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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

ARTIGOS

 

A inconstância dos laços afetivos na vida das crianças e adolescentes abrigados

 

The fickleness of emotional ties in the lives of sheltered children and adolescents

 

La inconstancia de los vínculos emocionales en la vida de niños y adolescentes residentes en albergues públicos

 

 

Sônia Altoé*; Magali Silva**; Bruna Soares Pinheiro***

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma reflexão sobre as práticas institucionais de abrigos, no que concerne às múltiplas transferências pelas quais passam as crianças e adolescentes, considerando nossa experiência de atendimento clínico psicanalítico com essa clientela. Propõe-se essa reflexão a partir da noção de desamparo considerada por Freud como estrutural ao aparelho psíquico. O desamparo é inerente à situação de dependência em que o bebê humano nasce, conduzindo à necessidade de comunicação e à construção de um aparelho psíquico, o que se faz na relação da criança com outras pessoas. Selecionamos alguns casos para exemplificar a especificidade desta clientela e os desafios jurídicos e operacionais suscitados pela mesma. Investigamos em que sentido a situação de vulnerabilidade social em que se encontram, com relações afetivas instáveis e referências familiares frágeis, relaciona-se com o desamparo fundamental.

Palavras-chave: Abrigamento, Crianças, Adolescentes, Desamparo, Psicanálise.


ABSTRACT

The article analyzes the institutional practices of public shelters as far as the numerous relocations experienced by children and adolescents, considering a clinical psychoanalytic practice with this clientele. Such a refection is based upon the notion of helplessness considered by Freud as the structural psychic apparatus. Helplessness is inherent to the situation of dependence into which the human baby is born, thus leading it to the need for communication and the construction of a psychic apparatus built on the child's relationship with others. Some cases were selected to illustrate the specificity of this clientele and the legal and operational challenges arising from it. The author investigates how the situation of social vulnerability, unstable personal relationships and weak family bonds are related to the concept of helplessness.

Keywords: Sheltering, Children, Adolescents, Helplessness, Psychoanalysis.


RESUMEN

El artículo propone hacer una reflexión sobre las prácticas institucionales de los albergues públicos, en lo concerniente a las múltiples transferencias por las que pasan los niños y adolescentes, considerando nuestra experiencia de atención clínica sicoanalítica para ese público. Se propone esa reflexión a partir de la noción de desamparo considerada por Freud, como estructural del aparato psíquico. El desamparo es inherente a la situación de dependencia en la que el ser humano nace, conduciendo a la necesidad de comunicación y a la construcción de un aparato psíquico, lo que se logra a través del relacionamiento del niño con otras personas. Seleccionamos algunos casos para ejemplificar las especificidades de esta clientela y los desafíos jurídicos y operacionales suscitados por la misma. Investigamos en que sentido se relacionan la situación de vulnerabilidad social en la que se encuentran con las relaciones afectivas inestables, referentes familiares frágiles y desamparo fundamental.

Palabras clave: Acogida de Niños, Niños, Vulnerabilidad social, Desamparo, Psicoanálisis.


 

 

Introdução1

O artigo objetiva discutir os efeitos subjetivos das frequentes mudanças2 as quais são submetidas as crianças que se encontram em situação de abrigamento, usando como ferramenta para pensar a questão, a noção de desamparo (Hilflosigkeit) trazida por Freud (1895/1996). Pretende-se contrastar as frequentes mudanças de local de moradia e a inconstância ou ruptura dos laços afetivos com a noção de desamparo, a qual é proposta por Freud, como estrutural na construção do aparelho psíquico.

Tomaremos a situação de abrigamento (abrigos, centros de acolhimento e outros similares) como referência central, uma vez que é a realidade com a qual trabalhamos. Levantaremos considerações ao longo desta reflexão para mostrar que o desafio, que se coloca na intervenção do Estado, é o de oferecer não somente estrutura física adequada, mas uma qualidade de acolhimento que preserve a construção singular da subjetividade das crianças e jovens. Nesse sentido, daremos as características de alguns casos atendidos, tecendo relações entre a circulação das crianças e o sofrimento em que se encontram, ressaltando, de início, alguns elementos da lei de proteção e aspectos do funcionamento institucional que não favorecem o acolhimento às crianças e aos adolescentes.

Nossas reflexões levam em conta informações oferecidas pelas assistentes sociais, educadores, eventualmente outros profissionais do abrigo e através do acompanhamento clínico às crianças e aos adolescentes. Este abrigo é um centro de acolhimento localizado próximo à universidade. Acrescenta-se ainda que o atendimento clínico é parte do trabalho de pesquisa intitulada: "Criança e adolescente em situação de vulnerabilidade social: um estudo sobre o desamparo, a angústia e os processos identificatórios"3. A equipe de pesquisa que realiza o atendimento é composta pela coordenadora e por alunos do mestrado e do doutorado4.

 

Questões da Legislação

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) é fruto da responsabilização do Estado e foi criado visando a defesa dos direitos específicos desta população, por considerá-los indefesos e em formação. No estatuto encontramos o reconhecimento e a afirmação de que a família é fundamental durante o crescimento e a formação da criança. Ressaltamos o art.4°, o qual estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

O Estatuto defende o direito da criança de ser criada em uma família, mas também estabelece a possibilidade de o Ministério Público avaliar os casos em que ela deve ser afastada da família original e encaminhada para uma substituta, na forma de guarda, tutela ou adoção. Nesses casos, acrescenta normas para os cuidados das crianças e adolescentes, criando, com isso, novas instituições especializadas e voltadas para este acompanhamento. O ECA estabelece novas regras para as diferentes instituições voltadas para este público, propondo, através do artigo 92, que as entidades trabalhem no sentido da preservação dos vínculos familiares.

A primeira indicação do Estatuto é que sejam esgotadas as possibilidades de reintegração à família de origem antes de encaminhamento para família substituta. Segundo Silva (2004), em pesquisa que realizou uma caracterização dos abrigos do país, 87% dos residentes de abrigos têm família. Isso significa que a maior parte das crianças e adolescentes moradores de abrigos aguarda a reintegração às famílias. No entanto, a realidade mostra muitas dificuldades. Acompanhando as crianças em nossa pesquisa, verificamos, através dos relatos das assistentes sociais, que o contato com a família é difícil, pois os responsáveis têm jornadas longas de trabalho, residem ou trabalham em localidades distantes, apresentam pouca condição material para receber a criança e demonstram que o vínculo familiar está muito deteriorado, não havendo interesse, em muitos casos, em resgatar a relação com a criança.

O abrigamento indica que a instituição familiar foi considerada pelos órgãos competentes como incapaz, ao menos provisoriamente, para atender aos direitos fundamentais a que uma criança faz jus, segundo o art.4º do ECA, que citamos acima. Essa situação pode implicar também, muitas vezes, em dificuldades numa função que é essencial para a construção subjetiva: a de oferecer um lugar na genealogia familiar e, consequentemente, no que se denomina transmissão da filiação, com referências familiares claras e estáveis, nas quais a criança possa apoiar-se para construir sua subjetividade5.

 

O Atendimento Institucional

Com a homologação do ECA, em 1990, fez-se necessária a construção de uma rede de atendimento à criança muito distinta da anterior que se baseava, sobretudo, na existência de grandes internatos e internações de longa duração (Altoe,1990 e 2008a). Quase duas décadas se passaram e é preciso perguntar com insistência se as instituições criadas dão conta de atender às exigências preconizadas pelo ECA no que diz respeito aos direitos da criança, favorecendo seu desenvolvimento emocional e preservando sua saúde mental.

Para melhor fundamentar nosso argumento, vamos levantar alguns aspectos que se mostram problemáticos e, muitas vezes, assemelham-se ao que era feito antes de 1990. Outras pesquisas e análises desse funcionamento são fundamentais; e mais ainda, que encontremos meios de que sejam levadas em conta pelas autoridades responsáveis, para planejar e executar uma política pública condizente com o que a lei recomenda (Altoé, 2008b).

Segundo o ECA, o abrigamento das crianças que se encontram em situação de vulnerabilidade sociofamiliar representa uma possibilidade de garantir cuidados, proteção, educação, novos vínculos e desenvolvimento da autonomia. Entretanto, o funcionamento institucional do abrigo, que aqui consideramos, tem características que reforçam a situação de instabilidade que permeia suas vidas e que justifica o próprio abrigamento. Discriminaremos, ao longo desse artigo, algumas dessas situações que caracterizam as mudanças frequentes de moradia e a inconstância dos vínculos afetivos no cotidiano dessas crianças.

Uma primeira característica do abrigo diz respeito à alta rotatividade dos educadores, adultos, homens e mulheres, que trabalham diretamente com os internos, em equipes que se alternam dia sim, dia não, com longa jornada de trabalho. Eles são mal remunerados (recebem um salário mínimo), não têm qualquer treinamento para este tipo de trabalho. A rotatividade é muito frequente e não são funcionários da prefeitura e sim contratados através de uma ONG.

Um dos objetivos importantes do abrigamento é permitir a busca de alternativas para a situação em que a criança se encontra. Nesse sentido, o abrigamento tem o caráter de ser provisório e deve ser breve. Mas as dificuldades na execução deste objetivo são tão grandes que faz com que, muitas vezes, as crianças e adolescentes lá permaneçam por longos períodos: muitos meses e, em certos casos, vários anos. Aliado a isto, o abrigo não oferece características que preservem a singularidade do abrigado: não possibilita a posse de objetos pessoais, nem roupas ou sapatos. Sobretudo as crianças, usam o que estiver disponível, raramente vestindo a mesma roupa mais de uma vez; em geral, são roupas doadas, que podem estar rasgadas ou serem de tamanho inadequado.

Outra característica institucional é o fato do alojamento na forma de "casa" ou dormitório ser organizado por faixa etária, de forma que a criança troca de alojamento na medida em que muda de faixa etária. Se este critério pode ser pensado com o objetivo de facilitar o trabalho dos adultos e também de proteger a criança e favorecer a interação social entre elas, ele não favorece, entretanto, a construção do laço afetivo com o adulto e traz dificuldades no caso de irmãos. Um caso atendido pode ilustrar esta situação: apesar dos três irmãos serem muito ligados, ao serem internados, cada um foi morar em uma "casa". Sobre este funcionamento, é importante ressaltar que está em contradição com a recomendação do ECA de que irmãos permaneçam juntos.

A questão fundamental que aqui levantamos é sobre a adequação do "equipamento" para o fim a que se destina. Ele também não oferece, por exemplo, um espaço adequado para realização de atividades de lazer e esportivas. Estas são realizadas em ambientes externos e dependem das iniciativas dos educadores e da oferta de outras instituições. Esses fatores dificultam a continuidade das atividades, que são fundamentais, inclusive como possibilidade de construção de outros vínculos sociais, além dos muros do abrigo.

Outro aspecto significativo refere-se às transferências de um abrigo para outro, seja por um pedido das assistentes sociais por razões disciplinares ou de adequação de encaminhamento, seja devido à fuga da criança ou jovem. Isso tem como consequência a passagem por diversos abrigos em um tempo relativamente curto, como é o caso do adolescente Humberto (todos os nomes usados são fictícios), que veremos mais adiante.

Outro ponto importante diz respeito à relação da instituição de assistência e proteção com as instituições jurídicas. Para que a instituição de assistência possa encaminhar os casos, ela depende, na maioria das vezes, das decisões das instituições jurídicas, gerando muitas dificuldades no andamento e encaminhamento dos casos. Chamamos este processo de letargias burocráticas. Testemunhamos, por exemplo, o caso de uma mãe - cujo vínculo com o filho era muito frágil - que ficou meses aguardando autorização para levá-lo para casa durante os fins de semana, enquanto as visitas da mãe à criança no abrigo tornavam-se mais e mais escassas. É comum também a demora no julgamento que destitui a família natural e indica a criança para adoção, assim como os processos para adoção. É oportuno levantar a questão da pertinência, ou não, de tantas decisões serem reservadas às instituições jurídicas. E ainda, quais são as condições necessárias, sobretudo nos grandes centros urbanos, para que possam defender os interesses da criança, tal como prevê o ECA. É importante ressaltar que o tempo de espera das crianças6 é longo, e esta dificuldade é aumentada devido à estrutura de atendimento oferecida enquanto aguardam que a decisão seja tomada, conforme análise que aqui fazemos. A questão se tornou tão evidente e dramática que, no segundo semestre de 2010, o Juizado da Criança, do Adolescente e do Idoso do Rio Janeiro iniciou um mutirão dentro abrigo, uma vez por mês, com o objetivo de agilizar o encaminhamento dos casos. A iniciativa dos profissionais do sistema judiciário é louvável, mas será esta uma solução a médio prazo?

Apesar das dificuldades apontadas, consideramos que o abrigo, como instituição, cumpre uma função social muito importante. É preciso, no entanto, mudanças que visem garantir um atendimento que leve em conta cada criança na sua singularidade, e que seja capaz de oferecer uma estrutura adequada, que garanta o acolhimento e o desenvolvimento socioafetivo das crianças e dos adolescentes, num momento particularmente difícil de suas vidas.

É importante observar que a equipe do abrigo é composta, majoritariamente, por profissionais da área de serviço social e nem sempre conta com o trabalho do psicólogo, como era o caso neste abrigo. O tratamento psicológico oferecido por nossa equipe de pesquisa, a alguns deles, tem se mostrado, segundo as assistentes sociais, muito importante na condução de alguns casos, sobretudo aqueles em que a violência dos fatos, a separação ou perda dos pais, as mudanças constantes, os maus-tratos ou violência sexual, deixam a criança ou o adolescente muito angustiado, confuso, deprimido, com raiva, sem perspectivas do que vai acontecer-lhe ou sem entender o que está acontecendo-lhe.

 

Características da Prática Clínica

O trabalho de atendimento clínico individual foi solicitado pelas assistentes sociais do abrigo e acolhido pela coordenadora da pesquisa. Os atendimentos são realizados pela equipe uma a duas vezes por semana, dependendo do caso e da disponibilidade do psicólogo, sendo os casos discutidos semanalmente, em supervisão7.

Quando as assistentes sociais solicitam por telefone atendimento para uma criança ou adolescente, elas são ouvidas por nossa equipe, na universidade. Coletamos as poucas informações que trazem sobre a história, sobre o motivo do abrigamento e também do pedido de tratamento; e quando o vínculo com a família existe, marcamos entrevistas com o responsável, que geralmente é a mãe. O trabalho é realizado nas salas do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e tem orientação psicanalítica. Com a orientação psicanalítica não visamos à adaptação das crianças às instituições sociais (o que seria um trabalho pedagógico) embora tenha reflexos que podem ser assim percebidos pelas assistentes sociais e educadores, pois um dos primeiros efeitos da entrada em tratamento é a diminuição da angústia, o que permite um melhor relacionamento no seu grupo de convívio.

Consideramos que o atendimento realizado fora do abrigo possibilita minimizar as interferências institucionais de fato e no imaginário da criança e do adolescente. Isto, porém, acarreta uma inconstância na vinda das crianças menores para as consultas, uma vez que elas são trazidas pelos educadores. Entendemos que isto ocorre por dificuldades organizacionais e pelo número escasso de educadores para cumprir a rotina do abrigo, bem como pelas diversas atividades externas. Em alguns casos mais do que em outros, a falta ou o intervalo mais longo interfere no andamento do tratamento. Consideramos também as interferências do funcionamento da instituição universitária, tais como, greve e férias, buscando manter o ritmo de atendimento semanal. Ou seja, buscamos evitar as situações que repetem a inconstância das relações afetivas em suas vidas.

 

Mudanças de Moradia, Ruptura de Vínculos Afetivos e Tempo de Espera

Apresentamos, a seguir, informações do sumário social de alguns casos atendidos e breves comentários, levando em conta o atendimento clínico8 a fim de caracterizar a realidade social e a dificuldade de reconstituição da história dessas crianças. Através desses dados, explicitamos a inconstância de suas referências familiares e institucionais, bem como o tempo de espera, no abrigo, para que uma solução seja encaminhada nas suas vidas.

João, Daniel e Lúcio são três irmãos, com idade de três, seis e sete anos no momento da primeira internação. Foram abrigados pela primeira vez após serem encontrados em situação de exploração sexual, em companhia de um adulto, sendo transferidos após um mês para outro abrigo, mais próximo da residência dos familiares. A assistente social conseguiu contato com a mãe e avô materno - a mãe alegou não poder receber as crianças por dificuldades financeiras e o avô materno, atendendo ao desejo de sua esposa, concordou em cuidar das crianças até a mãe se estruturar melhor para recebê-los. Após dez meses residindo no abrigo, as crianças foram morar com o avô e sua esposa, junto com duas outras crianças adotadas, anteriormente pelo casal. Permaneceram na casa do avô por quatro meses, tendo sido encaminhadas ao abrigo novamente pelo avô, o qual alegou que o comportamento delas "beirava a bizarrice e estava abalando a ordem familiar". A partir daí, não se mostrou interessado em qualquer contato com as crianças. A assistente social responsável pelo caso relata que o avô descreve cenas em que a criança mais jovem defeca pela casa, urina na cama, suja a comida, se envolve com bandidos, incita sexualmente outras crianças, chegando a apontar uma faca para o avô, ameaçando-o. No abrigo é considerado muito agitado – mais do que os irmãos –, incitando outras crianças às brincadeiras de cunho sexual e às brigas. Muitas vezes, a agressão acontece porque outras crianças não querem participar das brincadeiras sexuais, que em seu vocabulário incluem "chupar", "pegar o pau", "comer". Sempre que possível, toca os órgãos sexuais dos adultos e das crianças de modo que muitas ficaram mais agitadas com a presença dele. Ao mesmo tempo, este menino (o mais jovem) é muito sedutor fazendo com que todos os educadores gostem dele. A assistente social destaca ainda que os irmãos são muito ligados, sempre se referem ao outro e se defendem em brigas. A preocupação da assistente social é maior com o mais novo, mas pede atendimento para os três, pois todos estão muito inquietos, perturbando o convívio no grupo. Seis meses após esse segundo abrigamento, considerado esgotadas as possibilidades de aproximação com a família, a equipe do abrigo recomendou o encaminhamento das crianças para família substituta. E em agosto de 2009, as crianças continuavam no abrigo, onde já residiam a 18 meses, tendo sido encaminhadas para atendimento psicológico há cerca de um ano. O atendimento a essas crianças mostrou-se, a nosso ver, como uma grande oportunidade de trabalhar a situação traumática vivida, preservando sua saúde mental e restabelecendo a possibilidade delas serem inseridas numa família com grandes chances de sucesso, se a oferta desses novos laços familiares não tardassem demais a chegar. Devido à demora da decisão do juiz para o encaminhamento para uma família substituta (adoção) e por interferência nossa (psicanalistas responsáveis pelos atendimentos) junto às assistentes sociais, foi possível o resgate do vínculo com a mãe. Frente à nova realidade as crianças foram, no início de 2010, para uma família acolhedora, mantendo encontros quinzenais com a mãe, aguardando que ela possa se organizar para receber seus filhos de volta. A mudança ocorrida no novo encaminhamento de suas vidas teve uma repercussão muito importante, que pudemos observar através das consultas, que se seguiram por alguns meses após a saída do abrigo. Sem entrar numa análise detalhada dos casos, o que pretendemos fazer em outro artigo, podemos dizer que o trabalho realizado contribuiu na conquista de mudanças significativas nas crianças, que se expressaram, em consulta, na maior criatividade e mobilidade frente aos seus conflitos e às dificuldades de sua história. Consideramos que escutar as assistentes sociais e a mãe que os acolheu teve também um peso importante no desenlace da situação e na boa interação junto à família acolhedora.

Luís, 13 anos, reside no abrigo há um ano. Foi encontrado na rua por policiais. Alegou maus-tratos por parte da mãe, contando não ser a primeira vez que fugia e afirmando não querer voltar a viver com ela. A queixa da assistente social é de que ele não quer morar com a mãe, que afirma querer que ele volte para casa. Na tentativa de facilitar a reintegração familiar recomendada pela legislação ele foi encaminhado para atendimento psicológico. Sua história mostra um percurso itinerante, passando por diferentes moradias. Aos 10 meses de idade, a mãe o deixou com o avô materno e sua esposa. Quando o casal se separou, Luís morou com o avô algum tempo. Depois, foi morar com uma amiga do avô, contratada para cuidar dele, de onde fugiu, sendo abrigado pela primeira vez (não sabe informar a idade). Saiu do abrigo para morar com uma tia, irmã do avô. No final de 2007, veio para Rio morar com a mãe que mal conhecia. Segundo a mãe, em sua casa, ele apronta de tudo e torna a vida dela "um inferno". A mãe conta também que quando tenta conversar, ele fica mudo, não responde, depois faz tudo de novo. Relata ainda que, quando perdia a paciência, batia nele. Depois de um desses episódios, ele fugiu, ficou fora um mês, foi encontrado e voltou a morar com a mãe, mas eles brigam muito. Ele fica sozinho em casa quando não está na escola, porque a mãe trabalha. Foge novamente e, então, é trazido para o abrigo. Luís apresenta dificuldade em narrar sua história e sua mãe também não pode contar a própria ou a dele sem que momentos de angústia despontem, sem que a narrativa seja entrecortada por pontos que impossibilitam a continuidade. Suas consultas são marcadas predominantemente por desenhos, que só comenta com palavras soltas e evasivas, geralmente após questionamento. É comum que peça para rever seus desenhos anteriores. Olha-os com calma, raras vezes faz algum comentário, mas parece ser importante revê-los para resgatar um fio pelo qual seguir na relação com a analista. Numa sessão, após um longo período sem atendimento, o que poderia suscitar o sentimento de abandono, desenha um barco a velas e diante do pedido de que falasse sobre o barco, declara: "É um barco abandonado, não tem história". Com essa frase ele parece sintetizar sua dificuldade observada durante o tratamento, de tecer elementos que lhe permitam construir uma história pessoal e familiar.

Alice, 16 anos, logo que nasceu, viveu em companhia de sua bisavó até completar dois anos, quando esta morreu. Morou, então, com tios em uma outra casa. A mãe, disseram-lhe que morreu; ela não tem dados sobre a família da mãe. Relata ter sofrido agressões por parte de seus tios, inclusive ter sido "abusada sexualmente" por um tio de 16 anos. Quando fez 12 anos, seu pai retornou e ela foi morar com ele e sua avó paterna. Aos 14 anos, ficou grávida de seu pai. Saiu da casa da avó quando a comunidade tomou conhecimento da gravidez e o pai passou a sofrer ameaças. O fato foi denunciado ao Conselho Tutelar e ela foi encaminhada para o abrigo quando o bebê tinha seis meses. O motivo do encaminhamento para terapia é porque se considera que a adolescente não cuida suficientemente da higiene do bebê, que pesa somente 5 kg, tendo um ano de idade e, apesar dos cuidados das assistentes sociais e dos médicos, a situação não se modifica. Em tratamento, após poucas sessões, expressou, através do relato de pesadelos, que se repetiam, seu conflito entre um desejo de morte do bebê e sua tentativa de protegê-lo; tomou a decisão corajosa e amorosa de doá-lo para adoção (soubemos que, com a separação e adoção, o bebê rapidamente ganhou peso). Foram seis meses de trabalho intenso, de muita angústia, dor, tentativa de entender o que se passava e rever sua entrada na adolescência. Em seguida, fugiu do abrigo. Este caso inaugurou a prática clínica na nossa pesquisa (Altoé & Jorge, 2011, no prelo).

Paulo João, 9 anos, há dois anos foi encontrado na Praça Quinze por um vizinho que o encaminhou à delegacia, indo, em seguida, para o abrigo atual. Relata que morava com a mãe, usuária de drogas, com os irmãos de dois e sete anos e que o irmão, de 11 anos, mora com a tia; o pai está preso. Segundo PJ, o pai tentava "bater de arma" na sua mãe. Sobre ela, narra que bebe muito, "fica doida", bate nele com vassoura, chinelo deixando marcas no corpo e vez por outra, "larga os filhos pela rua". Certa senhora, de quem PJ gostava, cuidou dele por um tempo, mas morreu. Depois de internado, no esforço de encontrar sua família, a assistente social localiza uma tia que disse querer responsabilizar-se por ele e em seguida o avô paterno (que confirma as histórias contadas por PJ e diz que seu filho, que se encontra cumprindo pena em reclusão, não registrou civilmente seu neto). Mas ambos desistiram da ideia de se responsabilizar pela criança. Na busca desses contatos, PJ foi transferido para outro abrigo, em janeiro de 2008. Três meses depois, voltou para o abrigo atual, encaminhado pela Central Carioca de Recepção, pois onde estava, fugia muito, na tentativa de encontrar o avô. Após a desistência confirmada do avô e nenhuma notícia da mãe, através de busca realizada pelo Programa "Procuro Minha Família", desde 21/08/07, a assistente social, encaminhou Comunicado de Abandono e sugeriu o encaminhamento de PJ para o setor de Colocação em Família Substituta, em 12 de maio de 2008. Até a presente data, agosto de 2009, PJ permaneceu no abrigo, aguardando decisão judicial. No tratamento, tem enorme dificuldade de falar sobre qualquer assunto, diz que não quer falar de sua história, às vezes, afirma querer voltar ao abrigo anterior para achar o avô, outras quer ficar onde está, ou ainda, quer outra família. A lentidão da decisão jurídica - "só o juiz sabe", disse ele, dificulta qualquer projeto para um futuro, por mais breve que seja, o que parece paralisá-lo. Apesar de ser um menino inteligente, tem pouco interesse na escola, mas quando sorri, expressa um belo e maroto sorriso. No segundo semestre de 2010, ele passou a receber visitas de uma família, com o objetivo de adotá-lo.

Inês, 16 anos, quando criança foi entregue pela mãe à avó, passando a morar em outro estado (Maranhão), longe da mãe, sem contato ou notícias da mesma. Morou com ela e seus irmãos, enquanto a mãe permaneceu no Rio de Janeiro. Não há notícias do pai. A adolescente não faz qualquer menção a ele. No Maranhão, decide sair da casa da avó e ir morar com amigos, passando a se envolver com drogas, bebida e engravidando. Pede para a avó entrar em contato com a mãe, manifestando o desejo de voltar a morar no Rio. Retorna, passando a residir com a progenitora. Contudo, a convivência mostra-se conturbada e insustentável, segundo Inês, principalmente após sua mãe descobrir que ela está grávida. Relata que os maus tratos, rejeições, violências físicas e psicológicas tornam-se constantes, a ponto dos vizinhos chamarem o Conselho Tutelar. Sua prima e sua tia ficam com a guarda temporária dela e de seu bebê. Mas logo a situação se complica. E, diante da desistência da guarda temporária por parte da tia, Inês é encaminhada a um abrigo e se apega ao filho, colocando-o como motivação única para permanecer viva. Porém, esta relação se mostra confusa e oscilante, pois se alterna entre cuidados e maus tratos, entre preocupação e descaso. Às vezes, cuida demasiado da higiene do filho, dá-lhe carinho e atenção, outras, abandona-o à própria sorte, irrita-se e bate nele; ou ainda, quando vai visitar a mãe, deixa-o sozinho, trancado com seu padrasto que, segundo relata, parece já ter seduzido o garoto algumas vezes. Inês trabalha e estuda, mas frequentemente tem momentos de isolamento, nos quais chora muito. Nos atendimentos, fala sobre "uma angústia" e um "se sentir sufocada". Vez por outra volta a utilizar "crack" e diz algumas vezes que tem "medo de fazer uma besteira", "uma loucura", tendo relatado à assistente social que sente vontade de largar tudo e se matar. Ela diz que não tem perspectivas, uma vez que não quer mais ficar no abrigo, não pode voltar para a casa da mãe, não conta com o apoio dela, assim como não gostaria de voltar para o Maranhão, pois "lá é difícil ganhar a vida". Durante o atendimento, após enorme decepção com a mãe, faz uma tentativa de suicídio, sendo encaminhada para um hospital psiquiátrico, onde fica internada por alguns dias. Depois da experiência marcante dos dias passados no hospital de "malucos", Inês ainda demonstra muita mágoa da mãe, embora demonstre também um desejo urgente de mudança de atitude. Alguns meses depois, a analista foi informada de que Inês fugiu do abrigo, levando seu filho, para morar com seu namorado, um ex-funcionário, que antes de completar 18 anos, ali permaneceu na condição de abrigado.

Humberto, jovem de 16 anos, que segundo relato da mãe, quando criança, apresentava comportamento diferente na escola, tendo sido encaminhado aos oito anos para a Pestalozzi e, em seguida, para um serviço de psiquiatria. Com o diagnóstico de hiperatividade, teve acompanhamento psiquiátrico e psicológico durante seis anos. Possui oito irmãos, sendo alguns do mesmo pai e outros de pais diferentes. Relata ter vivido com o pai e a mãe até os seis anos. Em seguida, o pai foi morar em outro município e não deu mais notícias. Os nove filhos não viviam juntos, uns moravam na casa da mãe e outros na casa da avó, que fica em bairro distante. Com a doença da avó, todos voltaram a morar com a mãe e a situação tornou-se caótica e insustentável, segundo narra a genitora. Ela conta que com a chegada de Vitório (seu filho "metido em coisa errada"), Humberto se envolveu em pequenos furtos, tornou –se agressivo, arredio, chegando, juntamente com o irmão, a agredi-la fisicamente duas vezes. A mãe chamou a polícia, que os levou para a delegacia; em seguida, foram para um estabelecimento de medida socioeducativa, onde ficaram 45 dias internados. Foram encaminhados para um abrigo, pois a mãe não quis recebê-los de volta. Humberto nos informa que já "ficou na rua" e que passou por cinco abrigos diferentes - dados que se encontram em seu Relatório Social - no intervalo de dois anos. Apresenta comportamento agressivo com alguns colegas do abrigo, do estágio e com membros da equipe do abrigo que, segundo ele, "atrasam sua vida", "fazem judaria". Pelos relatos, o comportamento agressivo é uma constante na vida deste rapaz, seja através de simples ameaças ou de ações, o que nos faz cogitar que este possa ser um dos motivos para as diversas mudanças de abrigos.

A partir desses dados, podemos ver na singularidade de cada caso, como as histórias de vida dessas crianças são fragmentadas, marcadas por mudanças constantes de local de moradia e pela ausência de referências duradouras em relação às quais possam construir sua subjetividade. Abordaremos, a seguir, especialmente a noção de desamparo estrutural, para Freud (1895), discutindo o processo de construção do aparelho psíquico, destacando a importância da família ou de substitutos que representem uma referência estável para a criança, processo que fica abalado no caso dessa clientela.

 

Desamparo e Família

Freud, desde o início de sua obra, dedica-se ao estudo de como um bebê humaniza-se e de como se dá a construção do aparelho psíquico. Em 1895, no texto "Projeto para uma psicologia científica", formula a noção de desamparo e lhe atribui função fundamental na estruturação psíquica. O desamparo refere-se à dependência de outra pessoa para sua autopreservação, como acontece com o bebê humano ao nascer. Essa ajuda externa não se reduz à satisfação da necessidade, ela introduz a criança na ordem simbólica, uma vez que requer a função de comunicação.

A situação de dependência seria intolerável para a criança, que começaria a construir estratégias para contornar essa posição radical de desamparo, constituindo, com isso, um aparelho psíquico, empreendimento humano por excelência. Ou seja, não sendo um animal orientado por instintos, mas um ser marcado pela linguagem, o homem deve inventar modos de se relacionar com o mundo. E a invenção singular desses modos é o que Freud descreve como a construção singular do psiquismo.

O complexo de Édipo é usado por Freud (1909, 1924) para explicar, tendo como base as primeiras relações infantis, como essa organização psíquica se dá e, por conseguinte, como a construção do sintoma neurótico é feita; ou seja, como cada um irá construir uma narrativa sobre si, pelo vínculo com as pessoas que lhe são mais próximas em seus primeiros anos de vida. Através do romance familiar, encenado nos afetos agressivos e amorosos, que as crianças destinam aos genitores, um modo de relacionamento afetivo com o mundo é constituído.

O desamparo seria, assim, um elemento estrutural para a construção do aparelho psíquico, marcando a situação de dependência em relação aos outros que antecedem a criança e de cujos cuidados ela depende para sobreviver. Podemos afirmar que todos somos desamparados, sendo nossa história pessoal a construção de contornos possíveis a esse insuportável. Cada construção é única e os elementos que utiliza são os que se encontram disponíveis no seu contexto de vida.

Em um artigo do início de sua obra, Os complexos familiares na formação do indivíduo, de 1938, Lacan, tece algumas elaborações sobre a importância das primeiras relações na construção da estrutura psíquica, ou seja, reflete sobre o papel da família na constituição psíquica da criança a partir dos "complexos familiares". É por meio do complexo que a diversidade cultural é assimilada pela criança: "Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura" (Lacan, 1938/2003, p.30), pois é ela quem estabelece uma continuidade psíquica entre as gerações. Ou seja, é no seio das primeiras relações vividas, em geral, na família que a criança passa por complexos estruturais, recebendo a herança simbólica de sua cultura através das histórias familiares. A criança pode estar no seio de sua família, pais e irmãos, na sua família extensa, ou ainda, junto a outros adultos, com quem a ela estabeleça uma relação afetiva estável e contínua. Ou seja, para que a sua construção psíquica se dê, a criança precisa ser acolhida por outro ser humano e esta construção vai se dar baseada nessas primeiras relações que ela estabelece. A continuidade destas relações, as rupturas e as perdas também incidem sobre esta construção que se inicia e que se fortalece ou que se fragiliza. Ao desamparo estrutural de todo ser humano é preciso um acolhimento por outro ser humano, o que possibilita a sua humanização, sua entrada na ordem simbólica, na linguagem. O contexto no qual isto se dá é importante, mas não é determinante; entretanto, é certo que o modo como cada um consegue se dizer e narrar sua própria história é atravessado pelo lugar que lhe destinam aqueles que dela se ocupam.

Poli (2005), discutindo as particularidades da clínica com adolescentes moradores de instituições de abrigamento, afirma que é preciso constantemente interrogar quais os efeitos das precondições do Outro no lugar que o sujeito ocupa em sua narrativa particular. Ao contar sua história, o paciente põe-se a produzir, mas também a reproduzir o modo como é contado. Nos atendimentos que fez com essa clientela, a autora relata a dificuldade deles em construir uma narrativa, respondendo com certo mal-estar ao serem convidados a falar sobre sua história. Na nossa prática clínica encontramos as mesmas dificuldades narradas por Poli.

Em outro artigo, Altoé (2008b) escreve que, frequentemente, as crianças moradoras de abrigos sentem-se confusas em relação às suas referências familiares, não conseguindo contar suas histórias de vida senão em narrativas entrecortadas, perdendo o laço de continuidade de sua genealogia, uma vez que a filiação é marca de um lugar, permitindo à criança descrever-se como filho(a) de... e de... Neste texto, é levantada a hipótese de que, possivelmente, as histórias de vida dos pais dessas crianças abrigadas também sejam despedaçadas, dificultando ou impedindo a transmissão da filiação (Altoé, 2008b). Em nosso estudo, encontramos dificuldades dessa ordem, como ilustra o fragmento do caso de Luís, cuja história de mudanças sucessivas de moradia e de responsáveis assemelha-se com a da mãe, que também não consegue narrar com clareza sua própria história de vida nem a de seu filho.

 

Algumas Considerações Finais

O trabalho de pesquisa, que tem na sua metodologia o atendimento clínico, envolve uma realidade social específica, o que nos leva a um posicionamento ético que tem implicações políticas. Nesse sentido, ao relatarmos os casos atendidos, consideramos importante contextualizar a situação de vida na qual, crianças e adolescentes, se encontram, incluindo as implicações institucionais que atravessam suas vidas. Assim, não podemos nos eximir de intervir junto às assistentes sociais, e ainda, de fazer considerações sobre a política pública de atendimento a esta população infanto-juvenil e a relação desta com as instituições jurídicas.

As novas formas institucionais, que passaram a existir a partir do ECA (1990), implicam em uma rede de atendimento diversificada e que têm uma função social importante. Entretanto, os "equipamentos" que compõem essa rede apresentam modos de funcionamento que não preservam as crianças e os adolescentes atendidos. É preciso não só pensar em uma melhoria da qualidade física e de pessoal qualificado, como também a criação de medidas preventivas, que permitam diminuir o fluxo de entrada dessas crianças que circulam entre famílias, abrigos e rua. Mudanças importantes são necessárias, oferecendo, sempre que possível, o atendimento dentro do próprio bairro onde a criança vive, buscando manter os laços de família, vizinhança e convivência comunitária (Altoé, 2007). Desse modo, as possibilidades são muito maiores de existir relações estáveis para a construção de uma história, o que se torna difícil, no contexto que aqui estudamos, onde as mudanças são frequentes, e em geral, vividas pelas crianças como arbitrária.

Observamos através da reflexão que aqui fazemos a necessidade de considerar mudanças no funcionamento da rede, em particular, no funcionamento do abrigo e, a partir do trabalho com a teoria psicanalítica, chamamos atenção para a importância de um amparo de outra ordem, ou seja, de um apoio simbólico, para lidar com o desamparo estrutural e social.

Consideramos importante também a possibilidade da oferta de uma ajuda terapêutica em muitos casos. Através de nosso trabalho, podemos dizer que a clínica psicanalítica visa possibilitar o resgate ou mesmo a construção de uma narrativa sobre sua própria história, a fim de possibilitar ao sujeito contar-se de um modo diferente. Esse trabalho, perpassado pela regra fundamental de "tudo" dizer, favorece a simbolização dos traumas e a diminuição da angústia diante daquilo que não se pode dizer, permitindo à criança e ao adolescente seguir a vida com as possibilidades que esta lhes oferece. Esta é nossa aposta!

 

Referências

Altoé, Sônia. (1990). Infâncias Perdidas – o cotidiano nos internatos prisão. Rio de Janeiro: Xenon.

Altoé, Sônia. (2007). FEEM 1985-1986 – Tempos de esperança e aposta de mudança: limites e possibilidades no atendimento institucional a "jovens em conflito com a lei". Em Altoé, S. (Org.), A Lei e as leis. Rio de Janeiro: Revinter.

Altoé, Sônia. (2008a). Infâncias Perdidas – o cotidiano nos internatos prisão. Rio de Janeiro: Centro Edestein de Pesquisas Sociais/Biblioteca Virtual de Ciências Humanas, v.1, disponível em http://www.bvce.org.br/LivrosBrasileirosDetalhes.asp?IdRegistro=128

Altoé, Sônia. (2008b). O bebê que "invade": reflexões sobre o atendimento institucional a crianças em situação de vulnerabilidade social em Leite, Delgado Leite e Botelho (Org.), Juventude, desafiliação e violência. Rio de Janeiro: Contracapa.         [ Links ]

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Brasil. (1990). ECA- Estatuto da criança e do adolescente. Lei 8069 de 13 de julho de 1990. Acesso em 10/12/2010 de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm.         [ Links ]

Freud, Sigmund. (1996). Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (vol. I, pp. 333-449). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1895).         [ Links ]

Freud, Sigmund. (1996). Romances familiares. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (vol. IX, pp. 219-224). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1909).         [ Links ]

Freud, Sigmund. (1996). A dissolução do complexo de Édipo. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (vol. XIX, pp. 189-200). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1924).         [ Links ]

Lacan, Jacques. (2003). Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938) em Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1938).         [ Links ]

Poli, Maria Cristina. (2005). Clínica da Exclusão: a construção do fantasma e o sujeito adolescente. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Silva, Eni R. A. (2004). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: IPEA/ONADA.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Sônia Altoé
E-mail: soniaaltoe@gmail.com

Magali Silva
E-mail: magalimilene@gmail.com

Bruna Soares Pinheiro
E-mail: bruna.soares.pinheiro@gmail.com

Recebido em: 03/01/2011
Revisado em: 14/03/2011
Aceito em: 16/03/2011

 

 

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise e do curso de Especialização em Psicologia Jurídica do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ – Brasil. Pósdoutorado na Universidade de Paris VII (2010-2011) – Paris – França.
** Psicóloga pela Universidade Federal de São João Del Rei – São João Del Rei, MG – Brasil; mestre em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG – Brasil – e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ – Brasil.
*** Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, RJ – Brasil; mestranda em psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ – Brasil.
1 O artigo foi confeccionado a partir de reflexões suscitadas pela conferência "Circulação de crianças e desamparo", apresentada pela coordenadora da pesquisa no Workshop "Circulação de crianças: revisitando o interesse prioritário da criança", promovido pela UERJ em 2009.
2 O artigo foi confeccionado a partir de reflexões suscitadas pela apresentação "Circulação de crianças e desamparo", feita pela coordenadora da pesquisa, no Workshop "Circulação de crianças: revisitando o interesse prioritário da criança", promovido por PPGAS/UFRGS, PPGAS/M/UFRJ, CAPES, FAPERJ, UERJ em 2009, na UERJ, Rio de Janeiro. Neste trabalho, usamos circulação para nos referir à mudança de local de moradia que implique em separação de pessoas de sua referência e quebra de vínculo afetivo, sentido que mantemos neste artigo.
3 Pesquisa desenvolvida pela profa. Sonia Altoe – Prociência (2008/11), pós-doutorado na Universidade de Paris VII (ago 2010/jul 2011).
4 Bruna Soares Pinheiro, Henrique Martins, Marco Aurélio de Carvalho Silva e Magali Milene Silva, alunos do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ. O atendimento ocorre no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da UERJ.
5 Cf. Altoé, S. e Jorge, M. A. (2011, no prelo), Um ato de amor paradoxal. Trata-se de um estudo de caso que evidencia essas questões em sua radicalidade.
6 Goldstein,J., Freud, A. e Solnit, A. (1987). No interesse da criança? São Paulo: Martins Fontes.
7 Ver: Altoé, S. e Silva, M. Nomear uma clínica: características de uma clínica infanto-juvenil abrigouniversidade. Trabalho apresentado no VI Simpósio do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ, "Psicanálise, Universidade e Sociedade". Rio de Janeiro, outubro 2009.
8 Devido ao afastamento da coordenadora da pesquisa para o pós-doutorado na Universidade de Paris VII, os atendimentos foram encerrados. O trabalho de atendimento clínico será retomado no fim dessa licença.