11 21 
Home Page  


Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

     

 

RESENHA

 

Memória política: ressignificação da luta e resistência contra a violência de Estado na ditadura militar do Brasil

 

Political memory: reframing of the struggle and the resistance against the state violence during Brazil’s military dictatorship

 

Memoria política: resignificación de la lucha y resistencia contra la violencia de Estado en la dictadura militar de Brasil

 

 

Elvira Riba-Hernández*; Semíramis Chicareli**

Especialização em Psicologia Política, Políticas Públicas e Movimentos Sociais da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Obra: Memória Política, Repressão e Ditadura no Brasil
Autora: Soraia Ansara
Curitiba: Juruá, 2008.
382 páginas.
ISBN: 978-85-362-2205-9

 

Neste livro, originado da tese de doutorado que leva o título Memória Política da Ditadura Militar e Repressão no Brasil: uma abordagem Psicopolítica (2005), Soraia Ansara desenvolve o conceito de memória política, investigando e analisando aspectos psicopolíticos da memória coletiva do período da ditadura do Brasil, e, assim, torna-se precursora do conceito, o qual começa a ensaiar desde a sua dissertação de mestrado, que tem como título Repressão e Lutas Operárias na Memória Coletiva da Classe Trabalhadora em São Paulo (2000). Esta pesquisa se constitui como um marco referencial teórico-metodológico sobre memória política da repressão da ditadura, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia Política no Brasil.

Com sua linguagem objetiva e acessível, abrindo mão de uma fala rebuscada ou, de acordo com Mirta Suárez (2008), hermética, que cumpre uma função excludente e sectarista do conhecimento, Ansara consegue aproximar o(a) leitor(a) de suas reflexões e dos complexos conceitos e contextos abordados, qualidade fundamental de um estudo que tem o social como ponto de partida e de chegada.

No primeiro capítulo, intitulado "As Possibilidades da Memória e seus Desdobramentos Epistemológicos", a autora parte da psicologia social e da corrente libertadora de Ignácio Martin Baró que propõe a desideologização das experiências cotidianas (p. 31) na realidade política latino-americana, por meio de vários mecanismos, entre eles a reconstrução da memória histórica de tudo aquilo que foi silenciado, o que Pollak (1989) chamaria de memórias subterrâneas que re-surgem para entrar em disputa com a memória nacional (historia oficial).

A autora discorre sobre os diferentes enfoques e tradições da memória social na perspectiva da psicologia da memória, fazendo uma crítica à perspectiva individualista destas tradições, como as tendências biologistas-mecanisistas de Ebbinghaus. Não deixa de destacar a contribuição de Bartlett (p. 62) que dentro mesmo do cognitivismo, já aponta o caráter social da memória, até chegar à sociologia da memória de Maurice Halbwachs. Realiza a passagem para uma memória política, fazendo um interessante entrelaçamento do termo de memória coletiva cunhado por Halbwachs com as sete dimensões da consciência política propostas por Salvador Sandoval, para falar que é a partir da consciência política que se criam novos sujeitos sociais inseridos em projetos de luta e resistência política. A teoria de identificação de Tajfel e as contribuições de Gamson sustentam essa interação entre o nível psicológico e o nível sociocultural como espaço de construção de significados (p. 35-36), ficando evidente a transição para a psicologia política.

As presenças de Halbwachs e Sandoval são marcantes no livro e é de seus conceitos que Ansara vai se valer para fazer suas posteriores análises, partindo do pressuposto de que toda memória é um fenômeno social de reconstrução do passado, na qual as estruturas coletivas são fundamentais.

Ao ancorar-se nos pressupostos teóricos-medológicos de grandes nomes da Psicologia Política, seguindo principalmente a corrente Latino Americana e tendo Martín-Baró e Salvador Sandoval como seus referenciais, a autora desenvolve conceitos essencialmente psicopolíticos conforme é defendido por Maritza Montero (2009), como um conceito integrado e não dicotomizado, concebendo os pares, psicologia e política, sujeito e coletivo, público e privado como facetas entrelaçadas e interdependentes do mesmo fenômeno. A interação destes processos entendidos desde a Psicologia Política tem, de acordo com Mirta Suárez (2008), relação com as grandes mudanças que afetam as ações, pensamentos e valores dos seres humanos na sua história pessoal e coletiva.

No capítulo "Memória Coletiva de Eventos Políticos", a autora faz uma exaustiva e detalhada revisão bibliográfica sobre estudos da memória realizados nas últimas décadas na Europa (França, Inglaterra, Itália, Bélgica) e na América Latina (Argentina, El Salvador, Chile, Guatemala), e um estudo nos Estados Unidos, diferenciando duas tendências: estudos que se referem somente à memória de eventos políticos e estudos que tratam do trauma psicológico produzido pela violência política.

Destacam-se ainda na região do Cone Sul estudos desenvolvidos no marco do programa "Memoria Coletiva y Represión", que abordam os recursos que as sociedades criam para preservarem sua memória coletiva, como marcas territoriais, espaços físicos e públicos.

No caso especificamente brasileiro, Ansara denuncia a ausência de estudos sobre memórias de sujeitos que não viveram o período, o pouco interesse pelas memórias coletivas dos segmentos populares e uma tendência em priorizar estudos sobre os "artefatos da memória" (arquivos do DOPS, monumentos, datas comemorativas).

No terceiro capítulo, "Da Ditadura à Democracia: conhecendo a história para compreender a memória", a autora contextualiza cronologicamente os principais fatos do golpe militar e ditadura no Brasil, que se iniciou em 1964 e durou até 1985, dando maior ênfase no processo de transição "democrática", período em que foram sociabilizados politicamente os seus sujeitos de pesquisa.

A autora denuncia a violência política do Estado, praticada pela sequência dos três governos militares, e desmascara os conteúdos das memórias que foram construídos por meio da socialização política, ancorada na manipulação de informações que formatam a história oficial, advindas do "processo de democratização". Ansara deixa claro em suas reflexões a falácia política do discurso de "democracia", que nega à população, importantes informações acerca de torturados e mortos (esquecidos e criminalizados), criando leis que mantém estes documentos em sigilo de Estado sob o pretexto de "segurança nacional", e que protegem torturadores e apoiadores do golpe de Estado (tendo muitos deles ocupado espaços de poder em governos recentes), via políticas de esquecimento e de Anistia (parcial) que impõe um "consenso" sobre o assunto, fomentando uma verdadeira violação de direitos humanos, incluindo o desrespeito ao direito à memória da ditadura para as gerações posteriores.

Apesar destes esforços em ocultar a memória dos vencidos, a autora comprova que existe uma memória coletiva da repressão e da atuação dos movimentos sociais que atravessa as gerações e perpassa a memória e a identidade daqueles que não viveram o período, inspirando os "novos movimentos sociais" que atualizam a luta por direitos e pela democracia.

O rigor metodológico e o tratamento ético dos dados são questões importantes do processo de pesquisa qualitativa proposto por Ansara, devido à complexidade que reveste a sua pesquisa e a escolha de referenciais teóricos que representam não só uma "novidade" em pesquisa psicossocial/psicopolítica, mas também questionam a ordem social dada aos fatos históricos.

O quarto capítulo trata justamente disso, das escolhas teórico-metodológicas para análise das entrevistas realizadas com lideranças sindicais, lideranças comunitárias e questionários aplicados aos estudantes universitários, para estabelecer nos capítulos seguintes uma sólida e estreita relação entre um enfoque psicopolítico da memória coletiva e a noção de memória política. A autora realiza um cuidadoso processo de coleta de dados, com o intuito de conservar as manifestações emocionais e cognitivas mobilizadas no momento do recordar, tendo a narrativa como fonte primária de acesso à memória, que prioriza os significados que as pessoas dão ao período a partir das próprias interações e percepções na realidade social.

No quinto capítulo, Ansara descreve os resultados gerados das análises dos questionários e entrevistas, descrevendo as suas interfaces entre a memória coletiva e a consciência política. Tanto nas entrevistas com lideranças sindicais e comunitárias, quanto nos questionários realizados com estudantes universitários, a autora analisa fragmentos de memória dos discursos, para, nas palavras da autora, "tecer uma colcha de retalhos" que constrói a memória política da ditadura.

A autora demonstra de forma muito interessante como os sujeitos sempre reforçam, nas entrevistas, o discurso de que quase nada sabem sobre este período, mas sempre enfatizam acontecimentos fundamentais do período de repressão, confirmando, assim, suas hipóteses de que a memória política se constrói a partir da identificação com os grupos e a partir da participação política nos movimentos sociais. Isso também ocorre nos resultados dos questionários feitos com os estudantes, quando eles deixam de responder algumas perguntas, mas conseguem identificar os marcos históricos cronologicamente.

Ansara ressalta principalmente alguns conteúdos da memória que dizem respeito ao quanto foram eficazes os papéis da memória oficial e das políticas de esquecimento, que culminaram em um "povo brasileiro sem memória" ou que acreditam que este foi o tempo do "milagre econômico" e de muita "segurança", conforme foi amplamente divulgado pelo governo militar, meios de comunicação e história oficial sociabilizada nas escolas, mecanismos que tiveram um papel fundamental no enraizamento de ideologias alienantes e falseadoras da realidade, características do processo de transição "democrática".

Outro aspecto importante deste capítulo é que a autora rompe com o discurso hegemônico de que "os jovens estudantes não tem memória política", demonstrando que eles não deixam de reconhecer as consequências da ditadura e que, em tempos atuais, vivemos imersos na sua herança e em uma democracia falseada.

No sexto capítulo, "Os Impactos Sociais e Psicopolíticos na Construção Social da Democracia", a autora analisa três importantes aspectos encontrados nos relatos das lideranças sindicais e comunitárias: 1) repressão policial, impunidade e autoritarismo; 2) a afirmação da existência de uma memória política construída pelos movimentos sociais; e 3) aspectos do processo de redemocratização e seus impactos sociais e políticos. Aqui o foco está nos processos de construção de uma memória histórica que, por estarem relacionados com acontecimentos políticos do passado, re-significados no presente, e a partir da participação política, permite que a autora afirme que é neste momento que se cria um espaço de formação de consciência política, inspirada na memória política dos verdadeiros heróis da ditadura, para fortalecerem os novos movimentos sociais e criar estratégias de resistência à memória oficial manipulada e imposta.

No sétimo capítulo, "Memória Política: As Interfases entre Memória Coletiva e Consciência Política", a autora procura compreender como a memória coletiva se converte em memória política e qual a diferença entre elas, já que, de acordo com Ansara, o fato de existir uma memória coletiva não quer dizer necessariamente ter consciência política. Segue "tecendo a sua colcha de retalhos" por meio do entrelaçamento de lembranças vividas pelos entrevistados e lembranças que foram construídas a partir das experiências contadas por outros. Desta forma, compreende como as pessoas reconstroem o passado com os significados do presente, dando forma a uma memória política que se ancora nas representações coletivas presentes na sociedade e nos grupos, passando por constantes processos de ressignificação, havendo assim diversos espaços e tempos da memória.

A partir destas análises, a autora demonstra que toda memória política é coletiva, com potencial de motivar, alterar e revisar comportamentos políticos na sociedade, além de ser comprometida com a transformação social, pois os sujeitos tornam-se atores políticos: tomam consciência de suas condições no mundo e rompem com o "cotidiano", conforme o conceito cunhado por Agnes Heller (2008), passando do universo privado para o público.

No último capítulo, "Memória como Estratégia de Resistência e Luta Política", Ansara faz um chamado à academia sobre a importância de se pensar em formas de estudar a realidade social que envolvam as suas demandas e a elaboração de políticas públicas que reconheçam a memória como direito ao passado, um passado que na medida que é reconhecido potencializa o poder de intervenção em formas de ação coletiva no presente.

Para a autora, a reconstrução da memória política da ditadura militar e da repressão no Brasil significa compreender a memória como uma estratégia de resistência e de luta política que se constitui numa luta contra o esquecimento, que requer indiscutivelmente a participação popular e que fará emergir versões antagônicas à história oficial.

Esta forma de pensar e fazer política problematiza as formas de memória consensual coletiva que foram construídas pelos regimes pós-ditatoriais em toda América Latina e que são chamadas de "políticas de esquecimento", as mesmas que se estabeleceram repressivamente instaurando o silêncio através de "reconciliações" nacionais e anistias oficiais.

A pesquisa de Soraia Ansara é propositiva e coerente com uma posição política participativa, que incorpora estes elementos discutidos em todo trabalho e que estão refletidos nos discursos das pessoas entrevistadas, na qual considera que devem fazer parte das políticas de memória: as memórias das classes populares, a abertura dos arquivos da época, a reparação dos danos, por em evidência a manipulação ideológica das políticas de esquecimento e a conservação da memória da ditadura.

Desta feita, o livro aqui exposto apresenta-se, em sua integralidade, como o resultado de um esforço coletivo e que representa na sua originalidade o início dos estudos de memória política no Brasil, sendo altamente recomendado a quem queira se aprofundar nas temáticas abordadas e ter outros pontos de vistas acerca da ditadura militar brasileira para além da história oficial.

 

Referências

Heller, Agnes. (2008). Estrutura da Vida Cotidiana. Em O Cotidiano e a História. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 31-61.         [ Links ]

Montero, Maritza. (2009). ¿Para qué Psicología Política? Revista Psicologia Política, 9(18), 199-213.         [ Links ]

Pollak, Michael. (1989). Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15.         [ Links ]

Suárez, Mirta González. (2008). Psicología Política. San José, Costa Rica. Editorial UCR.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Elvira Riba-Hernández
E-mail: elvirariba@yahoo.com

Semíramis Chicareli
E-mail: psico.schica@gmail.com

 

 

* Psicóloga pela Universidade Autónoma Monterrey, San José, Costa Rica. Atualmente cursa a Especialização em Psicologia Política, Políticas Públicas e Movimentos Sociais da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil.
** Psicóloga e especialista em Psicopedagogia Institucional pela Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP – Brasil. Atualmente cursa a Especialização em Psicologia Política, Políticas Públicas e Movimentos Sociais da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil.