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Revista Mal Estar e Subjetividade

 ISSN 1518-6148

     

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

"Velhice? acho ótima, considerando a alternativa": reflexões sobre velhice e humor

 

"Old age? it´s great, considering the alternative": reflections on old age and humor

 

"Vejez? es gran, teniendo en cuenta la alternative": reflexiones sobre vejez e humor

 

"Vieillesse? c'est trés bien, considérant l'alternative": réflexions dans la vieillesse e l'humour

 

 

Priscilla Melo Ribeiro de LimaI; Terezinha de Camargo VianaII; Eliana Rigotto LazzariniIII

IProfessora Assistente do Curso de Psicologia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista CAPES. Mestre e doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). End.: R. 235, s/n - Setor Universitário - Goiânia - Goiás - Brasil. CEP: 74605-050. E-mail: primlima@gmail.com
IIPós-Doutorado em Psicologia pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), Portugal. Professora Associada do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB)
IIIDoutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB)

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva articular a noção de humor, a partir da psicanálise, e a velhice. A sociedade hodierna, marcada pelo espetáculo e culto à beleza e juventude, reafirma as três fontes de sofrimento psíquico discutidas por Freud. No contexto atual, o sujeito velho encontra-se em um lugar quase de não-existência. O idoso ainda é considerado como uma pessoa que existiu em um passado, realizou seu percurso psicossocial e espera a morte. Destarte, o velho é lançado no passado para revisitá-lo através das lembranças, mas sem possibilidade de articulação com o presente e de se projetar no futuro. Além disso, a associação atual da velhice com decrepitude retira do sujeito idoso a possibilidade de elaboração de um projeto possível de futuro e traz efeitos para o psiquismo. Diante disso, três estilos psíquicos retratam formas do idoso lidar e manejar esse impasse: depressão, paranoia e mania. Entretanto, existem formas alternativas para enfrentar a finitude da vida e resgatar seu lugar na própria existência. Uma dessas formas é o humor irônico que tem como foco um olhar para dentro de si e para fora. Esses olhares irônicos provocam o riso perante os próprios problemas, mas também impulsionam o sujeito a encarar a realidade e seguir em frente. Aproximar o conceito de humor irônico a conceitos já elaborados por psicanalistas pós-freudianos que estudaram o processo de envelhecimento é um desafio. Dentre esses autores, destaca-se Erikson e seu conceito de sabedoria. Essa força psicossocial envolve, também, um duplo olhar e parece poder caminhar junto ao olhar irônico como forma alternativa de experimentar a velhice.

Palavras-chave: Velhice, humor, psicanálise, contemporaneidade, sabedoria.


ABSTRACT

This article aims to articulate the sense of humor and old age from a psychoanalytic perspective. Today's society, marked by the spectacle and the cult of beauty and youth, reaffirms the three sources of psychological distress discussed by Freud. In the present context, the elderly is almost in a place of non-existent. The elderly is still regarded as a person who existed in the past, made his own psychosocial pathway and now only expects the moment of death. Thus, old people are released in the past to revisit it through their memories, but without the possibility of re-articulate and re-launch themselves in the future. Furthermore, the current association between old age with decrepitude withdraws from the elderly the possibility of elaboration of future projects and has an impact in their psychic dynamics. Given this, three psychic styles portray the way the elderly cope and manage this impasse: depression, paranoia and mania. However, there are alternative ways to confront the finitude of life and rescue his place in existence. One such form is ironic humor that has as focus a look inward and outward. These ironic looks can provoke laughter in relation to ones' own problems, but also boost the individual to face reality and move on. Bringing the concept of ironic humor to concepts already developed by post-Freudian psychoanalysts that have studied the aging process is a challenge. Erikson with his concept of wisdom is among these authors. This psychosocial force also involves a double look and seems to walk along the ironic humor as an alternative way to experience old age.

Keywords: Old age, humor, psychoanalysis, contemporaneity, wisdom.


RESUMEN

El presente artículo pretende articular la noción de humor, desde el psicoanálisis y la vejez. La sociedad hodierna, marcada por el espectáculo y el culto a la belleza y juventud, reafirma las tres fuentes de sufrimiento psíquico discutidos por Freud. En el contexto actual, el sujeto viejo se encuentra en un lugar casi de no-existencia. El anciano aún es considerado como una persona que existió en un pasado, realizó su recorrido psicosocial y espera el momento de su muerte para salir enteramente de la escena del mundo. Así, el anciano es lanzado en el pasado para visitarlo una vez más por medio de los recuerdos, pero sin posibilidad de articulación con el presente, también de lanzarse adelante en el futuro. Además de ello, la asociación actual de la vejez con decrepitud retira del sujeto anciano la posibilidad de elaboración de un proyecto posible de futuro y trae efectos para el psiquismo. Ante ello, tres estilos psíquicos retratan formas del anciano enfrentar y manejar ese dilema: depresión, paranoia y manía. Sin embargo, existen formas alternativas para encarar la finitud de la vida y rescatar su lugar en la propia existencia. Una de estas formas es el humor irónico que tiene como foco una mirada para dentro de sí y para fuera. Estas miradas irónicas provocan la risa delante los propios problemas, pero también estimulan el sujeto a encarar la realidad y seguir adelante. Aproximar el concepto de humor irónico a conceptos ya elaborados por psicoanalistas pos-freudianos que estudiaron el proceso de envejecimiento es un reto. De entre esos autores, destacase Erikson y su concepto de sabiduría. Esa fuerza psicosocial involucra, también, una dupla mirada y parece poder caminar junto a la mirada irónica como forma alternativa de experimentar la vejez.

Palabras-clave: Vejez, humor, psicoanálisis, contemporaneidad, sabiduría.


RÉSUMÉ

Cet article vise à articuler la notion de l'humour, de la psychanalyse, et la vieillesse. Dans la société actuelle, marquée par le spectacle et le culte de la beauté et de la jeunesse, réaffirme les trois sources du souffrance psychique discuté par Freud. Dans le contexte actuel, le sujet vieux se retrouve dans un endroite de guere non-existense. Le vieil homme est toujours consideré comme une personne qui a existé dans un temp passé, qu'a realizé son parcours psychosocial et attent la mort. Ainsi, l'ancien est mis dans le passé pour lui revisité à travers les souvenirs, mais sans possibilité de l'articulation avec le présent et aussi de se projeter dans l'avenir. L'association actuel de la vieillesse avec la décrépitude a retiré du sujet vieux la possibilité d'elaboration d'un projet possible de futur et apporte des effect pour le psychisme. Ainsi, trois formes de styles psychiques dépeindre les personnes âgées à faire face et gérer cette impasse: la dépression, la paranoia et la manie. Ce pendant, il existe des moyens alternatifs pour faire face à la finitude de la vie et restaurer sa place dans l'existence. Un de ces moyens est l'humour grinçant qui se concentre un coup d'oeil vers l'intérieur et l'extérieur. Ces regards ironiques provoquent devant leurs propres problèmes, mais aussi à propulser l'individu à faire face à la réalité et passer à autre chose. Raprocher le concept de l'humour ironique de concepts déjà élaborés par les psychanalystes post-freudiens qui ont étudié le processus de vieillissement est un défi. Parmi ces auteurs, il y a Erikson et son concept de la sagesse. Cette force psychologique implique également un double regard et semble marcher avec le regard ironique comme un moyen alternatif de faire l'expérience de la vieillesse.

Mots-clés: Vieillesse, humour, psychanalyse, contemporanéité, sagesse.


 

 

Introdução

De todas as realidades, a velhice é, talvez, aquela que conservamos por mais tempo, apenas uma noção, puramente abstrata, olhando em calendários, datando nossas cartas, observando nossos amigos se casarem e os filhos de nossos amigos, sem compreendermos seu significado. (Proust, M. 1927, p. 494).

Não pensamos na velhice. Não nos preparamos para sua chegada. Ao contrário, vivemos em uma época em que a busca pela juventude eterna e o combate aos sinais do tempo têm se tornado quase uma obsessão entre mulheres e homens. Pensar na velhice traz, muitas vezes, calafrios. Rugas, dores no corpo, esquecimentos, vagareza, inabilidades, dependência... morte. A velhice está incrustada de ideias negativas.

As mudanças socioculturais ocorridas após a instauração da modernidade afetaram profundamente as subjetividades dos sujeitos aí inseridos. As formas com que o indivíduo tem lidado com as fontes de sofrimento psíquico presentes na vida em sociedade têm sido as mais variadas. No presente estudo, tentaremos compreender a forma como o sujeito idoso se insere na sociedade atual e como esta lida com ele. Partiremos de uma análise desse sujeito a partir da psicanálise e tentaremos esboçar possíveis alternativas para que o idoso amenize os sofrimentos decorrentes da vida e da proximidade da morte.

 

O Sujeito Idoso na Atualidade

We can look back over a long past, and so doing helps us understand our lives and the world we live in. We look forward, and this looking may be merely wishful thinking or hopeful dreaming, but without the promising prospect of the future, all might be dulled with apprehension. (Erikson, 1998, p. 6)

A sociedade contemporânea tem sido marcada por peculiaridades e exigências sociais cada vez mais acentuadas. É uma época de exaltação da individualidade e da busca pelo prazer incessante e obsessão pela perfeição - física e emocional. A proliferação de medicamentos e técnicas que buscam a eliminação de defeitos e a potencialização de aspectos admiráveis têm compelido o homem contemporâneo a buscar o ideal de sujeito sexualmente potente, magro, imune à tristeza e sem rugas (Marin, 2001). A diferença e a fraqueza são radicalmente combatidas e desprezadas. O velho, o doente mental, o diferente terminam por ser relegados a um não-lugar e a uma desvalorização social (Hillman, 2001). O homem contemporâneo vivencia o paradoxo da negação do sofrimento versus a luta incessante pela felicidade.

Outra característica marcante da sociedade hodierna é a falta de clareza entre o certo e o errado. O relativismo tem marcado as relações sociais e o mundo se tornou uma imensa coleção de possibilidades (Bauman, 2001). O relativismo, juntamente com o consumismo, parece propiciar a emergência de uma sensação de onipotência e imediatismo na busca por objetivos e construção de projetos de vida. O indivíduo passa a ser o único responsável por suas escolhas; não necessita fornecer explicações a ninguém, e está constantemente mudando seus objetivos. O mundo contemporâneo abandonou o transcendente, a utopia e o encanto pela fantasia e pelo mito, pois tudo é possível e tem o seu preço. O novo dura pouco e o desejo por mais conquistas está constantemente exigindo do sujeito a busca por novas fontes de prazer e novas identidades (Birman, 2005, 2006; Figueiredo, 1996, 2003).

Freud (1930[1929]/1996b), em Mal-estar na Civilização, afirmou a existência de três fontes de sofrimento psíquico: o corpo, os ataques do mundo externo e as relações com os outros. Mas a modernidade tem apregoado a ideia de que o homem é autossuficiente e pode se proteger contra essas fontes de sofrimento. A fim de se proteger contra as ameaças provenientes de um corpo que sofre, adoece, sente dor, envelhece, sempre há algum remédio ou terapia alternativa capaz de trazer alívio imediato, embora efêmero. Em relação aos ataques do mundo externo, estamos na era do mundo e das relações virtuais. Tudo, ou quase tudo é descartável e substituível, ou simplesmente existe apenas dentro do computador. Se algo ou alguém causa contrariedade e não mais é fonte de prazer, o indivíduo tem a 'liberdade' de descartar (Bauman, 1999). O indivíduo é, então, engendrado em uma trama de alienação de si mesmo e do mundo social no qual está inserido, e busca constantemente o prazer. Entretanto, o paradoxo continua a existir e a incomodar. O desamparo, a depressão, o sofrimento psíquico parecem estar cada vez mais presentes na vida do ser humano, na atualidade. A busca por bens de consumo e a ilusão de preenchimento interno levam o sujeito a um vazio existencial, a uma vida sem sentido, de direção e de significado.

Somado a isso, a fragilidade dos vínculos humanos têm se mostrado cada vez mais frágeis e geradores de angústia. Em nossa modernidade líquida, essa falta de solidez e estabilidade nos relacionamentos inspira insegurança, pois nada mais permanece de forma prolongada. A cada instante o sujeito é requisitado a se reinventar e tentar produzir uma imagem completa e perfeita de si mesmo. Tal completude é apenas aparente, pois na interioridade de sua vida, a identidade do sujeito moderno está fragmentada e incoerente (Bauman, 2004). Como em O Retrato de Dorian Gray (Wilde, 1972), a identidade pós-moderna tem se constituído de forma fragmentada. Ao mesmo tempo em que Dorian de mostrava sempre belo diante da sociedade, sem marcas do tempo e dos erros, a imagem pintada de sua alma, ia sendo marcada pelas escolhas feitas por ele. Eis o reflexo da identidade pós-moderna, cindida entre a imagem do espetáculo e a realidade interna fragmentada, incompleta.

Goldfarb (2004) afirma que, com advento da pós-modernidade, os ideais do sujeito passam a abranger: ideais de consumo como pretensão de um desejo sempre satisfeito plenamente; ideais do aqui e agora que envolvem a queda das utopias e a abolição da história em que a dimensão do futuro submete-se a um presente que exige do sujeito ser agora e já, lançando o Ideal de eu para um futuro distante e incerto; ideais de leveza que se opõem aos valores 'pesados' das tradições e que se manifestam através do culto da própria imagem e da superfície; os ideais do mundo da imagem midiática; ideais de juventude com padrões cada vez mais altos de estética e de comportamentos que negam a velhice e a morte; ideais de pragmatismo com sua valorização de ações práticas e eficientes que levem o indivíduo a atingir os ideais anteriores, depreciando valores éticos tradicionais. Há, portanto, o fim das utopias como projeção dos sonhos e projetos no futuro; anulação do tempo para projetos a médio e longo prazos; presentificação da vida no aqui e agora; e rejeição de tudo o que nega essas constatações, como a velhice.

As modalidades de subjetivação em nossa cultura têm levado à hipertrofia do eu e da autoimagem e à eliminação do outro, que é imprescindível à constituição da subjetividade. As trocas intersubjetivas são menosprezadas e o sujeito perde-se em sua própria imagem (Mendes & Próchno, 2004). O narcisismo tem se apresentado como o estilo de ser do homem pós-moderno de forma que há um superinvestimento do eu como consequência de um retorno ao mundo interno (Lazzarini, 2008). As condições de subjetivação da sociedade contemporânea têm contribuído para que o sujeito adoeça. O sofrimento psíquico na contemporaneidade continua sendo oriundo, como afirmou Freud, do corpo, do mundo exterior e dos vínculos sociais. Entretanto, este sofrimento tem sido continuamente negado em uma tentativa frenética de busca pela felicidade eterna. Da mesma forma que a subjetividade constitui uma relação dinâmica do indivíduo com seu contexto sociocultural, o sofrimento psíquico resultará dessa relação sujeito-social. As promessas de satisfação imediata e eliminação do sofrimento são constantes e inesgotáveis, mas provavelmente nunca darão conta do sofrimento humano. São apenas paliativos e ilusões, às quais nos apegamos para não encararmos nossas falhas e a finitude de nossa existência.

No contexto atual, os sinais deixados pelo tempo no corpo do idoso, como as rugas e flacidez, parecem não mais representar marcas da sabedoria e experiência de vida. Estes passam a ser vistos como sinônimos de vergonha e de fraqueza moral que devem ser combatidos a todo custo com produtos cosméticos, vitaminas e plásticas (Dourado, 2000). Esse padrão comportamental, reforçado pelo paradigma da biomedicalização, rejeita a velhice, combatendo-a através da medicina antienvelhecimento. Tal representação social da velhice, além de entremear as relações sociais, muitas vezes é incorporada pelo idoso, que pode se tornar dependente e doente, ou assumir os estereótipos e comportamentos considerados próprios dessa etapa (Neri, Born, Grespan & Medeiros, 2006).

O velho não é mais visto como depositário de sabedoria e conselhos. Ao contrário, em uma sociedade na qual a memória e as lembranças são registradas e obtidas com maior precisão por meio de artefatos das tecnologias de informação e comunicação, a memória do idoso se torna inútil. Além disso, o ato de contar histórias está sendo substituído pelos textos jornalísticos, mais precisos e fiéis aos fatos. A dimensão relacional e romanesca do contar e recontar episódios vividos ou histórias antigas tem cedido seu lugar, na sociedade ocidental atual, à brevidade e frieza dos meios de comunicação (Benjamin, 1936/1994; Bosi, 1973/1994). Freud (1930[1929]/1996b) destaca algumas alternativas possíveis para o enfrentamento dos sofrimentos da vida: a religião, distrações poderosas como o envolvimento com um projeto científico, a arte e a sublimação de forma geral, o uso de substâncias entorpecedoras que nos tornem insensíveis, o gozo da beleza, o investimento no amor e nos vínculos e o trabalho. Diversos meios, enfim, que a cultura oferece para evitar os sofrimentos. "Proteger-se do desamparo, subtrair-se ao medo, regular os vínculos e a divisão é a função fundamental que Freud atribui à sociedade. Mas os tempos mudam e estes fatores, embora sempre presentes, adquirem conotações diversas nas diferentes épocas históricas." (Goldfarb, 2004, p. 29).

O idoso, além de perder sua posição junto à comunidade produtiva, tem perdido, igualmente, seu lugar na dimensão simbólica e existencial da sociedade. Com o desinteresse e substituição da memória evocativa, o velho fica relegado à margem da coletividade, esquecido e carente de ser ouvido. "O velho é alguém que se retrai de seu lugar social e este recolhimento é uma perda e um empobrecimento para todos. Então, a velhice desgostada, ao retrair suas mãos cheias de dons, torna-se uma ferida no grupo" (Bosi, 1973/1994, p. 83). A sociedade e seus indivíduos perdem os pontos de demarcação da própria história e identidade, pois estes são estabelecidos a partir da rememoração e comemoração de acontecimentos históricos marcantes (Silva, 2002). Dessa forma, além da exclusão dos velhos, vê-se a alienação da sociedade em relação a si mesma, já que é através dos velhos que a cultura é preservada, com suas tradições, costumes e conhecimentos (Hillman, 2001).

As noções de história e temporalidade têm sido ocupadas pela noção do lugar que o indivíduo ocupa no cenário existencial. Os vínculos passaram a ser espacializados e perderam sua significação, o que pode levar a identidade do indivíduo a perder um de seus fundamentos principais - a historicidade (Birman, 1997). O detrimento desse fundamento leva à deformidade do sentimento de continuidade temporal, o que favorece a instalação do sentimento de vazio no final da vida e pode conduzir o idoso ao desinvestimento do mundo e da realidade (Goldfarb, 2004). Como consequência, instala-se o isolamento social do indivíduo que, por sua vez, gera psicopatologias. Pollak (1989) afirma que:

As fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos. (p. 8).

Erikson (1982/1998) destacou a necessidade de se repensar o papel e o lugar da velhice na sociedade ocidental, além de ressaltar a importância do processo de revisão de vida do próprio velho. Porém, o que é percebido no cotidiano da vida é que o olhar continua no que se vê exteriormente e nos aspectos negativos da velhice, e não na pessoa que habita o corpo que envelhece e se acaba. A tentativa de demonstrar uma visão menos estereotipada do envelhecimento por meio da substituição da palavra "velho" por "idoso" e, depois, por "terceira idade" e esta por "melhor idade" já conota o preconceito e a dificuldade da sociedade em aceitar a velhice e suas características que diferem do referencial de beleza da juventude (Neri & Freire, 2000; Peixoto, 1998; Araújo, Coutinho & Santos, 2006). O sujeito idoso deixa de existir, dando lugar a uma pessoa que não é mais objeto de desejo (Messy, 1999). Muitos velhos são abandonados e vivenciam o final da vida com amargura e desespero, ao invés de vivê-lo como uma fase de sabedoria e busca da plenitude (Nouwen & Gaffney, 1974/2000).

Platão, em A República, registra a seguinte fala de Sócrates: "Eu considero os velhos como aqueles que vieram antes de nós pela estrada em que todos estamos, e seria bom se perguntássemos a eles sobre a natureza dessa estrada" (citado por Erikson, Erikson & Kivnick, 1986, p. 325). A vida é metaforizada, aqui, como uma estrada que, obviamente, pressupõe um início e um fim, em cujo trajeto há aprendizados, ganhos e perdas. Além disso, tentar descobrir a "natureza dessa estrada" denota um mistério intrínseco à vida. Não sabemos exatamente o que encontraremos logo à frente, principalmente no que diz respeito ao fim da estrada. Essa estrada poder ser vista e experimentada através de um olhar trágico que focalize as perdas e desilusões, ou um olhar bem-humorado que se fixa nos momentos alegres, de conquista e que não se deixa abater pelas perdas e desilusões.

Por se constituir em uma longa e última etapa da vida, a velhice pode envolver sentimentos mistos de realização ante a vida que se passou, e desespero ante a vida que se finda. O idoso necessita aprender a conviver com esse desespero e encarar os erros e omissões do passado de forma a integrá-los à totalidade da vida. Muitas vezes sentimentos de culpa que acompanharam o sujeito durante toda a sua trajetória existencial acerca de algum acontecimento e arrependimentos ressurgem nessa última etapa da vida de forma mais intensa.

Em face das exigências do mundo em que vivemos, constantemente o indivíduo necessita lançar mão de defesas psíquicas a fim de se proteger. Essas defesas podem ser exemplificadas pelas neuroses, delírios, abuso de drogas, abandono de si, religião, produções artísticas e sublimações (Freud, 1929[1930]/1996b; Slavutzky, 2005). Com o sujeito idoso não poderia ser diferente, pois ele necessita encontrar um caminho para enfrentar as angústias dessa fase de forma a proteger seu ego contra as angústias decorrentes das ameaças do mundo externo e social que o rodeia e da ameaça de aniquilamento real que é a proximidade da morte.

Birman (1997) esboça três formas paradigmáticas de ordenação psíquica do idoso, ou seja, formas, patológicas, de lidar e manejar o impasse de sua situação: depressão, paranoia e mania. Esses termos não são utilizados dentro da descrição psiquiátrica de quadros clínicos, mas são compreendidos como estilos psíquicos diferenciados do sujeito se defrontar com a morte e a inexistência de um futuro possível. Em um contexto sociocultural, em que a velhice e o idoso são invisibilizados, em que não se fornece ao idoso a possibilidade de repensar a própria vida, sentir-se valorizado pela estrada que já percorreu e tentar reinventar sua existência, é natural que esse sujeito adoeça.

Entretanto, para escapar de um quadro psicopatológico, é necessário encontrar formas alternativas para lidar com essa angústia. Dentre as saídas possíveis, ressaltem-se aquelas que envolvem um olhar do sujeito sobre si e sua história que não gere grandes arrependimentos. Olhar para o passado e para a vida construída até então, focalizando as superações, e para a atualidade e futuro com leveza, envolve um mínimo de senso de humor. Portanto, o humor irônico pode se constituir uma forma de enfrentar as angústias provenientes da natureza dessa estrada e de seu final inexorável. Slavutzky (2005) e Kupermann (2003) afirmam que o humor, apesar de se aproximar das defesas psíquicas, já que se dá frente a situações de sofrimento e desamparo, possui uma vantagem sobre as demais, pois o triunfo do princípio do prazer se dá no terreno da saúde psíquica. "É uma forma sublimada de reagir às dores da existência: um modelo para pensar as contradições humanas sem perder a graça." (Slavutzky 2005, p. 209).

 

Humor: Saída Possível?

(...) o humor tem algo de libertador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação. (Freud, 1928/1996a, p. 166)

O humor é mais do que um estado de espírito: é uma forma de visão de mundo. (Slavutzky, 2005, p. 206)

O humor, tal como utilizado e compreendido por Freud (1905/1996c, 1928/1996a) durante sua vida e evidente em sua obra, pode ser compreendido como uma "atitude do espírito diante do problema da existência" (Bourgeois, 1974 conforme citado por Loureiro, 2007, p. 16). Nessa compreensão, o humor em seu componente irônico, mais que um recurso retórico-literário, envolve uma postura perante a própria experiência vital e suas dimensões intrínsecas como as problemáticas do ser, do conhecimento, da verdade, do modo de conduzir a própria vida e a relação com os outros (Loureiro, 2007).

Esse humor irônico é evidente em diversos momentos da vida e obra de Freud. Várias situações entremeadas de humor são relatadas por ele mesmo e por companheiros de caminhada. A própria descoberta da chave para a interpretação dos sonhos surge após dificuldades enfrentadas no campo profissional. O texto O Humor é escrito após uma sucessão de perdas familiares, pessoais e problemas graves de saúde que aconteceram na vida de Freud entre os anos de 1923 e 1927, conforme nos relata Slavutzky (2005). Mesmo diante do aparecimento dos primeiros indícios do câncer no palato e várias cirurgias, a perda do neto que o empurrou a uma grave depressão, e por fim a necessidade da utilização de uma prótese e a morte de um grande amigo, Freud não perdeu seu senso de humor e a capacidade de olhar de forma diferente para si mesmo e para a vida. Em conversa com um jornalista americano em 1930, Freud afirma:

Setenta anos de existência me ensinaram a aceitar a vida com alegre humildade. Não gosto do meu palato artificial porque a luta para mantê-lo em função consome minha energia. Prefiro, entretanto, um palato postiço a nenhum, ainda prefiro a existência à extinção... Não sou um pessimista, não permito que nenhuma reflexão filosófica me faça perder o gozo das coisas simples da vida. (Slavutzky, 2005, p. 223).

A capacidade de Freud em transformar a consciência de sua própria pequenez em uma nova forma de pensar e tratar o ser humano demonstra sua grandiosidade. "O certo é que Freud não se entrega às lamúrias (...); ao contrário assinala reiteradamente que está cônscio de tais limites e segue buscando maneiras alternativas de figurar seus objetos" (Loureiro, 2007, p. 16).

O humor irônico freudiano nos remete à vertente de pensamento que o considera como uma atitude perante a existência em contraponto à ironia romântica. Esta última, apesar de ser uma tentativa de gerir a angústia inerente à condição humana, anseia por um "retorno" ao Absoluto, à Unidade e à paz anterior. A ironia freudiana, entretanto, parece estar mais próxima ao ironismo de Rorty (1992, 1999). O ironista, na visão rortyana, seria um tipo de pessoa que "encara frontalmente a contingência das suas próprias crenças e dos seus próprios desejos mais centrais" (Rorty, 1992, p. 17). Esse estilo de experimentar a vida envolve, portanto, uma visão crítica ante a própria existência e desejos. É um sujeito inconformado consigo e com seus erros e que utiliza das contingências à sua volta e dos próprios erros para mudar a atualidade e a si mesmo.

Nesta perspectiva, não existe uma realidade verdadeira e única, sob as aparências variadas e em constante transformação, a ser alcançada e nem uma linguagem unívoca que possa traduzi-la de forma transparente. A obra freudiana, portanto, poderia

(...) ser incluída na linhagem ironista na medida em que instaura um novo vocabulário e gera uma nova descrição e uma nova percepção que os homens têm de si mesmos (...) seja porque a consciência é apenas uma das múltiplas pessoas internas que nos constituem, seja porque tal multiplicidade é ela própria formada ao longo de uma série de eventos concretos, acidentais e fortuitos - a história infantil de cada um (Loureiro, 2007, p. 17).

Compreender, primeiramente em si, a presença de um Inconsciente que pulsa e deseja, e que os sonhos são a consecução desses desejos, é aceitar a multiplicidade interna presente em si mesmo. É a manifestação de uma consciência auto implicada e que, portanto, consegue ter um olhar irônico sobre si e sobre sua história, e desenvolver uma saudável tolerância às próprias ambiguidades e incoerências (Rorty, 1999). A verdade expressa através desse humor irônico, muitas vezes manifestada através de tiradas espirituosas, fornece um atalho por meio do qual "o sujeito assiste, ao mesmo tempo em que tangencia a sua própria divisão, sua condição sexuada e mortal" (Morais, 2008, p. 115). Falar da própria situação de forma jocosa evoca um gozo e um prazer que, a partir de uma flexibilidade do supereu, o eu consegue triunfar diante de uma realidade impeditiva e trágica (Freud, 1928/1996a). "O humor", afirma Kupermann (2003, p. 39) a partir de Freud, "é um meio de se obter prazer apesar dos afetos dolorosos que se apresentam nas situações em que ele emerge".

Desenvolver essa capacidade de um olhar irônico e humorado acerca de si, da vida e morte, talvez seja uma tarefa da velhice. Morais (2008, p. 118) afirma que o humor dá ao sujeito a capacidade de rir de si mesmo, mostrando que toda verdade é incompleta, que o ser humano é insuficiente, e "quando a vida mostra a sua imperfeição e falha, ainda assim vale a pena uma boa risada". Essa ideia nos remete ao conceito de sabedoria de Erikson (1982/1998; Neri 2005). A virtude da sabedoria envolve a capacidade de direcionar um olhar para trás e um olhar para frente. Para trás, na medida em que esse olhar necessita ser conduzido aos erros e acertos do passado, às situações de incoerência e ambiguidades que foram inevitáveis. É importante que esse olhar seja de aceitação e integração dessas inconsistências ao próprio eu. Portanto, um olhar irônico. O segundo olhar, em direção ao futuro, precisa desencadear um sentido de direção e de significado para a vida já vivida e para o fim que o espera ao final da estrada. Negreiros (2003) destaca a importância desses olhares na velhice, pois geram transformações na direção dos ideais perseguidos durante a vida e na expectativa em cumpri-los. O idoso tem a possibilidade de, então, valorizar o momento atual, tentar viver mais e melhor, perdoar, doar algo, deixar obras, mensagens e legados para as futuras gerações.

Erikson et al. (1986) afirmam que é durante velhice que o ciclo de vida começa a se fechar e a integrar as virtudes conquistadas anteriormente. Reviver crises e experiências passadas, assim como a necessidade de compartilhar parte da própria história, são aspectos intrínsecos das últimas etapas da vida (Erikson, 1982/1998; Erickson, 1998). Entretanto, para que essa tarefa evolutiva seja executada de forma satisfatória é imprescindível que o ambiente psicossocial do indivíduo lhe forneça a escuta e o suporte emocional necessários. Nesse sentido, Erikson (1982/1998) afirma a necessidade de que a tensão entre integração do eu e desespero seja equilibrado, a fim de que a força psicossocial da sabedoria surja e se fortaleça. A sabedoria, portanto, envolve a capacidade resultante dos esforços em equilibrar o sentido de coerência e plenitude pessoal com o desespero perante a finitude e a proximidade da morte, além de aceitar falhas e omissões do passado (Erikson et al., 1986; Lima & Coelho, 2011). Segundo Neri (2005), essa virtude envolve as seguintes tarefas evolutivas: "formação de um ponto de vista sobre a própria existência, a morte e a transcendência, auto aceitação e desejo de deixar um legado" (p. 182).

A memória autobiográfica, ou seja, os fatos relembrados e o significado de cada lembrança, não pode ser desconsiderada. Na visão de Halbwachs (1925, 1950), a memória vai além de um fenômeno de subjetivação individual; é antes um fenômeno coletivo que se constrói em constante atrito entre o individual e o social. É arquitetada pelas relações sociais das quais o sujeito participa e fruto do trabalho de refazer e reconstruir, a partir da atualidade, experiências passadas (Oliveira, 2008; Gusmão & Souza, 2010). No momento em que a biografia se torna um discurso narrado e compartilhado pelo seu protagonista instauram-se condições para que haja renegociação e reinvenção da própria identidade (Carvalho, 2003). É a própria fala atualizando o sujeito. "Uma vida é vivida quando narrada" (Frochtengarten, 2008, p. 374). Austin (1962/1990, conforme citado por Martins & Zanello, 2000) traz a concepção de uma forma de utilizar a fala como ação, ou seja, um ato de fala que interfere e modifica a realidade à sua volta. Essa exata característica da fala, isto é, os atos de fala, é que abre a possibilidade de um tratamento psicoterápico pela fala, criando a possibilidade de mudança da realidade psíquica do paciente (Martins & Zanello, 2000; Martins, 2003).

A psicanálise, fundada na premissa da cura pela fala (talking cure), pressupõe um trabalho de fazer falar e fazer ouvir (Celes, 2005) que, ao tratar a atualidade do paciente a partir da evocação das memórias, traz mudanças e a possibilidade de reelaboração de questões internas. Apesar de Freud não considerar a possibilidade de um trabalho analítico com pessoas idosas, pesquisas realizadas a partir de uma perspectiva psicanalítica têm demonstrado como a psicanálise pode auxiliar o velho a encarar a própria vida e morte com serenidade e integridade do ego. Incluem-se na lista os trabalhos realizados por Erik Erikson e seus colaboradores nos Estados Unidos (1982/1998); Jack Messy, na França (1999); Delia Goldfarb (1998, 2004), Angela Mucida (2006, 2009) e Dorli Kamkhagi (2008) no Brasil.

A velhice, e a vida como um todo, constituem uma arte de driblar dificuldades e intempéries, e de celebrar conquistas, pequenas e grandes. Para além de um mero estado de ânimo ou de dizer frases engraçadas e fazer piada com as coisas adjacentes, o humor é compreendido aqui como um lugar e um olhar perante a vida que promove criações simbólicas repentinas, ligadas à irrupção de um sentido novo (Pereda, 2005). O humor irônico na velhice talvez não consiga trazer à concretude ações capazes de mudar totalmente o rumo da vida do idoso, pois o tempo restante é curto. No entanto, pode contribuir para transformar a atitude em face da angústia e do desespero decorrentes de erros do passado e do enfrentamento da finitude da própria vida. Esse sentido do humor pode ser compreendido como uma forma amadurecida de "aceitar que toda verdade é parcial, e poder sorrir de seus defeitos, bem como de todo ser humano, aceitando assim as imperfeições da vida. O humor brinca com a seriedade da sociedade, bem como da morte" (Slavutzky, 2005, p. 216). Dessa experiência bem-humorada e irônica da velhice pode surgir uma percepção mais positiva da condição de ser velho, considerando que a alternativa à velhice é a morte. Só um profundo e refinado senso de humor irônico acerca de si e da vida poderá levar o velho a dizer: "Velhice? Acho ótima, considerando a alternativa".

 

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Recebido em 16 de maio de 2011
Aceito em 22 de julho de 2011
Revisado em 21 de outubro de 2011

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