Revista Psicologia Política
ISSN 2175-1390
RESENHA
O direito à diferença: uma reflexão sobre a deficiência intelectual e educação inclusiva
The right to difference: a reflection on intellectual disability and inclusive education
El derecho a la diferencia: una reflexión sobre la discapacidad intelectual y la educación inclusiva
Jardel Pelissari Machado*
Universidade Federal do Paraná – Brasil
Obra: O Direito à Diferença: uma reflexão sobre
deficiência intelectual e educação inclusiva.
Autor: Miriam Aparecida Graciano de Souza Pan
Curitiba: IBEPEX, 2008.
212 páginas.
ISBN: 978-85-783-8046-5
O discurso da inclusão, principalmente na educação, tem ganhado força e destaque desde os documentos internacionais da década de 1990 (Declarações de Jomtien, 1990, e de Salamanca, 1994) que reivindicavam a garantia de igualdade de oportunidades e direitos a todos, sem distinção, como afirma a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
No Brasil, as grandes voltas da discussão da inclusão culminam com a redação da nova política de educação especial. Entrando em vigor no início de 2008, a “Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva” (Brasil, 2008) apresenta uma nova proposta: a educação deve ser para todos, na educação regular, sem distinções. Em outras palavras, a política propõe uma educação nacional sem distinções entre educação regular e especial. A partir do documento, todos devem estar matriculados no ensino regular, que deve se adaptar para bem receber a todos, evitando, segundo o texto, a discriminação e o ensino voltado à deficiência. Gerando discussões não apenas quando à constitucionalidade da política, já que apresenta o “dever” substituindo o “preferencialmente” da Constituição Federal (Brasil, 1988) no que se refere à matrícula no ensino regular, a nova política traz consigo a proposta de extinção gradativa de instituições de educação especial, além de modificar noções de diagnóstico e o que fazer com eles. Nesse sentido, as novas medidas têm afligido diretamente professores e demais profissionais da educação que se veem desorientados sobre como agir/proceder com alunos com deficiência/com necessidades educativas especiais em sala de aulas.
O grande argumento que sustenta a proposta da inclusão fomentada pela nova política é a normalidade na diferença, ou seja, ser diferente é ser normal. Mas, afinal, se somos todos diferentes, porque algumas diferenças incomodam tanto? Estamos, de fato, preparados para conviver com as diferenças? Essas questões norteiam o trabalho de Miriam Pan, intitulado “O direito à diferença: uma reflexão sobre a deficiência intelectual e educação inclusiva”. Embora com enfoque sobre a deficiência intelectual, a obra traz reflexões importantes para pensamos sobre o novo paradigma que se delineia na sociedade contemporânea, com, dentre outros fatores, a inversão da concepção das práticas de diagnóstico, antes centrais para o delineamento do trabalho com a criança.
A obra de Pan retrata as transformações dos conceitos de deficiência intelectual e educação inclusiva, resgatando seus contextos de produção de sentidos, relacionando-os aos discursos dominantes sobre a escola e a criança. Para tal, o texto se organiza em cinco capítulos.
No primeiro, intitulado “deficiência intelectual: o processo histórico da construção de sentidos”, a autora apresenta uma análise do conceito de deficiência intelectual a partir da recomposição histórica que envolve também os processos de produção de sentidos que lhe deram visibilidade. Toma como objeto de investigação as práticas relativas à deficiência intelectual e os discursos que a autorizam, evidencia tensões, conflitos e relações de poder, bem como aqueles que são autorizados a enunciar esses discursos (os autorizados a investigar, diagnosticar, encaminhar e tratar as/das pessoas com deficiência intelectual). Evidencia como a forma de nomear o outro (a pessoa com deficiência) se transforma com o tempo, como termos adquirem sentido negativo, trazendo à tona a circulação de novas expressões – a substituição do retardado, excepcional, deficiente, por pessoa com necessidades educativas especiais – com a tentativa de apagar o sentido da deficiência dos discursos oficiais. Não se pode crer, alerta a autora, que a saída (ingênua e ilusória) para que a deficiência não ocupe o lugar da pessoa em nossa sociedade seja a busca por um novo nome, presumindo que um novo termo possa mudar uma prática histórica e social que é milenar. Os conceitos e práticas em relação à deficiência intelectual passam, então pelas marcas teológicas e da modernidade (principalmente com o Iluminismo) e pelas medidas de aferimento da inteligência e diagnósticos.
No capítulo seguinte, “a definição científica da deficiência intelectual e o conceito de inteligência”, a autora submete o conceito de deficiência intelectual a um estudo histórico com a finalidade de buscar maior entendimento de suas fontes de apropriação e das práticas de educação e saúde, inicialmente separadas, passando à educação integrada, até chegar à inclusão. A deficiência, em seu processo histórico e social, passa a ser pensada em relação ao contexto e às oportunidades oferecidas, transforma também as práticas e dos modos de conceituá-la. A autora enfoca neste capítulo a prática do diagnóstico, tão criticada em função de seus efeitos na constituição de identidades individuais e coletivas. Apresenta os critérios que orientam as práticas de diagnóstico da deficiência, bem como avalia seus efeitos para outros campos – as transformações dos sistemas de avaliação que acompanham as transformações sociais e políticas.
A “deficiência intelectual no Brasil: da invisibilidade às políticas públicas de inclusão” é o assunto/capítulo trazido pela autora na sequência. Como o próprio subtítulo afirma, nesse trecho da obra a autora apresenta como a deficiência no Brasil passou de um estado de invisibilidade, desde as primeiras instituições, no século XIX, às atuais políticas públicas de inclusão. Neste capítulo, aborda as vertentes pedagógicas na educação especial brasileira, desde as instituições médicas (que relacionavam a deficiência a problemas básicos de saúde, causadores de degenerescências e taras), passando pelas instituições marcadas pela psicopedagogia (com a identificação de crianças normais e anormais). Com a transformação das formas de nomeação da deficiência, tem-se também a transformação histórica e social das práticas educacionais ligadas à deficiência. Do paradigma da integração, sustentado pela política do mainstreaming, com seu sistema de cascata (serviços do menos ao mais integrado) ao paradigma da inclusão, pela democratização da educação, com a desestabilização de saberes e poderes historicamente constituídos e cristalizados.
A educação inclusiva enquanto desafio para a escola do novo milênio é abordada em “práticas sociais e as diferenças intelectuais”, quarto capítulo. Aqui a autora questiona se é possível à escola e à sociedade o acolhimento das diferenças sem a superação de seu furor normalizador. Neste capítulo ela propõe tensionar o discurso da diferença, justamente nos pontos em que tende à segregação. Para isso, nega afirmar identidades anormais, mecanismo que nos protege e nos separa. Apresenta considerações metodológicas importantes para a prática do profissional da educação. Propõe um saber não sobre o outro, mas construído com ele. Um saber que não enquadra ou que se baseia em categorias, separando, mas em um saber que traga consigo um repensar das práticas educativas e do papel de seus agentes – uma prática que caminhe para a alteridade, com o reconhecimento do outro em sua diferença.
A “educação inclusiva ou educação para todos: estamos preparados?” inicia com a importância de uma educação diferenciada, não especial para alguns, mas para todos, com base em planos de educação individualizados e avaliações diversificadas (importantes para a garantia do desenvolvimento educacional). Neste capítulo são apresentados três casos, um atendido diretamente pela autora e dois indiretamente, enquanto orientadora de estágio em prática profissional. A partir da crítica aos processos de avaliação e trabalho baseados em classificações e enquadramentos, com os três casos apresentados a autora demonstra como é possível uma prática (da psicologia) diferenciada de formas de avaliação e trabalho. Voltando às questões metodológicas, propõe o diálogo como empírico a ser analisado, uma avaliação que deixa de ser um exercício de comparação com padrões previamente estabelecidos para tornar-se um acompanhamento da evolução do dizer, oral e escrito, no jogo discursivo.
Concluindo seu texto, em “e para encerrar...”, Pan reafirma a principal contribuição deixada no livro, ou seja, a inclusão da alteridade, com a busca de assegurar não apenas a visibilidade e a tolerância (pois esta se encontra muito próxima da indiferença no mundo contemporâneo), mas um outro caminho, com base no dialogismo enquanto ética, que traz consigo, necessariamente, o outro, a tensão e o conflito. Propõe, por fim, a necessidade de uma inclusão que se sobreponha a qualquer lógica homogeneizante.
Com objetivos claros e com divisão interna bem organizada, a obra de Miriam Pan constitui-se como uma importante ferramenta de reflexão ética do papel do educador e do psicólogo na sociedade contemporânea, em meio às novas demandas pela inclusão e pelo respeito à diferença. Pautando-se numa perspectiva bakhtiniana de análise discursiva, a autora traz exemplos práticos de procedimentos de avaliação e trabalho com pessoas com deficiência intelectual que, embora específicos dessa área, trazem reflexões expansíveis para todo e qualquer trabalho na educação, levando-se em consideração a necessidade de planos individualizados para todos (uma educação especial para todos).
A manutenção da dimensão alteritária como suposto básico para o reconhecimento do outro enquanto sujeito é a grande contribuição da obra. O reconhecimento e o respeito à/da diferença, com sua manutenção, só pode se dar com a constituição de saberes construídos com o outro, e não sobre ele. Nesse sentido, o texto de Miriam Pan constitui-se como referência obrigatória tanto para os que buscam orientações e conhecimentos introdutórios sobre educação e políticas inclusivas, como para os têm certa trajetória de estudos nessa área. Não obstante, constitui-se como importante ferramenta metodológica e de reflexão aos profissionais da educação e psicólogos, diretamente ligados e implicados nas discussões a respeito da inclusão na educação atual. Mais do que o elogio à diferença, o texto de Pan nos leva a refletir sobre aspectos éticos dos profissionais ligados direta ou indiretamente à educação, não se deixando cair em simplismos e em aconselhamentos, alertando para a dimensão alteritária como central no trabalho com a diferença que nos constitui.
Referências
Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acessado em: 19 de abril de 2010, de: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> [ Links ].
Brasil (1990). Declaração Mundial sobre Educação para Todos: plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. Jomtiem/Tailândia: UNESCO. [ Links ]
Brasil (1994). Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: UNESCO. [ Links ]
Brasil (2008). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEED. [ Links ]
Organização das Nações Unidas (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Acessado em: 19 de abril de 2010, de: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> [ Links ].
Pan, Miriam Aparecida Graciano de Souza (2008). O direito à diferença: uma reflexão sobre deficiência intelectual e educação inclusiva. Curitiba: IBEPEX. [ Links ]
Endereço para correspondência
Jardel Pelissari Machado
E-mail: machado.jardel@yahoo.com.br
Recebido em: 19/04/2010
Aceito em: 12/07/2010
* Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná – Brasil.