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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

Adolescência e maioridade penal: reflexões a partir da psicologia e do direito

 

Adolescence and penal majority: reflections from the psychology and of the right

 

Adolescencia y mayoridad penal: reflexiones a partir de la psicología y del derecho

 

 

Cândida Alves*; Regina Pedroza**, I ; Aline Pinho***; Luara Presotti***; Felipe Silva****

I Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O aumento da violência assusta a sociedade brasileira, a qual cobra do Estado medidas para acabar com sua insegurança. Essa discussão tem se voltado para crianças e adolescentes autores de infrações, reacendendo a polêmica da redução da maioridade penal. Os principais argumentos a favor da redução referem-se à consciência dos adolescentes sobre seus atos e à necessidade de responsabilizá-los. Já os que são contra defendem que a inimputabilidade penal não significa impunidade e que o ECA é pioneiro no respeito aos direitos da criança e do adolescente defendidos pela ONU. Em suma, deve-se buscar a reformulação do sistema de internação para permitir o pleno funcionamento das medidas socioeducativas contidas no ECA. Estas devem ser tomadas com o objetivo de reconhecer os direitos inerentes à pessoa, assegurando oportunidades aos adolescentes infratores e facultando-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral e social em condições de liberdade e dignidade.

Palavras-chave: Adolescência, Redução da maioridade penal, Psicologia, Direito, Moral.


ABSTRACT

The increase of violence frightens Brazilian society, who demands measures from the State to end up with its insecurity. This discussion has been directed at children and adolescents who are authors of criminal infringements, rekindling the polemics around the reduction of full legal age. The main arguments favorably to the reduction are referred to the adolescents' conscience about their acts and the necessity of holding the responsibility on them. The ones who are against claim that the condition of penal non-imputability doesn't mean impunity and ECA is a pioneer in respect to the rights of the infant and the adolescent defended by ONU. To sum up with, one has to seek the reformulation of the internment system in order to allow the whole mechanism of socio-educational measures contained in ECA. These must be taken with the objective of recognizing the rights that are inherent to the person, assuring opportunities to the adolescents who commit infractions and conferring them the faculty for their physical, mental, moral and social development in condition of freedom and dignity.

Keywords: Adolescence, Reduction of full age, Psychology, Law, Moral.


RESUMEN

El aumento de la violencia asusta a la sociedad brasileña, la cual cobra del Estado medidas para acabar con su inseguridad. Esa discusión se ha dirigido a niños y adolescentes autores de infracciones, lo que intensifica la polémica de la reducción de la edad de mayoría penal. Los principales argumentos a favor de la reducción se refieren a la toma de consciencia de los adolescentes sobre sus actos y a la necesidad de responsabilizarlos. Por otro lado, los que están en contra defienden que la inimputabilidad penal no significa impunidad y que el ECA es pionero en lo que se refiere al respeto de los derechos del niño y del adolescente defendidos por la ONU. En resumen, se debe buscar la reformulación del sistema de internación para permitir el funcionamiento pleno de las medidas socioeducativas previstas por el ECA. Éstas deben ser tomadas con el objetivo de reconocer los derechos inherentes a la persona, asegurando oportunidades a los adolescentes infractores y permitiéndoles el desarrollo físico, mental, moral y social en condiciones de libertad y dignidad.

Palabras clave: Adolescencia, Reducción de la edad de mayoría penal, Psicología, Derecho, Moral.


 

 

Introdução

A violência nos grandes centros urbanos brasileiros, diariamente alardeada pelas manchetes dos jornais, há muito já não é mais novidade. No entanto, o crescimento ininterrupto da freqüência, da crueldade e das novas "técnicas" de perpetrar crimes tem assustado cada vez mais a sociedade, levando esta a cobrar do Estado medidas mais severas que acabem com seu sentimento de insegurança (Ramos, 2005). Constantemente, essa discussão tem se voltado para o caso das crianças e adolescentes autores de infrações, tendo em vista acontecimentos violentos recorrentes em que estão envolvidos menores de idade. Vemos então reacender uma polêmica que, de tempos em tempos, assoma na mídia e na boca do povo brasileiro: a redução da maioridade penal.

O presente trabalho tem como objetivo analisar os argumentos que cercam essa discussão, tanto aqueles favoráveis quanto os contrários. Se sairmos da lógica fácil e linear dos pontos que comumente são levantados quando se trata da redução da maioridade penal, veremos que há aí uma complexidade muito maior do que pode parecer. Essa discussão envolve não só o Direito, mas também outros campos do conhecimento como as Ciências Sociais, a Ciência Política, os Direitos Humanos e também a Psicologia. Não é exagero dizer que qualquer análise desse fenômeno que prescinda do olhar de uma dessas disciplinas é uma análise incompleta. Não podemos, por outro lado, cair na utopia de conseguir dar conta do assunto de maneira abrangente e imparcial, uma vez que é justamente o seu caráter multifacetado que responde pela dificuldade em debatê-lo. O que se deve procurar é, ao se escolher um recorte, não apelar para didatismos reducionistas ou preconceitos ingênuos. Este artigo pretende, portanto, tratar do tema com ênfase nas contribuições da Psicologia e do Direito, sem deixar de lado, porém, as demais áreas mencionadas.

Para tal análise, é imprescindível que iniciemos com um retorno aos aspectos históricos que cercam a construção do conceito de adolescência e o tratamento previsto em lei àqueles adolescentes que transgridem as normas vigentes na sociedade. A seguir, debateremos os pontos comumente defendidos pelas posições contrária e favorável à redução da maioridade penal. Por fim, discutiremos as possíveis contribuições da Psicologia em sua relação com a justiça e refletiremos sobre propostas de atuação.

 

A construção da adolescência

Apesar das inúmeras tentativas de naturalização e universalização do conceito de adolescência, tem se tornado claro para os estudiosos da Psicologia do Desenvolvimento, nas últimas décadas, que esse fenômeno é fruto de acontecimentos situados em um contexto social, cultural e histórico. Na Antigüidade grega, encontram-se já relatos que delimitam um período da vida humana entre a infância e a fase adulta, atribuindo a ele características diferenciadas, tais como impulsividade e paixão. De todo modo, a adolescência como conhecemos hoje surgiu muito tempo depois, estreitamente associada ao modo capitalista atual de organização do trabalho (Petersen, 1988, citado por Santos, 2008: 29). É importante deixar claro que a inexistência de um período de adolescência não se deveu ao fato de não ter existido diferenças entre as pessoas no decorrer de suas vidas; o que podemos afirmar com mais segurança é que o estabelecimento de faixas etárias, em particular aquelas que hoje em dia delimitam a adolescência, não era um aspecto essencial para a forma como a sociedade estava organizada.

Até o século XIX, a infância era a única etapa da vida que se diferenciava da fase adulta, sendo exigido do indivíduo, tão logo deixasse de ser criança – ou até mesmo antes disso –, posturas e responsabilidades atribuídas a um adulto daquela comunidade (Ariès, 1973). É com a Revolução Industrial e a necessidade crescente de especialização de mão de obra que começa a aparecer o que atualmente se nomeia como adolescência. Esse processo se inicia quando o domínio das máquinas e do modo de produção exige trabalhadores cada vez mais qualificados, cuja preparação deverá vir de um período de formação que precede a iniciação no trabalho (Santos, 2008). Era necessário tratar-se de indivíduos flexíveis e maleáveis, sem concepções e modos de funcionamento arraigados, e com habilidade suficiente para desempenhar as tarefas industriais. Com a primeira exigência excluíam-se os adultos e os idosos e, com a segunda, as crianças.

Surge assim uma etapa intermediária entre a infância e a fase adulta, tratada como um período de preparação para o trabalho, em que o sujeito é visto como uma possibilidade de vir a ser capaz, e por isso mesmo é alvo de investimentos. Desse modo, ele ainda precisa desenvolver esse potencial para que possa figurar como um membro da comunidade adulta. Em suma, a adolescência seria então um fenômeno típico do século XX, facilitado pelo prolongamento da vida humana e pela necessidade de uma formação cada vez mais longa para o trabalho (Palácios, 1990).

Paralela a essa esperança depositada pela sociedade no sujeito cujas características permitem categorizá-lo como adolescente, surge a visão desse mesmo indivíduo como um perigo em potencial, principalmente se fizesse parte de uma classe social desfavorecida (Gonçalves & Garcia, 2007). O adolescente passa a ser, portanto, alvo também de um intenso processo de disciplinarização, a fim de evitar que algo fuja do socialmente desejável.

É sob esse prisma que podemos compreender a institucionalização e obrigatoriedade do sistema de ensino, que surge como principal instrumento de controle social, entendido como uma forma de domínio sobre o adolescente. É interessante notar aqui a visão de que o adolescente é, sobretudo, um potencial a ser desenvolvido, a ser moldado. Seja para o bem – produtividade econômica – ou para o mal – delinqüência –, a adolescência passa a ser vista como um período de preparação, de transição, em que estarão sendo criadas as bases para o futuro adulto. Dentro dessa perspectiva, a comunidade adulta responsabiliza-se, portanto, por esse indivíduo, impedindo que interesses escusos atuem sobre ele, e assegurando que sejam cumpridos os objetivos supostamente legítimos da sociedade adulta, religiosa e trabalhadora.

A partir dessa breve retomada histórica do conceito ‘adolescência', podemos perceber que esta tem sido encarada como uma fase delicada e frágil, em que um indivíduo sem domínio sobre suas ações deve ser controlado e vigiado pela sociedade, a fim de que não se desvie – tendência que freqüentemente lhe é imputada como naturalmente própria. Se tudo der certo nesse trajeto, esse adolescente haverá de se tornar um adulto produtivo, obediente e disciplinado.

A despeito dessa visão engessada, muitos autores de áreas como a Psicologia, a Antropologia e a Sociologia têm concordado que a adolescência, como todas as outras fases da vida, não pode ser vista como possuidora de características inerentes a ela, mas sim como um constructo negociado historicamente entre os atores de uma realidade social. Dessa forma, diferenças entre classes sociais, culturas e gênero, entre outras, devem ser consideradas quando falamos em adolescência. Nesse sentido, esta é mais do que uma classificação etária, pois caracteriza uma experiência psicossocial diferenciada constituída no contato entre os jovens e a interação com a cultura que os cerca (Souza, 2007).

Menandro (2004) aponta que são três os critérios segundo os quais tradicionalmente se define a adolescência: o biológico, o cronológico e o de padrão típico de adolescente. A autora defende, no entanto, que tais fatores são insuficientes para dar conta do fenômeno. A puberdade, estritamente biológica, é tida muitas vezes como o fator maior para a delimitação da adolescência. Contudo, tal critério de análise ignora os processos de mudança psicossocial pelos quais o indivíduo passa durante essa fase da vida. A separação com base na cronologia, ou seja, na idade do sujeito, tem sido muito usada principalmente para fins legais e jurídicos, mas também médicos, escolares, etc. Todavia, ela também oferece restrições, já que procura encerrar em si um processo fluido e variável que assume novos aspectos a depender do indíviduo do qual estamos falando, sua classe social, sua história privada, seu contexto cultural e histórico. O padrão típico de adolescente, por fim, é o terceiro critério que se propõe a definir a adolescência. A autora é incisiva ao criticar esse ponto, esclarecendo que ele pressupõe a adolescência como fenômeno universal, possuidor de características fixas, inerentes e facilmente reconhecíveis, quase uma ‘sintomatologia'.

A idéia da adolescência como crise foi também amplamente disseminada a partir da teoria do Ciclo Vital (ou dos estágios psicossociais), formulada por Erik Erikson (1976). Segundo essa teoria, cada pessoa deve passar, em sua vida, por diferentes estágios, cada qual marcado por um conflito e uma crise específicos. Entre os oito estágios, a adolescência configura-se como aquele marcado principalmente pela confusão de papéis e construção da identidade. A solução desses desafios envolve a obtenção de um "senso confortável de si mesmo como pessoa", pois, caso isso não ocorra, o adolescente vivencia um sentimento de self fragmentado, marcado pela instabilidade e falta de clareza (Cárdenas, 2000).

Essa concepção de adolescência pode ser observada ainda hoje em vários estudos sobre o assunto e também no senso comum. Esses comumente retratam-na como uma fase marcada por rebeldia, crise e conflitos (Santos, 2008; Souza, 2007). Como afirma Menandro (2004), essa visão generalizada do adolescente-problema pode ser percebida em pesquisas realizadas nas Ciências Sociais e Humanas, centradas em temas como drogas, violência, dificuldades na escola, etc.

Em contraponto a essa visão, Freire (1996) defende que é na rebeldia, e não na resignação, que o adolescente se afirma face às injustiças. A rebeldia é o ponto de partida para a denúncia da situação desumanizante pela indignação, mas por si só não é suficiente. A mudança no mundo implica, além da denúncia, o anúncio da superação. Ou seja, a rebeldia deve ser vista como forma de ser no mundo que traz à tona as injustiças, devendo ser utilizada para motivar a mudança. Caberia, assim, à sociedade reconhecer no adolescente a capacidade de rebelar-se como forma de resistência e como forma de querer o novo, a mudança, o que é extremamente positivo e essencial para o desenvolvimento de sua autonomia como sujeito de suas ações, e não como objeto.

É justamente tendo em vista a maneira como os adultos se impõem perante os adolescentes e o paradoxo da conformação versus rebeldia da adolescência, que Calligaris (2000) pensa a juventude atual. Para ele, essa representação da adolescência como fase de rebeldia e transgressão acaba se tornando o que se espera desse período da vida, transformando essas características naquilo que é normal e próprio ao adolescente. Dessa forma, este acaba se deparando com uma expectativa – ainda que muitas vezes não declarada – de fugir aos padrões, entrar em crise e se rebelar. Por outro lado, esses comportamentos deverão ser reprimidos justamente por aqueles que coadunam com a visão da adolescência como fase de crise: os adultos.

Esse paradoxo está vinculado ainda à imposição de uma moratória social, um período de espera, uma espécie de terra de ninguém em que o adolescente já não é mais criança, mas também ainda não é um adulto. Nesse período, ele deverá fazer aquilo que lhe é "próprio", sem incomodar – ainda que, se ele não incomodar, haverá um estranhamento. Desse prisma adultocêntrico, o adolescente luta para se tornar aquilo que o adulto quer que ele seja, porém será sempre incompleto e imaturo enquanto estiver na condição de adolescente. E é nesse ponto – desejando ser aquilo que a sociedade pensa que ele deve ser – que o adolescente se torna essa realidade social que o prescreve, que o entende estigmatizado.

Essa argumentação é habitualmente vista como adequada apenas para classes sociais médias e altas, como se não pudesse também ser percebida nas classes ditas desfavorecidas. Pelo contrário, o adolescente desprivilegiado é também pressionado por um ideal de adolescência rebelde e ingenuamente irresponsável, apesar de muitos já terem que entrar no mercado de trabalho. A diferença que se percebe é que, enquanto é permitido aos ricos ter desejos e a "moratória", dos excluídos é esperado apenas que pensem em sobreviver.

Nesse sentido, as peculiaridades de desenvolvimento construídas nas classes sociais, dentro de uma diversidade de condições, vêm sendo esquecidas nos estudos e investigações sobre essa fase do desenvolvimento humano. As questões sociais, históricas e econômicas que permeiam a construção dessas diferentes adolescências dificilmente são consideradas nas análises acadêmicas ou nas tentativas de abordagem aos adolescentes. Assim, esses jovens são educados de acordo com uma perspectiva limitada de adolescência, em meio a contradições e buscas por maneiras de constituir-se entre um conceito que lhe é atribuído e uma realidade que dificulta essa constituição. A cultura consumista presente em nossa sociedade atualmente exemplifica bem essa questão. As formas de identificação e expressão do adolescente na atualidade são fortemente marcadas pela aquisição e pelo desejo de determinados produtos (Featherstone, 1995, citado em Souza, 2007: 10).

Dessa forma, sendo a adolescência uma fase de desenvolvimento constituída, como todas as outras, por questões socioculturais, é de suma importância que se dê atenção às suas diversas características, especialmente se buscamos maneiras mais eficazes de lidar com esse indivíduo. No caso dos adolescentes em conflito com a lei, é essencial que o planejamento de políticas públicas ou de programas sociais voltados a eles leve em consideração suas necessidades e realidades.

 

Adolescência e Transgressão

Para aqueles que desconhecem a história constitucional brasileira, a discussão acerca da redução da maioridade penal poderia parecer novidade. Contudo, não é. O Código Criminal do Império do Brasil, promulgado em 1830, somente impedia a responsabilização criminal dos que tivessem menos de 14 anos (art. 10, § 1º). O primeiro Código Penal da República, editado em 1890, era ainda mais severo: só não considerava criminosos "Os menores de nove anos completos" (art. 27, § 1º) ou aqueles que, sendo maiores de nove e menores de quatorze anos, houvessem agido sem discernimento. Cabe ressaltar que, se fosse provada a plena capacidade de autodeterminação dos maiores de nove e menores de quatorze anos, seriam eles, em tal situação, submetidos a processo criminal regular (Filho, 1998). No entanto, antes de uma condenação precipitada, devemos situar essa lei no contexto de sua época, tendo em vista a construção do conceito de adolescência sobre o qual discorremos no tópico anterior. Tal lei reflete uma estrutura social em que a adolescência ainda não existia como fase peculiar do desenvolvimento.

Foi apenas em 1927 que a questão do tratamento dado a crianças e adolescentes infratores foi pela primeira vez abordada em documento próprio: o chamado Código de Menores. O objetivo desse código era legislar sobre indivíduos de 0 a 18 anos que entrassem na categoria "menor infrator" ou "menor abandonado" (Souza, 2007). Essa última categoria abarcava aqueles indivíduos que não possuíssem moradia certa ou que tivessem pais falecidos, declarados incapazes, presos há mais de dois anos, vagabundos, mendigos, trabalhadores ilegais, prostitutos ou economicamente incapazes de suprir as necessidades de seus filhos. Para crianças e adolescentes em "situação normal", ou seja, em famílias que seguissem os moldes socialmente desejados, a legislação vigente era o Código Civil (Espíndula & Santos, 2004). Em outras palavras, eram apenas as famílias das classes populares, por sua condição de pobreza, que estavam sujeitas à intervenção do Estado.

Com o início do regime militar, em 1964, surge a Fundação do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), responsável pela criação da Política Nacional do Bem-estar do Menor (PNBEM), que era pautada tanto na ideologia da Escola Superior de Guerra quanto na Declaração dos Direitos da Criança. Segundo críticas da época, havia uma grande diferença entre o discurso político e a prática social, uma vez que, apesar de se pregar a valorização da vida familiar e a necessidade de integrar o menor à sua comunidade, isso não acontecia de fato (Almeida, 1985, citado em Conceição, Tomasello e Pereira, 2003; Souza, 2007).

Concomitantemente, criaram-se também as Fundações Estaduais de Bem-estar do Menor (FEBEMs), que atenderiam a dois grandes grupos: os infratores e os abandonados. "O critério implícito utilizado para a medida de internação era, em última instância, o risco que os menores constituíam para a sociedade. Entendia-se por risco os possíveis danos e ameaças físicos e morais que esses menores poderiam causar a ela" (Conceição, Tomasello & Pereira, 2003: 84). O novo Código de Menores, promulgado em 1979, permaneceu com a mesma lógica do anterior, de 1929, modificando apenas aspectos superficiais como, por exemplo, a troca da expressão "menor abandonado" para "menor em situação irregular".

A partir dos anos 80, com o fim do regime militar e a abertura política, alguns segmentos sociais, preocupados com os direitos da criança e do adolescente, começaram a criticar o caráter assistencialista e repressor do então vigente Código de Menores. A principal denúncia recaía sobre sua arbitrariedade, uma vez que expressões como "menor em situação irregular" e "periculosidade" serviam para legitimar o mandado judicial de reclusão de praticamente qualquer criança das camadas pobres brasileiras (Conceição, Tomasello & Pereira, 2003).

A promulgação da Constituição Federal de 1988 marcou o fim dos governos militares e a redemocratização do país, com a criação de um verdadeiro Estado Democrático-Social de Direito, por meio da ampliação do rol de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e da imposição de obrigações para o Estado (Paulo & Alexandrino, 2008). Tais obrigações podem ser traduzidas em prestações positivas do Estado, pois exigem deste uma prática de políticas que poderiam ser, ao menos em tese, exigidas por seus cidadãos, tais como saúde, educação e saneamento básico. Com isso, a Carta de 1988 recebeu a denominação dos constitucionalistas de "Constituição Cidadã".

A crescente conscientização e pressão sobre o Estado exercida por vários movimentos sociais – notadamente o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a Anti-psiquiatria – influenciou a Assembléia Constituinte de 1988 para dar tratamento constitucional de inimputabilidade aos menores de 18 anos em seus artigos 227 e 228. Com fundamento nesses dispositivos, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, que se tornou um marco da mudança de paradigma: em vez de proteger a sociedade dos menores infratores – a antiga Doutrina da Situação Irregular –, o ECA propôs-se a garantir a proteção integral às crianças e aos adolescentes – por meio da atual Doutrina da Proteção Integral (Souza, 1997).

De acordo com o referido Estatuto, crianças (até 12 anos) e adolescentes (de 12 a 18 anos) são inimputáveis judicialmente, devendo ser submetidos a medidas protetivas, no caso dos primeiros, e socioeducativas, no caso dos segundos. A medida socioeducativa aplicada ao adolescente em conflito com a lei pode ser, dependendo da gravidade da infração e do seu caráter reincidente, uma das seguintes: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade e internação em estabelecimento educacional (ECA, 1990).

Apesar do ECA ter assumido força de lei, as tentativas de implementação da totalidade de seus preceitos têm esbarrado em obstáculos erigidos por camadas reacionárias da população, impregnadas por um modelo punitivo-repressor de combate à violência, modelo este que ainda é a marca do tratamento endereçado aos maiores de 18 anos. Associado às críticas ao ECA, o Brasil viu, na última década, o debate sobre a redução da maioridade penal ressurgir sempre que fatos violentos envolvendo adolescentes enchiam os veículos de comunicação nacionais.

Em 2002, por exemplo, tramitavam no Congresso Nacional 14 projetos propondo alterar a Constituição Federal para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos (Njaine & Minayo, 2002). Em 2006, eram três as Propostas de Emendas Constitucionais (PECs), todas elas propondo a redução para a idade de 16 anos, variando apenas quanto às condições de aplicação de tal medida: desde a gravidade do crime (apenas os hediondos e contra a vida) até o nível de consciência do agente sobre a ação que havia sido cometida (Cunha, Ropelato & Alves, 2006).

Por exemplo, a PEC n° 20, de 25/03/1999 e a PEC n° 3 de 22/03/2001, ambas de autoria de José Roberto Arruda, propõem a alteração do artigo 228 da Constituição Federal, com o seguinte texto: "Os menores de dezoito anos e maiores de dezesseis anos são penalmente imputáveis quando constatado seu amadurecimento intelectual e emocional, na forma da lei". O Senador Almir Lando, relator da proposta, ao defender a PEC n° 3, afirma que os menores são plenamente conscientes de seus atos, e que a atual lei ignora suas características e os protege de seus atos (Agência do Senado, 2003).

Assim, o principal argumento utilizado pelos que defendem a redução da maioridade penal é o de que os adolescentes já têm plena consciência de seus atos, sendo, portanto, responsáveis pelos mesmos. Podemos perceber aqui que, nesses casos, ter ou não a consciência dos próprios atos é determinado por aspectos cronológicos e biológicos, um atrelado ao outro, deixando de lado fatores sociais, educacionais, culturais, etc.

Além disso, essa discussão não é de forma alguma a que mais importa quando se trata da redução da maioridade penal. Não se pode estabelecer um marco cronológico (16 ou 18 anos) para que o indivíduo passe de um estado de ignorância completa para o de pleno conhecimento de suas ações. Está claro que a reflexão sobre as próprias atitudes sofre modificações ao longo do desenvolvimento, mas o que está em jogo aqui não é apenas uma questão psicológica, mas também social. O foco sobre um único ponto serve apenas como artifício para desviar a atenção do que realmente está em jogo: o enclausuramento daquela classe social considerada indesejada, aquela que se encontra excluída do modo de produção (Wacquant, 2001). Se nos remetemos aqui à Constituição de 1927 e à Doutrina da Situação Irregular, é possível ver as ressonâncias históricas do Brasil sobre muitos argumentos que compõem o debate atual acerca da maioridade penal.

Associado ao argumento em torno do nível de consciência, está o de que é incoerente que maiores de 16 anos sejam considerados maduros o bastante para escolher um representante político, mas não sejam ainda responsabilizados por seus atos infracionais (Cunha, Ropelato & Alves, 2006). Dessa forma, os defensores desse argumento equiparam a prática de um crime à deliberação de um voto. Contudo, deve-se atentar que um voto e um crime são atos jurídicos completamente diversos. Aliás, dentre todos os atos jurídicos que podem ser realizados pelo sujeito, a prática de um crime é a que possui maior peculiaridade, uma vez que, pelo princípio da intervenção mínima, o Direito Penal só deverá se preocupar com a proteção dos bens mais importantes na vida em sociedade (Greco, 2007). Com isso, o Direito Penal possui um caráter extremamente subsidiário, só devendo considerar um ato como um crime e, conseqüentemente, imputar uma pena ao sujeito, quando todos os outros ramos do Direito não forem eficazes na proteção do bem jurídico.

Outro posicionamento contrário às proposições do ECA – nesse caso, àquela relativa ao limite de três anos de internação – é o de que a violência de adolescentes poderia denotar uma personalidade anti-social e agressiva, acometida de Transtorno de Conduta (CID-10, 2008), e portanto sem previsão possível para o tratamento. Tal psicopatologia necessitaria de muito mais que três anos para se reabilitar (Kaufmann, 2004; Amaro, 2004). Isso configura, muitas vezes, uma tentativa de associação de características construídas em torno da adolescência a uma sintomatologia passível de diagnóstico de psicopatologia. Como vimos discutindo acima, tal defesa ignora as peculiaridades do contexto socioeconômico no qual se desenvolvem a grande maioria dos adolescentes submetidos a processos na justiça.

Não raro, também, se ouve falar de outros países que possuem a maioridade penal muito abaixo da nossa, e são mais desenvolvidos, possuem menor índice de violência, etc. (Cunha, Ropelato & Alves, 2006). No entanto, deve-se tomar cuidado para não se interpretar tal dado como se a correlação entre as duas variáveis significasse uma relação de causa e efeito. Devese levar em consideração também outros indicadores como o acesso à educação, à segurança, ao emprego e à saúde, pois estes contribuem de forma significativa para a redução da violência, além de serem os indicadores que colocam esses países na posição de desenvolvidos.

Por fim, existe a alegação de que, por sua inimputabilidade, adolescentes são escalados por maiores de idade para cometer infrações, tendo em vista que a punição a recair sobre eles será menor do que aquela destinada ao adulto mandante do crime (Amaro, 2004). Todavia, é esse adulto quem responde penalmente não apenas pela prática do crime, mas também pela corrupção do menor, nos termos da Lei 2.252/54.

Opondo-se a tudo isso, os que são contra a redução da maioridade penal defendem que o ECA é um documento internacionalmente pioneiro no respeito aos direitos da criança e do adolescente defendidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), já que reconhece os indivíduos na faixa etária de 0 a 18 anos como sujeitos em desenvolvimento que necessitam de um ambiente propício para sua formação. Além desse argumento, existe a alegação de que a inimputabilidade penal não significa impunidade, uma vez que a Constituição da República define, no artigo 228, que a pessoa com até 18 anos incompletos é penalmente inimputável, porém responsável por seus atos (Cunha, Ropelato & Alves, 2006). Ou seja, a legislação prevê, sim, conseqüências para o adolescente transgressor, que não deixam de ser punitivas.

Outro argumento de peso é a situação do sistema penitenciário no Brasil: avalia-se que exista um déficit de 87.025 vagas nos presídios brasileiros. Como todos sabemos, estes se tornaram verdadeiros depósitos humanos, sem a menor garantia de higiene e integridade física aos que ali se encontram. Com a redução da maioridade penal, essa situação de superlotamento iria se agravar consideravelmente, o que denota mais uma vez a visão arraigada de que a justiça serve apenas para proteger a sociedade dos que cometem crimes, sem se importar com o que acontece com esses últimos. Além disso, encaminhar adolescentes que cometeram um número pequeno de infrações a presídios seria como enviá-los para "escolas do crime", onde eles entrariam em contato com presos com longa experiência criminosa.

Soma-se a isso o fato de que o número de infrações cometidas por adolescentes não é tão alto quanto a mídia faz parecer, representando apenas 10% do total (Cuneo, 2001). Ocorre que, como os crimes causam forte comoção social, as notícias referentes a eles, principalmente os hediondos e os que envolvem vítimas da classe média, são propagadas de forma assombrosa pelos meios de comunicação em resposta ao enorme interesse do público. Como bem nos fala Rolim (2006), a mídia, principalmente a televisiva, funciona como um filtro de notícias, selecionando aquelas que devem ser mostradas à exaustão e aquelas que devem ser escondidas, sem que isso, de forma alguma, corresponda ao número real de ocorrências criminais. Assim, a criminalidade deixa de ser matéria eminentemente social, para transformar-se em artifício de manobra política.

Como o Estado Democrático-Social de Direito não cumpre com as obrigações impostas pela Constituição – como educação, saúde, esporte e cultura –, principalmente para suas crianças e adolescentes, a criminalidade aumenta de forma astronômica não apenas em relação aos crimes cometidos por maiores de 18 anos, mas também aos cometidos por crianças e adolescentes. Dessa forma, as manchetes de jornais passaram a ser preenchidas por crimes cada vez mais bárbaros cometidos até mesmo por menores.

Tais exageros na mídia podem ser percebidos de forma particularmente evidente nos momentos de escolha de representantes políticos, quando candidatos utilizam manobras de caráter eleitoreiro propondo uma suposta solução para a violência, aparentemente mais rápida e eficaz: a redução da maioridade penal. Contudo, deve-se atentar para o fato de que, tendo por escopo resguardar os direitos e garantias fundamentais, mitigados pelos governos militares que precederam sua elaboração, a Constituição de 1988, de forma revolucionária, postulou, em seu artigo 60, § 4º, os referidos direitos e garantias conquistados de forma tão penosa como cláusulas pétreas e, portanto, insuscetíveis de serem abolidas.

Entretanto, o que pode ou não ser considerado uma cláusula pétrea é definido pelo Supremo Tribunal Federal. O entendimento atual desse Tribunal indica que a maioridade penal também é uma cláusula pétrea. Contudo, isso pode ser modificado por meio da influência das pressões exercidas por diversos grupos da sociedade, movidos pelas constantes transformações culturais, econômicas e políticas e, como conseqüência, a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos poderia ser abolida.

Outro argumento pertinente contrário à redução é o de que não se pode julgar a improcedência do ECA quando o estatuto não é seguido à risca. Se tomarmos, por exemplo, os profissionais diretamente envolvidos com o tratamento dado aos adolescentes em conflito com a lei, na lida diária de uma profissão mal-remunerada, percebemos que prevalece aí uma cultura arraigada de violência física e menosprezo (Oliveira & Assis, 1999; Espíndula & Santos, 2004; Lima, 2006). Apesar dos 18 anos da promulgação do ECA, o aparato institucional de execução de medidas socioeducativas permanece calcado em uma lógica autoritária e disciplinar, imbuída ainda do velho paradigma punitivo-repressor (Souza, 2007).

Tendo em vista tudo o que foi colocado até aqui, não é difícil perceber que há uma retroalimentação em todo o sistema: o desprezo por aqueles considerados marginais justifica as práticas punitivas violentas, que, não sendo eficazes em ressocializar o adolescente, dão margem para novas reclamações da sociedade, que assim influencia a política e a mídia e é também influenciada por estes, corroborando o discurso repressor e excludente.

Essa cultura tradicional baseada na repressão e na punição não tem de forma alguma contribuído para a reinserção social do indivíduo ou para sua formação mais autônoma enquanto cidadão. Ao contrário, tal organização tem dificultado o contato com parceiros, como a comunidade e a família, essenciais nesses programas, e utilizado de forma dispendiosa os poucos recursos destinados à execução das medidas (Volpi, 1997).

Essa cultura institucional não é mais do que reflexo das idéias presentes no senso comum de nossa sociedade, que parece acreditar piamente na lógica de que mais punição irá diminuir a violência no país. A sociedade espera que ocorra a punição do infrator e que, ao sair da instituição, esteja garantida a sua ressocialização e que ele deixe de cometer atos infracionais. Infelizmente, o sistema prisional que se vê no Brasil não atende a essa demanda, por isso as medidas socioeducativas propostas pelo ECA podem vir a ser o caminho para a reeducação e possível reinserção do adolescente na comunidade. Com isso, o adolescente é punido ao ser retirado do meio social, mas, ao mesmo tempo, participa de programas que privilegiem essa reinserção social por meio de atividades pedagógicas e de preparação para o mercado de trabalho (Cunha, Ropelato & Alves, 2006).

Além do ECA e da Constituição Federal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos também aponta para as incoerências entre o que propõe a norma e o que se realiza na prática cotidiana de ser um cidadão de direitos no Brasil. O contexto de privação de direitos fundamentais a que muitas das nossas crianças e adolescentes são submetidos nos leva a refletir sobre os efeitos dessa privação no desenvolvimento dos indivíduos.

A maioria dos adolescentes que cometem alguma infração tem muitos de seus direitos negados pela sociedade, principalmente os direitos à segurança, à alimentação, à saúde, ao lazer e à educação. Assim, o que se questiona é: se não lhes são garantidos os direitos que lhes possibilitariam o devido reconhecimento de sua dignidade humana, como esperar que, com tantas privações, seja possível que eles se desenvolvam segundo um ideal de cidadão? Como esperar que as pessoas ajam conforme o princípio de valorização da vida, da segurança e da propriedade alheia se essas noções não são construídas na sua prática e não encontram sentido em suas vivências?

Diante desse cenário, muitos são os desafios para a conquista desses direitos, que já são assegurados em tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, esses tratados não são suficientes para garantir a eficácia desses direitos, o que faz necessário a integração de diferentes áreas para a construção de políticas públicas. Nesse sentido, a Psicologia, a partir dos seus estudos sobre o sujeito em desenvolvimento, deve produzir conhecimento e promover o intercâmbio profissional com a área jurídica. A presença da Psicologia nesse campo tem estado, predominantemente, atrelada à utilização de testes, entrevistas e elaboração de laudos e pareceres para subsidiar decisões judiciais. Por isso, deve-se lançar mão de práticas de orientação que provoquem mudanças, elaborando e propondo políticas públicas, transcendendo a prática pericial e questionando o papel que é atribuído ao psicólogo (Mameluque, 2006).

 

Psicologia e Justiça

A normatização fundada na lei e a necessidade de organização social têm alcançado níveis cada vez mais elevados de elaboração, como já foi discutido. Nesse sentido, as Ciências Humanas e Sociais têm sido requisitadas para dar suporte e atribuir maior confiabilidade às decisões jurídicas. A Psicologia, como uma ciência social associada ao estudo do comportamento e da psique humana, vem sendo largamente solicitada nesse contexto, seja como instância avaliativa ou como executora de programas e medidas.

O exercício da Psicologia nesse âmbito iniciou-se com as demandas de avaliação, ou seja, com um foco pericial, como destacam Miranda (1998) e Arantes (2005). De acordo com esses autores, a Psicologia que se mostrava naquele contexto era uma ciência voltada para a busca de uma verdade e funcionava como um acessório do magistrado, sem muita autonomia e possibilidades de intervenções. Era uma prática a-histórica, pouco reflexiva e instrumentalista, focada num momento específico com espaço restrito para a valorização da história de vida do sujeito.

Instrumentos como testes psicológicos eram bastante utilizados, muitas vezes sem as devidas considerações que devem ser empregadas nessa prática. Suas atribuições eram muito ligadas a uma demanda de adequação e adaptação social. Assim, seus principais clientes no contexto judiciário eram crianças e adolescentes ditos "problemáticos", moradores de rua, infratores e os indivíduos considerados loucos (Miranda, 1998). Todos esses se enquadravam na categoria dos que se afastavam da normalidade e de alguma forma necessitavam de um diagnóstico pautado numa questão psicopatológica. Os profissionais da saúde que se engajavam no cuidado e na avaliação desses sujeitos eram até então responsáveis pela sua adaptação e recuperação quando possível.

Com o passar do tempo e com as transformações na atuação tanto do poder judiciário na sociedade quanto do psicólogo neste meio, algumas modificações puderam ser percebidas. Um dos aspectos fundamentais na estruturação e elaboração do Direito atual é a tentativa de assegurar a cidadania ao sujeito, resguardando ao máximo seus direitos e garantindo-lhe a possibilidade de expressão e de busca por seus interesses.

Em resposta a essa nova perspectiva neste cenário sociocultural, surgem movimentos que buscam uma forma alternativa de tratar as questões que envolvem crianças e adolescentes, passando estes a ser vistas sob o prisma da proteção e reconhecimento do sujeito. A prevenção aparece como foco nesse âmbito, considerando-se sempre que o indivíduo atravessa uma etapa peculiar de desenvolvimento e que, portanto, precisa de maior atenção. O que se busca vai além da punição ou mera adaptação social: o que está em jogo, na verdade, é a criação de possibilidades para o surgimento de um indivíduo autônomo e crítico, capaz de se assumir como cidadão, como ator social em constante interação com sua família e comunidade.

Desse modo, o ECA, que traz muitas modificações em termos de abordagem jurídica, como já colocado acima, exige compromissos da atuação do psicólogo e de outros profissionais que lidam diretamente com esse público. Esse profissional é levado agora a uma elaboração que vise à proteção e à educação da criança ou adolescente em questão e não mais a uma classificação e intervenção pouco contextualizadas. O foco é o bem-estar do sujeito e não apenas a manutenção de uma aparente tranqüilidade na sociedade. A atuação passa a ser de reconhecimento do sujeito em desenvolvimento e de sua constituição enquanto cidadão e não somente os atributos punitivos que costumam ser implementados no meio jurídico.

Além dessa exigência advinda das novas concepções do Direito, o desenvolvimento da Psicologia também abre espaço para uma maior reflexão a respeito de sua inserção nas questões envolvendo a justiça. O surgimento de preocupações com a autonomia do sujeito, com sua responsabilização pelo ato que tenha cometido e com a significação desse ato requer do profissional uma atuação mais crítica e visão histórica. Tais elementos proporcionam, segundo Miranda (1998), um aprimoramento da intervenção da Psicologia nesse âmbito. Além disso, o psicólogo deve também ter um conhecimento das leis que asseguram os direitos fundamentais, garantindo uma intervenção em consonância com o aparato jurídico que subsidia sua atuação. Isso possibilita, assim, uma interação entre a escuta psicológica e os caminhos que a justiça prevê para o cidadão.

Com uma aplicação eficaz do Estatuto de Criança e do Adolescente, a justiça passaria a figurar como uma possibilidade de ressignificação de conflitos e não somente de julgamento. O sujeito constrói, então, uma relação de compensação com a lei, não no sentido de recuperar aquilo que lhe faz falta, mas de encontrar alívio numa decisão judicial que lhe restitua em parte o equilíbrio que perdeu (Arantes, 2005). Nessa perspectiva, o indivíduo que cometeu um ato infracional, por exemplo, teria na justiça a abertura de um espaço de ressignificação desse ato, responsabilização por ele e construção de estratégias para lidar com essa realidade. Dessa forma, de acordo com Miranda (1998), essa relação focada na justiça se daria devido à crença de que há possibilidade de convivência humana e que o aparelho judiciário é visto como um dos alicerces para que tal convivência seja viável.

A intervenção do psicólogo nesse meio com uma perspectiva mais dinâmica torna possível, por fim, a construção de espaços em que o sujeito em questão deixa de ser apenas um usuário do sistema e passa a ser um indivíduo com uma história, com demandas, com subjetividade. O adolescente passa a ser um sujeito em desenvolvimento e não somente um adolescente em conflito com a lei. O psicólogo deixa de lidar com um ato infracional e passa a acompanhar um processo de subjetivação que traz consigo a trajetória de uma família inserida num contexto socioeconômico determinado historicamente.

Considerando essas colocações, cabe então questionar: a quem realmente a Psicologia tem servido nesse sistema? Afinal de contas, ainda persiste a prática do psicólogo como mero responsável pelos processos avaliativos que dão suporte aos juízes. Tornou-se, portanto, exigência que o psicólogo esteja atento e preparado para desempenhar suas funções sem se submeter a imposições arbitrárias que muitas vezes estão presentes no cotidiano das instituições. Ter ciência dos quesitos éticos que envolvem sua atuação e estabelecer uma relação mais humana com o sujeito que se apresenta a ele em sua prática profissional são alguns dos elementos que podem levá-lo ao exercício de uma Psicologia pautada em uma perspectiva de educação e reinserção social.

Cabe aqui, ainda, ressaltar que a prática de uma justiça mais humana só poderá ser alcançada se os profissionais das diversas áreas envolvidas – Psicologia, Direito, Serviço Social, Antropologia, Sociologia, Pedagogia, entre outras – atuarem em equipe, unindo esforços para dar conta da complexidade da questão. O psicólogo não pode se ver sozinho na tarefa de levar em conta a subjetividade do adolescente: esta é antes uma urgência que se impõe a todos os profissionais.

 

Considerações Finais

Entende-se o desespero da sociedade que vê dia a dia seu espaço confiscado pela violência nas ruas e que invade as suas casas. A mídia e alguns setores políticos da sociedade apontam a redução da maioridade penal como alternativa para esse problema, acreditando que as medidas socioeducativas previstas pelo ECA sejam ineficazes para combater a criminalidade juvenil por serem pouco severas e favorecerem a sensação de impunidade. No entanto, as propostas de redução da maioridade penal, além de infundadas, visam tão somente a punir o adolescente infrator, sendo destituída do caráter educativo e preventivo, e, portanto incapazes de inibir o crime futuro (Gonçalves & Garcia, 2007).

A imagem das prisões – e das instituições socioeducativas – se fundamenta em seu papel, suposto ou exigido, de aparelho para transformar os indivíduos (Mameluque, 2006). No entanto, o simples aprisionamento não possui caráter educativo; o que significa que apenas encarcerar não é uma medida capaz de evitar que o adolescente pratique novas infrações (Cunha, Ropelato & Alves, 2006). Por essa razão, é urgente que se mude a visão ingênua de que a redução da maioridade penal e a aplicação de medidas socioeducativas cada vez mais cedo sejam alternativas eficazes para a redução da criminalidade.

Por esse motivo, e pelos outros apresentados neste texto, é que se deve buscar soluções que ajam prioritariamente no sentido preventivo e não no remediador. As medidas preventivas conceitualmente atendem melhor aos preceitos da proteção social a que crianças e adolescentes têm direito, sendo mais eficientes e menos custosas que as estratégias de intervenção a posteriori (Gonçalves & Garcia, 2007).

O investimento em serviços sociais de qualidade e a garantia dos Direitos Humanos são as melhores estratégias preventivas, pois elas são os meios pelos quais se fornecem subsídios para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes. Por isso, há que se denunciar as situações que ferem a dignidade humana ou as situações de "ofensas que nos destroem o ser" (Freire, 1996: 78). E, mais que isso, é preciso ampliar o alcance das políticas públicas e melhorar a qualidade dos serviços oferecidos.

No âmbito institucional, deve-se buscar, cada vez mais, um trabalho permanente de humanização dos espaços voltados para a recuperação dos adolescentes infratores. Isso pode acontecer por meio da diminuição da culpabilização do sujeito e pelo reconhecimento do adolescente como um ser digno de direitos, protagonista na construção de sua identidade e de seu projeto de vida. O jovem, ao ser identificado como infrator traz para si inúmeros significados desse rótulo, o que influencia a construção de sua imagem na sociedade bem como da imagem que ele faz de si (Gonçalves & Garcia, 2007). Nesse campo, o psicólogo tem um papel importante no sentido de dar voz a esse indivíduo, buscando junto a ele os sentidos e as conseqüências da infração e de ser identificado como um infrator para que tal reflexão leve a novas formas de ser-no-mundo.

Além disso, é urgente selecionar mais educadores, renovar o quadro institucional e capacitar com maior freqüência os profissionais que trabalham no meio jurídico, para que se possa ajudar a modificar o caráter prisional corretivo e punitivo dessas instituições (Gonçalves & Garcia, 2007). Tais instituições precisam se voltar para a proteção da criança e do adolescente, identificando-se, para tanto, com o caráter educativo, e não punitivo da medida. Pois, na ação de se isolar esses que não se adequam aos padrões estabelecidos, protege-se apenas a sociedade desses adolescentes, decorrendo em uma completa ignorância dos valores definidos pelo ECA.

Formiga e Gouveia (2005) reconhecem que, quando os adolescentes se sentem alijados da sociedade, da escola, é difícil internalizar os valores ou padrões convencionais e se comportar segundo as normas sociais vigentes. Mesmo porque muitas dessas normas são impostas e seu sentido pode não ser compartilhado por todos aqueles que estão sujeitos a ela. Mesmo dentro de um mesmo país, matar e morrer podem assumir valores completamente diferentes. Por isso, são tão importantes as iniciativas que buscam levar a discussão das Leis, dos Direitos e da Política para fora do âmbito jurídico dos magistrados, para que essas normas e valores, que se aplicam a um determinado universo de pessoas, sejam compreendidos, significados e ressignificados constantemente pela sociedade e para que a sociedade como um todo seja protagonista na busca pela garantia de seus direitos.

O Sistema Socioeducativo, para cumprir ao que se propõe, precisa também ampliar as atividades oferecidas aos adolescentes, dando-lhes reforço escolar, atividades lúdicas e culturais, além de apoio emocional para o fortalecimento de suas relações consigo mesmo, com sua família e com a sua comunidade. E nesse sentido, é também essencial que se crie uma rede de apoio ao adolescente na família e na comunidade, pois são esses elementos que contribuirão para evitar que a reincidência aconteça.

Deve-se, ainda, desenvolver estratégias de incorporação dos jovens que saem das instituições socioeducativas nas escolas e no mercado de trabalho, fornecendo-lhes, nesse local protegido, um espaço de educação e de profissionalização, que lhes forneça melhores perspectivas de vida após saírem da instituição.

Percebemos então que é imperativa a reformulação do sistema de internação, para que se permita o pleno funcionamento das medidas socioeducativas preconizadas pelo ECA. E essas medidas devem ser tomadas não apenas com o objetivo de tornar esses adolescentes úteis e adaptados ao mundo de fora, mas como forma de reconhecer todos os direitos inerentes à pessoa humana. Só assim será possível lhes assegurar as oportunidades e facilidades necessárias para seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e de dignidade, de modo que passem de cidadãos no papel a cidadãos de fato.

 

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Recebido em: 15/05/2009
Revisado em: 01/06/2009
Aceito em: 29/07/2009

 

 

* Bacharel em Psicologia pela Universidade de Brasília – Brasil.
** Professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília – Brasil.
*** Psicóloga pela Universidade de Brasília – Brasil.
**** Advogado formado pelo Centro Universitário do Distrito Federal e psicólogo formado pela Universidade de Brasília – UnB – Brasil.