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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

A desqualificação da família pobre como prática de criminalização da pobreza

 

The disqualification of the poor families like practice poverty criminalization

 

La descalificación de la familia pobre como práctica de criminalización de la pobreza

 

 

Maria Lívia do Nascimento; Fabiana Lopes da Cunha; Laila Maria Domith Vicente

Universidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência
 

 


RESUMO

O presente trabalho busca colocar em análise a relação entre práticas de desqualificação da família pobre e processos de criminalização da pobreza. Com Foucault e seus pensamentos sobre as relações de poder, as discussões são feitas a partir da individualização e culpabilização das famílias envolvidas em casos de destituição do poder familiar. Embora, a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, não seja mais possível retirar o poder familiar sob a alegação de pobreza, são os pobres que continuam a perder seus filhos por determinação do Estado, agora sob outras alegações: abandono, negligência, maus-tratos. Essas situações são associadas a uma incompetência dos pais para cuidar de seus filhos. Enfim, criminaliza-se a família ao transformar relações sociais em problemas individuais, na medida em que a questão estrutural do capitalismo neoliberal, as relações de poder contemporâneas e a privação de direitos são descartadas nas análises explicativas de tais ocorrências.

Palavras-chave: Infância; Destituição do poder familiar; Criminalização da pobreza; Capitalismo neoliberal; Relações de poder.


ABSTRACT

This article tries to analyze the relation between practices of disqualification of the poor families and processes of poverty criminalization. Using the ideas of Foucault on power relations, discussions are made on the individualization and culpability of the families involved in cases of destitution of the family power. Although since the Estatuto da Criança e do Adolescente the destitution of the family power by allegation of poverty is no longer possible, still the poor continue to loose their children under the order of the State, only now under other allegations: abandon, negligence, mistreatments. That is, the family is criminalized when social relations are transformed into individual problems, since the strucural question of the neoliberal capitalism, contemporary power relations and the rights deprivation are discarded in the analysis of such ocurrencies.

Keywords: Childhood; Destitution of family power; Poverty criminalization; Neoliberal capitalism; Power relations.


RESUMEN

El presente trabajo busca analizar la relación entre prácticas de descalificación de la familia pobre y procesos de criminalización de la pobreza. Con Foucault y sus pensamientos sobre las relaciones de poder, las discusiones son planteadas a partir de la individualización y culpabilización de las familias implicadas en casos de destitución del poder familiar. Apesar de que a partir de la promulgación del Estatuto del Niño y del Adolescente ya no sea posible retirar el poder familiar alegando la condición de pobreza, son los pobres los que siguen perdiendo a sus hijos por determinación del Estado, ahora bajo otros argumentos: abandono, negligencia, maltratos. Tales situaciones son asociadas a una incompetencia de los padres para que cuiden a sus hijos. En fin, se criminaliza a la familia al transformar relaciones sociales en problemas individuales, en la medida en que la cuestión estructural del capitalismo neoliberal, las relaciones de poder contemporáneas y la privación del derecho son descartadas en los análisis explanadores de tales ocurrencias.

Palavras clave: Infância; Destitución del poder familiar; Criminalización; Capitalismo neoliberal; Relaciones de poder.


 

 

Cuando se acerca un pobre de piel escura, el peligrosímetro enciende la luz roja; y suena la alarma (Galeano, 1999, p. 45).

Este trabalho propõe uma discussão da relação entre as práticas de desqualificação da família pobre e o processo de criminalização da pobreza. Nosso interesse por esse tema construiu-se a partir das práticas que vimos desenvolvendo no campo da garantia dos direitos da infância e da juventude. O conjunto de nossas atuações1 tem tomado a história como método para pensar a gênese e a constituição da desqualificação de crianças, jovens e famílias pobres. Para tanto, buscamos desconstruir a idéia de que são suas biografias, seus locais de moradia, seus modos de vida não hegemônicos que os levam, por exemplo, à evasão escolar, aos conflitos familiares, à criminalidade, à entrega dos filhos para o Estado ou ao recolhimento deles pelo Estado. Ter a história como aliada nos permite pensar nas relações que foram qualificando a pobreza como perigosa, desestruturada, incompetente, fracassada, delinqüente, dentre outros atributos de inferioridade; concebendo, por fim, os pobres como necessitados de intervenções especialistas que venham regular e tutelar suas vidas.

(...) a experiência ensinou-me que a história das diversas formas de racionalidade é, às vezes, mais bem-sucedida em abalar nossas certezas e nosso dogmatismo do que uma crítica abstrata. Durante séculos, a religião não pôde suportar que se contasse a sua história. Hoje nossas escolas de racionalidade não apreciam que se escreva sua história, o que é sem dúvida significativo (Foucault, 2003a, p.384).

A questão que se coloca então é: como historicamente emergem práticas - discursivas e não discursivas, que segregam e penalizam (aqui no duplo sentido de gerar pena e aplicar pena) a família pobre e seus filhos. Assim tentaremos mostrar as continuidades e as descontinuidades desse discurso.

Nesse momento cabe-nos uma breve pausa para apontarmos, através de uma viagem histórica, os pontos onde a associação entre a desqualificação e a criminalização da família pobre é percebida mais facilmente, mesmo que isso tenha se constituído de forma descontínua, não linear.

Desde o Brasil Colônia já existia a preocupação com as crianças abandonadas ou órfãs, o que desencadeou o aparecimento dos primeiros estabelecimentos financiados pelo Estado para o cuidado desses “enjeitados sociais”. Naquela época o abandono atingia principalmente as crianças mestiças, mamelucas ou negras, sem referência paterna por serem ilegítimas ou afastadas da referência materna em virtude da escravidão. Entretanto, ainda não existia a correlação entre os abandonados e os pobres, visto que muitas dessas crianças eram bastardas das elites brasileiras.

Uma das alternativas da época era deixar a criança na Roda, dispositivo que possibilitava o abandono sem identificação do autor ou do genitor, ou seja, uma forma de ocultar a desonra moral e a ilegitimidade da criança, ficando ela sob os cuidados do estabelecimento religioso. Cabe ressaltar que esse primeiro sistema formal de abandono foi inaugurado em 1726 e extinto somente em meados de 1948, tendo se espalhado por diversas cidades brasileiras.

Foi no Brasil Império, com maior abandono e circulação de crianças negras e pardas nos centros urbanos em decorrência da promulgação da Lei do Ventre Livre e da Lei Áurea, que cresceu um sentimento de medo e de repulsa pelos infantes pobres, culpabilizando suas famílias por essa condição. Tal prática se estendeu para o Brasil República. Entretanto, a questão econômica como produtora desse “risco social” não era sequer cogitada pelos brasileiros letrados, geralmente educados na Europa, que viam as crianças pobres como a representação da incivilidade, tomada como o grande infortúnio que tanto desejavam erradicar do país.

O papel dos especialistas, sobretudo dos higienistas, em muito contribuiu para a desqualificação da família pobre, pois, segundo eles, a mesma degenerava suas crias com seus hábitos nada burgueses, transformando-os em seres perigosos por adquirirem hábitos condenáveis ao progresso da República. Misturavam-se aí saberes dos especialistas da medicina social como a degenerescência hereditária lombrosiana – segundo o qual os males psicopatológicos teriam origem genética e seriam fisicamente perceptíveis – e a degenerescência moral de Ferri (2003) – que abarcava em sua classificação os anormais de origem social, como anormalidade contagiosa e reconhecida nos hábitos e comportamentos2. Por fim, a família pobre e seus hábitos de vida seriam condenáveis, genética e moralmente. Nesse momento, começava a mutação da infância em perigo para a infância perigosa, ou seja, a associação entre a pobreza e a periculosidade, que tanto demandou a criação, a ampliação e a mutação dos dispositivos de controle estatal visando à ordenação, à homogeneização e à moralização dos pobres.

Os estudos de Michel Foucault e Loïc Wacquant serão utilizados como apoio para entendermos como essa associação (pobreza e criminalidade) foi tão produtiva e eficiente. Assim, faremos uma breve contextualização de seus textos dentro do que estamos procurando analisar.

 

1. Uma Possível Viagem de Michel Foucault na Modernização Brasileira

Modernidade, palavra complexa e muitas vezes vazia de sentido, vem denominando um certo período de mudanças abrangentes e complexas na vida social. Aliada à urbanização dos espaços, a modernidade se apresenta como o espaço/tempo propício para o surgimento de relações inéditas que foram denominadas/reconhecidas por Foucault de relações de poder. A intervenção do Estado na vida social não pode ser vista de forma isolada, ou apenas pelo enfoque estatal. Ela faz parte da transformação da tecnologia pastoral sob o viés moderno. Essa tecnologia pastoral moderna foi entendida como um abalo na sociedade antiga ou soberana, pois dá ensejo ao desenvolvimento de “uma série de relações complexas, contínuas e paradoxais” (Foucault, 2003a, p.361). Aqui tentaremos pensar como se deu esse abalo na urbanização do Brasil Colônia, e como as técnicas de disciplina e controle pensadas por Foucault atingiram a vida e as famílias no nosso país.

Ele nos mostra que a questão pastoral que, por fim, se apresenta como o papel político do Estado em zelar pela vida de todos e de cada um, como o pastor faz com o seu rebanho, onde cada ovelha deve ser salva, - remonta a Platão em seus escritos “A República” e hoje se faz presente, sob novas formas, no que chamamos de Estado-Providência. Isto considerado como “o ajustamento entre o poder político exercido sobre sujeitos civis e o poder pastoral que se exerce sobre os indivíduos” (Foucault, 2003a, p.366). Não podemos deixar de perceber essa crescente presença da função estatal com o dever de controlar, higienizar e punir a pobreza brasileira; com poderes para, inclusive, retirar os filhos dos pais que não se adaptarem às regras familiares burguesas estabelecidas.

Uma nova forma de sociedade se constituía, trazendo outras formas de interações sociais e um outro arranjo de poder. Os novos traços dessa sociedade em formação podem ser percebidos na análise de Foucault acerca do poder soberano face às relações de poder modernas (artes de governar). Para tanto citamos o autor:

Enquanto a doutrina do príncipe ou a teoria jurídica do soberano buscavam sem cessar marcar bem a descontinuidade entre o poder do Príncipe e qualquer outra forma de poder, uma vez que se trata de explicar, fazer valer, de fundamentar essa descontinuidade, aqui, nessas artes de governar, deve-se buscar balizar a continuidade, continuidade ascendente e descendente (Foucault, 2003b, p.287).

Onde, continuidade do poder se refere ao poder que se dissemina na sociedade construindo novas formas e estratégias. Essa continuidade ascendente do poder, referida por Foucault, diz respeito ao entendimento de que o soberano, ou aquele que governa um Estado deve saber governar primeiro as suas relações pessoais. Ou seja, deve saber governar a si mesmo (moral), para depois poder governar a sua família (economia) e por fim governar um Estado (política). Entrelaçam-se as três esferas – moral, política e econômica.

Por outro lado, a continuidade descendente do poder se refere ao Estado que, bem governado, resultará nas demais relações também bem administradas. Ou seja, aquele Estado governado por um bom governante também terá famílias bem constituídas e cidadãos moralizados. Neste tempo surge a “polícia”3 como garantia de tal continuidade descendente e é esta mesma lógica que legitima a intervenção do Estado na vida dos indivíduos e das famílias, já que são as próprias relações pessoais e familiares que, em última análise, definem as relações governamentais.

Portanto, nessa nova forma de Estado, o que seria governar? Para responder a esta questão, a seguinte citação:

Governar um Estado será então lançar mão da economia, uma economia no nível do Estado todo, quer dizer, ter com os habitantes, as riquezas, a conduta de todos e de cada um uma forma de vigilância, de controle, não menos atenta do que a do pai de família para com os familiares e seus bens (Foucault, 2003a, p. 289).

Dispersão, portanto, do poder. Poder que não estará mais contido, acumulado no Príncipe Soberano e sim um poder que se dissipa e se exerce efetivamente nas relações cotidianas dos indivíduos. Foucault analisa essa nova configuração das relações de poder em seu curso “Os Anormais” no Collège de France, quando percebe que o poder psiquiátrico ao se generalizar como instância de controle dos comportamentos considerados anormais, não o faz sem a contribuição atenta e vigilante das famílias.

(...) essa psiquiatrização não vem de cima, ou não vem exclusivamente de cima. Não é um fenômeno de supercodificação externa, em que a psiquiatria viria pescar, porque teria havido um problema (...) não é nada disso: é na própria base que podemos começar a desvendar um verdadeiro mecanismo de apelo à psiquiatria. Não se deve esquecer que foi a família da menina que descobriu os fatos pela tal inspeção (...) uma das diretrizes, ao mesmo tempo higiênicas e morais, propostas às famílias desde o fim do século XVIII (Foucault, 2002, p. 376).

A família, portanto, passa a ter uma função política, e é aí, então, que visualizamos melhor como se tornou possível a intervenção estatal na vida destas. Foucault (2002) no mesmo curso citado acima diferenciou a intervenção estatal na vida das famílias em duas cruzadas. A cruzada antimasturbatória que se apóia na medicina e diz respeito às famílias burguesas, que não será analisada no presente artigo, e a cruzada antiincestuosa que se apóia no que o autor denomina como “tipo judiciário”, e que se refere às famílias populares e proletárias, que servirá de base para analisar como ainda hoje a intervenção estatal nas famílias pobres pode se dar de forma “legitimada” legal e socialmente.

Na realidade contemporânea brasileira, podemos perceber claramente tais instâncias de controle social, por exemplo, dentro dos conselhos tutelares e dos juizados da infância e da juventude, instituídos pela legislação que passaremos agora a analisar.

 

2. A Família e a Legislação

Pensaremos agora ao aparecimento da tutela da família, da criança e do adolescente na legislação brasileira, tomando a lei como uma possível legitimação da intervenção estatal na vida das famílias pobres. Os Códigos de Menores (Código de Menores Mello Matos de 1927 e o Código de Menores de 1979 sancionado durante a ditadura militar de 1964) nada têm de imparciais, pois se constituem em meio a um determinado jogo de forças econômicas e sociais. Um exemplo disso diz respeito ao conceito de menoridade, que não se vincula apenas à correlação etária e sim afirma uma subjetividade de abandono, de delinqüência, de periculosidade, ou de situação irregular, como diria o código do regime militar para menores. Considerava-se como irregular a situação de uma criança que possuísse uma “família desestruturada”. Tal lógica nada mais faz do que afirmar a ordem familiar burguesa como modelo, colocando no plano da ilegalidade outros modos de existência.

Essa construção legislativa possibilitou que o Estado exercesse a tutela das famílias, pois deveria intervir naquelas onde o “poder familiar” estava ausente ou mal exercido segundo os parâmetros estabelecidos, ou colocando isso de outra forma: nas famílias em situação de pobreza.

Desqualificar as formas familiares diversas daquela que segue o modelo burguês e classificar as crianças das primeiras como em “situação irregular”, próximas da “situação de delinqüência” é uma forma clara de criminalização da pobreza.

O conceito de criminalização da pobreza (ou criminalização da miséria) é trabalhado por Wacquant (2003) especificamente em seu livro “Punir os Pobres”, e se refere, de forma resumida, às práticas sociais e estatais que visam dar conta do excedente da miséria não administrável pelas políticas públicas. Wacquant demonstra como os Estados das sociedades ocidentais do pós-guerra fazem-se como “Estados Híbridos”:

(...) nem ‘ protetor’ no sentido que o termo assume nos países do Velho Mundo, nem ‘mínimo’ e não-intervencionista como sonham os turiferários do mercado. Seu lado social e os benefícios que distribui são cada vez mais monopolizados pelos privilegiados; sua vocação disciplinar se afirma principalmente na direção das classes inferiores e das categorias étnicas dominadas. Este Estado-centauro, guiado por uma cabeça liberal montada sobre um corpo autoritarista... (Wacquant, 2003, p.20-21).

Dentro desse contexto, a questão financeira torna-se o principal motivo para a desqualificação da família pobre e a produção de uma subjetividade que diz serem elas incompetentes para o cuidado dos filhos, o que justifica uma intervenção técnica e estatal. Essa lógica legislativa permaneceu até a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que emerge a partir da força dos movimentos sociais presentes no processo de democratização nacional, após longo período de ditadura militar.

Entretanto, vemos que as alterações trazidas por essa nova legislação, que busca um tratamento indiferenciado para todas as crianças e adolescentes e não mais apenas para os “menores”, não garantiu totalmente a modificação das práticas a respeito da família e da infância pobres. Intervenções jurídicas e sociais continuam a punir a família pobre através da atualização do discurso da “família desestruturada”, já que não há mais na legislação pena prevista para a situação de pobreza.

A família pobre ganha um novo estatuto: família negligente. Essa categorização justifica a intervenção estatal, pois o discurso não é mais o da falta de condições materiais para o cuidado dos filhos, e sim o desrespeito aos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, como saúde, educação, alimentação, entre outros, que tomam forma nos casos de violência intrafamiliar, “risco social”, exploração do trabalho infantil, etc. Sem considerar que, muitas vezes, a família pobre é privada desses direitos, e conseqüentemente não tem como suprir/garantir as necessidades de seus filhos.

As situações de negligência e maus-tratos são vistas ainda como incompetência familiar, tal como nos antigos Códigos de Menores, na medida que a questão estrutural do capitalismo neoliberal e a privação de direitos são descartadas nas análises explicativas de tais ocorrências. É mais fácil demonizar, culpar, criminalizar a família, individualizando a violência, deixando de fora as relações de poder contemporâneas.

O ECA estabelece, em seu art. 23, que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder”, mas no artigo seguinte declara que “a perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art 22”, pois “ aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores (...)” (ECA, 1990). Todavia, as sentenças, em geral, não entendem como justificativa para a falta de sustento, de guarda e de educação dos filhos, as condições impostas pelo capitalismo neoliberal que empurram as famílias para situações de penúria, de miséria, de desemprego, de dificuldades extremas. A não consideração de tais condições leva a uma individualização das práticas, culpabilizando os pais e justificando a privação da convivência familiar para as crianças que são colocadas em situação de abrigo e disponibilizadas para a adoção.

O ECA é tido como uma legislação avançada quanto à proteção dos direitos fundamentais, visto que considerou a infância e a juventude enquanto sujeito de direitos. Nesse momento, a pergunta que se coloca é: Quais os motivos para que essa legislação seja tida como inovadora e de primeiro mundo? Para responder essa pergunta precisamos apontar algumas características marcantes dos códigos que o antecederam.

O Código de Menores de 1927 foi aprovado após a criação do primeiro Juizado de Menores em 1924, respondendo a uma demanda social que cobrava ações estatais, sejam jurídicas, assistenciais/punitivas quanto à situação “perigosa” de crianças pobres nas ruas, entendidas como derivadas do abandono e da desproteção familiar, por isso necessitando de proteção e salvação do Estado. Entretanto, essa solicitação política significava a urgência de proteção e de salvação da pátria.

O Código criava uma distinção entre a criança e o menor que, em nada estava relacionada à faixa etária, pois a categoria menor era atribuída às crianças e adolescentes oriundos da classe pobre, imprimindo um caráter discriminatório ao seu modo de existência. Sendo assim, a legislação apresentava-se como higienista, moralista e punitiva, apesar do discurso protecionista às crianças desvalidas do cuidado familiar.

A figura principal era o Juiz, pois ele detinha todo o poder de decisão quanto ao melhor destino (abrigo ou internação) a ser dado a essa população. Tais decisões baseavam-se na personalidade, na índole, ou seja, em estereótipos e em estigmas associados à pobreza que, conseqüentemente patologizavam e culpabilizavam o modo de vida das famílias pobres. A noção de periculosidade era a justificativa para as sentenças, muitas vezes absurda, do Juiz a quem ninguém poderia questionar4.

Já o Código de menores de 1979 foi uma reformulação do Código de 1927, pois não alterava substancialmente as diretrizes normativas e o poder centralizador do Juiz, e ainda criava uma nova categoria para as crianças e os adolescentes pobres. Elas eram tidas como em “situação irregular” quando não respondiam aos padrões de normalidade estipulados pelas classes dominantes, ou seja, quando os pais ou responsáveis não estivessem suprindo as necessidades de subsistência, de saúde e de instrução; por serem definidos em perigo moral ao contrariar os bons costumes ou ao praticar alguma infração penal. Todos esses fatores da “situação irregular” eram isolados do contexto sócio econômico, atribuindo novamente às famílias a culpa por essas condições, e a incompetência para cuidar de seus filhos e necessitarem da intervenção estatal.

Vemos que, nos dois Códigos, a questão material era a justificativa para a tutela familiar pelo Estado, pois muitos dos itens que motivavam as decisões judiciais para o abrigamento ou internação de “menores” derivavam de dificuldades de sobrevivência impostas à classe pobre devido à injustiça social típica do sistema capitalista.

Já não é mais justificável legalmente retirar o poder familiar por pobreza, mas é possível fazê-lo alegando-se a negligência ou os maus-tratos. Como o processo de criminalização da pobreza faz associações imediatas entre os pobres e os maus-tratos/negligência para com seus filhos – como se essas situações também não ocorressem em outras classes – é possível burlar o ECA, destituindo o poder familiar dos mais pobres. Assim, na prática, a retirada das crianças se dá, de fato, porque elas se encontram em famílias pobres, não importando que outros artifícios vão ser buscados para apoiar tal medida. Dessa forma, em nome da lei, tira-se o direito dos pais (destituição do poder familiar), penalizando toda a família.

Duas histórias demonstram a forma como os profissionais responsáveis pela garantia de direitos e de proteção da população infanto-juvenil, por vezes, individualizam e culpabilizam as famílias por suas péssimas condições de sobrevivência e, conseqüentemente qualificam algumas situações perpetradas aos filhos como negligência, abandono ou maus-tratos. Essa prática de criminalização da pobreza desloca as ações de destituição do poder familiar do plano da proteção do direito à convivência familiar a uma medida punitiva das famílias pobres.

Tal quadro, evidenciado através de dados de pesquisa5, põe em pauta uma questão: a “violência” perpetrada pelos pais pode ser tomada como uma prática individual e objetivada? Vimos que, na maioria dos casos, a ausência de políticas sociais públicas necessárias à proteção da família em situação de vulnerabilidade social foram determinantes para a proposição da ação de destituição do poder familiar, sem que sejam tomados em consideração os efeitos catastróficos do capitalismo neoliberal, que contribuem sobremaneira para o aumento da exclusão social, do desemprego e da violência a que a estão submetidas cotidianamente as famílias pobres.

O primeiro relato remete a uma família prestes a enfrentar uma ação de DPF em virtude da “negligência” materna em relação aos filhos, cujo resultado eram internações hospitalares freqüentes e notificações por parte do hospital. O conselheiro tutelar estava impaciente com esta situação, e desejava resolvê-la definitivamente. Entretanto, para tal propositura, necessitava de avaliações técnicas para embasar seu pedido, pois essa tem um caráter de verdade intocável ao ser feita por um especialista. Durante o atendimento, foi detectado que a mãe apresentava um déficit intelectual, não trabalhava e não possuía uma rede familiar ou social de apoio, o que dificultava o cuidado integral dos filhos. A partir dessa contextualização foi possível instalar uma nova rotina para a família, com a ajuda do pai e da avó paterna, visando a construção de uma rede social/familiar que pudesse dirimir a dificuldade de compreensão da mãe. Assim, foi revertida uma futura DPF, onde o conselho atuou como uma instância de apoio familiar, ao invés de simplesmente aplicar punições à mãe.

O segundo relato é uma DPF com adoção, deferida em detrimento de uma mãe adolescente acusada de “abandono” do filho. A denúncia se pautava na ausência de vacinas e de certidão de nascimento, ter dado outro filho e não desejar filho atual. O contexto familiar era complexo. A avó materna trabalhava de garçonete, tinha problemas de saúde, residia de favor na casa de um amigo, seu marido estava desempregado, era alcoólatra e violento com toda a família. Além disso, rejeitava a filha e o neto. A genitora morava com o irmão devido à violência paterna, não tinha trabalho fixo e admitiu não ter condições materiais de cuidar do filho. Entretanto, discordava da adoção. O genitor foi preso por tráfico, trabalho iniciado após do nascimento da criança e, referido como estratégia possível para o sustento das necessidades do filho. O parecer psicológico enfatizou a história de vida da adolescente: repleta de abandono, pai alcoólatra que expulsou a esposa e os filhos de casa, não aceitação por parte do padrasto, insensibilidade da mãe em relação à filha adolescente. O curador especial disse: “Estamos diante de um caso em que temos de um lado uma família já estruturada, querendo adotar uma criança. Do outro, uma adolescente, desamparada no mundo, que não pode perder o direito de ser mãe de seu filho. A avó prefere dar o neto a assumir qualquer responsabilidade sobre ele. Quer se eximir do dever para com o neto assim como se eximiu de seu dever para com a filha. Mas ninguém está preocupado com a mãe adolescente. Esta é sua triste realidade. Tem tudo contra ela (...) Arrancar-lhe o filho seria mais um ato de violência contra essa menina mãe, a quem já está sendo negado os seus direitos fundamentais”. Entretanto, o Juiz disse: “o passado lamentável da adolescente não serve para justificar a condenação da criança ao mesmo destino da mãe”, deferindo a favor da adoção.

Experiências como essas são fundamentais para a análise de casos classificados como abandono, negligência ou maus-tratos, pois a burocracia dos autos e a naturalização e localização das condições de ocorrência dessas chamadas práticas de violência, contribuem para a crescente penalização da pobreza, individualizando algo que se inscreve numa construção social.

 

3. Abandono⁄ Negligência⁄ Maus-tratos de Quem?

As discussões aqui empreendidas buscaram uma aproximação entre “abandono/negligência/maus-tratos dos pais” (ECA) e “problema sócioeconômico das famílias” (Código de Menores). Em pesquisa realizada (Cunha, 2006) em prontuários de casos de Destituição do Poder Familiar em um conselho tutelar do município do Rio de Janeiro foi verificado que, na totalidade dos casos, as famílias eram pertencentes à classe pobre, compostas por jovens e adolescentes sem companheiro fixo ou sem rede comunitária eficiente, excluídas do mercado formal de trabalho, viviam em áreas ditas violentas e sem acesso integral aos serviços de limpeza, água e esgoto.

Entretanto, tais condições não pesaram na análise das situações de abandono/negligência/maus-tratos, que tomadas de forma individualizadas, reafirmaram a penalização da pobreza.

Esses dados de pesquisa vieram apoiar a construção de um debate que estabelece relações entre as práticas de desqualificação da família pobre e o processo de criminalização da pobreza, discussão que vem sendo trabalhada pelas três autoras em seus diversos campos de intervenção. Diz o Estatuto que não mais se pode destituir o poder familiar por pobreza, mas não são os pobres, agora qualificados como negligentes, descuidados, violentos, que continuam a perder a guarda dos filhos? O capitalismo neoliberal contemporâneo e sua lógica individualizante nada têm a ver com isso? Abandono/negligência/maus-tratos de quem? A lógica da proteção à infância e juventude presente no ECA não envolve também as políticas públicas? Que a potência de tais questionamentos possa produzir novas problematizações.

 

Referências

CUNHA, F. L. (2006). Pobres vidas destituídas: encontros e desencontros da Justiça com o Conselho Tutelar nos casos de Destituição do Poder Familiar. Monografia de Curso de Especialização em Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro.        [ Links ]

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RAUTER, C. (2003). Criminologia e Subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan.        [ Links ]

WACQUANT, L. (2003). Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan.        [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Maria Lívia do Nascimento
E-mail: livianascimento@cruiser.com.br

Fabiana Lopes da Cunha
E-mail: xaxa76@hotmail.com

Laila Maria Domith Vicente
E-mail: lailad@terra.com.br

Recebido em: 24/04/2007
Aceito em: 26/11/2007

 

 

1 As autoras têm desenvolvido intervenções nesse campo temático a partir de suas atuações como psicóloga em um conselho tutelar, supervisora de estágio em conselhos tutelares ou como pesquisadora das Propostas de Emenda à Constituição que visam à redução da maioridade penal.
2 Para um estudo mais detalhado das teorias da degenerescência e seus reflexos no Brasil, conferir RAUTER (2003).
3 Polícia naquele contexto não se refere ao que entendemos hoje – instituição que tem como função coibir e prevenir os crimes assim como funcionar como órgão de investigação no inquérito policial. Naquele momento, polícia se referia ao “poder de polícia”, ou seja, poder/dever do Estado de organizar a vida social, e as relações entre indivíduos, sendo que para isso ele pode abrir mão de intervenções na vida das pessoas e das famílias. Ainda hoje tal forma de poder pode ser encontrada de forma explícita nas doutrinas de Direito Administrativo. Foucault (2003) também a ela se refere de maneira mais cuidadosa ao estudar as teorizações do poder de polícia nas “razões de estado”.
4 No passado, tal lógica menorista tinha por trás uma legislação que lhe dava apoio. Atualmente, mesmo existindo uma outra lei, que permite outras abordagens, práticas de tom criminalizador, por vezes, ainda atravessam o espaço do judiciário.
5 Os casos aqui apresentados fazem parte da pesquisa “Pobres vidas destituídas: encontros e desencontros da Justiça com o Conselho Tutelar nos casos de Destituição do Poder Familiar”.

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