferenças, que devem ser entendidas como interdependentes, mas determina uma hierarquia entre elas. Essa forma de compreensão gera desdobramentos significativos, ou seja, deve-se pensar as identidades e as diferenças como construções culturais e sociais, não como algo "dado", como essências, como se estivessem aí para serem reveladas ou desvendadas, respeitadas ou discriminadas (Silva, 2000).
Woodward (2000), ao analisar os jogos de força e de poder que organizam as construções das identidades, esclarece que elas devem ser entendidas como relacionais, marcadas pela diferença e pelos símbolos. Ao demonstrar que toda identidade depende, para existir, de outra que está fora dela, constata que toda identidade é marcada pela diferença. Se as identidades são marcadas pelas diferenças, elas são definidas através dos símbolos: identidades e diferenças estão associadas às coisas que as pessoas usam, fazem ou dizem; enfim, aos símbolos, que são lidos a partir do meio social que os organiza. "Assim, a construção da identidade é tanto simbólica quanto social" (p. 10). Tanto o simbólico quanto o social são organizados pelo discurso. O discurso atravessa e organiza a maioria de nossas práticas, constituindo-se como campo de produção das diferenças e desigualdades. Para Louro (1997), ele "não apenas expressa relações, poderes, lugares, [...] os institui; [...] não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças" (p. 65). Nesse sentido, ressalta a importância de ficar atento e escutar tanto o que é dito, quanto o não-dito. O que é silenciado adquire significado, haja vista que, também, tem algo a dizer sobre a organização de tais relações, além de dar voz aos sujeitos que não são (p. 67-68). O "dito" e o "não-dito" são atravessados e expressam o poder presente nas relações interpessoais. O confronto demonstra a relação de poder presente, em que todos os sujeitos estão situados em posições diferentes, determinadas e construídas antes deles e nas quais eles são posicionados e atuam.
Para Foucault (1976/1988), toda relação em sociedade é de poder, o que significa dizer que viver em sociedade é lidar com ações difusas, nas quais todos exercem poder uns sobre os outros. O poder não está nas pessoas, mas nas relações que se estabelecem entre elas. "Ao operar assim, o poder não é nem repressivo nem destrutivo, mas sim produtivo: ele inventa estratégias que o potencializam; ele engendra saberes que o justificam e encobrem; ele nos desobriga da violência e, assim, ele economiza os custos da dominação" (Veiga-Neto, 2000, p. 63). A partir dessa perspectiva, aqueles que são classificados, também, exercem o poder, mesmo que não tenham consciência disto, podendo romper com a relação de dominação, na medida em que se posicionam em confronto com ela:
[...] ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma "apropriação", mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele, antes, uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo, antes, a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio (Foucault, 1975/1994, p. 29).
Essa perspectiva de poder como relação e como estratégia nos convida a desfocar a análise e mesmo o tratamento destinado às pessoas classificadas como homossexuais e deficientes mentais para outro tipo de investigação mais voltado para a cultura. O que está em jogo são as construções das subjetividades, recheadas de poder-saber, construindo a todos numa relação. A quem está servindo os discursos das homossexualidades e das deficiências mentais? Que táticas, manobras e estratégias estão sendo utilizadas para colocar tais discursos em circulação?
Foucault (1974-1975/1999a) explicita os conceitos de desqualificação e qualificação, ao tratar das tecnologias do discurso. O discurso dá uma maior ou menor visibilidade à qualificação ou à desqualificação das classes, grupos ou pessoas que se queira alcançar ou que sejam destituídas do poder. Reconhecendo a historicidade dos objetos e sujeitos, os estudos genealógicos inaugurados por Foucault defendem a importância de investigar a sua construção, levando em consideração as suas condições de surgimento. Partir de questões levantadas no presente significa problematizá-las, considerando sua história e o seu aparecimento numa determinada época para pensar as continuidades e rupturas. A proposta é questionar o que parecem ser "verdades" inquestionáveis. Assim, as considerações e, mesmo, as provocações inseridas neste texto têm a finalidade de questionar o presente. Nesse sentido, o que importa não é o que somos, mas como chegamos a nos tornar o que somos, para, a partir daí, podermos contestar tais mecanismos de construção. Trata-se do entendimento da construção dos sujeitos pelo saber, como sujeitos de conhecimento, pela relação com os outros, como sujeitos construídos a partir da ação dos outros, e pela ação de cada um consigo mesmos, como sujeitos que, construídos em meio a uma moral e a um saber que são internalizados e, portanto, responsáveis pelos "cuidados consigo e com os outros" (Foucault, 1976/1988).
As estratégias de desqualificação podem ser percebidas em relação às mulheres, às crianças, aos negros, aos deficientes, aos homossexuais e a todos considerados desviantes dos padrões desejáveis pela sociedade, conduzindo-os à condição de subalternidade, tanto nos direitos quanto nas funções sociais. Isso serve para chamar atenção para certa "ignorância" a respeito da construção da nossa realidade, sobretudo no que se refere à sua relação com a herança moderna de construção de tais categorias. (Foucault, 1988) O discurso, ao desqualificar as mulheres, legitima o poder dos homens; ao desqualificar as crianças, confere aos adultos o poder de dizer sobre elas; ao desqualificar o negro, atribui a ele papéis e funções sociais considerados inferiores; ao desqualificar o deficiente, resguarda a sociedade de sua presença; ao desqualificar os homossexuais, condena-os à margem da sociedade. Cria-se, assim, uma sociedade marginal de desqualificados pelo gênero, geração, raça, condição física, orientação sexual e, por isso mesmo, excluídos. Ainda há as desqualificações que, segundo Foucault (1974-1975/1999a), constituem um duplo, ou seja, a junção de vários fatores de desqualificação em um mesmo indivíduo: além de deficiente, é negro, é feio e pobre; ou além de homossexual, é negro, é feio e pobre. Todavia, as técnicas de desqualificação não são, necessariamente, formuladas e veiculadas pelo atributo do grotesco, que, segundo Foucault (1974-1975/1999a), trata-se de um dos procedimentos essenciais à soberania arbitrária. É importante, muitas vezes, que a desqualificação esteja camuflada; que o que se apreenda seja o sentido da promoção, enquanto que o que se pretende é a cristalização, no plano imagético, da inferioridade instalada. Assim, a discriminação expõe a relação entre as identidades do eu e do outro: "realizada na relação interindividual, a construção do eu é também a construção do outro; é a sua diferenciação recíproca e dialeticamente complementar que permite a sua articulação" (Pinto, 1997, p. 46).
Discutindo, ainda, a relação entre o eu e o outro na construção das identidades, Itani (1998) nos ajuda a entender que a intolerância é a ação que se organiza a partir da vontade de eliminação do outro, ou melhor, da negação da existência do outro. Muitas vezes, o outro está mais presente em nós do que podemos imaginar; então, negar ou tentar eliminar o outro pode ser compreendido, também, como uma tentativa de negar ou eliminar algo que é nosso. Dessa forma, é possível e importante estar atento não somente às consequências do ato sobre os alunos que foram classificados, mas também sobre os alunos e professores, que os discriminaram. O mais comum em histórias como as que discutimos aqui é centrar as análises no discriminado, considerado o que sofreu maior prejuízo, esquecendo quem discrimina, haja vista que ele é concebido como aquele que exerce o poder e que, portanto, é socialmente aceito, não sofrendo qualquer dano no seu processo de construção de identidade com a agressão. No entanto, a agressão também diz respeito e revela algo do processo de quem agride, não apenas porque patenteia a intolerância e expõe as suas mazelas como indivíduo em construção, mas, além disso, diz respeito à sua identidade. A verdade é que é possível construir o eu sem, necessariamente, negar o outro.
Recorremos aos discursos como forma de assumir e entender o sujeito como ponto de chegada, mas como ponto de partida, ou seja, não como um ser racional que ocupa o centro dos processos sociais. Foucault (1976/1988) denuncia como a Modernidade se dedicou à construção do sujeito como unidade indivisível, detentor de um eu profundo, que deveria ser conhecido, descoberto, revelado, denunciado pelo próprio sujeito ou por outros, através dos mecanismos discursivos. Como consequência de tal perspectiva, o sujeito moderno passou a ser considerado um ser único. Dessa forma, tornou-se uma "realidade discursiva" (Veiga-Neto, 2000), ao mesmo tempo que uma "realidade concreta". Mas a questão que parece fundamental é revelar tais diferentes construções do sujeito, que Foucault (1976/1988) chamou de tecnologias do eu, discutindo as formas e os processos que possibilitam aos sujeitos se tornarem o que são.
Amaral (1998) chama atenção para o fato de a prática da discriminação ser capaz de impedir que os que a vivenciam vivam plenamente não apenas seus direitos de cidadãos, bem como, também, suas próprias infâncias. Aplicando tal concepção à análise dos casos, é possível destacar que a discriminação na escola contribui para um duplo prejuízo: perturba a construção positiva de suas identidades e, também, a aquisição de conhecimento, haja vista que não lhes são fornecidas armas para lutar contra tais discriminações no campo do conhecimento e nem mecanismos que lhes possibilitem construir outras imagens mais positivas de si mesmos. A preocupação é questionar que sujeitos tais práticas constroem, ou seja, como tal duplo prejuízo mantém um projeto de construção dos sujeitos, fortalecendo o seu autogoverno (Foucault, 1976/1988), por meio do qual deve ser negado e afastado pelos próprios sujeitos o que é considerado prejudicial à sua saúde e ao seu bem-estar, segundo o que é "aceito" culturalmente como o "certo" e o "errado", o "bom" e o "mau", o "normal" e o "anormal". Portanto, o que pode ser feito é atuar no sentido de que todos possam construir suas identidades de forma menos traumática.
Tratar de diferenças e identidades é tratar de tecnologias discursivas. Ou seja, elas trazem à tona como cada um constrói, vivencia e compreende seus desejos, seus corpos e suas identidades e se relaciona com os outros e com os desejos dos que estão à sua volta, demonstrando que os efeitos dos discursos e das imagens são produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais, tudo isso numa relação complexa e de poder que atinge, incondicionalmente, todos. Foucault (1976/1988) destaca que estamos necessariamente "no" poder, que não podemos "escapar" dele. O poder não é algo exterior, ou que uns exercem e outros não, que existe em um lugar e não em outro. Ao contrário, deve-se entender o poder como "multiplicidade de correlações de força" (Foucault (1976/1988). É um jogo em que os participantes e as forças se alteram e se confrontam. Partindo de tal constatação, ressalta que "onde há poder, há resistência" (p. 91). É em meio a tal relação social complexa de poder e força que as identidades são construídas. Isso significa que as identidades não são apenas definidas, mas impostas, pois convivem de forma hierárquica. Portanto, as identidades são disputadas pelos grupos. Como ressalta Silva (2000), a "afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e excluir" (p. 82). Incluir/excluir, demarcar fronteiras e classificar parecem expor o jogo de poder que se articula em torno das construções das identidades e diferenças. Cada sujeito ocupa uma posição nesse jogo de poder que organiza os discursos, de forma que estão constantemente em relação com tal rede discursiva. Como ressalta Veiga-Neto (2000), "esse emaranhado de séries discursivas institui um conjunto de significados mais ou menos estáveis que, ao longo de um período de tempo, funcionará como um amplo domínio simbólico no qual e através do qual daremos sentido às nossas vidas" (p. 56-57). Tal concepção nos ajuda a entender como João e Pedro passaram a se compreender e a se perceber a partir da nomeação do "outro", demonstrando dificuldade de se perceber em outro lugar senão naquele que lhes foi conferido. João não consegue fazer nada com o que "ainda" sente pela ex-namorada, já que dar vazão a seu "tesão" representa uma ameaça à sua identidade como homossexual, ou seja, aquilo que o "outro" e que ele acha que é ser homossexual, assim como Pedro, que, diante da possibilidade de poder sair do lugar que o "outro" lhe atribuiu, diz, textualmente, "não quero ir", demonstrando dificuldade de se perceber em outra posição. Assim, os que são classificados acabam construindo uma identidade, uma autoimagem e um autoconceito que levam em consideração os sentidos e os regimes de verdade que se estabelecem a partir dos discursos: "um regime de verdade é constituído por séries discursivas, famílias cujos enunciados (verdadeiros ou não-verdadeiros) estabelecem o pensável como campo de possibilidades, fora do qual nada faz sentido [...]" (p. 56-57). Considerando que a construção de si mesmo pode ocorrer numa progressiva apreensão/transformação das palavras dos outros em palavras próprias, corre-se o risco de assumir os conceitos negativos que os outros impõem. Há o risco de se criar um "outro" que ele "não é", mas que "gostaria de ser", segundo os critérios de aceitação definidos pelos "outros". Assim, pode-se criar outra identidade mais aceita. Portanto, discutir as diferenças e a construção das identidades na escola é colocar em evidência a rede de significados e de verdades que constitui a nossa cultura.
Na perspectiva que aqui interessa, a questão, entretanto, é pensarmos a cultura para além do domínio material - isto é, do domínio dos objetos e das práticas envolvidas com esses objetos. A questão é pensarmos a cultura, também e ao mesmo tempo, no domínio simbólico: como significamos os objetos e as práticas e, ao fazermos isso, como abstraímos e transferimos esses significados para outros contextos; e, ao fazermos essa transferência, como os ressignificamos (p. 57).
Não há como pensar a identidade individual fora de um grupo social (Hall, 1997; 2000). Assim, emerge outro aspecto das identidades: o sentimento de pertença. João e Pedro parecem ter encontrado seu grupo e demonstram certa "felicidade" nele, pois o percebem como um lugar em que são "aceitos", em que não sofrem a ameaça da discriminação, não se dando conta de como esse processo foi forjado e como estão presos a tal lugar, tornando-se "o" homossexual e "o" deficiente. Esse sentimento, construído a partir do compartilhamento de significados em comum, é capaz de criar uma rede de comunicação e de afinidades entre os sujeitos, fornecendo-lhes o sentido de comunidade, como um grupo que tem algo em comum, que tem uma identidade em comum. Ao mesmo tempo, o sentimento de pertença serve para marcar os que estão à margem, que estão fora da comunidade ou do grupo (Veiga-Neto, 2000).
Quem se questiona quanto à sua identidade, questiona, na verdade, além do seu lugar, mas sobre o lugar do outro no mundo (Santos, 1993). Portanto, é um movimento importante para a educação trabalhar no sentido de possibilitar projetos de emancipação de tais meninos. Entretanto,
[...] a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados com uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente (Hall, 1997, p.13).
Atualmente, não se leva em consideração a diversidade de posições e de identidades que estão à disposição e que cada um pode assumir. Na medida em que as identidades não são entendidas como fluidas, acabam reforçando o processo de absolutização. As formas e as imagens que servem para nos representar e determinar como nos percebemos podem se alterar, haja vista que elas são produzidas socialmente, por meio dos sistemas simbólicos e das formas de exclusão social (Woodward, 2000). As identidades e as diferenças não podem ser compreendidas fora de tais sistemas de classificação e de exclusão.
Podemos perceber que há uma articulação entre construção de identidades e educação, o que possibilita ampliar a noção de educação como um processo que vai além da escola, envolvendo uma multiplicidade de relações de forças que se estabelecem nos relacionamentos familiares, nos meios de comunicação, no convívio social; enfim, em diferentes espaços em que os indivíduos são transformados e aprendem a se reconhecer como detentores de determinadas identidades. Desse modo, quando nos propomos a problematizar a construção das identidades e das diferenças, destacamos a necessidade de considerar os desdobramentos de tais conceitos, que exigem reflexões a respeito de processos sociais mais amplos. Os processos educativos englobam estratégias inconscientes, sutis e, talvez por isso, muito eficientes, assumindo uma aparente naturalidade. Nesse sentido, é importante reconhecer e problematizar o que está posto como natural no cotidiano escolar: qual a contribuição da escola na construção de tais significados? Em que sentido a educação mantém ou desconstrói tais discursos produzidos, significados compartilhados e imagens? O que representaria para o confronto, para as relações de poder e para o contexto social a construção de outras imagens mais positivas de tais identidades marginalizadas? Que potencialidade e quais desafios estão postos para a educação no enfrentamento de tais questões?
No cotidiano das salas de aula, os alunos que se afastam do padrão preestabelecido socialmente como "normal" são marginalizados ou, até mesmo, eliminados do convívio social. O "aluno com dificuldades de aprendizagem", o "aluno indisciplinado", o "aluno homossexual" e o "aluno deficiente" são rotulados e separados como produtos inadequados. Ao se legitimar alguns alunos como "alunos-padrão", legitima-se a relação de poder existente na escola. A exclusão educacional envolve desde o espaço ocupado pelo aluno na carteira à escolha para participação no teatro da escola. O aluno marcado como "diferente" nunca é escolhido para as atividades consideradas interessantes: ele é excluído por uma seleção difusa da escola, pois toda ela é geradora de desqualificações. (Ferrari, 2000) Relembra Oliveira (1994), que todas as relações estabelecidas na sala de aula, sejam elas entre aluno/escola, aluno/conhecimento, aluno/professor e aluno/aluno, são perpassadas por imagens, valores, significados e relações de poder. Portanto, tais relações interferem e explicam o processo de construção das identidades como relacional, individual, coletivo e social. Talvez a proposta da escola possa se direcionar à tentativa de mudança de posição entre o que está no centro e o que está nas margens. Discutindo como a escola lida com o incômodo gerado por tais posições e que atinge, sobremaneira, as identidades culturais de gênero, de raça, de sexualidade e de etnia, Louro (2003) destaca ser comum que, na tentativa de alterar tal quadro, a escola não passar do "reconhecimento retórico da ausência. [...] As atividades - sejam quais forem os objetivos ou intenções declarados - não chegam a perturbar o curso 'normal' dos programas, nem mesmo servem para desestabilizar o cânon oficial" (p. 45).
Tomando como base os mecanismos de desqualificação e de qualificação empregados pelas tecnologias do discurso, percebemos que o discurso que qualifica procura dar visibilidade às qualidades dos indivíduos ou grupos. Enquanto os ditos "os diferentes" forem comparados com o que a sociedade convencionou chamar de "normais", serão sempre desqualificados em relação aos outros. Para qualificá-los, é preciso considerá-los como praticantes da escola, como membros efetivos da sociedade e como intercessores no processo de transformação social, ou seja, é preciso dar visibilidade à sua condição humana.
O que se pretende, no momento histórico atual, é que, no processo pedagógico, se viva a complexidade do/no cotidiano, em sua diversidade e riqueza. O que se busca é a constituição de uma pedagogia de outro tempo (Skliar, 2002), um currículo transversal e rizomático, como propõe Gallo (2003), ou uma "pedagogia rizomática", conforme Lins (2005), na lógica deleuziana. Trata-se de uma pedagogia que não pode "ordenar, nomear, definir, ou fazer congruentes os silêncios, os gestos, os olhares e as palavras do outro" (Skliar, 2002, p. 214). É a pedagogia que pretendemos, mas não sabemos fazer. É a pedagogia de experiências ricas de cotidianos diversos, que empobrecemos na medida em que pesquisamos e tentamos traduzir em relatórios, utilizando, para tal, referenciais do discurso proprietário ou colonizador nos quais estamos mergulhados. É a pedagogia que não se preocupa mais em como seria a escola - "e se o outro não estivesse aqui?" (p. 196) - pois não ocupa todo o seu tempo imaginando como seria se fossem todos "normais", se todos aprendessem, se todos os professores fossem bem instruídos e bem pagos, se todas as escolas fossem bem equipadas, se toda gestão fosse democrática. É a pedagogia que vive a realidade tal como ela é, em sua diversidade e riqueza.
Skliar (2001) considera que as mudanças textuais ou legais no processo pedagógico deveriam ser pontos de chegada, sendo o ponto de partida os anseios e entendimentos dos diretamente envolvidos no processo educacional, quer sejam professores, alunos, pais, sindicatos ou comunidade. O cotidiano deve ser vivo, acontecendo aprendizagem, também, com as práticas coletivas e com os movimentos sociais; enfim, na relação com o contexto em que se inserem. Também as transformações do código pedagógico, envolvendo currículos, programas de formação de professores e didáticas deveriam se iniciar nas práticas dos professores e alunos, ou seja, daqueles que, de fato, concretizam a educação. Porém, é de suma importância que partam da mudança das identidades dos professores, alunos e escolas, de modo que todos os sujeitos possam assumir sua condição de agentes das situações, nunca de objeto do qual se fala ou se refere; deve haver mudança, também, das representações, de modo que denunciem a situação de status quo que a sociedade vive, visando a questionar e problematizar os atuais discursos e práticas hegemônicos imersos no contexto social, para que façam sentido as mudanças nos códigos pedagógicos e textos legalmente reconhecidos.
Gallo (2003) propõe que elaborar um currículo transversal e rizomático implica pensar o processo educativo como uma heterogênese, "uma produção singular a partir de múltiplos referenciais, da qual não há sequer como vislumbrar, de antemão, o resultado" (p. 98): é singular, pois "voltado para a formação de uma subjetividade autônoma", e aberto à multiplicidade, na medida em que os campos dos saberes são abertos, sem fronteiras. Nessa perspectiva, o professor assume-se como um a mais no grupo, buscando a construção do conhecimento, não mais como o único a ensinar no grupo, ou o que é destinado a transmitir conteúdos estanques e desvinculados da realidade. Alunos e professores são intercessores, exercitando o diálogo e a criatividade e atuando como co-autores de uma escola na qual todos são críticos e autônomos. Trata-se de uma "pedagogia rizomática", conforme Lins (2005),
[...] que tem como axioma primordial uma ciência nômade ou itinerante, já que está inserida na ética e na estética da existência, na imanência, pois, como vida e emerge como pura resistência, puro devir. Eis um dos eixos do projeto de uma escola inserida numa dinâmica do rizoma: resistir, infectar e vitalizar o instituído. Numa pedagogia nômade, os saberes tornam-se sabores porque permitem as inteligências aceder a um universo outro. Os saberes como sabores não mudam a realidade finita dos homens, mas atribuem ao "incompreensível" uma realidade artística, criadora (p. 1229).
Estar na caminhada rumo a uma educação que considere as diferenças constitui um grande desafio, que entendemos ser viável: possibilitar as desconstruções, os encontros nômades, os desejos e as bifurcações, dos quais ninguém esteja excluído e que propiciem o reconhecimento e o respeito pelos diferentes modos de ser e estar no mundo.
Referências
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Recebido em 07 de fevereiro de 2010
Aceito em 28 de março de 2010
Revisado em 12 de abril de 2010