Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
DOSSIÊ
Homofobia, silêncio e naturalização: por uma narrativa da diversidade sexual
Homophobia, silence, and naturalization: towards a narrative of sexual diversity
Homofobia, silencio y naturalización: por una narrativa de la diversidad sexual
Tatiana Lionço*, I, II ; Debora Diniz**, I, III
I Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero - DF - Brasil
II Fundação Oswaldo Cruz Fiocruz
III Pós Graduação em Política Social da Universidade de Brasília
RESUMO
Os livros didáticos são ferramentas pedagógicas para a promoção dos princípios estabelecidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), sendo a sexualidade um tema transversal a ser trabalhado nos currículos escolares. Foi analisada a qualidade discursiva de uma amostra de livros didáticos em uso nas escolas públicas, distribuídos a partir do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM), bem como dicionários distribuídos pelo PNLD e Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Constatou-se que, enquanto os dicionários veiculam afirmações expressamente homofóbicas, os livros didáticos silenciam sobre a diversidade sexual e naturalizam a heterossexualidade e o binarismo de gênero. Ainda que nos livros não hajam afirmações homofóbicas, a afirmação da diversidade sexual como valor social permanece ausente nos materiais didático-pedagógicos. Há dois desafios no reconhecimento de que a homofobia deve ser combatida pela educação formal: o primeiro é romper o silêncio dos livros sobre a diversidade sexual; o segundo é encontrar mecanismos discursivos para apresentá-la em uma matriz de promoção da igualdade e da diversidade.
Palavras-chave: Homofobia, Livro didático, Diversidade sexual, Heteronormatividade, Sexualidade.
ABSTRACT
Schoolbooks are pedagogical tools for the promotion of the principles set by Brazilian National Curriculum Parameters (PCNs), and sexuality is a crosscutting theme to be dealt with in school curricula. This research analyzed the quality of the discourse of a sample of schoolbooks used in Brazilian public schools, distributed by the Brazilian National Program of Schoolbooks (PNLD) and National Program of Schoolbooks for High School (PNLEM), as well as dictionaries distributed by PNLD and the National Program of School Libraries (PNBE). It was found that, while dictionaries convey clearly homophobic affirmations, schoolbooks are silent about sexual diversity and naturalize heterosexuality and gender binarism. Even though there are not homophobic assertions in the books, the affirmation of sexual diversity as a social value remains absent in the pedagogical material. There are two challenges in recognizing that homophobia should be fought against by formal education: the first is to break the silence about sexual diversity in the books; the second is to find rhetoric mechanisms to present it in the matrix of the promotion of equality and diversity.
Keywords: Homophobia, Schoolbooks, Sexual diversity, Heteronormativity, Sexuality.
RESUMEN
Los libros didácticos son herramientas pedagógicas para la promoción de los principios establecidos por los Parámetros Curriculares Nacionales (PCN), siendo la sexualidad un tema transversal a ser trabajado en los currículos escolares. Se analizó la calidad discursiva de una muestra de libros didácticos en uso en las escuelas públicas, distribuidas a partir del Programa Nacional del Libro Didáctico (PNLD) y Programa Nacional del Libro Didáctico para la Enseñanza Media (PNLEM), así como diccionarios distribuidos por el PNLD y Programa Nacional Biblioteca en la Escuela (PNBE). Se ha constatado que mientras que en los diccionarios se vehiculan afirmaciones expresamente homofóbicas, los libros didácticos silencian sobre la diversidad sexual y naturalizan la heterosexualidad y el binarismo de género. Aunque en los libros no haya afirmaciones homofóbicas, la afirmación de la diversidad sexual como valor social permanece ausente en los materiales didáctico/pedagógicos. Hay dos desafíos en el reconocimiento de que la homofobia deba ser combatida por la educación formal: el primero es romper el silencio de los libros sobre la diversidad sexual; el segundo es encontrar mecanismos discursivos para presentarla en una matriz de promoción de la igualdad y de la diversidad.
Palabras clave: Homofobia, Libro didáctico, Diversidad sexual, Heteronormatividad, Sexualidad.
Introdução
A escola é um espaço de construção de novas práticas sociais e saberes compartilhados. A vida escolar não se resume à socialização formal de crianças e adolescentes, pois é também uma experiência potencial de revisão e crítica de práticas sociais injustas e discriminatórias. Temas como a discriminação por raça, sexo ou deficiência passaram a fazer parte da agenda de formação escolar na última década, havendo um crescimento dessas discussões nos livros didáticos brasileiros (Barros, 2007). De personagens nas obras literárias a charges de humor nos livros de biologia, há pouco espaço para o sexismo ou para o racismo em um dos instrumentos centrais de ensino das escolas públicas brasileiras, o livro didático (Vianna & Unbehaum, 2004). No entanto, o mesmo movimento crítico de revisão ética de nossos padrões de desigualdade e opressão no campo das relações raciais e de gênero não se estendeu ao tema da diversidade sexual.
A Constituição Federal de 1988 explicita a universalidade dos direitos sociais, sem discriminação de qualquer espécie, apresentando a diversidade como valor social. Considerando ser a intimidade inviolável, nos termos da própria Carta Constitucional, a sexualidade não pode se restringir a padrões unívocos, denotando a própria pluralidade entre os cidadãos e grupos sociais, bem como suas formas de laço afetivo. Nesse contexto de promoção da igualdade, o conceito de diversidade sexual sintetiza diferentes formas de expressão da sexualidade que não apenas a heterossexualidade. É o reconhecimento da legitimidade do direito de expressão que os aproxima sob o conceito guarda-chuva de diversidade sexual. Neste artigo, para fins de argumentação em um marco de direitos humanos, não estão incluídas sob a matriz da diversidade sexual, práticas sexuais criminalizadas por nosso ordenamento jurídico, tais como a pedofilia ou estupro. Parte-se da crítica à heteronormatividade, compreendida como a matriz de inteligibilidade a partir da qual a diversidade sexual ganha sentido (Butler, 2003). Isso quer dizer que é a partir da heterossexualidade, tomada como parâmetro da normalidade, que toda e qualquer expressão da sexualidade é valorada. Configura uma norma, um princípio ordenador segundo o qual a pluralidade das experiências sexuais é significada.
Nos livros didáticos brasileiros distribuídos para as escolas públicas não há menção explícita à diversidade sexual. Atualmente o Governo Federal coordena três programas voltados para o livro didático: o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM) e o Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA). Enquanto o Ministério da Educação (MEC) atua no acompanhamento da avaliação pedagógica desses programas, por meio de editais públicos para o exame de obras didáticas adotadas no ensino público, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) é responsável pela operacionalização da distribuição dos livros para as escolas, mediante demanda dos professores e professoras referendada nos Guias do Livro Didático.
Os livros recomendados pelo MEC e distribuídos pelo FNDE passam por análises de comissões técnicas constituídas por docentes e pesquisadores de universidades federais brasileiras. Após a análise das obras submetidas à avaliação mediante edital de convocação, o MEC lança os Guias do Livro Didático. Tais guias apresentam as sinopses das obras e coleções didáticas, que devem ser escolhidas pelo professor e pela professora e demandadas ao FNDE.1 Entre os critérios de seleção e avaliação dos livros, há quesitos sobre proselitismo religioso, racismo e sexismo, com claras proposições éticas em defesa da diversidade, da tolerância e da promoção da igualdade. No entanto, apenas recentemente o tema da diversidade sexual ascendeu à categoria de questão de direitos humanos a ser incluída nas avaliações dos materiais a serem utilizados nas escolas, a partir da inserção de menção direta à orientação sexual no edital de seleção e avaliação do PNLD 2006/Dicionários e no PNLEM 2010, bem como recomendação para o enfrentamento da homofobia no edital do PNLD 2011 e no Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA) de 2008.
Este artigo analisa como o tema da diversidade sexual foi incorporado pelos livros didáticos e dicionários distribuídos pelos Programas do Livro. O fenômeno sociológico discutido foi o da homofobia, aqui entendido como expressões de hostilidade à diversidade sexual (Borrillo, 2000). A homofobia é conseqüência da heternormatividade, sendo uma prática de discriminação baseada na suposição da normalidade da heterossexualidade e dos estereótipos de gênero. Homofobia é um conceito recente que permite apreender a permanência da defesa ferrenha ao patriarcado, o que permite reconhecer a estreita associação da homofobia ao sexismo. O sexismo e a homofobia emergem como conseqüência do regime binário da sexualidade (Borrillo, 2000), essencializando a feminilidade e a masculinidade em identidades mutuamente excludentes e cerceadoras das possibilidades de derivação passível de apropriação pessoal, social, cultural e histórica do feminino e do masculino, por pessoas de ambos os sexos.
Metodologia
O projeto de pesquisa Qual diversidade sexual dos livros didáticos brasileiros? foi executado entre 2007 e 2008, com financiamento do Programa Nacional de DST e Aids, do Ministério da Saúde, pela Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, com apoio da Universidade de Brasília, Universidade Federal da Bahia, Universidade do Estado de São Paulo e Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A pesquisa qualitativa foi realizada em uma amostra de 67 dos 98 livros didáticos mais distribuídos pelo PNLD e PNLEM, em uso nos anos 2007 e 2008, e pelo universo de 25 dicionários distribuídos pelo PNLD 2006/Dicionários e PNBE de 1998. Foram selecionados livros de disciplinas que pudessem contemplar a temática da sexualidade no conteúdo programático. Em relação ao ensino fundamental, foram analisadas obras de alfabetização, português, ciências e história; quanto ao ensino médio, português, biologia e história. A análise partiu da centralidade ocupada pelo livro didático no processo de ensino-aprendizagem das escolas públicas do país para avaliar como valores centrais à cultura dos direitos humanos, tais como tolerância e pluralismo, vêm sendo incorporados ao universo escolar.
O PNLD/PNLEM não conta com uma memória permanente de todos os livros didáticos e dicionários distribuídos no país. Por isso, a coleta de dados adotou três estratégias complementares de recuperação das obras: 1. Visitas presenciais ao Memorial do Livro Didático/FNDE, onde há um acervo com amostra dos títulos distribuídos pelos Programas do Livro; 2. Solicitação formal às editoras comerciais cujos livros não constavam no acervo do FNDE para que enviassem exemplares a serem analisados na pesquisa; 3. Visitas presenciais a bibliotecas de escolas da rede pública de ensino do Distrito Federal. A amostra dos livros mais distribuídos pelo PNLD/PNLEM foi estabelecida a partir de listagem sistematizada pela Coordenação de Produção e Distribuição/ FNDE, e o acesso ao Memorial do Livro foi viabilizado pela Coordenação Geral dos Programas do Livro/ FNDE.
O material foi inicialmente lido e analisado por dois pesquisadores independentes. Os dados foram anotados em uma ficha de registro das evidências a partir de categorias discursivas preestabelecidas sobre o fenômeno da diversidade sexual, considerando-se sete variáveis (apresentação de gênero; família e conjugalidade; sexismo; diversidade social; diversidade sexual; relação sexual; DST/Aids). Em caso de discordância na avaliação, um terceiro pesquisador avaliou o material para a indexação nas categorias de análise. Ao final da seleção, quatro pesquisadores participaram da fase de análise de dados.
A análise dos dados se baseou na teoria fundamentada (Strauss & Corbin, 2007). Essa metodologia alia a ênfase nas evidências do material de análise à proposição ativa de significados. A proposta metodológica da teoria fundamentada prima pela ênfase nas evidências geradas no processo da pesquisa, reconhecendo que o fator de confiabilidade dos dados reside não na magnitude quantificável das evidências coletadas, mas na concisão argumentativa decorrente das relações estabelecidas conceitualmente entre as categorias inferidas a partir dos dados.
Os dados foram codificados em categorias analíticas passíveis de articulação em enunciados propositivos que, por sua vez, se sustentam nas evidências. As três categorias analíticas construídas ao longo do projeto foram: homofobia – expressão injuriosa sobre orientação sexual não-heterossexual e expressões de gênero não hegemônicas; silêncio – omissão da referência à diversidade sexual em contextos propícios ao seu reconhecimento, tais como diversidade das configurações familiares, prevenção às DST/Aids, práticas sexuais, etc; e naturalização da heterossexualidade – pressuposição da norma heterossexual como ordenadora da inteligibilidade sobre os corpos e formas de relação sexual e afetiva.
A consideração do material pelos quatro pesquisadores individualmente se deu de forma entremeada a encontros sistemáticos nos quais o levantamento das evidências servia de base para a proposição de hipóteses conceituais, por meio da conjectura entre os dados e a revisão da literatura sobre o tema da pesquisa. A seguir serão apresentadas considerações conceituais baseadas nas evidências contidas nos materiais didático-pedagógicos.
Homofobia, Silêncio Sobre a Diversidade Sexual e Naturalização da Heterossexualidade
Nossa sociedade é não apenas heterossexual, mas marcadamente heteronormativa (Butler, 2003; Rios, 2007a). Nos livros didáticos, o caráter heteronormativo das relações sociais está presente nos padrões de representação de gênero e de organizações familiares, nos discursos sobre afetos e também na ausência do tema da diversidade sexual. A heteronormatividade impõe um silêncio sobre essa temática: não há gays nas obras literárias, não há relações homossexuais nos textos de orientação sexual e, muito precocemente, as crianças aprendem a indexar o universo social pela dicotomia de gênero. Não existem corporificações para além do binarismo de gênero, por isso não se fala de homossexualidade, bissexualidade, transgêneros ou transexuais (Butler, 2003). O silêncio é a estratégia discursiva dominante, tornando nebulosa a fronteira entre heteronormatividade e homofobia.
Homofobia define-se como uma manifestação perversa e arbitrária da opressão e discriminação de práticas sexuais não heterossexuais ou de expressões de gênero distintas dos padrões hegemônicos do masculino e do feminino. Há várias expressões sociais da homofobia, desde atos violentos de agressão física e restrição de direitos sociais até a imposição da exclusão social às pessoas cujas práticas sexuais não são heterossexuais (Meyrou, 2005; Borrillo, 2000). A heteronormatividade da organização social fundamenta-se em falsos pressupostos de naturalização das práticas heterossexuais e no caráter desviante de outras práticas. Ou seja, apesar de haver uma relação de proximidade entre o silêncio sobre a diversidade sexual, a heteronormatividade e a homofobia, esses são três fenômenos sociais diferentes.
Embora possa ser explicado com base na hegemonia da heteronormatividade nos discursos, o silêncio sobre a diversidade sexual nos livros didáticos não é o mesmo que homofobia. Os livros didáticos distribuídos pelo PNLD/PNLEM assumem o caráter compulsório da heterossexualidade como um dado da natureza anterior às organizações sociais. Esse falso pressuposto da anterioridade do sexo à cultura pode ter implicações éticas significativas para a promoção da diversidade sexual na educação. Há um predomínio nos livros didáticos e nos dicionários da associação da sexualidade à dimensão biológica e reprodutiva. Isso denota o reducionismo da concepção de sexualidade veiculada em tais instrumentos pedagógicos, que desconsideram as implicações subjetivas, relacionais e sociais da vivência da sexualidade.
1. Relação Sexual: reprodução biológica, sexualidade
Os livros de biologia do ensino médio, ao discutirem a reprodução humana e os sistemas genitais feminino e masculino, apresentam uma definição de vagina como órgão genital feminino receptor do pênis no ato sexual e por onde sai o bebê no momento do parto, evidenciando a naturalização tanto da heterossexualidade quanto do estereótipo de gênero que associa linearmente a mulher à maternidade: "A vagina (...) recebe o pênis durante o ato sexual; através dela o bebê sai no momento do parto" (Linhares & Gewandsznajder, 2005:309); a vagina "corresponde a um canal muscular por onde passa o bebê no momento do parto. Também é na vagina que o pênis é inserido durante o ato sexual" (Laurence, 2005:582); "as paredes da vagina dilatam-se durante a excitação sexual e as grandes glândulas vestibulares secretam substâncias com função lubrificante que facilitam a penetração do pênis" (Amabis & Martho, 2004:358); e "vagina, estrutura que recebe o pênis durante a relação sexual e serve de canal de saída para o fluxo menstrual e para o bebê no momento do parto natural. A abertura da vagina para o exterior do corpo é circundada por uma membrana denominada hímen, geralmente rompida na primeira relação sexual da mulher" (Lopes & Rosso, 2005:135).
A heteronormatividade se fundamentada no discurso sobre a biologia humana, de modo a naturalizar os corpos e a relação sexual. Não há referências à dimensão social e simbólica da sexualidade, sendo a reprodução sexuada a tônica nas discussões sobre a sexualidade nos livros didáticos de ensino fundamental e médio. A teoria psicanalítica freudiana é um referencial interessante para sinalizar a não pertinência da associação estrita da sexualidade à reprodução. Ao reconhecer e afirmar a premência da sexualidade na infância, Freud (1987[1905]) radicalizou a não restrição da sexualidade ao coito genital e ao regime reprodutivo, já que as crianças não teriam amadurecimento fisiológico necessários à reprodução sexuada, e ainda assim experimentariam o prazer em seus corpos e em suas relações com o outro.
No entanto, a própria consideração do prazer sexual, nos livros didáticos, está restrita à enunciação das condições fisiológicas de excitabilidade dos órgãos genitais. Sobre o ato sexual, afirma-se que "a ejaculação é o momento no qual o homem elimina seus espermatozóides (...). No interior do pênis, existem os corpos cavernosos, estruturas de aspecto esponjoso que, no momento da excitação sexual, ficam cheios de sangue e tornam-se enrijecidos, tornando o pênis ereto. Dessa forma, ele pode ser inserido na vagina" (Laurence, 2005:583).
Ainda que alguns livros incluam a consideração dos métodos contraceptivos e de prevenção às DST/Aids, o conteúdo didático está muito longe de oferecer uma direção ou um apoio informativo para a discussão sobre o exercício responsável da sexualidade. A desconsideração das questões fundamentais sobre a vivência subjetiva e social da sexualidade, como é o caso dos desejos, temores, incertezas e projetos que circundam a relação sexual, pode interferir na própria adoção das práticas preventivas por parte dos adolescentes e jovens. Quando associadas restritivamente à reprodução e às doenças, as medidas de prevenção, diante da crença na invulnerabilidade característica à adolescência, podem soar necessidades alheias. Assim consideradas, tais medidas não atravessam a experiência de desejo e prazer na relação sexual como relação afetiva e social, que supera a dimensão biológica do sexo e suas conseqüências.
2. Sexismo, Apresentação de Gênero e Diversidade Sexual: patologias, discriminações
No tocante à diversidade sexual, apesar de a homossexualidade não ser mais considerada doença pela Associação Psiquiátrica Americana desde a década de 1980 e pela Organização Mundial da Saúde desde os anos 1990, os dicionários insistem na terminologia patologizante para designar as práticas sexuais e afetivas não heterossexuais, por meio dos vocábulos homossexualismo, lesbianismo e bissexualismo. A menção à superação histórica da perspectiva psicopatológica não é realizada quando da introdução desses verbetes, e alguns dicionários dispões apenas essas terminologias, em detrimento da noção de homossexualidade. Ainda que o transexualismo e o travestismo constem ainda nos compêndios nosográficos médicos, sendo também a terminologia corrente nos dicionários, há outros discursos, sobretudo das humanidades, que questionam o caráter patológico atribuído às expressões e apresentações sociais do gênero em discordância com a anatomia biológica (Butler, 2003; Bento, 2008; Arán, 2006; Benedetti, 2005).
Dos 25 dicionários analisados, apenas dois incluem o vocábulo homofobia, com a definição restrita à aversão contra homossexuais (Cegalla, 2005; Houaiss, 2004); quatro apresentam definição de sexismo, com significação genérica de discriminação baseada no sexo (Houaiss, 2004; Cegalla, 2005; Ferreira, 2005; Aulete, 2004), sendo que apenas um destes faz referência ao machismo como expressão da discriminação sexista (Aulete, 2004). Esse é um claro indício do quanto a consideração crítica da discriminação baseada no sexo permanece restrita ao âmbito acadêmico, sobretudo no campo das ciências sociais e jurídicas (Rios, 2002, 2007a, 2008). A discriminação que se fundamenta na inferiorização do gênero feminino, das práticas sexuais não heterossexuais e dos modos de expressar o gênero dissonantes dos estereótipos sociais permanece banalizada e invisível no senso comum, sendo reforçada pelo sexismo e pelo machismo. Fraser (2008) tece um paralelo entre a homofobia e o sexismo pela lógica de atribuição de desprivilegio de status social ao feminino. No caso da homofobia, no entanto, o rebaixamento da feminilidade não está apenas condicionado à biologia do sexo (ainda que o esteja para lésbicas e homens transexuais – de mulher para homem), também alcançando a expressão da feminilidade por pessoas do sexo masculino, sejam gays, travestis ou mulheres transexuais (de homem para mulher).
Nos dicionários, o vocábulo travestismo é definido como ultraje, farsa, modo de enganar e fingir, denotando a evidente desqualificação da apresentação de gênero das travestis, que desestabilizam a lógica binária de gênero ao sustentarem concomitantemente o masculino e o feminino (Benedetti, 2005). Nas definições encontradas, a travesti é um homem homossexual disfarçado de mulher, não havendo, portanto, o reconhecimento da identidade própria às travestis – insiste-se na manutenção do sistema normativo sexo-gênero (Arán, 2006), naturalizando o gênero sob o fundamento do sexo biológico. As definições são "homens que vestem roupas femininas" (Koggan & Houaiss, 1998), "homossexual que se veste com roupas do sexo oposto" (Luft, 2005; Ferreira, 1986, 2005; Rios, 1998; Mattos, 2005; Larousse, 1992) e "disfarce no trajar" (Ferreira, 1986; Kury, 2001). Já nas palavras de Benedetti, "travestis são aquelas que promovem modificações nas formas do seu corpo visando a deixá-lo o mais parecido possível com o das mulheres; vestem-se e vivem cotidianamente como pessoas pertencentes ao gênero feminino" (Benedetti, 2005:18), sem, no entanto, deixarem de se identificar também com o gênero masculino. É característico às travestis, portanto, ser andróginas.
Transexual, nos dicionários, seria "pessoa que fez uma cirurgia para mudar de sexo" (Mattos, 2005), "pessoa que se submete a tratamento e a intervenção cirúrgica para mudar de sexo" (Cegalla, 2005), "referente a mudança de sexo (operação transexual)" (Aulete, 2004). Pesquisadores (Bento, 2007; Arán, Murta & Zaidhaft, 2008), no entanto, afirmam a pluralidade entre as pessoas que se autodenominam transexuais, salientando que muitas não desejam a realização da adequação cirúrgica. O ponto central na compreensão da transexualidade é o sentimento de pertencimento e a vivência no gênero discordante com o sexo biológico, ou seja, uma pessoa que nasceu no sexo masculino mas sente ser e vive como mulher, independente de ter realizado ou vir a realizar a cirurgia de transgenitalização. Revela-se, assim, nos dicionários, a premência da suposição da necessidade de adequação anatômica nos casos de pessoas que vivenciam o gênero em desacordo com o supostamente determinado pelo sexo biológico. O binarismo de gênero também fundamenta a definição "mulher-macho" para o verbete lésbica (Kury, 2001).
Para Judith Butler (2003), a heterossexualidade compulsória se alicerça na essencialização do alinhamento entre sexo, gênero e desejo: a suposição da determinação linear do sexo biológico sobre a apresentação social do masculino ou do feminino pressupõe a definição do objeto de desejo como sendo de sexo oposto ao daquele que deseja. A homofobia é uma expressão do desconforto moral causado pela ruptura desse alinhamento, isto é, pela provocação da suposta naturalização da ordem do desejo e das apresentações de gênero (Borrillo, 2000).
Apesar de equiparável a outras práticas discriminatórias em termos de prejuízos sociais, como, por exemplo, ao racismo, ao sexismo e ao anti-semitismo, a homofobia vulnerabiliza as pessoas à maior precariedade do laço social, já que mesmo na família ou no grupo social de origem os processos de exclusão são operantes (Rios, 2007a; Eribon, 2008). Nesse sentido, diferentemente de outras expressões da discriminação, a homofobia impõe uma experiência de solidão ao sujeito vítima da opressão, pois alguns dos mais importantes espaços de cuidado são também os de maior expressão das injúrias homofóbicas (Eribon, 2008; Picquart, 2008).
3. Família, Conjugalidade e Diversidade: patriarcado e heteronormatividade
A heteronormatividade se sustenta em grande parte na naturalização da família heterossexual e patriarcal. As definições dos dicionários para o verbete família são elucidativas a esse respeito: "O pai, a mãe e os irmãos formam uma família; os avós, primos e os tios também fazem parte da família" (Houaiss, 2005); "o pai, a mãe e os filhos" (Koggan & Houaiss, 1998). Já nos livros didáticos, há abertura para a discussão de diversas configurações familiares. Em um livro de história para o ensino fundamental, afirma-se que:
as famílias vivem e se organizam de diferentes formas (...). Algumas crianças vivem só com a mãe. Outras crianças vivem com o avô, a avó e os irmãos. Outros vivem com os avós, tios, padrinhos ou pais adotivos. Há crianças que vivem com a mãe, os irmãos, o padrasto e os filhos do padrasto. Algumas crianças vivem apenas com os irmãos mais velhos. Algumas crianças vivem só com o pai. Há crianças que perderam suas famílias e moram nos orfanatos, junto com outras crianças. Muitas vivem abandonadas, nas ruas e praças da cidade. Alguns adultos vivem sozinhos. Não moram com suas famílias. Alguns casais não têm filhos. (Símon & Fonseca, 2006:47-50).
Nesse e em outros livros, discutem-se configurações familiares variadas, mas as configurações sugeridas só alcançam a abrangência de demais partícipes da família heterossexual (avós, novos casamentos, separação entre os pais, ausência dos pais). As definições de casamento presentes nos dicionários permitem associar o modelo da família patriarcal à sacralidade, referendando a sua legitimidade na religiosidade: "União legal entre um homem e uma mulher. Um dos sete sacramentos da igreja católica" (Koggan & Houaiss, 1998); "união entre homem e mulher, segundo as leis civis e religiosas" (Luft, 2005); "ato solene de união entre duas pessoas de sexos diferentes, capazes e habilitadas, com legitimação religiosa e/ou civil" (Ferreira, 1986).
4. Homofobia: a injúria
Os verbetes dos dicionários tomados como exemplos indicam o quanto a injúria homofóbica está presente nas relações sociais e naturalizada nos atos de linguagem. Em um dos dicionários, a definição "veado, homossexual, pederasta" é adotada para o verbete gay, assim como "sapatão", para lésbica (Melhoramentos, 1997). Isso aponta para um veredicto sobre alguém fora da norma, ou, segundo Didier Eribon, "é uma sentença quase definitiva, uma condenação perpétua, e com a qual vai ser preciso viver" (Eribon, 2008:28). A injúria é uma expressão discursiva característica da homofobia, explicitando a assimetria de poder resultante da depreciação da diversidade sexual. A noção de injúria como exemplifi cativa da dinâmica social homofóbica permite apreender que a sexualidade deixa de ser estritamente matéria da vida privada, tornando-se importante elemento da vida pública, qualificador do status social das pessoas.
Se os dicionários expressam injúrias homofóbicas, os livros didáticos de biologia potencializam o binarismo de gênero por meio da sobreposição da sexualidade à reprodução biológica heterossexual. Os corpos de homens e mulheres são representados pelos órgãos sexuais, que, por sua vez, se configuram como objeto de atenção relativa à proteção contra doenças sexualmente transmissíveis e à reprodução. Não há espaço nos livros de biologia de ensino médio para o corpo como um indicativo de performances sociais de gênero ou para práticas sexuais além do coito heterossexual. Representa-se o corpo em figuras e textos como objeto de risco ou de reprodução. É nesse contexto que a sexualidade se resume à apresentação das potencialidades reprodutivas de corpos masculinos e femininos.
Desigualdade Social, Políticas de Educação e Homofobia nas Escolas
A enunciação da sexualidade como direito humano e da diversidade sexual como valor a ser cultivado nas sociedades democráticas se sustenta na premissa de desessencialização e desnaturalização do sexo (Rios, 2007a). A sexualidade passou a ser considerada segundo a perspectiva do prazer e das relações afetivas e sociais, desvinculando-se do regime reprodutivo estritamente. Da mesma forma, as expressões do gênero passaram a ser compreendidas como tributárias à performance social (Butler, 2003), e não mais à manifestação social caricata e essencializada de uma natureza biológica do sexo. O debate contemporâneo sobre sexualidade e gênero ultrapassou o reducionismo dicotomizante entre natureza versus cultura por meio da afirmação não apenas da arbitrariedade da dominação masculina (Bourdieu, 2007), mas também da historicidade da compreensão binária do sexo (Laqueur, 2001). Para Foucault (1982), a determinação da verdade do sexo é uma construção histórica e, portanto, relativa, estando a serviço do estabelecimento de relações de poder sobre os corpos e da regulação dos prazeres e costumes.
Afirmar a desessencialização do sexo permite reconhecer que os arranjos possíveis entre corpos biológicos e performances sociais de gênero extrapolam o reducionismo do binarismo homem/mulher associado a estereótipos sociais. Trata-se, portanto, de afirmar a necessidade de assegurar a igualdade de status social a pessoas e grupos que vivenciam laços amorosos não-heterossexuais e performances sociais de gênero não condizentes com os estereótipos do masculino e do feminino cristalizados na naturalização binária da diferença biológica dos sexos. No entanto, a matriz de comensurabilidade para a sexualidade nos livros didáticos é a heterossexualidade compulsória, havendo pouco espaço para a emergência de novas práticas sexuais ou expressões da diversidade sexual. Essa matriz heteronormativa, por sua vez, dá suporte a um conjunto de valores relacionados à centralidade da reprodução biológica.
O tema da desigualdade de gênero está presente nos livros didáticos como uma resposta às diretrizes políticas de promoção da eqüidade social entre homens e mulheres (Brasil, 1996). Há uma constância do combate ao sexismo nas obras analisadas: dos livros de língua portuguesa e de história aos de biologia, há uma afirmação da igualdade entre os sexos. Outras expressões da desigualdade social também ocuparam espaço nos livros didáticos, como é o caso da deficiência e da raça. O mundo das crianças deve ser diverso em sua representação iconográfica, por isso há personagens de várias cores, tipos, formas e com diferentes habilidades cognitivas e físicas nos livros de ensino fundamental. No entanto, o mesmo compromisso democrático não atingiu os livros didáticos no tocante à inclusão da diversidade sexual. Se sobre o racismo, o sexismo e a opressão pela deficiência, os livros são claramente críticos, sobre a diversidade sexual a opção discursiva foi o silêncio. Não se menciona essa temática. É como se ela não existisse no universo social e simbólico das crianças e adolescentes nas escolas.
O reconhecimento da homofobia como um fenômeno discriminatório a ser enfrentado pelas escolas é recente nas políticas públicas de educação no Brasil, tendo o MEC apoiado cursos de capacitação de professores(as) no tema da diversidade sexual (Brasil, 2007, 2008). A qualificação do material didático-pedagógico, no entanto, permanece um grande desafio. Ela requer iniciativas inovadoras que visem à promoção da igualdade de oportunidades para todas as pessoas, independente das práticas sexuais e/ou performances sociais de gênero, por meio da superação do silêncio sobre a diversidade sexual associado à naturalização da heterossexualidade. A suposição da naturalidade da heterossexualidade como fundamento do laço afetivo e sexual restringe a possibilidade do reconhecimento de famílias constituídas por parceiros do mesmo sexo, bem como inferioriza o envolvimento amoroso entre pessoas do mesmo sexo ao status do não-legítimo, do estranho, do outro.
Há dois desafios no reconhecimento de que a homofobia deve ser combatida pela educação formal: o primeiro é romper o silêncio dos livros sobre a diversidade sexual; o segundo é encontrar mecanismos discursivos para apresentá-la em uma matriz de promoção da igualdade e da diversidade. A afirmação da diversidade sexual é uma estratégia necessária para o seu reconhecimento como valor social a ser preservado, rompendo com o ciclo de violação de direitos de marginalização das práticas sexuais e performances de gênero não hegemônicas.
Vale ressaltar, no entanto, que a introdução da afirmação sobre a diversidade sexual nos materiais pedagógicos deve primar pela consciência da igualdade como princípio ético e político para a consumação dos direitos sociais, e não pela precisão de identidades referenciadas como "outras", que poderiam essencializar a diferença como marca de um contraponto em relação ao status quo. A política do reconhecimento é uma estratégia necessária diante de quadros evidentes de desigualdade social nos quais se pode precisar um vetor que demarca a diferença como fundamento do prejuízo social, como é o caso da homofobia. A afirmação da diversidade sexual deve, portanto, visar a uma cultura em que não haja desigualdade nas oportunidades sociais (MacKinnon, 1991; Fraser, 2008), e não à cristalização artificial de identidades que, fundamentalmente, remetem a uma ampla variedade de vivências das homossexualidades e das performances sociais de gênero.
Exceto pelos verbetes dos dicionários, é possível afirmar que os livros didáticos não apresentam expressões explicitamente homofóbicas. Nesse sentido, o silêncio sobre a diversidade sexual e a heterossexualidade compulsória podem ser peças de uma estrutura heteronormativa na educação, mas não se confundem com a homofobia, entendida como um ato explícito de violência contra práticas sexuais não heterossexuais (Borrillo, 2000). Uma possível explicação para a inexistência de expressões homofóbicas é que os livros didáticos são avaliados por comissões acadêmicas constituídas pelo MEC, cujo compromisso é com o combate a práticas discriminatórias. Há, no entanto, uma discrepância entre os livros didáticos e os dicionários sobre esse tema.
Os livros didáticos reproduzem a matriz heteronormativa e associam a sexualidade à reprodução biológica. Os dicionários, além de heteronormativos, apresentam injúrias homofóbicas. Há uma diferença significativa entre o silêncio à diversidade sexual dos livros didáticos e a enunciação homofóbica dos dicionários. Se para os livros didáticos, a dificuldade repousa em como abordar a diversidade sexual a partir de uma matriz igualitária e de direitos humanos, para os dicionários, o desafio é ainda maior. O silêncio dos livros sobre a diversidade sexual pode ser um indicativo do papel exercido pelo painel de especialistas do MEC, revelando sua centralidade para a avaliação de políticas públicas na educação.
Com a proposição dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a orientação sexual, com sentido de educação sobre e para a sexualidade, foi incorporada aos temas transversais (Brasil, 1997; 1998). Apesar de priorizar questões sobre a promoção da saúde sexual e da prevenção de DSTs/Aids, bem como de gravidez indesejada, o documento também explora temas ligados a direitos sexuais e reprodutivos, com clara menção à função educacional de identificação e questionamento de tabus e preconceitos relativos à sexualidade, evitando posturas e práticas discriminatórias. Recomenda-se o reconhecimento e respeito à diversidade de valores e comportamentos referentes à sexualidade, bem como a desconstrução dos estereótipos de gênero.
Contudo, apesar da abertura conceitual à promoção da diversidade sexual, após mais de uma década desde a proposição da orientação sexual como conteúdo integrante do currículo escolar, parece não ter havido avanços para além da desigualdade de gênero no que compete aos direitos sexuais. Permanece invisível ou preterida a consideração das orientações não-heterossexuais e das identidades de gênero avessas à linearidade da determinação do sexo biológico sobre as apresentações sociais da feminilidade e/ou da masculinidade. Um alargamento de perspectiva vem sendo apontado como necessário ao avanço e à democratização dos direitos sexuais (Correa, 2008; Rios, 2007b).
Como efeito da constituição do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, foi elaborado e lançado, em 2004, o Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e discriminação contra GLBT e de promoção da cidadania homossexual (Brasil, 2004), importante instrumento político para a visibilidade de ações específicas de enfrentamento da homofobia. Nesse documento, prescreve-se, além da formação continuada das professoras na área da sexualidade, o incentivo à produção de materiais educativos sobre orientação sexual e diversidade das performances sociais de gênero. Estabelece-se, também, a constituição de equipes multidisciplinares para a avaliação dos livros didáticos, de modo a eliminar conteúdos discriminatórios homofóbicos dos materiais pedagógicos, primando pela universalidade dos direitos sociais.
Considerações Finais
A análise dos livros didáticos distribuídos para as escolas públicas de ensino fundamental e médio evidenciou que não há homofobia nos livros didáticos em circulação nos dois últimos anos. Não há enunciados que expressamente inferiorizem ou marginalizem homossexuais, travestis ou transexuais, muito embora exista uma hegemonia heteronormativa e de valores associados à presunção de uma ordem social assentada na heterossexualidade compulsória. A qualificação das evidências pela categoria analítica homofobia, portanto, restringiu-se à injúria como expressão discursiva de estigmatização da diversidade sexual.
Em razão disso, a análise do material exigiu a superação de um impasse conceitual: apesar de a homofobia ser entendida como um fenômeno social complexo, abrangendo múltiplas estratégias discursivas que sustentam a inferioridade dos arranjos relacionais não-heterossexuais, sobretudo por meio da naturalização da heterossexualidade e da família patriarcal, caso a qualificação de um discurso como homofóbico não se restringisse a afirmações expressamente discriminatórias ou depreciativas, a totalidade das obras poderia ser considerada homofóbica, sem, no entanto, enunciar explicitamente um discurso injurioso.
Há uma discrepância entre as narrativas sobre sexualidade nos livros didáticos e nos dicionários. O silenciamento sobre a diversidade sexual associado ao binarismo de gênero, ainda que endosse a homofobia por meio do reforço da heteronormatividade, não pode ser qualificado como homofóbico. As afirmações explicitamente depreciativas e discriminatórias dos verbetes dos dicionários perderiam sua força analítica caso fossem equiparadas ao silenciamento e à naturalização heteronormativa que constam nos livros didáticos.
Esse resultado de pesquisa pode ser um indicativo do quanto as comissões acadêmicas constituídas pelo MEC a fim de avaliar as obras a serem selecionadas para distribuição pelo FNDE entre as escolas públicas do país vêm desempenhando um importante papel no filtro e na exclusão de narrativas que desrespeitem os direitos humanos. Já os dicionários utilizados nas escolas públicas, apesar de distribuídos também pelo Governo Federal, provavelmente não passam pela análise de conteúdo, verbete por verbete, pelas comissões constituídas. O reconhecimento de afirmações explicitamente discriminatórias nos dicionários endossa a função política da avaliação das obras escolhidas para nortear a atuação da(o)s professora(e)s em sala de aula em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais, que afirmam a diversidade sexual como valor.
Problematizar as estratégias discursivas que naturalizam a heterossexualidade e essencializam as performances de gênero, associando-as linearmente à ordem biológica do sexo, visa à promoção da justiça social para quem vivencia a sexualidade e o gênero de modo dissonante à matriz de inteligibilidade heterossexual, que configura atualmente o padrão moral hegemônico. A ausência de menção explícita à inferioridade das práticas sexuais não-heterossexuais e das expressões de gênero que desestabilizam a essencialização do binarismo é uma estratégia discursiva insuficiente para a necessária desconstrução da heteronormatividade. O silêncio sobre a diversidade sexual e a naturalização da heterossexualidade contribuem para a manutenção da lógica heteronormativa, demandando estratégias discursivas afirmativas da diversidade sexual como valor social. Essa ressalva ganha força ao se constatar a explícita patologização das identidades de gênero discordantes do sexo biológico e das orientações sexuais não-heterossexuais nos dicionários. A ausência da afirmação democrática da diversidade sexual no material pedagógico atribui à professora, ao professor e à direção das escolas a total responsabilidade de trazer o tema de modo crítico à sala de aula. É papel do material didático, no entanto, resguardar as diretrizes curriculares e contribuir para a valorização da tolerância à diversidade sexual, além dos padrões heteronormativos.
A complexidade do fenômeno da homofobia, portanto, se revelou no material de análise por meio da clareza de que discursos indiretos sustentam a própria dinâmica discriminatória, sobretudo o silenciamento em relação à diversidade sexual concomitante à naturalização da heterossexualidade e do binarismo de gênero. Pode-se afirmar que a matriz de inteligibilidade (Butler, 2003) da sexualidade nos livros didáticos se baseia na suposição da significação biológica da sexualidade (condicionada à prática reprodutiva), da naturalidade da família patriarcal (pai-mãe-filhos) e da determinação linear do sexo biológico sobre as performances sociais de gênero. O material didático-pedagógico, bem como os dicionários, são instrumentos constituintes da educação como política pública, devendo estar estritamente vinculados a princípios orientadores de uma sociedade democrática, como igualdade, liberdade, autonomia e respeito às diferenças.
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Endereço para correspondência
Tatiana Lionço
E-mail: t.lionco@anis.org.br
Debora Diniz
E-mail: anis@anis.org.br
Recebido em: 09/10/2008
Aceito em: 15/12/2008
Financiamento:
O Projeto "Qual a diversidade sexual dos livros didáticos brasileiros?", TC N. 247/07, foi fi nanciado pelo acordo de cooperação PN-DST-AIDS/SVS/Ministério da Saúde/BIRD/UNODC – Projeto AD/BRA/03/H34 Acordo de empréstimo BIRD 4713-BR.
Agradecimentos:
O projeto agradece à Coordenação dos Programas do livro do FNDE, à Editora do Brasil, à Editora Dimensão e ao IBEP;às bibliotecas do Centro Educacional Asa Norte, do Centro de Ensino Médio Paulo Freire e do Centro Educacional GISNO pelo apoio na fase de coleta de dados. As autoras agradecem à Marilena Corrêa pelas sugestões.
* Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília; pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e da Fiocruz - DF - Brasil.
** Doutora em Antropologia; Professora Adjunta da Pós Graduação em Política Social da Universidade de Brasília; pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero - Brasil.
1 A política de incentivo à leitura dispõe de outros dois programas, também concernentes a materiais didático-pedagógicos, a saber, o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e o Programa Nacional Biblioteca na Escola para o Ensino Médio (PNBEM). Além dos livros didáticos, são distribuídas obras de literatura e livros técnicos, tais como dicionários e enciclopédias, que constituem rico material paradidático para a formação de alunos e o aprimoramento da competência técnica da(o)s professora(e)s para a docência.