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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.11 no.21 São Paulo jun. 2011
ARTIGOS
Corpo, gênero e identidade em Madame Satã
Body, gender and identity in Madame Satã
Cuerpo, género e identidad en Madame Satã
Rebeca Bussinger*
Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES – Brasil
Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura de Vitória, ES – Brasil
RESUMO
Este trabalho propõe articular algumas reflexões sobre o corpo, o gênero e a linguagem a partir da análise documental do filme Madame Satã. Enfoca o personagem principal do filme e apresenta o processo de transformação da identidade: de João Francisco a Madame Satã. Utiliza como referência metodológica a análise de discurso e analisa o material a partir da codificação e transcrição das cenas do filme. São apresentadas e discutidas as quatro categorias encontradas: o macho, a musa, a travesti e o marginal. Baseado na história do personagem do filme, concluí que corpos e discursos se conectam, produzindo identidades que destoam da matriz heteronormativa.
Palavras-chave: Gênero, Corpo, Travesti, Identidade, Linguagem.
ABSTRACT
This article intends to articulate some reflections over the body, the gender and the language from the film Madame Satã using documental analysis techniques. It focuses on the main character of the film and it analyzes the process of identity transformation: from João Francisco to Madame Satã. The author utilizes as discourse analysis methodology and analyzes the material starting from the codification and transcription of the film´s scenes. Four categories that were found are shown and discussed: the male, the muse, the transvestite and the outcast. Based on the main character, it was concluded that bodies and discourses are connected, producing identities that mismatch from the heteronormative matrix.
Keywords: Gender, Body, Travestite, Identity, Language.
RESUMEN
Se Propone articular algunas reflexiones sobre el cuerpo, el género y el lenguaje a partir del análisis documental de la película Madame Satã. Enfoca el personaje principal y presenta el proceso de transformación de la identidad: de João Francisco a Madame Satã. Utiliza como referencia metodológica el análisis de discurso y se analiza el material a partir de la codificación y transmisión de las escenas de la película. Se presentan y se discuten las cuatro categorías encontradas: el macho, la musa, el travesti y el marginal. Basado en la historia del personaje de la película, he concluido que cuerpos y discursos se conectan, produciendo identidades que desentonan de la matriz heteronormativa.
Palabras clave: Género, Cuerpo, Travesti, Identidad, Lenguaje.
Introdução
Este trabalho propõe uma análise do filme Madame Satã1, enfocando as estratégias discursivas associadas aos usos do corpo, apresentadas no personagem vivido pelo ator Lázaro Ramos. Nosso objetivo foi evidenciar a rede de significações que interpelam e conectam corpos e discursos; e a construção das identidades de gênero na experiência da travestilidade. Para que possamos esclarecer os conceitos que nortearam nossa reflexão, alguns pontos devem ser discutidos na introdução deste ensaio. São eles: a presunção da materialidade de corpos, gêneros e identidades; a produção de corpos sexuados e docilizados; o corpo como referência e estrutura simbólica; a assunção do corpo enquanto moeda de valor maior no mercado das trocas simbólicas.
Encontramos em Le Breton (2007:24) um alerta: "De que corpo se trata? Esquecemos com frequência o quão absurdo é nomear o corpo como se fosse um fetiche, isto é, omitindo o homem que o encarna". Consideramos que um primeiro aspecto a ser abordado deve tentar explicitar as relações entre linguagem e ideologia, compreendendo que a linguagem, entendida como mediador das relações entre os homens e entre estes e a sociedade, é instrumento de transmissão ideológica (Fiorin, 2003).
Amparado na produção teórica e conceitual da sociologia clássica, mais precisamente de Marx e Engels, Fiorin (2003) afirma que a linguagem expressa a vida real dos homens. Por permitir ser palco das contradições e dos afetos inerentes à condição humana, a linguagem carrega as visões de mundo que nos orientam e, por isso, revela as ideologias que constituem as classes sociais. As visões de mundo são formações discursivas assimiladas e interiorizadas pelo indivíduo ao longo de sua vida que são repetidas e recriadas no desenrolar da história da humanidade. Segundo Fiorin (2003:35), "O homem aprende como ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em sua fala".
Dessa forma, não há inocência na linguagem. A ideia de indivíduo autônomo, recorrente na modernidade, não se confirma. Ainda que tenhamos liberdade para modificar os conteúdos textuais que desejamos comunicar e que elaboremos discursos críticos que resistam às hegemonias, a linguagem jamais será autônoma. Ao aprendermos e utilizarmos a língua nos alocamos a determinados grupos sociais.
Se o pertencimento a grupos específicos compreende, em sua dinâmica interna e externa, as construções identitárias que determinam estes mesmos grupos, então concordamos com o autor (Fiorin, 2003) quando afirma que a linguagem, por transmitir conteúdos dotados de valores, preconceitos, estereótipos e atribuições negativas ou positivas às condutas humanas, influencia os comportamentos.
Arán e Júnior (2007) apontam críticas à Psicanálise de base Lacaniana. Para os autores, a categoria simbólica tem sido utilizada como elemento fundante e estrutural para a compreensão da sociedade, traduzindo uma verdade totalitária e uma estratégia política do ideal normatizador. Tal argumento, inspirado no estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, defende que a estrutura do pensamento constrói-se a partir de categorias binárias, e, por consequência, na diferença entre os sexos. Por aí, a Psicanálise Lacaniana, a partir dos complexos de castração e de Édipo, explica a origem da linguagem e da subjetividade.
O complexo de castração define, então, as subjetividades e inscreve o sujeito na cultura a partir da interdição ao incesto. O sujeito deve ocupar uma posição sexuada, quando constata a diferença entre os sexos, fato que já estava predeterminado pelo simbólico. Vemos que o risco está em compreender tais posições como inerentes à linguagem, e, dessa forma, entender que qualquer alteração da norma que se funde na diferença entre os sexos ameaça a cultura e põe em risco a sociedade, ocultando a pretensão universal e normatizante de tal explicação. Arán e Júnior (2007:5) nos apontam que "Se existe um território sexual fora ou excluído do simbólico, em relação ao qual o próprio simbólico se constitui, é fundamental reconhecer como as contingências históricas e políticas podem promover neste mesmo território deslocamentos subjetivos, ampliando as possibilidades existenciais".
Para Judith Butler (2007), o gênero não é uma impressão cultural num corpo que possui um sexo, mas o gênero é, ele mesmo, o sistema pelo qual os sexos são consolidados. Para além da compreensão que funda a ideia do gênero enquanto construção social e o sexo como construção da natureza, a autora afirma que o gênero se constitui discursivamente, ideologicamente, produzindo os sexos.
Butler (2007) considera que o sujeito vivencia o processo de assumir um sexo, e tal processo se dá por intermédio da identificação com os discursos do imperativo heterossexual, que permite determinadas identificações e nega outras. Nessa matriz de identificação, afirma Butler, há a produção de seres abjetos, constituídos no exterior do domínio do sujeito mas necessários à própria delimitação do que vem a ser os sujeitos legítimos. Nas palavras da autora
[...] a construção do gênero atua através de meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de apagamentos radicas, os quais, estritamente falando, recusam a possibilidade de articulação cultural. (Butler, 2007:161)
Sendo assim, o sexo é uma categoria que engendra a política normatizadora. A materialização do sexo em um corpo é uma imposição social por meio de normas que buscam regular e controlar corpos e subjetividades. Contudo, Butler (2007) afirma que a norma precisa ser constantemente citada para que a materialidade do sexo e do corpo seja garantida. A norma que controla os corpos usa o aparato da sexualidade e o argumento da diferença entre os sexos para que a materialidade do corpo seja concretizada. A constituição do sujeito depende da identificação com a norma do sexo. Nesse processo, a materialização do sexo envolve a negação da identificação com a abjeção do sexo, ou seja, a emergência do sujeito relaciona-se diretamente à regulação de práticas identificatórias (Butler, 2007). Para Butler (2007:168):
Se a formulação de um ego corporal, de um sentimento de contorno estável, se a fixação da fronteira espacial é obtida através de práticas identificatórias e se a psicanálise descreve o funcionamento hegemônico daquelas identificações, podemos, então, ler a psicanálise como uma descrição da matriz heterossexual ao nível da morfogênese corporal?
Diante desse complexo quadro, compreendemos e acreditamos que o sujeito vive uma busca constante de resposta à norma e de insubmissão a esta mesma norma e é neste momento que as fronteiras discursivas da heteronormatividade, produtora de corpos sexuados, generificados se abalam. O poder regulador pressupõe e nos faz acreditar numa unidade coerente entre corpo, sexo e gênero criando, assim, uma política do desejo amparada nos discursos ideológicos sobre masculinidade e feminilidade e sobre as identidades. Retomando Butler (2007:169)
[...] o simbólico deve ser repensado como uma série de injunções normatizantes que asseguram as fronteiras do sexo através da ameaça da psicose, da abjeção e da impossibilidade psíquica de viver. [...] essa 'lei' pode apenas permanecer uma lei na medida em que ela impõe as citações e as aproximações diferenciadas chamadas "femininas" e "masculinas".
Para ilustrar as reflexões acima, nos amparamos em Borba e Ostermann (2008) que realizaram uma pesquisa com travestis que se prostituem numa cidade do Sul do Brasil, investigando as relações mantidas entre linguagem e identidades de gênero. O estudo mostra como o grupo pesquisado utiliza o sistema gramatical de gênero para manipular suas identidades e as identidades da comunidade a que pertencem a fim de atingirem objetivos específicos em contextos específicos. Os pesquisadores observaram que, influenciadas pelos discursos dominantes sobre a masculinidade e a feminilidade, as participantes alternavam o uso do masculino e feminino gramatical de acordo com os significados que atribuíam as suas experiências. A pesquisa conclui que a manipulação do sistema gramatical de gênero pelas travestis mostra o poder da língua de construir ou recriar identidades, tornando-as mais flexíveis e plásticas.
Os autores ainda apontam uma importante relação entre o corpo e a identidade social do grupo pesquisado, ao afirmar que a fabricação e percepção do corpo pelas travestis participantes refere-se à constituição destas enquanto pessoa, em que o corpo configura-se como um importante aspecto na construção de significados.
Já Chidiac e Oltramari (2004) lembram que as identidades de gênero são significações culturais, produtos da socialização que visam promover legitimidade na relação com o mundo social. A partir da criação de um sentimento de coerência interna, conseguidos pela eficácia da ordem corpo-sexo-identidade de gênero, as relações são constituídas sem que percebamos o caráter performático, que nos aponta Butler (2007), deste sistema que se aporta nas subjetividades e nas identidades para permanecer existindo. É a ideía de substância que produz a dicotomia masculino/feminino, homem/mulher.
A naturalização do processo de produção dos corpos sexuados, amparado na repetição do ideal normativo, tem, nas ciências médicas, e na reapresentação de suas verdades através do tempo, o fortalecimento da concepção substancializante oriunda desse processo. Segundo Garcia (2008), foi a partir do século XVIII que, no Ocidente, o corpo torna-se elemento central da política de controle dos indivíduos, tornando-se objeto legítimo de estudo da medicina. Daí o corpo passa a ser estudado, esquadrinhado e analisado segundo as técnicas da anatomia. A decodificação do corpo buscava a compreensão de seu funcionamento. O próximo passo seria a submissão dos corpos às normas e regulamentos a fim de que sua utilidade e capacidade produtiva pudesse ser otimizada às custas de seu controle e correção. As ciências médicas, amparadas pelo determinismo biológico, posicionam o corpo como elemento central na definição do sujeito e, assim, o corpo legitima-se como estrutura demarcadora das diferenças. Foucault (1983) contextualizou a intervenção no corpo o situando como objeto de poder. A domesticação das forças, advinda dos processos que objetivam estudá-lo e aperfeiçoar sua utilização redunda na dissociação do poder do corpo. Desse modo, ao direcionar suas forças para fins econômicos há, por outro lado, o enfraquecimento do potencial político, sufocado pela interiorização de práticas que submetem o corpo às disciplinas.
Bento (2006) discorre sobre o interesse científico na diferenciação biológica dos sexos. Afirma que a necessidade científica de nomear, classificar e ordenar o corpo fez com que a medicina empreendesse uma busca constante de supressão das ambiguidades fisiológicas e anatômicas. A autora nomeia este processo como assepsia dos gêneros, que teve no espaço hospitalar o lócus legítimo de sua execução.
Concordamos com Garcia (2008) que sugere o entendimento do saber construído pela medicina como um dos saberes possíveis na produção de verdades e sentidos para os corpos, olhando-o a partir de uma visão crítica que desmascara a intenção hegemônica presente em seu discurso. Le Breton (2007) também afirma que o saber biomédico se tornou conhecimento oficial nas sociedades do Ocidente, mas, sendo eficaz na sustentação das práticas normatizadoras, esse saber deve ser encarado como apenas uma das representações possíveis para o corpo.
Matos e Lopes (2008) afirmam que as representações, crenças e significados acerca da masculinidade e feminilidade são cristalizadas no corpo. São as imagens, os sentidos que atribuímos ao gênero que criam o corpo biológico enquanto corpo sexuado amparado na estrutura genital. Conforme salientamos, esse processo vislumbra a submissão às práticas normativas presentes na sociedade. De acordo com as autoras, são várias as práticas que atestam essa finalidade, dentre elas: obsessão pela beleza e pela saúde, escultura de corpos equivalentes aos que desfilam pela mídia publicitária, resposta ao imperativo da felicidade. Nesse sentido, o corpo orienta-se pelas concepções de determinadas sociedades e modifica-se de acordo com as transformações dessas concepções.
Assim, compreendemos porque valores como beleza, saúde, alimentação têm produzido um novo estilo de vida a partir de comportamentos que implicam um uso mais narcísico e hedonista do corpo. Se antes o corpo estava subjugado, restrito e limitado na satisfação de seus desejos, agora parece redescobrir-se pelo viés da moral do consumo.
Nesse contexto, o corpo torna-se símbolo de status social, moeda importante para troca no mercado simbólico. O hedonismo torna-se a nova moral do corpo, que é incitado às práticas de consumo pela imposição do prazer a qualquer custo. Essa valorização do corpo e busca de cuidado de si evidencia uma nova faceta do narcisismo: o funcional, que lança o corpo na busca de realização de seu melhor desempenho no jogo de trocas simbólicas (Le Breton, 2007).
O corpo, então, alia-se àquele que melhor o apresenta, atinge um maior número de sensações e oferta-o em sua saúde e juventude. Le Breton (2007) afirma que são essas marcas distintivas que submetem o corpo a um sutil controle social, que o transforma em aventura, empreendimento, desafio para o sujeito. Num contexto de enfraquecimento das regras de socialibilidade, o indivíduo ampara-se no próprio corpo em busca de significados e sentidos para respostas às questões da vida, a referência mesma para o enigma da existência. Contudo, a autorreferência não responde plenamente às questões mais caras que envolvem os laços fraternos, as relações e as regras de sociabilidade.
Portanto, se pensarmos que o gênero se aproxima de um ideal de gênero (masculino ou feminino) por meio das repetições constantes do ditame da norma e se considerarmos que o corpo se tornou o porto seguro onde devemos atracar, como pensar as experiências que questionam a materialidade presente nos discursos sobre o corpo? Assim, e a partir dos apontamentos que apresentamos até aqui, que nasceu o interesse pela reflexão acerca da experiência da travestilidade. Entendemos que, a narrativa construída pelas travestis exacerba o potencial de transformação do corpo e dos efeitos dessa mesma transformação na relação com o meio social. Acreditamos, que ao apropriar e utilizar a matéria plástica do corpo, modelando a matéria de si, as travestis provocam rupturas nos discursos normatizadores sobre corpos e gêneros, abrindo-se ao fluxo das identidades e redimensionando o potencial político do corpo.
Uma proposta para a análise de imagens
Keske (2008) preocupa-se em pensar uma metodologia capaz de analisar as imagens que circulam nos meios de comunicação, especialmente a imagem cinematográfica. Salienta que, a idéia de imagem está relacionada a algo que ocupa o lugar do objeto, ou seja, o conceito de imagem traz o conceito de representação do objeto. A imagem atua na mediação entre o símbolo e o objeto a ser representado. O autor afirma que, por seu caráter polissêmico, a imagem pode ser interpretada pelo seu "aspecto documental, de narrativa intertextual ou de fenômeno ideológico" (Keske, 2008:01).
O autor define o que seria a análise documental da imagem: processo que se constitui "enquanto registro de uma determinada realidade ou representação de uma situação" (Keske, 2008:06). Ao discutir o tratamento da fotografia para a análise documental, avalia que, mesmo que o material fotografado esteja submetido à interpretação do homem, o material não perde a sua força documental visto que a fotografia representa um instante do real independente do contexto social, cultural e ideológico em que é feita.
Gill (2007) afirma que, para os analistas de discurso, as práticas sociais são reveladas nos discursos proferidos pelos sujeitos que utilizam a linguagem para posicionarem-se diante dos conflitos, negociações e contradições que permeiam a vida social. Sendo assim, para os analistas de discurso, os discursos são sempre circunstanciais e buscam essa articulação entre linguagem e um contexto histórico e social, fato que implica o pesquisador nos contextos discursivo, político e ideológico que pretende analisar.
Foi amparados nos conceitos anteriormente expostos, que desenhamos a análise do filme Madame Satã. Para tanto, tomamos em mãos o documento a ser analisado, o filme propriamente dito. O filme foi revisto por mais uma vez. Em seguida, procuramos captar as imagens (e o maior número de elementos possíveis na cena) transcrevendo-as. A transcrição se deu da seguinte forma: em primeiro lugar percebemos que as imagens estavam encadeadas de acordo com uma sequência lógica específica, ou seja, divididas em blocos que intencionavam expressar acontecimentos e contextos particulares. A cada bloco de imagens captados denominamos Cena, seguido de um numeral cardinal (exemplo: Cena 1, Cena 2, Cena 3...).
A captação das imagens em Cenas foi facilitada pela própria edição realizada pelos produtores do filme, pois entre uma cena e outra parece haver um corte a fim de que se inicie um outro conjunto de acontecimentos. Para cada cena identificada, o filme era paralisado para que efetuássemos, de fato, a transcrição. Atribuímos um número de identificação à cena que seria transcrita e anotávamos: os personagens que compunham a cena, os textos utilizados, movimentação deles, expressões faciais e corporais, descrição de indumentárias, diálogos e, como complemento, produzimos notas analíticas para ressaltar alguns elementos que considerávamos relevantes. Tomamos a liberdade de nomear esse processo como técnica do enquadre, pois "enquadramos" cada cena para proceder à transcrição e análise.
Ao final da transcrição, havíamos levantado um total de 34 cenas. Para análise do material procedemos à leitura e releitura das cenas codificadas e, em seguida, passamos a identificar com cores as cenas que continham elementos (falas, gestos, expressões, acontecimentos) que se assemelhavam ou mesmo se repetiam. Como o objetivo do trabalho foi evidenciar as articulações entre os discursos e os usos do corpo no personagem principal, enfocamos as transmutações vividas por ele ao longo do filme.
De João Francisco dos Santos a Madame Satã: identidade(s) em transformação
Madam Satan, filme musical produzido e dirigido pelo cineasta americano Cecil Blount DeMille em 1930, trata das aventuras e desventuras de uma esposa traída que intenciona reconquistar o marido ao descobrir que este tem um caso amoroso com uma corista. Característica marcante do filme estão nos figurinos criativos e luxuosos utilizados pelas personagens. Isso explica a inspiração para João Francisco, morador da Lapa dos anos 30 e frequentador assíduo dos redutos e bares da boêmia carioca. Madame Satã (2002), dirigido por Karim Ainouz, traz à cena esse contexto urbano do Rio de Janeiro e os dilemas enfrentados por João Francisco dos Santos. Importante ressaltar que a obra foi baseada numa história verídica. João, que mais tarde se tornaria conhecido por Madame Satã ao ganhar um concurso de fantasias para o carnaval de 1942 no bloco Caçadores de Veado, tornou-se figura marcante na Lapa e morreu no Rio de Janeiro em 1985, aos 75 anos de idade.
O filme retrata o desejo de João à vida artística e seus sonhos de tornar-se famoso e reconhecido. Apresentaremos a análise a seguir, discorrendo sobre quatro referências identitárias evidenciadas na decodificação das cenas transcritas, que reúnem, cada uma delas, elementos marcantes para a constituição do personagem do filme.
O Macho
No material trabalhado, encontramos, para essa categoria, o maior número de recorrências, um total de vinte cenas (Cenas: 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 31 e 32). A identificação desta categoria se deu a partir da conexão das falas / textos dos personagens, atitudes, comportamentos e indumentárias do personagem principal2. João Francisco apresenta-se por quase todo o filme com roupas tipicamente masculinas. Na maioria das vezes, usa terno e chapéu para apresentar-se nos ambientes sociais. As cenas que retratam o contexto do lar, da intimidade mostram o personagem de calças masculinas, sem camisa e, no peito, guias e colares que fazem alusão às religiões afro-brasileiras. Usa um tom de voz grave, muitas vezes agressivo para com estranhos e/ou seus pares. Sendo excelente lutador de capoeira, em várias cenas usou dessa artimanha para defender-se, atacar ou proteger pessoas amigas. Para exemplificar a agressividade e a destreza corporal do personagem, utilizamos uma de suas falas quando afirma: "Homem que é homem se defende na canhota!" (Cena 9).
Pelúcio (2004) lembra que, ainda que a feminilidade seja um elemento estruturante das hierarquias de gênero para as travestis, estas não querem desfazer-se de atributos identificados como do âmbito da masculinidade, tais como: força física, racionalidade, autonomia e outros. Garcia (2008) detecta identidades que, segundo o autor, são incorporadas parcialmente pelas travestis. No âmbito da(s) masculinidade(s) seriam o viado, malandro, e bandido e, por outro lado, submissão, a mulher supersedutora e a prostituta nas identificações com o feminino. Para situar o personagem em suas identificações com características das masculinidades, ilustramos com o texto da Cena 13: "Nasci para ter vida de malandro e vou levar é rasgada"!
Ainda que a presença dos atributos da masculinidade e da feminilidade habitem o mesmo corpo, num jogo que, ao mesmo tempo em que reafirma práticas, desconstrói paradigmas acerca dos gêneros, Pelúcio (2004) afirma que, para as travestis, tal dinâmica não é vivida sem conflitos. A autora lança uma pergunta: "Onde acaba o homem e começa a mulher?" (2004:141), a fim de nos lembrar que não há limites rígidos nesses corpos, sendo justamente por isso que eles se tornam tão perturbadores e fascinantes. Para a autora, devemos orientarnos por duas perspectivas sobre corporalidade se quisermos compreender a ambiguidade, característica fundamental que constitui a experiência da travestilidade: uma do campo do discurso burguês e individualista e outra do discurso popular e holista. Pelúcio (2004) afirma que as travestis crescem e se desenvolvem, geralmente, em contextos populares e holistas, em que o corpo não significa, exclusivamente, um atributo social. O corpo e, consequentemente, a sexualidade, constituem a identidade mesma do grupo.
Podemos pensar a experiência da travestilidade a partir do que Garcia (1998) observa sobre os diversos tipos de masculinidades oriundas das inúmeras inserções dos homens nos contextos social, político, econômico e cultural. Sobre essa questão, a mesma autora pontua que novas categorias sexuais e subculturas sexuais, coadunadas às mudanças globais e seus impactos sobre a cultura, têm afetado e ameaçado a concepção hegemônica de masculinidade (Garcia, 1998). Ilustramos os argumentos anteriormente expostos com parte da Cena 31, em que, após um show no bar Danúbio Azul na Lapa, João Francisco é provocado e agredido verbalmente por um cliente do bar que, entre insultos, lhe pergunta: "Tu tá fantasiado de homem ou de mulher"? E mais adiante, após ter resistido à maior parte das agressões, João vira-se para o cliente do bar e grita: "Eu sou bicha porque eu quero, e não deixo de ser homem por causa disso não"! Nesse sentido, constatamos o trânsito flexível entre atributos da feminilidade e masculinidade assimilados pelos sujeitos em suas experiências de travestilidade, tão bem expressa e representada pelo personagem do filme.
A Musa
Em seguida, com um total de nove recorrências (Cenas: 2, 3, 7, 9, 12, 14, 15, 28, 33), temos a musa. Nessa categoria alocamos todas as alusões do personagem ao seu desejo confesso de se tornar uma diva, ou seja, conquistar fama e reconhecimento pela expressão artística. Nessas cenas, João mostra-se dublando e/ou cantando, auxiliado por adereços femininos (lenços, colares). Utiliza um tom de voz mais agudo, como se buscasse uma voz feminina. Tais elementos são realçados no filme pelos momentos em que o personagem executa seu ofício. João Francisco trabalhava como assistente de camarim para uma artista por quem nutria uma certa admiração, que terminou quando esta o repreendeu e o ofendeu ao surpreendê-lo usando um dos figurinos para o show. Além da aspiração artística, a categoria musa engloba os momentos que sugerem sonhos, fantasias e romantismo do personagem.
Interessante ressaltar que o filme Madame Satã (2002) utiliza em seu enredo narrações, nas vozes dos personagens3, que são bastante descritivas das categorias encontradas neste trabalho. Utilizaremos neste tópico, um destes textos para ilustrar a discussão.
Cena 2
Local: Cabaré.
Contexto: o personagem observa o show de Vitória por trás de uma cortina de contas. Desliza o rosto lentamente sobre a cortina. Expressão romântica, feminina, sonhadora.
Nota: o personagem parece sonhar com o show.
Texto: Vivia na Arábia um sultão belo e cruel que desposava cada noite uma virgem e a abatia antes do amanhecer. No ímpeto de pôr fim a tal ciclo de barbaridades, Sherazade, uma virgem de rara beleza e gosto delicioso se ofereceu a desposar o jovem tirano incitando a curiosidade e o desejo do sultão. Sherazade inventava fantásticas lendas de amor e aventura (o personagem baixa os olhos sobre a cortina, parece fantasiar) adiando sempre para o próximo dia a sua execução. Até que passadas 1001 noites o sultão sucumbiu ao fascínio da jovem Sherazade.
Uma primeira relação que identificamos no texto é a associação entre romantismo e feminilidade. De acordo com Giddens (1993), a emergência da idéia de amor romântico se deu no final do século XVIII. Provocou mudanças em vários aspectos da vida social, mas afetou de forma peculiar a vida das mulheres, ressignificando o espaço do lar e a experiência da maternidade. Para Giddens (1993), o romantismo das mulheres nas novelas modernas, diferente dos contos medievais, é ativo. Elas são retratadas como sendo independentes, corajosas e capazes de dissolver a hostilidade de seus parceiros. Nas palavras do autor, "A heroína amansa, suaviza e modifica a masculinidade intratável de seu objeto amado, possibilitando que a afeição mútua transforme-se na principal diretriz de suas vidas juntos" (Giddens, 1993:57).
Essa feminilidade leve e suave sugerida por Anthony Giddens parece figurar como um ideal a ser alcançado por João Francisco. Ele expressa-se, na maioria das cenas, de forma agressiva e violenta. Chidiac e Oltramari (2004), numa pesquisa realizada com drag queens em Balneário Camboriú e Florianópolis, cidades da região Sul do Brasil, perceberam que os entrevistados associavam características como sensualidade, beleza e delicadeza à feminilidade. No entanto, constataram que evitavam mostrar nos espaços públicos os traços de feminilidade que constituíam seus personagens, reservando a expressão destas características para espaços privados e situações de intimidade.
Numa das cenas identificadas nessa categoria, um outro personagem comenta sobre a admiração de João por Josephine Baker4 e ele responde, sem hesitação: "Eu sou filho de Iansã e de Ogum, e de Josephine Baker sou devoto" (Cena 14). Pelúcio (2007) reflete sobre as referências femininas preferidas pelas travestis: mulheres famosas, prestigiadas pelas artes e pela mídia, representantes do hiperfeminino5.
Podemos inferir que, para as travestis, e, no caso, para o personagem principal de Madame Satã, a admiração por musas do cinema e das artes reflete o desejo de reconhecimento social que se dá não somente a partir do reconhecimento do sucesso no empreendimento realizado para apreensão da feminilidade mas também de rompimento com a situação de marginalidade e preconceito a que são constantemente expostas. Nesse sentido, o palco é o ambiente pelo qual a marginalidade e a exclusão são, momentaneamente, superadas. Numa outra dimensão, Butler (2003) aponta o caráter desnaturalizador das performances empreendidas pelas experi ências de drag queens e crossdressers. Para a autora, o "show transformista" não apresenta a imitação do gênero oposto ao sexo do artista, mas sim dramatiza o mecanismo cultural pelo qual é produzida a suposta correlação entre sexo e gênero desestabilizando essas duas categorias. Para Butler (2003), gênero é performance e por isso pode tanto repetir a norma quanto desvirtuá-la. Da mesma forma, a performance do gênero pelo artista revela a ilusão da origem do corpo e do sexo fazendo, assim, uma crítica à essencialização das identidades.
A Travesti
Pelúcio (2007) afirma que a travestilidade pode ser entendida como um processo de construção do feminino (ou hiperfeminino), ligado à vida urbana, à noite, à rua, à boemia e ao mercado do sexo onde a cidade grande torna-se mais acolhedora em oposição à rejeição sofrida nas relações familiares e à violência no espaço doméstico. Nesse contexto, o corpo assume centralidade na experiência, na medida em que as travestis buscam materializar um gênero por meio da transformação do corpo.
De acordo com Bento (2003), o gênero ganha materialidade por meio das roupas, gestos, olhares e toda uma estilística corporal e estética específica. São esses elementos que dão visibilidade ao corpo, estrutura basicamente flexível e instável, que, na repetição dos gestos, olhares e escolha da indumentária materializa o gênero. O gênero, então, atua a partir da dissimulação da repetição das normas que o constituem em sua materialidade e pela inculcação da crença de sua determinação pela natureza.
Maluf (2002) situa o palco como o lugar em que a travesti apresenta o resultado de sua transformação e, muitas vezes, da fabricação de seu corpo6. A transformação do corpo e sua apresentação evidenciam a falácia da oposição entre natureza e antinatureza e entre falso e verdadeiro.
Nas cenas em que identificamos esta categoria (Cenas: 26, 27, 29, 30, 33, 34. Total de seis recorrências), englobamos os momentos em que o personagem principal apresenta-se publicamente com seus shows ou em situações que sejam representativas desses momentos (por exemplo, na Cena 26, João aparece recitando o texto do espetáculo do cabaré em que trabalhou, enquanto o figurino para seu show da noite é confeccionado). Levantamos um aspecto interessante nesta categoria, que parece significar um marco no processo de constituição da identidade de Madame Satã. Tomemos como referência o texto da cena a seguir.
Cena 29
Local: Na casa do personagem.
Contexto: Declama este texto de frente ao espelho.
Nota: Texto de autoria do personagem. Fusão de elementos do texto do show de Vitória no cabaré com elementos do universo cultural e simbólico do personagem.
Texto: "Vivia na maravilhosa China, um bicho tubarão bruto e cruel que mordia tudo e virava tudo em carvão. Pra acalmar a fera, os chinês fazia [sic] todo dia uma oferenda com sete gato-maracajá que ele mordia antes do pôr do sol. No ímpeto de pôr fim a tal ciclo de barbaridades chegou Jamacy, uma entidade da floresta da Tijuca. Ela corria pelos matos e avoava pelos morros. E Jamacy virou uma onça dourada de jeito macio, de gosto delicioso. RRRRRRR (imita a onça). E começou a brigar com o tubarão por 1001 noites. No final, a gloriosa Jamacy e o furioso tubarão já estavam tão machucados que ninguém sabia mais quem era um e quem era outro. E assim, eles viraram uma coisa só. RUARRR! (imita a onça de novo)".
Em primeiro lugar, observamos a total incorporação de João Francisco ao texto que cria. Dito de outra forma, a cena expõe o momento em que os sonhos e desejos do personagem ganham corpo. A declamação do texto, em frente ao espelho, faz crer que João declama um texto sobre ele e para ele. O tubarão – agressivo, feroz – é João, o macho indomável, impetuoso que ataca suas presas e que se defende pelo uso da força e na habilidade do jogo de seu corpo. A onça – macia, suave – é João, a musa, corajosa, sedutora e representante do ideal romântico. Jamacy é a fusão dos dois animais, do macho e da musa, ou melhor, a união dos aspectos masculinos e femininos do personagem numa única pessoa transformada numa entidade ambígua que, depois da luta entre opostos e rivais, acolhe num mesmo corpo os "animais" que tentava expurgar.
Garcia (2008), quando propôs analisar as masculinidades e feminilidades num grupo de travestis de baixa renda na cidade de São Paulo, percebeu esse caráter ambíguo da experiência corporal. Por vários momentos, sinaliza o autor, as representações e os fenômenos associados ao corpo eram mostrados pelo grupo numa concepção de luta entre o feminino e o masculino. Para Garcia (2008), esse conflito representa uma identidade que abarca, ao mesmo tempo, identidades masculinas e femininas.
De acordo com Pelúcio (2004), em nosso universo mitológico sempre existiram seres ambíguos; e é justamente a ambiguidade (das sereias, dos minotauros, medusas e etc.) que os tornam interessantes. No entanto, assim como os seres mitológicos, as travestis são alocadas no plano do fantástico, do espetacular. Na impossibilidade de identificação com seres fantásticos, devido à dificuldade de codificação do "duplo em um" e do "nem homem nem bicho" tendo em vista a desorganização que provocam na política que legitima os gêneros e garante segurança simbólica aos sujeitos, as travestis permanecem habitando esse mundo não humano. O perigo dessa remoção, ou da ausência de assimilação, está nas operações que realizamos para mantê-las afastadas do mundo dos seres humanos, ou, ainda, àquilo que Butler (2007) denomina de abjeção do sujeito: o sujeito só existe a partir de um código – normativo - de inteligibilidade cultural. Assim, a própria definição de sujeito humano depende da operação que define aquilo que ele não é excluindo do convívio social aqueles que transgridem o imperativo que força uma única verdade para o corpo, o sexo e o gênero.
Para Le Breton (2007), os traços da aparência guiam o olhar alheio, o que faz com que o sujeito percebido seja classificado em categoriais sociais e morais específicas. Nesse sentido, a apresentação física assume, no campo social, a conotação de apresentação moral. O olhar avaliativo do outro se ancora num código moral das aparências que alinha aspectos do corpo, das roupas, de comportamentos a categorias classificatórias que situam o indivíduo num contexto social ou moral específico. Dessa forma, preconceitos e estereótipos atuam sobre o conjunto do corpo e suas aparências identificando marcas que devem ser banidas do campo da sociabilidade e da moralidade.
O Marginal
Cena 1
Local: Não identificado. Cenário com fundo branco. Pode ser uma delegacia de polícia.
Contexto: João Francisco escuta, sentado, o texto que o acusa (possivelmente o assassinato do cliente do Danúbio Azul) e o condena à prisão.
Nota: Personagem sério, machucado (possível espancamento), mudo.
Texto: "Conhecido nas imediações como desordeiro. Frequentador contumaz da Lapa e suas imediações. É pederasta passivo, usa as sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas alterando a própria voz. Não tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Sua instrução é rudimentar, exprime-se com dificuldade (neste momento, abaixa a cabeça) e intercala em sua conversa palavras da gíria de seu ambiente. É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana-se de possuir economias, mas como não alfere proventos de trabalho digno, só podem ser estas economias produtos de atos repulsivos ou criminosos. Pode-se adiantar que o sindicado já respondeu a vários processos e, sempre que é ouvido em cartório, provoca incidentes e agride mesmo os funcionários da polícia. É um indivíduo de temperamento calculado, propenso ao crime e, por todas as razões, inteiramente nocivo à sociedade. Rio de Janeiro, DF, doze dias do mês de maio do ano de 1932.
A última categoria que identificamos foi a do marginal (Cenas: 1, 4, 10, 14, 16, 20, 33. Total de sete recorrências). Refere-se ao grupo de cenas que expõem ou associam o personagem principal a atos infratores (roubos, extorquir dinheiro de amigos) ou à experiência da marginalidade (discriminações, preconceitos).
Um dos pontos de discussão mais importantes levantados por esta categoria refere-se aos usos dos espaços públicos e privados por sujeitos da margem. Sem que haja a necessidade de construção de muros que separem grupos, o trânsito pelas vias da cidade e a liberdade de ir e vir tornam-se restritos para conjuntos específicos de pessoas. Como exemplo, na Cena 16, João e seus dois amigos saem à noite para irem se divertir numa famosa boate carioca, a High Life. São barrados na entrada. Na cena seguinte (Cena 17), quando João questiona o fato de todos poderem entrar e ele não, sua amiga responde: "Porque você não é todo mundo", demarcando a posição de subalternidade percebida por ambos na interação com outros grupos sociais.
Silva (2008) relata que muitos trabalhos de geógrafos têm investigado o fato de determinados corpos, marcados pela diferença ou pela marginalidade, serem confinados e associados a locais específicos enquanto outros corpos conseguem acessar e habitar um maior número de espaços e de forma mais livre e plena. Interessada em investigar as relações entre corpo, espaço e identidades de gênero, a autora pesquisou por dois anos um grupo de 13 travestis a fim de evidenciar as vivências do espaço para este grupo.
Partindo do princípio de que a Geografia tem contribuído para a invisibilidade espacial de grupos transgressores da heteronormatividade, a autora conclui que existe, nas cidades, a produção do espaço interdito. Silva (2008) afirma que os espaços (das cidades, das escolas e outros) são constituídos obedecendo às regras do padrão heteronormativo de forma que a apropriação de tais espaços seja restrita àqueles que se encaixem neste padrão. Ao chamar a atenção para a exclusão socioespacial sofrida pelas travestis, a autora lembra que a sociedade sempre decretou a interdição aos corpos transgressores, confinando-os aos hospícios, cadeias, orfanatos, dentre outros.
De acordo com Bento (2003), os corpos sempre sofrem a ação das expectativas sociais. Estado e família articulam-se com o apoio de outras instituições como as religiões, as escolas e a ciência, preparando os corpos para o ideal heteronormativo. Se, por acaso, os corpos ousarem não responder às expectativas aplicadas, então, a violência física ou simbólica aparece como recurso capaz de gerar a submissão, a obediência ou mesmo a aceitação da diferença.
Não queremos aqui posicionar-nos a favor do discurso de retaliação das penas, da justiça com as próprias mãos, e muito menos defender as posturas agressivas e criminosas adotadas por João Francisco. Mas, de alguma forma, foi a tentativa de interdição do corpo de Jamacy, nos ataques sofridos pelo cliente do bar Danúbio Azul após o sucesso do show transformista que fizeram com que João cometesse assassinato e fosse condenado posteriormente a dez anos de prisão. A última narração do filme refere-se, justamente, numa resposta a esse fato, romantizando o momento em que é posto em liberdade. Reproduziremos aqui, parte da Cena 33, para finalizar esta discussão:
Até que um dia de carnaval, um cavaleiro em seu camelo libertou a princesa que correu a pé até chegar na sua Lapa querida. A princesa foi logo se apressando de preparar sua fantasia para o desfile dos Caçadores de Veado. Jamacy, vestida, desfilou com brilhantismo no carnaval de 42. E Jamacy, ficou conhecida assim, pro resto do mundo, como Madame Satã.
Considerações Finais
Neste breve ensaio, intencionamos relacionar algumas reflexões acerca do corpo, das identidades e os efeitos da construção de discursos hegemônicos para os gêneros. Amparamo-nos num documento audiovisual que retratou com riqueza e complexidade um personagem que viveu e fez a sua história na cena carioca em meados do século passado. Como o próprio filme mostra, Madame Satã não é qualquer um. Negro, pobre, homossexual e analfabeto impôs ao mundo os desejos, os sonhos e os conflitos que permearam sua existência. Ainda hoje, é conhecido e reconhecido por artistas, intelectuais, estudiosos, dentre outros. A escolha do filme Madame Satã para este ensaio se ampara justamente nas descrições acima. A trama consegue articular as construções e experiências dos gêneros a um contexto social e cultural específico: o Brasil dos anos 30 retratado pelas hierarquias de gêneros, raças e classes sociais.
Contudo, e para reflexões futuras, elaboramos outras perguntas, por exemplo, como olhar para o fenômeno da violência diante de um contexto cenografado tão controverso? Na díade identidade e exclusão, a violência pode afirmar-se e legitimar-se enquanto linguagem? Souza (2005) afirma que a identidade social se constitui neste duelo entre estabilidade e transformação. Esse processo, que implica um sentimento de pertencimento a grupos e de alinhamento com atributos e características alheias, consolida-se na cultura e nas possibilidades de identificação que ela oferece.
Nesse contexto, a violência emerge no entremeio da relação entre um eu e um outro, ou melhor, na impossibilidade de um mínimo de relação e/ou identificação com o outro (Souza, 2005). Se retomamos Le Breton (2007:74)
Em condições comuns da vida social, as etiquetas de uso do corpo regem as interações: circunscrevem as ameaças suscetíveis de surgir do que não se conhece, dão origem a referências que asseguram o desenvolvimento da troca. Diluído assim no ritual, o corpo deve passar despercebido, fundir-se nos códigos e cada ator deve poder encontrar no outro, como num espelho, as próprias atitudes e a imagem que não o surpreende nem o atemoriza.
O que acontece quando o outro não é um espelho? O que desestabiliza o fluxo pacífico das trocas? A diversidade, elemento presente em qualquer campo social ou cultural, ameaça e impede o reconhecimento, e o não-reconhecimento gera a reclamação que vai encontrar inúmeras formas para sua expressão (Souza, 2005). Nesse sentido, concordamos com o autor quando afirma que, mesmo que compreendamos os valores e as práticas de cada contexto cultural, devemos ter cuidado para não cair na armadilha do relativismo e, dessa forma, legitimar práticas que restrinjam o acesso de determinados grupos e pessoas à comunidade humana. Para que não tomemos partido na lógica da abjeção, também devemos estar atentos aos corpos-discursos que produzem outras linguagens, outras formas de simbolização e de significação.
Referências
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Endereço para correspondência
Rebeca Bussinger
E-mail: rebecabussinger@hotmail.com
Recebido em: 18/01/2010
Revisado em: 12/11/2010
Aceito em: 08/03/2011
* Mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES – Brasil. É assessora e coordenadora de programas para infância e juventude na Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura de Vitória, ES – Brasil.
1 Referências sobre o filme são encontradas na bibliografia utilizada para este trabalho.
2 Trabalhamos da mesma forma com as outras categorias.
3 Na Cena 1 e na Cena 33 há a narração de um texto que aufere acusação e criminaliza o personagem. Supomos ser o narrador um policial ou oficial de justiça, visto que a figura não é explícita na tela.
4 Dançarina, negra, norte americana.
5 Podemos dizer que hiperfeminino designa a categoria de mulheres supersedutoras, superglamorosas, superfemininas.
6 A fabricação do corpo inclui, para as travestis, não raro, uso de hormônios e aplique de silicone. Não é o caso do personagem em Madame Satã.