Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Mal Estar e Subjetividade
versão impressa ISSN 1518-6148
Rev. Mal-Estar Subj. vol.10 no.2 Fortaleza jun. 2010
RESENHAS DE LIVROS
Freud e a Literatura: destinos de uma travessia
Autora da resenha
Karla Patricia Holanda Martins
Psicanalista, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.
(Leônia Cavalcante Teixeira)
Editora As Musas, 2009, 191 págs.
No livro Freud e a literatura: destinos de uma travessia, a psicanalista e pesquisadora Leônia Cavalcante Teixeira retoma o campo de relações entre a literatura e a psicanálise em uma perspectiva onde investiga inicialmente a aventura que, antes de ser a da Psicanálise, foi a do jovem-leitor Freud na sua descoberta dos textos de Cervantes, Shakespeare e Goethe, dentre outros clássicos da literatura romântica européia. Propõe que a posição subjetiva de Freud a partir de suas leituras preconiza o que ainda está por vir na constituição do corpus teórico psicanalítico e na instauração de uma posição ética frente à escuta clínica de seus pacientes.
A autora identifica a dimensão sensível e especulativa da obra freudiana e suas afirmações de estilo, lembrando a impressão causada em Freud por Charcot, por ele definido como um homem com a natureza de um artista, um "visuel". Sugere a adoção da posição ética, já suposta em Freud, frente aos impasses teórico-clínicos que fariam dos analistas escritores criativos, capazes de uma reinvenção permanente do arcabouço teórico-clínico. Propõe ainda que a metapsicologia, positivada em seus paradoxos, seja flexibilizada frente aos movimentos do sujeito na clínica e no campo social e que a escrita do analista seja sempre o testemunho da sua experiência.
A coincidência entre a cena literária/poética e a cena analítica faz parte de alguns dos desdobramentos da condição dada por Freud aos poetas: a de enunciadores de um saber que a ciência tardava a alcançar. Ao retomar estas questões, Teixeira faz um justo elogio ao lugar da literatura na construção da obra freudiana. Vai mais adiante e investiga a clínica, tomando a literatura como forma privilegiada de inscrição e transmissão do saber inconsciente, ou seja, como modalidade de apreensão do conhecimento. Aproxima os enigmas da criação artística e os processos de subjetivação em jogo na literatura e na psicanálise, reconhecendo em ambas a possibilidade de captar a densidade do mundo, permitindo um modo específico de acesso ao real.
Ao discutir as relações entre verdade e ficção, retoma os trabalhos de Lacan e sua aposta na existência de similaridades entre estruturas ficcionais e saber inconsciente, responsáveis por uma vertente importante do trabalho de extensão da psicanálise à literatura. Mas reconhece a existência de uma outra forma de trabalho, também experimentado por Freud e alguns de seus contemporâneos: aquele de aplicar suas teorias às obras estéticas, entre elas, as literárias. Ilustra esta perspectiva com a retomada do trabalho de Marie Bonaparte (1933/1979), Um conto de Edgar Poe explicado pela biografia do autor, entre outras obras e autores. Contrapõe a esta modalidade de 'extensão' uma investigação inspirada nas contribuições de Lacan (1985, 1986, 1998) que também escolhe Poe, "A carta roubada", para seu ponto de partida da poética do inconsciente, onde o significante (a letra) é o móvel do saber, podendo-se afirmar que é com Lacan que a dimensão do poético é mais explicitamente convocada na prática clínica.
Cabe lembrar os apontamentos feitos pelo historiador Carlo Ginzburg (1989), por Eugênio Trías (1982) e pelo teórico da literatura Peter Brooks (1992) todos indicando similaridades entre a clínica e a metapsicologia freudianas e o gênero literário de suspense. Ginszburg retoma o método indiciário do crítico de arte ita-liano Giovanni Morelli, demonstrando suas influências na literatura de Conan Doyle e no método psicanalítico de interpretação. Em comum, a investigação do detalhe, a atribuição de sentido a posteriori e a relação com o tempo e a espera. A construção do sentido possui, nesta perspectiva, a mesma estrutura da interpretação.
Eugênio Trías (1982), no Lo Bello y lo siniestro, retoma o conto de Hoffmann, "O homem de Areia", e analisa a função do estranhamento e do amor de transferência nos modos de construção do saber, sugerindo que todas as histórias de amor são detetivescas e vice-versa (p.96). Proposição encontrada também em Roland Barthes (1985, p.53) quando sugere que "do ponto de vista amoroso, o fato se torna conseqüente porque se trans-forma imediatamente em signo: é o signo e não o fato que é conseqüente (pela sua repercussão)". A instauração da transferência nos modos do amor, desloca a função de intérprete do analista para o analisando, posto que a exigência de trabalho da pulsão é, sobretudo no plano simbólico, uma exigência de interpretação. Trías contribui para desdobrarmos algumas questões também presentes o trabalho de Leônia Teixeira onde as dimensões ética e estética da clínica são simultaneamente problematizadas, colocando em cena o amor e a morte. Em direção semelhante, Birman (1993, p.110-111) afirmara que o método freudiano do deciframento é a "contra-partida metodológica dessa concepção de sujeito fundado na pulsão" ou ainda: "a inscrição da 'pulsionalidade' no universo da representação seria então o que inaugura o sujeito como sentido e como intérprete, vale dizer, como sujeito-interpretação da força pulsional".
Brooks (1992, p.264-283) em sua obra Reading for the plot nos lembra também a admiração de Freud pela literatura de suspense e suas relações implícitas com a temporalidade em jogo tanto nos processos de elaboração analítica quanto nas produções narrativas de suspense. Inspirado por algumas idéias expostas na obra freudiana "Além do princípio do prazer" (1980c), identifica uma sobrede-terminação do funcionamento da narrativa pelo funcionamento psíquico e propõe que a metonímia, enquanto operação de ligação do significante, ao movimentar a narrativa de um ponto ao outro, estabelece uma temporalidade (um antecedente e um conseqüente), a partir da eleição de um objeto estratégico. Este objeto (o segredo, no caso do suspense), elemento derrisório para o nível simbólico da narrativa, se impõe como fundamental para estabelecer ligações na cadeia significante, ou seja, para a construção da narrativa. Assim, Brooks propõe que a psicanálise e a literatura estruturam modalidades narrativas, posto que ambas contam com uma exigência implícita a um estado de repetição. Tal como o detetive refaz as pegadas para descobrir os meios utilizados para execução dos fins, o momento da repetição se impõe com força indelével para a construção do texto. Ela oferece uma estrutura básica, a partir da qual o 'leitor' (pensamos que de forma análoga, o analisando) poderá estabelecer ligações ou conexões com momentos 'textuais' diferentes. Segundo Brooks, esta função será cumprida na literatura através do ritmo, da métrica e dos elementos mnemônicos comuns (por exemplo, sons semelhantes ou palavras repetidas ao longo do texto). Desta forma, a repetição cria um duplo retorno no texto.
Questões estas que nos remetem novamente às funções pensadas por Freud para a transferência. No seu texto técnico de 1912, chega a sugerir que o analista é uma posição estratégica, tal como uma igrejinha em meio a uma batalha. Na transferência, exercendo a sua função de presentificação, o objeto-analista estrutura e antecipa os fins que irão retrospectivamente ordenar e estabelecer a significação. Nesta perspectiva pode-se afirmar a função metafórica da transferência, animada pela metonímia do desejo.
Freud e a literatura: destinos de uma travessia demonstra as afinidades entre a produção teórica de Freud e o modo como se estrutura a sua escrita, através de uma cuidadosa referência a sua correspondência com Romain Rolland, Andréa-Salomé, Artur Schnitzler, entre outros. No estilo de Freud são identificadas as marcas de uma escrita endereçada ao outro, um destinatário sempre presente. A demarcação do lugar do leitor, muitas vezes demonstrada, pode também ser ilustrada pelo seu estudo autobiográfico, onde Freud (1980d) apresenta o seu percurso e o do movimento psicanalítico chamando à cena, com grande inventividade, um interlocutor-cúmplice, capaz de situar o lugar ocupado pela psicanálise frente aos impasses de seu reconhecimento. Trata-se uma posição política de Freud. Mas a autora ainda ressalta, acompanhada de alguns exemplos, que uma tal particularidade na escrita freudiana imprime um novo modo de fazer ciência, um modo solidário da narrativa, onde se destaca o lugar da enunciação. Aponta-nos que talvez aí esteja situada a radicalidade de sua obra. Há um destaque especial no modo como a literatura vai sustentando a errância de Freud e suas intuições clínicas e, principalmente, a defesa de que a escrita ocupa um lugar privilegiado a partir do qual toda arquitetura conceitual freudiana pôde se construir. Teixeira faz a defesa de uma filiação ao texto de Freud capaz de levar adiante a posição do escritor-inventor, como a via de expressão da transferência ao saber inconsciente.
Cabe ainda uma ressalva ao modo como Leônia Teixeira retoma o conceito de sublimação, cotejando as proposições winnicottianas (Winnicott, 1975) e o trabalho de Cornelius Castoriadis (1982). Nesta perspectiva, o trabalho proposto, ainda que não desenvolva o tema extensamente, indica um campo de possibilidades para que a sublimação e a criação sejam pensadas numa perspectiva capaz de ultrapassar a posição defendida a partir de uma suposta ontologia do desamparo primordial. Se o sujeito poético, como propõe a sua denominação, é um ser de linguagem, narrar não é tão somente um modo de se defender, mas, arte de viver, "solo de fundação do sujeito humano" (Teixeira, 2009, p.171). Assim, o livro se caracteriza como um pensamento sobre o papel do fazer poético na contemporaneidade, onde a literatura e a psicanálise viriam a constituir lugares de produção subjetivas, no qual "o sujeito se firma como tal: cindido, incompleto e, para sempre, não realizado em seus desejos!" (Teixeira, 2009, p.151).
Leônia Cavalcante retoma aqui a atualidade psicanálise quando em sua conclusão nos lembra novamente Freud e a experiência do unheimlich como condição para a construção de um campo de experiência ético, mediado pela Lei, instaurado pelo primado do simbólico como princípio de organização do singular e do social.
Referências
Barthes, R. (1985). Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: F. Alves. [ Links ]
Birman, J. (1993). Ensaios de teoria psicanalítica - Parte 1: Metapsicologia, pulsão, linguagem, inconsciente e sexualidade. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Brooks, P. (1992). Reading for the plot. Cambridge, MA: Knopf. [ Links ]
Catoriadis, C. (1982). A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. [ Links ]
Freud, S. (1980a). Além do princípio do prazer (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1920). [ Links ]
Freud, S. (1980b) A dinâmica da transferência (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1912). [ Links ]
Freud, S. (1980c). Um estudo autobiográfico (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Ginzburg, C. (1989). Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Lacan, J. (1985). O seminário: Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Lacan, J. (1986). O seminário: Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Teixeira, L. C. (2009). Freud e a literatura: Destinos de uma travessia. Fortaleza, CE: As Musas. [ Links ]
Trías, E. (1982). Lo bello e lo sinistro. Barcelona: Seix Barral. [ Links ]
Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Recebido em 12 de janeiro de 2010
Aceito em 07 de fevreiro de 2010
Revisado em 27 de fevereiro de 2010